Você está na página 1de 5

DOUTRINA

o PODER REGULAMENTAR E .SUA EXTENSÃO


CA..~LOS MEDEIROS SILVA
Consultor Jurídico do DAS P.

SUMÁRIO: Separações dos poderes. Regirne pa'rlarnentar e regi-


rne presidencialista. Silêncio ou ontissão da lei.
1. A extensão do poder regulamentar é matéria controvertida
que assenta, em última análise, na concepção política que preside à or-
ganização do Estado. Não basta remontar-se à separação dos poderes
preconizada por Montesquieu, cuja rigidez varia no tempo e no espaço,
para discriminar as competências do Legislativo e do Executivo e con-
seqüentemente fixar a distinção entre a lei e o regulamento, de acôrdo
com a fonte que edita o texto. l Esta remissão dá ao intérprete uma
noção formal, sem revelação de conteúdo. 1l:ste, de difícil caracteriza-
ção, é que interessa àquêles que devem elaborar quer a lei, quer o
regulamento, no exercício da sua competência. No texto da Constitui-
ção é possível identificar certas matérias como sendo da natureza le-
gislativa; mas, ainda nesta hipótese o poder regulamentar poderá exer-
cer-se, em virtude da faculdade ali outorgada de um modo geral ao
Executivo, ou, ainda, por convocação inserida na própria lei ordinária.
A matéria tributária oferece exemplo típico. Sendo tradicionalmente
da competência privativa do Legislativo que nêle teve, histOricamente,
a sua principal razão de ser, confundindo-se em suas origens, deixa
larga margem ao poder regulamentar. 2

A propósito do conflito da lei e do regulamento e da verificação da sua exis-


dncia. fornecem os autores vários critérios: Pimenta Bueno. Direito Público Brasileiro e
Análise da Constituição do Império, 1857. § 326. pág, 237; Carlos Maximiliano. Co-
mentários à Constituição Brasileira, 3,a ed,. 1929. pág, 542.
Em estudo recente Vitor Nunes Leal. aborda o problema do regulamento em face
da lei. Apesar de escrito sob a vigência da Constituição de 1937. é ainda o trabalho
mais completo sôbre o assunto. uma vez que vários de seus capitulos não sofreram al-
teração com o advento da Constituição de 1946 (Revista de Direito Administrativo,
vol. I. págs. 371-396,)
2 A recente Lei n.o 154. de 25-11-,47. que alterou dispositivos do imp6sto
de renda. no art. 27, convocou o Executivo a regulamentá-Ia. nos têrmos os mais amplos:
-. .. devendo o Poder Executivo baixar o regulamento de execução. o qual consolidará
tôda a legislação do impôsto de renda." O Decreto n.o 24,239. de 22-12-47. contendo
206 artigos. deu à lei a reclamada regulamentação.
O Código de Contabilidade da União de grande repercussão na gestão financeira
do país é um regulamento aprovado pelo Decreto n.o 15.783. de 8-11-22. Contém
926 artigos.
-2

2. A competência legislativa e a regulamentar se exercem para-


lelamente, uma vez que ambas têm fundamento constitucional. Não é
possível, portanto, vedar a lei a regulamentação de seu texto. O Exe-
cutivo poderá fazê-lo sempre que julgar conveniente. 3 Como o direit<J
não se esgota com a lei, dadas as deficiências de linguagem e a im-
possibilidade de prever todos os casos de incidência, aos seus aplicado-
res, na esfera do Executivo e do Judiciário, cabe concretizar a intenção
do legislador. Nesta tarefa de revelação do pensamento do legislador
o papel do intérprete é, muitas vêzes, de verdadeira criação, máxime,
para preenchimento de lacunas que a ordem jurídica, em seu conjunto
não tolera, assim como, noutro plano, se diz, que a natureza tem
horror ao vácuo. 4
3. Ainda que o regulamento em regra pressuponha uma lei an-
terior à qual se acha vinculado, expressamente, a doutrina reconhece
que pode ocorrer o contrário. Mesmo sem lei anterior e ante a inércia
do Legislativo, o poder regulamentar se pode exercer, quando inte-
rêsse relevante, cuja tutela cabe ao Executivo prover, o reclame. As-
sim acontece nos casos de defesa da ordem e da segurança públicas,
quando a ausência de preceitos gerais, emanados do Legislativo ou do
Executivo cause perplexidade às autoridades ou à população, agra-
vando a situação ou fomentando a subversão. Também em matéria
de organização interna e funcionamento dos serviços públicos, se ad-
mite geralmente que o poder regulamentar pode exercer-se com certa
liberdade de movimentos principalmente em se tratando de serviços
novos uma vez que não sejam agravadas as despesas previamente
orçadas. 5

Os registros públicos. relativos a pessoas e bens. são regidos pràticamente por um


regulamento. aprovado pelo Decreto n.o 4 857. de 9-11-39. contendo ,31 artigos.
O famoso Regulamento 737, de 25-11-1850, com 743 artigos, foi a nossa leI
processual durante ma:s de meio século. Êstes exemplos que poderiam 5er multip'icados
mostram o prestígio e a utilidade do poder regu'amentar, entre nós, em rodos os regImes.
3 "li faut considérer comme fausse la theorie d'aprés laqueIe le pouvoir réglemen-
taire serait une delegation du pouvoir legislatif; elle est fausse parce que Ir pouvoir r~­
glementaire est spontané ct historiquement antérieur au pouvoir legislatif, ct encore parce
que, dans un pays à constitution écrite et à separation des pouvoirs. le pouvo: r legislatif
ne se délegue pas". (M. Hauriou, Droit Administratd, 4. a ed., 1938, pág. 315.)
4 H. Bonneau adverte que "La portée statutaire de loi ne fait dane pas davan-
tage obstacle au pouvoir de I'Executif de prendre des reglements autonomes dans le
silence des lois, qu'au pouvoir de l'autor:té jurisdictionelle de crécr du droit nouveau au
taS d'insuffisance de la loi" ("La distinction de la loi et du reglement", 1944, pág. 86).
Anibal Freire da Fonseca em preciosa monografia depois de acentuar a "extensão
crescente do poder regulamentar" aborda a questão da lei omissa: "É possível que, por
omissão, o legislador tivesse esquecido na lei disposições capitais, que reforcem a sua exe-
cução e concorram melhor para o objetivo visado. Não havendo, antinomia entre os dis-
positivos. o regulamento. qu~ tem de completar a lei, pode tratar da matéria de que o
legislador não cogitou, mas somente com o fim de ampliar o espírito da deliberação
legislativa". ("Do Poder Executivo na República Brasileira", 1916, pág. 81).
5 Carré de Malberg informa que "numerosos autores afirmam, como coisa evi-
dente, que o Presidente da Repúb ica tem a faculdade de expedir espontânea mente. isto é,
sem necc~idade de que uma lei o convoque ou o autorize. previamente, o~ regulamentos
que tenham fins po;iciais ou que "sem nenhuma lei que o habilite, a estatuir em forma
regulamentar a re;peito da composição do pessoal administrativo ou sôbre a conduta que
-3-
Êstes chamados regulamentos sem lei, mostram que na prática
é quase impossível discriminar-se campos de competência privativa do
Legislativo e do Executivo. 6
4. No regime parlamentarista o poder regulamentar é conside-
rado como poder derivado ou secundário, assim como o próprio Poder
Executivo é colocado em plano inferior ao Legislativo. Entende-se que
só êste encarna a soberania da nação. O Executivo, de eleição indireta,
não recebe diretamente do povo a sua investidura. O Chefe do Estado
reparte as suas atribuições com o Primeiro Ministro que exerce tam-
bém o poder regulamentar. Ambos, porém, em face do Parlamento,
são tidos como autoridades incumbidas da execução de seus desígnios.
Daí a posição subalterna, do ponto de vista político, dos textos emana-
dos do Executivo em face das normas editadas pelo Legislativo. As-
sim, a distinção entre lei e regulamento, segundo conspícuos doutrina-
dores se prende a posição desigual em que se encontram o Legislativo
e o Executivo. 7 O primeiro, representante da vontade nacional, rece-
bendo investidura diretamente do povo; o segundo, constituído pelos
membros do primeiro, através da eleição indireta, ou do voto de con-
fiança, para execução de suas deliberações.
Esta digressão vem demonstrar quão inadequada, nos regimes
presidenciais, é a invocação pura e simples, da doutrina elaborada nos
países de regime parlamentar, a· propósito da concepção do poder re-
gulamentar e sua posição em face das normas emanadas do Legislativo.
O regime presidencial funda-se na independência e na autonomia, em
face do Legislativo, tanto do Executivo como do Judiciário. Êstes são
considerados como poderes de inspiração política como o Legislativo.
Não há subordinação, nem hierarquia, no plano concepcional ou cons-
titucional entre êles. Cada um tem a sua órbita de ação traçada no
pacto fundamental e dentro dêle age soberanamente. 8 O Chefe do Exe-
cutivo é investido em suas funções por eleição direta; o Judiciário se
constitui de membros recrutados por competição pública, ou mediante
acôrdo entre o Executivo e um ramo do Legislativo ou do próprio Ju-

deverão ter os agentes da administração". Cita. em seguida. como propugnadores desta


doutrina Hauriou. Moreau. Cahen. Esmein. R')mieu.
Autores alemães também sustentam a mesma tese ("Teoria General dei Estado".
versão espanhola. 1948. págs. 594 e segts.). Na monografia "La loi. rxpression de la
volonté generale". 1931. aborda minuciosamente o assunto.
6 Rui Barbosa. defendendo o uso da facu~dade regulamentar delegada pelo Le-
gislativo ao Executivo. faz um relato do direito comparado e da doutrina dos países
cultos. favoráveis a ela. Proclama mesmo que a "noção elementar a tôdas as Consti-
tuições. de que os regulamentos se formulem para executar unicamente as leis". ficou
reduzida a uma "ficção" (Comentários. vol. IH. pág. 206).
7 "Le pouvoir reglementaire s'est étendu dans la mesure ou le Gouvernement a
possédé preponderance vis-as-vis du Parlement". Ainsi. sous les deux Empires. !e pOllvoir
relllementaire a été trés largement exercé par le chef de rEstat". R. Bonnard. Droir
Adminiitratif, 1935. pág. 252.
8 "Cada um dos poderes age franca e autonômicamente. sem subordinação nem
dependência alguma. dentro da órbita das faculdades que a lei fixou-lhe E daí resulta
o equilíbrio no funcionamento de todos êles (A. Milton. A Constituição do Braiil.
1898. pág. 231).
-4
diciário, entre nós, ou mesmo por eleição, como acontece em vários
Estados norte-americanos.
5. O exercício do poder regulamentar, no regime presidencialista,
há de ser encarado, portanto, sob ângulos mais amplos.9 Quem dêle
se utiliza não é um delegado do Legislativo, um órgão por êle escolhido
e sujeito à sua orientação política, como acontece no regime parla-
mentar, mas um chefe de Estado que recebe diretamente do povo a sua
investidura e cujos poderes estão traçados na Constituição. Evidente-
mente o poder regulamentar, neste caso, é também um poder político
com competência própria que se reveste de uma autoridade igual a
dos atos que os demais órgãos do Estado, fazem emanar, no exercício
de suas funções. 10 Assim como a lei e a coisa julgada são intangíveis
porque expressões definidas da vontade do L€gislativo e do Judiciário,
tamb2:rn o poder regulamentar há de gozar da autonomia e da exten-
são compatíveis com 8. posição constitucional do Poder Executivo. Não
será admissível a proibição de seu exercício, nem a invalidação arbi-
trái'i~ de seus efeitos.

6. Usando da faculdade de editar regulamentos não pode, entre-


tanto, o Executivo, invadir a órbita de atribuição dos demais poderes
do Estado. l l Desde, portanto, que o Legislativo, estabeleça a norma
que julga adequada à regência de determinado assunto, não havendo,
no sistema da constituição rígida, infração de seu texto, fica automà-
ticamente interditado o exercício, em contrário, do poder regulamentar.
A lei só deixa de atuar quando declarada inconstitucional ou fôr re-
vogada por outra lei. Daí a noção corrente de que o regulamento não
pode superpor-se à lei; caso contrário, haveria invasão de atribuições
de um poder no campo privativo do outro, com supremacia de um
dêles.
Devem, pois, uma e outra competência exercer-se paralelamente
e não em conflito. Nesta úitima hipótese caberá ao Judiciário por
têrmo à divergência. 12

9 Para estabelecer. por disposiçb de caráter obrigatório. os meios. regras, previ-


dências e fórmulas a isso adequadas, para executar as leis, o chefe da nação goza de um
poder discricionário. .. Agente responsável dessa execução, tal discrição não lhe pode ser
negada" diz João Barbalho, Comentários, 1902. págs. 84-50.
10 "Je dis qu'il est (o regulamento) du point du vue materiel. et seulement du
peint de vue matcriel. une loi et naiment une loi", afirma Duguit, Trait.! de Droit Comti·
tutionnel", 3. a ed., 1938. Tomo lI, pág. 211.
11 "O regulamento ê uma quase lei, ê um complemento ou prolongação da lei.
mas não é lei, nem dela deve afastar-se substancialmente" (Soriano de Souza, Princípio6
Gerais de Direito Público e Comtitucional, pág. 313).
12 "La volonté générale que édicte des regles qui constituent du droit primai~,
du droit ayant le même caracter inicial qu'elle. Le reglement engendre du droit sccondain
et derivé; du droit qui est mise en oeuvre executive, et qui cst cn ce sens un succedanf
de la regle primaire du droit pour laquelle I'Executif a été habilité à creer; du droit ali
second degrê, qui est por consequent, dans un rapport de filiation avec le droit primain
constitué pour la regle portant habilitation; du droit qui, pour tous ces motifs, merite
!c nom de droit legal" (Carn: de Malberg, La loi, expression de la volonté génirale,
1931. pág. 77).
-5-

7. Na prática, entretanto, ocorre freqüentemente que a lei é


omissa sôbre aspectos capitais de sua execução. Ora deixa de declinar
elementos indispensáveis ou de prover meios adequados aos órgãos in-
cumbidos de aplicá-la; ora silencia quanto à extensão, no tempo e no
espaço, de seus beneficiários. Se, verificada a omissão, ante o con-
tacto com a realidade, o Legislativo não cuida desde logo de preencher
a lacuna, fica aberto ao Executivo campo livre para solver o impasse,
usando do poder regulamentar, ou ao Judiciário criando a norma como
se fôsse legislador. Não haverá, neste caso, invasão de atribuição,
nem usurpação de competência. Sendo omisso o Legislativo, os demais
órgãos do Estado, incumbidos de aplicar a lei, usam de uma competên-
cia própria, inerente à sua função, quando incumbidos da aplicação da
lei preenchem o vasio com atos por êles expedidos. Não devem perma-
necer inertes e deixar que o mal fique sem remédio. A constituição
dotou-os de prerrogativas tão altas como as do Legislativo e a êles cabe,
igualmente, prover o bem público. 13

13 No regime anterior. entre nós. o poder regulamenrar cabia ao Imperador. Chefe


do Poder Executivo. O art. 102 da Constituição. outorgada em 1823. dizia: "O Impe-
rador é o chefe do Poder Executivo e o exercita seus ministros de estado" O item 12
referia-se ao poder regulamentar nestes têrmos: "Expedir os decreto. instruções e regula-
mentos adequados à boa execução das leis". Os decretos continham a rubrica do Impe-
rador e eram assinados pelos Ministros interessados. Os projetos de decret'J eram elabora-
dos pelo Conselho de Estado ou submetidos à sua apreciação antes de expedidos (art. 7
JI. o 6 da Lei n.o 234. de 23-11-41).
Com o advento da república a atribuição de expedir regulamentos passou ao Pre-
sidente da República.
Na França. pela Constituição de 27-10-1946. art. 36. o Presidente da Repúbli-
ca promulga as leis mas a função de expedir regulamentos cabe ao presidente do COD-
selho de Ministros. art. 47. Sob a vigência da Constituição de 1875. tal atribuição
cabia ao Presidente da República (G. VedeI. Droit Constitutionel, 1949, pág. 509).

Você também pode gostar