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O Fim de vida do Gonçalo foi muito prolongado, começo por aí, foi a minha

primeira experiência em cuidados paliativos pediátricos, tão longa.

 Relativamente à dor/sofrimento...
Fez-me muita confusão os 20 dias de agonia respiratória desta criança, se é que
se pode dizer desta forma. Entre as várias estratégias utilizadas para o acalmar
nos momentos de maior agonia, considero que nenhuma aliviou totalmente o
sofrimento daquela criança. Como é que se deixa ficar uma criança tantos dias
em sofrimento e com uma dor terrível provocada pelo esforço respiratório
permanente. Administra-se morfina oral nos períodos de maior agitação, que
efeito teve?? Na minha opinião, nenhum...conteúdos gástricos exuberantes...
ele acalmava por exaustão, não pelo efeito da medicação. Várias vezes questionei
a equipa médica, era nosso dever contatar a unidade da dor...todos os dias tentei
que se desse este passo...Por acaso tinha acabado o curso de cuidados paliativos
de adulto à pouco tempo e se calhar também esta equipa poderia ter-nos
ajudado...e ao Gonçalo/família muito mais ainda...
No último dia de vida do Gonçalo foi o dia mais tranquilo para ele e para nós,
refiro-me a mim. A unidade da dor foi finalmente contatada e implementada
morfina por via subcutânea... Jamais me vou esquecer das palavras do médico da
unidade, já não me lembro do nome dele... “este miúdo está num sofrimento
atroz, com esta dificuldade respiratória e à tantos dias, isto dá dores terríveis
enfermeira...”!!! Eu olhei para ele e senti-me tão pequena e angustiada que ainda
hoje me questiono “como é que eu não fiz mais pressão sobre a equipa
médica...devia ter feito”.

 Procedimentos invasivos realizados...


Consecutivamente aspirado e constantemente afogado em secreções...é um
desabafo... Várias vezes evitei aspirar, aliás deve ser dos procedimentos mais
invasivos que existe, nunca experimentei mas de agradável não tem nada...
Recordo uma manhã, das muitas em que cuidei dele, assim que sai da passagem
de turno e fui ao quarto e ele estava com a máscara de oxigénio atulhada de
secreções, quase sufocado... O pai tinha chegado junto dele antes de mim e
encontrou-o neste estado!!! Tinha sido um inicio de manhã complicado com uma
paragem respiratória de um miúdo na saída de noite e uma transferência para a
UCIP de outra criança logo pelas 9h... O pai estava revoltadíssimo, via-se no seu
fácies e postura... Comecei a aspirar e a realizar a higiene do corpo e cavidade
oral...no fim o pai disse-me “custava muito as suas colegas terem vindo ver o meu
filho, sempre confiei em vocês e encontro o meu filho neste estado, eu sei que a
culpa não é sua”... Expliquei as circunstâncias do serviço e o que se tinha passado
com as duas crianças, mas não é justificação, e eu sei...
Será que não existia nenhum medicamento que reduzisse esta quantidade de
secreções, eu não sei mas se calhar a equipa de paliativos poderia ter ajudado se
a tivéssemos contatado... Que conforto é que eu promovi na situação desta
criança...

 Recursos humanos (in)suficientes...


Na altura eu estava a integrar a Michelle à duas semanas no serviço, foi tudo
menos integração, nós trocávamos para que uma de nós estivesse sempre junto
do Gonçalo durante o turno, exigia cuidados constantes... Deveria ter sido revisto
o rácio enfermeiro/criança...claro que sim...mais enfermeiros em cada turno...o
Gonçalo precisava de um enfermeiro só para ele... Tenho a certeza que para
alguém que está a ser integrado num serviço de pediatria, jamais deveria ter
ficado com o Gonçalo, é muito pesado emocionalmente, se para mim foi um
horror, imagino para a Michelle...enfim...hoje teria agido de forma diferente... Não
sei até que ponto esta não foi a situação que desencadeou a escolha da Michelle
em abandonar o serviço!!!
Acho que a equipa médica da urgência, nos turnos de fim de semana, tardes e
noites não teve respeito ou noção do que é cuidar de uma criança em fim de
vida...
Constantemente queriam internar crianças e nós, duas a fazer manhã ao FS, uma
angustia terrível pensar que o Gonçalo precisava de cuidados e eu não conseguia
lá chegar, não tinha mãos a medir...

 Os pais...
Que suporte tiveram durante este processo? Fomos fazendo o que conseguimos,
quase sem tempo para estarmos com os pais! Após a morte do
Gonçalo...luto...será que a Isabel vai conseguir ultrapassar...após um mês ela foi
ao serviço...não estava a ser acompanhada por ninguém, esta mulher dedicou a
vida ao filho, ela própria dizia que não sabia viver sem ele!!!

 Eu...nós enquanto equipa!!!


Nas passagens de turno falava-se da situação mas não acho que tivesse sido a
melhor estratégia, eu acho que nos deveríamos ter sentado todos e conversado
sobre o que correu bem, menos bem e como nos sentimos, nada foi feito...
Mais uma vez trouxe várias vezes a minha angústia para casa e o peso de que
podia ter feito melhor e não fiz, se calhar também foi uma dificuldade minha,
envolvi-me demasiado...

Estas palavras são para ti Vanda...


Acredito que tudo vai melhorar e que vais conseguir implementar a mudança nos
cuidados à criança em fim de vida... Espero ter dado o meu contributo...
Alguma coisa que precises estarei ao dispor...
Muito Obrigado
Ana Santos

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