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Aonde estará a interface das ciências ecológicas e psicossociais?

Para que direção ela aponta?

Pedro Moreno Feio de Lemos (HCTE/UFRJ)¹, Evandro Vieira Ouriques


(ECO/HCTE/UFRJ)

(1) pedromflemos@ufrj.br

Resumo

O presente estudo reflete a primeira fase da dissertação de mestrado, iniciada em


2016/1, que articula-se com as indagações feitas no exercício profissional e acadêmico
da gestão de resíduos em universidades públicas e das relações resíduo e sociedade.
Silva (2015), a partir de suas vivências, faz extensa e profícua análise que lança uma
nova perspectiva à gestão de resíduos na universidade brasileira. Nela diagnosticou um
óbice comum às práticas emancipatórias da educação ambiental, o paradoxo do
imobilismo da constatação.

Há, em nossos contemporâneos, um hiato que parece ter se dilatado entre a


possibilidade de constatar e a prática de transformar, a partir deste exercício; em
especial no que tange à relação indivíduo-resíduo e, por conseguinte, a relação
sociedade-resíduo.

Esse fenômeno tem sem dúvida origem nas fundações dessa relação, cuja
história é tão antiga quanto a evolução da espécie humana e das civilizações. Não há
vida sem produção de resíduos, ainda que sejam eles ligados estritamente ao corpo,
constituinte material mínimo da existência física de um ser, como, por exemplo, os
restos de alimentação e os fluídos corporais e excrementos.

Diamond (2005) ao traçar padrões da estruturação do colapso das civilizações,


aponta que os colapsos sociais antigos e modernos possuem componentes ambientais
estruturantes. Sendo, fator, de extrema relevância à derrocada ou não de uma sociedade,
as suas respostas sociais às questões ambientais.
É, portanto, dramático para real avanço da construção de práticas, vivências e
sociedades verdadeiramente sustentáveis, cindir-se o modelo de produção e acúmulo de
riqueza. Esse modelo se constrói e reafirma no seio do capitalismo pela cultura do
hiperconsumo.

Assim, ao transformar aparatos psíquicos fundamentais (o organismo no lugar de


corpo e a natureza como morta, por exemplo) constituímos o substrato para aceitar a
dualidade aonde ela não existe. Embora, a sociedade considere moralmente inaceitável
danificar o ambiente, esse deslocamento dos aparatos psíquicos é o que nos permite
aceitar a ideia perversa da dualidade “desenvolvimento x ambiente”.

Os próximos passos do estudo em curso buscam aprofundar o entendimento


sobre a constituição psicológica, social e histórica da relação sociedade resíduos,
buscando contribuir para o avanço de estratégias para o enfrentamento das limitações
que as ações de gestão de resíduos encontram na dimensão humana

Para tanto vamos prosseguir as reflexões buscando compreender a estruturação e


modificação da percepção dos resíduos na história, bem como os mecanismos psíquicos
e sociais que estruturam o paradoxo do imobilismo da constatação.

Introdução

O resíduo é para ecologia um aspecto – elementos/produtos de uma atividade


que podem interagir com o ambiente – capaz de gerar impactos– alterações das
propriedades físicas, químicas e biológicas do ambiente, causadas por matéria/energia
resultante de atividades humanas que afetem a saúde, segurança e o bem-estar da
população – e, portanto, merece particular atenção por poder acarretar danos
cumulativos ao ambiente.

Hoje os danos ambientais resultantes de práticas de disposição inadequada de


resíduos, bem como as suas consequências socioeconômicas, têm sido de amplo
conhecimento e figurado dentro das discussões das grandes cúpulas ambientais,
servindo de base para criação de legislações que buscam regular esse processo.
Contudo, o conhecimento sobre as consequências a curto, médio e longo prazo
de nossa relação com o resíduo não parecem ser força motriz de uma transformação
ampla e irrestrita das relações e lógicas que o produzem. Pelo contrário, sabemos, dentre
outros exemplos, que países africanos possuem verdadeiros cemitérios para os
eletrônicos Europeus e Estadunidenses, que ainda há famílias que residem sobre o
Morro do Bumba1, que existem ilhas formadas de plástico à deriva nos oceanos
comprometendo toda biota marinha.

As políticas públicas, os instrumentos legais e os acordos formais nas cúpulas


ambientais não parecem dar conta do real quadro e da questão dos resíduos. Esse é um
problema de grande complexidade, cujos caminhos para o enfrentamento estão longe de
serem delineados por uma única disciplina, tampouco por todas elas sem uma
comunicação.

Não se pode, portanto, tratar a questão dos resíduos sem se debruçar sobre suas
raízes econômicas, políticas, sociológicas, etc; mas também é preciso lembrar das
psicológicas, afetivas e até mesmo mitológicas. Estas três últimas tem sido, grosso
modo, deixadas de lado pela literatura, academia e pelas instituições/autoridades
dedicadas a investigação do resíduo.

Morin (2000), sinaliza ser insuficiente o reducionismo utilizado na abordagem


dos problemas complexos. Buscar em um simples conjunto de fatores os reguladores da
totalidade, “É menos uma solução que o problema em si”. Não basta passarmos pelo
entendimento das esferas psicológicas, afetivas e mitológicas do resíduo. Há que se
encontrar a intersecção, o contato direto entre esses campos.

As reflexões deste trabalho dão início à busca de pontes de contato entre estes.
Há no psicológico, nos afetos e nos mitos questões fundantes dessa relação resíduo /
sociedade. Esse trabalho é o primeiro passo de uma pesquisa de mestrado que procura

1
O Morro do Bumba foi formado em um vale que servia de lixão na década de 60. Durante
anos, camadas de lixo e de terra se alternaram na composição do terreno. O solo instável e com declive
acentuado não resistiu às chuvas em abril de 2010, levando a desmoronamento de parte do morro.
encontrar esse ponto de costura, fortalece-lo e explorá-lo dentro do campo de discussão
de resíduos sólidos.

O paradoxo do imobilismo da constatação

A constatação do paradoxo que cunha essa seção foi o combustível de ignição


das reflexões desse trabalho. Cunhado por Silva (2015) como parte das reflexões de
suas vivências na gestão de resíduos em universidades públicas e das relações resíduo e
sociedade. O autor, em sua extensa e profícua análise que lança uma nova perspectiva à
gestão de resíduos na universidade brasileira, disseca o Projeto Recicla CCS, cujas
ações implementaram uma nova estrutura de gestão de resíduos no Centro de Ciências
da Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Nesse trabalho está relatada uma verdadeira transformação. De um quadro de


descumprimento das normas e legislações vigentes acerca dos resíduos, o Centro de
Ciências da Saúde passou à nova realidade: dezenas de kits de lixeiras multiseletivas
para pequenos e grandes volumes, rotas e rotinas de coleta, construção de um centro de
triagem de resíduos recicláveis e aprovação de instruções normativas em seus conselhos
gestores garantindo o compromisso de todas suas unidades e comunidade com uma
nova postura diante do resíduo.

O caminho, pormenorizadamente relatado por Silva (2015), emerge envolto em


diversas reflexões importantes às Universidades no que tange sua relação com impacto
ambiental de suas atividades, bem como uma análise profunda sobre a organização
administrativa do tecido universitário. Dentre outras constatações, o autor diagnosticou
um óbice comum às práticas emancipatórias da educação ambiental que foram
realizadas: o paradoxo do imobilismo da constatação. Explico. Uma desconexão entre a
constatação de uma determinada realidade e a prática de transformação da mesma.

No seu texto original, Silva (2015) se referia à Universidade.

“Com papel oxigenante, promotor e difusor de


conhecimento e formadora da intelectualidade brasileira,
muitas vezes a Universidade empalidece arcaica, arraigada na
mesmice sem buscar romper a inércia e a fragmentação que a
assola. (...)”

Nós aqui tomamos a liberdade de dilatar a leitura desse fenômeno. Essa


realidade está para além das paredes do CCS, dos muros da universidade e até mesmo
de fronteiras geográficas. Há, em nossos contemporâneos, um hiato que parece ter se
dilatado entre a possibilidade de constatar e a prática de transformar, a partir deste
exercício; em especial no que tange a relação indivíduo-resíduo e, por conseguinte, a
relação sociedade-resíduo.

Como explicar esse quadro onde constatamos a realidade, mas diante dela
permanecermos imóveis? Como romper a inércia e passar à ação transformadora,
construída pela reflexão crítica, seja individual ou coletivamente?

Um corpo inerte está em um movimento com velocidade e direção constantes2,


portanto, é preciso entender a origem do movimento que nossas “mentes”, inertes no
que tange a questão do resíduo, assumem. Aqui surge o ponto de articulação que se
busca fazer.

Somos cultura, no sentido de que somos aqui o que pensamos, que afetamos, que
nos afeta e que percebemos. Somos mente e corpo em uma unidade, dirigido por
estados mentais constituídos por fluxos de pensamentos, afetos e percepções (Ouriques,
2007). Nossa relação com o lixo é produto histórico-cultural, histórico tanto no sentido
de nossa história como indivíduo, mas também da história pregressa da relação da
sociedade na qual estamos inseridos com o resíduo. Assim a análise psicológica, se
encontra necessariamente conectada à análise econômica e, portanto, política a uma só
vez. Motivo pelo qual para entender essa constituição histórico-sociológico-cultural e
seus desdobramentos passamos a observar o tema com auxílio do prisma da
psicopolítica.

Das contribuições do campo da Psicopolítica

2
Ou está parado e assim tende a permanecer. Contudo, não considero que possamos ser lidos
como corpos parados.
A psicopolítica da teoria social e da filosofia trabalha com a indissociabilidade
psíquico-político, tendo em vista a irracionalidade preponderante nas formas globais de
organização que expõem a humanidade em face da aposta utópica que é insistir na
mentalidade de que a felicidade seria ser aristocrata ou burguês.

No entanto sabemos que não há recursos naturais suficientes para produzir tais
padrões para todas as pessoas. Por isso fala-se em competir como se esta fosse uma
natureza humana essencial. Traumatiza-se o indivíduo e os grupos, e assim as
instituições que eles formam e sustentam em rede. Fica nele apenas com uma casca
liberal que não resiste às pressões de um desejo e um corpo que ele imagina ser
constituído por uma irracionalidade original, inimigos mesmo de sua razão, que ele
desqualifica diante da manipulação que fazem os interessados naqueles padrões
aristocrata e burguês.

Desta maneira tudo depende da gestão psicopolítica que se faça do território


mental (Ouriques, 2009), analisando qual a qualidade emancipatória ou não que precede
no último momento do processo do indivíduo tornar corpo sua decisão.

Na análise psicopolítica da manipulação das predisposições, a mídia – que


potencializa a comunicação que está na base de toda a experiência, e funda o humano
como ser de linguagem – é analisada há mais de quarenta anos em detalhe (Ouriques
2007, 2010b, 2010c e 2014). Dentro de nossa sociedade construída com base axioma
hobbesiano a dualidade é o mote da articulação do mundo que se cria a partir dele. Com
o resíduo não é diferente. O resíduo é o “outro”.

Nas sociedades capitalistas como conhecemos, estão estabelecidas relações


sociais desiguais, onde dividimo-nos, grosso modo, entre exploradores e explorados, as
polaridades desta máquina de fazer dois, como sublinha Marcio Tavares d’Amaral. O
lixo procede do exercício desigual do poder e, portanto, o reproduz.

O “lixo” na dimensão simbólica é o oposto à ordem e a limpeza.


Segundo, Alvarez (2011; 2012), ao nos formar enquanto sujeitos aprendemos um
conjunto de normas, de preconceitos, de higiene e conduta que tem necessidade da ideia
de “lixo” para se consolidarem. Assim o que gera desordem, incomoda ou atrapalha é
içado para fora da ordem cotidiana pela cesta de lixo.

O nojo, socialmente construído pelo lixo, se estende dos restos de nossas


atividades à aspectos de nós mesmos que renegamos e alienamos com o simples “jogar
fora”. Jogar fora não é uma questão de um cálculo econômico, mas de uma operação
subjetiva mais complexa entre desejos, prazeres e frustações.

O lixo é um objeto que antes tinha valor positivo e um dono e este explorar seu
valor, desapropria-o, dando a esse objeto, agora com o valor negativo do resto, o status
de lixo. Esse lixo é, portanto, o “passivo econômico” ou ambiental que é despejado no
ambiente (sociedade). Assim, a sociedade de indivíduos como um todo, através do
Estado, gera esse “passivo”, garantindo que o “ativo” fique apropriado por uma minoria.
(Alvarez, 2012)

O resíduo assume aqui então uma função violenta. Como o resto de uma
identidade que imposta ao outro, o denigre, dando-o lugar de lixo. O “asco” relativo ao
lixo, se estende àqueles que passam a lidar com ele. Daí a invisibilidade dos
profissionais envolvidos com limpeza urbana, gestão de resíduos e também dos
mendigos, catadores e outros. Estes ao lidar diretamente com o lixo ultrapassam a
fronteira de construção social do lixo e, por isso, ficam impregnados da mesma
denotação.

O campo da psicopolítica também nos permite refletir acerca dos meios de


produção e consumo, intrinsecamente relacionados com estados mentais da ignorância e
da ganância. Esses estados e o divórcio entre o homem e a natureza nos levam a uma
relação utilitarista e insustentável com o mundo natural. Extraímos recursos naturais,
destruímos extensões de terra com os restos de nosso consumo, criamos um verdadeiro
cenário de ecocídio a longo prazo.

Temos consciência dos problemas ambientais. Mas essa consciência está


amarrada a esses estados mentais (fluxo de conceitos, percepções e afetos) velhos e
desgastados de que precisamos ganhar dinheiro, pagar contas, lucrar a qualquer preço.
(Ouriques, 2010). Para constituirmos uma transformação de atitude em relação ao
resíduo, precisamos partir da desconstrução desses estados mentais “insustentáveis” e
da construção de estados mentais “sustentáveis”. O referencial para a tomada de
decisões (tanto nas relações de produção, quanto nas de consumo e, ainda, nas de poder)
deve ser o de transformação desses lugares que pejoram o lixo, que lhe dão o lugar de
resto.

Desdobramentos Futuros

Esse fenômeno (da significação do resíduo como lixo) tem sem dúvida origem
nas fundações dessa relação, cuja história é tão antiga quanto a evolução da espécie
humana e das civilizações. Não há vida sem produção de resíduos, ainda que sejam eles
ligados estritamente ao corpo, constituinte material mínimo da existência física de um
ser, como, por exemplo, os restos de alimentação e os fluídos corporais e excrementos.
Essa complexa relação sociedade / resíduo, não nos deixa, por evidente, perspectivas
futuras das mais amigáveis.

Diamond (2005) ao traçar padrões da estruturação do colapso das civilizações,


aponta que os colapsos sociais antigos e modernos possuem componentes ambientais
estruturantes. Sendo, fator, de extrema relevância à derrocada ou não de uma sociedade,
as suas respostas sociais às questões ambientais.

É, portanto, dramático para real avanço da construção de práticas, vivências e


sociedades verdadeiramente sustentáveis, cindir-se o modelo de produção e acúmulo de
riqueza. Esse modelo se constrói e reafirma no seio do capitalismo pela cultura do
hiperconsumo.

Contudo, ao transformar aparatos psíquicos fundamentais (o organismo no lugar


de corpo e a natureza como morta, por exemplo) constituímos o substrato para aceitar a
dualidade aonde ela não existe. Embora, a sociedade considere moralmente inaceitável
danificar o ambiente, esse deslocamento dos aparatos psíquicos é o que nos permite
aceitar a ideia perversa da dualidade “desenvolvimento x ambiente”.

Os próximos passos do estudo em curso buscam aprofundar o entendimento


sobre essa constituição psicológica, social e histórica da relação sociedade resíduos,
buscando contribuir para o avanço de estratégias para o enfrentamento das limitações
que as ações de gestão de resíduos encontram na dimensão humana. Ou seja, buscando
entender as formas e possibilidade de reversão dessas transformações de aparatos
psíquicos, aprofundar a contribuição do campo da psicopolítica para o estudo e ampliar
o entendimento dos deslocamentos históricos que o resíduo assume.

Referências Bibliográficas

ÁLVAREZ, Raúl Néstor. La basura es lo más rico que hay: relaciones políticas
en el terreno de la basura: el caso de los quemeros y los emprendimientos sociales en el
Relleno Norte III del CEAMSE. Editorial Dunken, 2011.

ALVAREZ, Rául Néstor. O lixo, uma construção social. 2012. Instituto


Humanas Unisinos – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Rio Grande do Sul, 30
nov. 2012. Entrevista concedida ao IHU Online.

Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/516030-o-lixo-uma-


construcao-social-entrevista-especial-com-raul-nestor-alvarez/

DIAMOND, Jared M. Colapso como as sociedades escolhem o fracasso ou o


sucesso. Editora Record, 2005.

MORIN, Edgar. A cabeça bem feita. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, p. 99,
2000.

OURIQUES, Evandro Vieira. Desobediência Civil Mental e Mídia: a ação


política quando o mundo é construção mental. Anais do 10o Encontro Nacional de
Professores de Jornalismo, 2007.

OURIQUES, Evandro Vieira. Sustentabilidade, democracia e sinceridade: ideias


gêmeas, no útero da mente sustentável. Revista Fórum de Direito Urbano e
Ambiental-FDUA, São Paulo, ano, v. 9, 2010(b)

OURIQUES, EVANDRO VIEIRA. Gestão e Mente Sustentável, o Quarto


Bottom Line: uma nova perspectiva sobre Comunicação, Sustentabilidade e Política.
Revista NovaE, v. 20, 2010(c)
OURIQUES, Evandro Vieira. Sobre a economia psicopolítica. Oficios
Terrestres, 2014.

SILVA, Marcelo Côrtes. Recicla CCS: novo olhar sobre a gestão de resíduos
em Universidades. Rio de Janeiro, 2015. Dissertação (Mestrado em História das
Ciências, das Técnicas e Epistemologia) – Centro de Ciências da Matemática da
Natureza, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015

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