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ou
Nada ao certo
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Personagens:
Em algum dos cantos mais atrás, ao som de “Hauting and Heartbreaking” (de Ângelo
Badalamenti), uma luz baixa ilumina uma mulher sofrendo uma espécie de transtorno
bipolar. Ela está vestida com um pijama branco andando de um lado para o outro num
pequeno “quarto de manicômio” onde há apenas uma maca coberta por um lençol
branco. A mulher ao mesmo tempo em que caminha segura com força uma carta e
murmura palavras incompreensíveis. Passam-se poucos minutos. A mulher se abaixa
sem soltar a carta e diminui o som dos murmúrios. A luz sobre ela se apaga.
Luzes são acesas revelando Laís e Herman sentados em um banco de praça. Ela está
olhando para o chão e segura uma carta. Ele acaricia o rosto de Laís olhando-a
fixamente.
Ambos ficam em silêncio por alguns segundos. Laís tampa os ouvidos de Herman.
Herman: Nem os pássaros daqui cantam. Não há barulho de água, nem de vento. Nada.
Apenas alguns murmúrios que nós mesmos fazemos. Há silêncio em tudo, em todas as
partes, em todas as pessoas, em todos os lugares. Lá fora também deve ser assim...
Laís: Não! Lá fora não há silêncio, mesmo assim ninguém ouve pássaros, nem a água.
Todos falam, mas não dizem nada, falam um amontoado de palavras sem nem saber o
que significam. São todos cheios de nada, deviam mais é ficar calados.
Herman: (Falando num tom alegre e infantil) Ontem eu fui ao parque, hoje eu estou
aqui com você, amanhã...(mudando de tom) amanhã eu não sei.
Laís: (Num tom frio e seco) Afinal, o que importa o amanhã para você, Herman?
Importa somente se estaremos aqui. E será que estaremos? Amanhã! Ontem! E se eu
perguntasse...Foi bom ontem? Sua vida está sendo boa? Sua vida foi boa? Sua vida
ridícula e medíocre...Responda!
Herman: Posso ler a carta?
Laís: (Acalmando-se) Ainda tenho 27.
Herman: Hum...é só mais um papel cheio de palavras...
Laís: Que expressam meus sentimentos.
Herman: (Rindo) Antes de você enlouquecer?
Laís: O louco aqui é você. Sou eu que venho te visitar.
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Herman: Ah Ah! Imbecil! As pessoas que se julgam sãs fazem parte da maior corja de
dementes até hoje vista. (Num tom irônico) Para que servem as grades nas janelas do
seu quarto?
Laís: Para me proteger dos ladrões.
Herman: Ou para proteger as pessoas de você. Mas...bem que as pessoas sãs agora
preferem ficar trancadas enquanto liberam os loucos por aí.
Laís: Você não chegará a lugar nenhum com esse tipo de afirmação cretina. Até parece!
Agora as pessoas sãs ficam trancadas e as loucas livres...poupe-me! Você nega a admitir
que está louco e ainda por cima tenta enlouquecer-me. Você junto com seus poemas
idiotas, todos sempre falando das mesmas coisas: loucura, decadência, tristeza, tudo
besteira do tipo que quem ler um nem precisa ler o resto...são todos iguais, melancolia e
depressão criadas por uma mente ainda adolescente de alguém que diz ser artista...
Herman: Como a sua carta.
Laís: Não! Minha carta fala de um sentimento...
Herman: Que você sentiu aos 16 anos.
Laís: E que continua imutável...
Herman: Sendo assim você afirma que continua depressiva e melancólica.
Laís: Eu não disse isso!
Herman: Disse sim!
Laís: Para quem libertou os loucos e trancafiou os sãos você está revelando-se um tanto
quanto tradicional. Ainda distorce o sentido das minhas palavras. Daqui a pouco dirá
que todos os jovens são loucos.
Herman: A juventude não tem nada a ver com a loucura. A idade não importa quando
falamos dela. Afinal, o que é ser louco? O que é preciso para ser louco? Ou será preciso
ser louco para ser algo? Isso faz eu lembrar...
“O maior de todos os loucos...
O maior é aquele que consegue fingir estar do lado de dentro...
Do lado de dentro de uma qualquer normalidade aparente”¹
Laís: O que você quer dizer com isso?
Herman: Essas palavras não são minhas.
Laís: E de quem são?
Todos: Da psicótica-maníaca-depressiva mais normal que eu já conheci.
Laís: Não quero discutir palavras que não são suas.
Herman: E por que iria você querer discuti-las?
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Laís: Porque é só isso que fazemos. Assim, não dissemos nada com nada, porém
transmitimos nossa insanidade.
Herman: É disso que se trata a sua carta? “A transmissão da insanidade”.
Laís: Não me irrite!
Herman: Você não sabe o que diz.
Laís: Você confunde as palavras que são ditas.
Herman: A confusão faz parte da normalidade.
Laís: Da normalidade aparente?
Herman: Creio que sim. Talvez essa seja a única. Você já pensou na origem disso
tudo?
Laís: Do que?
Herman: Dessa classificação da insanidade ou seria da normalidade?
Laís: Isso não me importa.
Herman: O que importa para você? Você é tão pequenininha, tão bonitinha.
Laís: Não diga isso.
Herman: Não posso não dizer. Você é tão bela, mas tão...
Herman: Acho que com o tempo acabei me acostumando com você assim. Cada vez
mais quero olhar para você (segurando o rosto de Laís) e tentar descobrir o que se passa
na sua mente, o que será que você está pensando, será que eu vivo em sua mente? O que
seus olhos escondem...seus olhos são tão profundos, tão inquietos.
Laís: Pare com isso (afastando Herman de seu rosto). O que importa tudo isso agora?
Herman: Gosto de falar o que estou sentindo.
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Laís: Mentira. Você nem sabe o que sente, está o tempo todo se contradizendo. Nunca
entendo o que você quer dizer.
Herman: Eu sempre digo o que você quer ouvir.
Laís: (aumentando o tom de voz) Então agora eu não quero ouvir nada, nada!
Os dois olham para lados contrários por alguns instantes em silêncio, até que Laís olha
fixamente para Herman.
Laís: Eu gosto quando você fala. (hesita acariciar o rosto de Herman) Gosto da sua
voz, gosto do que você diz. Não sei se isso lhe interessa agora.
Herman: Eu me interesso pelo que você se interessa.
Laís: Você é louco! Acho que a única coisa que me interessa agora é viver, você não
parece se interessar apenas por isso.
Herman: Hum! É engraçado esse seu novo interesse. Quando você era mais nova
sempre dizia que não vivemos para nós, que vivemos para a morte, que não falamos,
mas pensamos sempre nela e esquecemos de viver.
Laís: Eu dizia isso? Sempre achei que era você.
Herman: Você sempre acha, nunca tem certeza.
Laís: O que tenho que ter certeza? Sou apenas mais um rosto na multidão. Um
espectador de um espetáculo de coisas belas. Um espetáculo, um grande espetáculo que
jamais farei parte.
Herman: Não entendi. O que você quer dizer com isso?
Laís: Que eu não conheço o que é belo, não sei definir a beleza. Sou só mais uma
burguesa com uma bagagem exagerada de idéias.(levantando-se) Às vezes chego a
pensar que estou morta, ou então que faço parte da esquizofrenia de um ser qualquer.
Herman: Se alguém faz parte da esquizofrenia de um ser, então esse alguém sou eu.
Laís: Como assim?
Herman: Agrada ao doente saber do seu mal.
Laís: Quieto! Você acaba me deixando irritada.
Herman: Você tem todo direito de se irritar, faz parte do seu mal Laís.
Laís: Eu não tenho nenhum mal.
Herman: Então não fique irritada.
Laís: Você é confuso! Eu sou confusa! É melhor você não falar mais nada!
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Herman não se encosta a Laís em nenhum momento. Junta a carta caída no chão, senta
no banco, pousa a carta ao seu lado. Laís permanece encolhida no chão abafando o
choro. A luz sobre eles se apaga. Acende a luz da cena mais atrás, a mulher está
deitada na cama, entra um enfermeiro carregando uma bandeja com um copo d’água e
medicamentos .O mesmo se prepara para servir a água e os medicamentos à mulher
quando percebe que a mesma está morta, devolve o que retirou da bandeja e cobre todo
o corpo da mulher com um lençol. O enfermeiro se dirige a saída do quarto. A luz vai
diminuindo. Ouve-se a voz de Herman, ao entrar a voz dele o enfermeiro volta-se em
direção ao corpo da Mulher.
Herman: (em off) Laís? Laís? Sua carta...eu deixei...sua carta está sobre o banco.
FIM.