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2015, Santos, Primavera

A noite na livraria era fria.


Nina não tinha como pensar em outra coisa. Apesar de deixar a mente vagar, acabando
observando aqueles corredores vazios por toda a extensão abarrotada de livros. Relia
pela vigésima vez as categorias e os panfletos da loja. E embora a avenida visível pelas
portas de vidro em sua frente fosse movimentava, aquele lugar continuava a ser apenas
um espectro na cidade.
Com o passar dos tempos, o povo ordinário tinha se dedicado menos a leitura. Nina
tinha quase vinte anos, e já percebera o quão ignorante a sociedade podia ser, o tão
chula e sem escrúpulos. Vivera meses na rua, sendo ignorada como uma indigente, em
uma situação pior do que os calabouços do próprio inferno.
Infernais eram, de fato, imprevisíveis e irracionais, em certas situações, porém, em
casos não raros, melhores que os ordinários. Um lobisomem tem compaixão pelo outro,
e nunca negaria uma mão estendida. Vampiros, bruxas e fadas eram idênticos, apesar
das divergências, tinham que se ajudar, afinal, se não o fizessem, ninguém mais o faria.
Na noite morna de primavera, os borrões dos carros passavam rápidos pela avenida. As
pessoas iam e vinham, ignorando-a. Exibiam seus cabelos egocêntricos e roupas fúteis.
Uma moça passou e encarou a livraria, mas relutou e seguiu em frente. Tinha um
enorme demônio parasita em seus ombros.
Nina engoliu em seco, respirando o ar refrigerado que descia como vidro.
Não prestou muita atenção quando a porta se abriu, e viu o namorando entrando. Ian
era um rapaz alto, com barba rala pelo rosto e cabelos arrumados.
Sorriu para ele, sentindo calor no peito. Ian foi a única coisa boa, no meio de um
furacão de complicações. Na maré de monstros, anjos caídos e conspirações, ele a guiou
para o caminho certo. Claro, não podia dar-lhe todos os créditos. Outros amigos a
ajudaram também.
— Como anda a noite? — ele perguntou, fitando um livro aberto. — Muitos clientes?
— São como anjos no inferno. Um a cada mil anos — respondeu, em suas metáforas
causais. Ian riu de leve. — Ainda vai demorar cerca de meia hora para eu fechar a loja.
— Que droga — praguejou, com olhar baixo. Deixou o livro onde pegou, e para
desviar do olhar dela começou a endireitar as arestas que vazavam da pilha reta.
— Ia me chamar para sair?
— Não — negou, a encarando. — Não quando tem um lobisomem em frenesi pela
cidade.
— Outro que deu problema com os vampiros? — perguntou, com tédio. Nunca fora
adepta ao trabalho provisório do namorado. Ian era apenas um ordinário num mundo de
criaturas atemporais, de outras dimensões. Era um mísero humano contra deuses, todas
as noites que era contratado.
— Não só com os vampiros — argumentou, com um pouco de vergonha. — Matou
algumas garotas fadas também.
Nina só concordou com a cabeça. Tinha planos de sair com ele, talvez apenas tomar um
café numa cafeteria de esquina. Ou um suco. Qualquer coisa cairia bem agora. Começou
a sentir um gosto amargo na boca.
— Amanhã — ele disse, de súbito. Sua mão no balcão foi sobreposta antes mesmo de
ter tempo para pensar. Os olhos dele caíram sobre os seus, grandes e escuros. Ian tinha
crises e problemas, muitos relacionados a sua pequena importância, o quão pequeno se
achava. Nina nunca pôde o confortá-lo de verdade, não podia dizer que o entendia. Seria
mentir descaradamente. Era a última de uma linhagem única de bruxas difundidas, com
o sangue de Hécate, tendo o poder de invocar demônios com um estalar de dedos. Nina
sempre soube que, desde pequena, era destinada a ser grande, se impor sobre as outras
bruxas convencionais. Enquanto Ian, porventura, era apenas um ordinário, como os que
iam e vinham na rua, não muito longe. — Eu prometo que amanhã nós podemos sair.
— Não se preocupe — respondeu, não muito convincente. — Te entendo, tem coisas a
fazer.
Ian ficou na ponta dos pés e, por cima do balcão, roubou-lhe um beijo.
Nina riu, um pouco sem graça.
— O que é isso? — ele indagou, apontando para um papel com números rabiscados.
Nina teve o impulso de puxar a pequena folha para debaixo do braço e cobrir com o
cotovelo. Mais cedo, há não muito tempo, um garoto lobisomem tinha entrado na loja e
a fitado. Era alto, moreno e simpático. E, não muito diferente de outros que lá iam, tinha
segundas intenções ocultas nos olhos claros. Nina se esquivou de seu convite de ir até o
Bala de Prata, beber alguns drinques. Logo em seguida ele propôs que fossem até o
covil das bruxas, desfrutar de algumas drogas mágicas. Disse ter uma amiga que
traficava e podia fornecer por um preço barato.
Com um tímido não, Nina o rejeitou antes de criar caso. Ele não se abalou, deixando o
convite de pé, caso mudasse de ideia. A falou que estaria no bar dos lobisomens, a
esperando.
— É o telefone de uma senhora que encomendou um livro — blefou, evitando o olhar
nos olhos.
Ian ficou mais alguns minutos, mas resolveu não prolongar muito. Foi embora depois
que recebeu um telefonema. Provavelmente era Solange, uma das vampiras
mandachuva. Nina não entendia bem seus sentimentos, talvez tivesse uma ponta de
ciúmes, nada grave. Solange já os ajudara num passado nada remoto, era uma boa
pessoa, apesar do ambiente errado que vivia e geria.
Porém, a julgar era pura hipocrisia. Olhar em volta e analisar as bruxas com quem
comungava era um ato solene de puro desgosto. Eram, em sua grande maioria, sem
escrúpulos e princípios. Tinham olhos ambiciosos sobre Nina e seu dom. Apesar de
saber do interesse delas, o casarão onde sediavam as reuniões era bonito e agradável,
além de possuir uma biblioteca imensa e cheia de conteúdo. Aturar Eliza era um preço
revogável para aprender mais de sua natureza, mas era sua única escolha. A bruxa tida
como a Poderosa da cidade tinha uma persona simpática à primeira vista, porém,
bastava alguns dias de convivência para se ver manipulado por ela.
Nina suspirou para si mesma, resolvendo se afastar de seus pensamentos conturbados.
Agradeceu para não ter que compactuar com fadas, as arcadianas costumavam ser
piores que as bruxas. Se perdeu contando as voltas dos ponteiros no relógio grande no
corredor central da livraria, acima da entrada. E, nos círculos feitos por números, viu
quando os ponteiros se alinharam numa volta sublime e derradeira.
Podia ir embora, finalmente.
Sorriu de orelha a orelha.
Puxou o avental de pano fino por cima da cabeça e o deixou num gancho na parede.
Pegou o molhode chaves na terceira gaveta e seguiu para a saída, apagando todas as
luzes no caminho.
Puxou a cortina de pano, cobrindo assim o vidro da porta, que se abriu nesse instante.
— Desculpa, estamos fechados — disse, automática.
Daniel riu quando a viu.
Nina se espantou.
— Ainda bem — replicou, rápido como de costume. Os olhos cor ciano brilharam de
interesse. — Porque eu preciso falar com você.

Com o canudo, brincou com os gelos no fundo do copo.


Daniel a chamou para dar uma volta. Acabaram tomando um copo de suco, fresco e
gelado, tudo para tirar o azedo que sentia. Pelo caminho inteiro ele foi calado, ora
dizendo coisas sobre sua vida, ora perguntando fatos da vida nova de Nina. Não parecia
realmente interessado no que ela respondia, mas Nina continuava a falar, por educação.
Agora, estavam sentados, um de frente para o outro, numa mesa na calçada. O povo
passava atrás, e tudo que Nina fazer era fingir sentir-se despreocupada. Sua agorafobia
atacava em situações assim, mas tudo o que restava para ela era fingir-se bem. Ao fundo
da linha tênue que ouvia, uma tevê burburinhava.
— E agora ela não quer mais me ver — terminou, sem muito o que continuar dizendo.
Ele bebeu o café que pediu, gelado a essa altura.
— Tália? — indagou, confusa. Em seus olhos, só conseguia prestar atenção nas cores
das camisas que atravessavam a rua, cruzando a calçada.
— Barbara — ele corrigiu. — Eu e Tália estamos... dando um tempo. Ela não parece
estar muito interessada em mim. Só nos encontramos pelo acaso do trabalho.
— Desculpa — murmurou, incomodada com o movimento a sua volta. Sentiu
vertigem, combinada com a ânsia que lhe acompanhava todos os dias. Haviam remédios
para sua fobia, todavia, preferia continuar sã e não se dopar.
— Eu sei, é difícil para você. Da próxima vez, vamos para dentro. — Ele apontou com
o queixo para o bar, onde houve uma explosão de risadas e um pequeno grupo de
homens mais velhos bebiam chope. Daniel terminou com o café num último gole,
engolindo lentamente. Ao fundo, uma viatura passou. Com as sirenes tocando e
acendendo. — Lá vão eles de novo.
— Poderia ser seu pai ali — comentou, breve. Cutucou um cubo no fundo do copo.
Cruzou as pernas. Teve o instinto tímido de puxar a barra do vestido azul.
— Não — negou, sem hesitar. — Ele anda metido num caso mais estranho. O
assassinato de uma garota bacana. Acho que tem a ver com o que eu estou investigando
também.
Nina era uma das poucas que conseguia compreender Daniel. Como Nephilim, filho de
um anjo, ele tinha o dever de proteger os humanos a sua volta, sem hesitar, mesmo que
isso custasse-lhe a vida. Usando seu pai adotivo — o delegado da cidade — como meio,
Daniel engajava-se nas investigações da polícia, com seus recursos e pouca ajuda,
conhecida também como Tália, outra, e a única, Nephilim da região. Não eram um
exemplo de dupla, porém sabiam cooperar.
A lembrança vaga de como o conheceu — no piso inferior do prédio onde moravam,
por um acaso constrangedor — lhe veio à mente. Daniel se tornou um amigo próximo
em poucos dias, a encontrando nas escadas e lugares comuns. A amizade se tornou
inevitável quando Nina caiu nas investigações dele, junto com Tália, e Ian. A teia ficara
tão grande que acabaram se aproximando.
No entanto, lembrar desses dias de cão não a fazia ficar bem. Muitas coisas estavam
envolvidas nos eventos recentes.
— O que você está investigando? — indagou, o olhando.
— O assassinato de uma garota fada, que aconteceu mais cedo,. E de uma vampira,
também — explicou-se. Pegou um pequeno pacote de plástico na calça, o colocou em
cima da mesa. Era um tufo de pelo branco. — Isso foi o que os peritos acharam na cena
do crime.
— A polícia está envolvida nessa investigação? — Não eram raros os casos em que
ordinários investigavam o sobrenatural, mas desistiam logo em seguida, ao não acharem
explicação aparente. O que acontecia no submundo dos infernais, era investigado pelos
próprios. — Sem falar que você roubou uma prova, isso é crime.
— É nesse assassinato que meu pai está investigando. A menina foi morta brutalmente,
com várias mordidas na vagina. — O que, numa tarde aos pés de uma figueira, poderia
soar engraçado ou cômico, ressoou bizarro. Nina sentiu nojo ao imaginar a cena. Os
gritos. A voracidade da besta. — Tudo que conseguiram tirar de tudo isso foi esses
pelos, sem mais nada. E, além do mais, se eu deixasse meu pai investigar, ele morreria.
Ordinários tem que ficar em seu mundo. Eu sou obrigado a limpar a bagunça dos
infernais — Revirou os olhos, não muito contente com o fardo.
Uma atendente os abordou, perguntando se gostariam de repetir os refrescos. Negaram,
sem muito interesse. Nina quis pedir, mas se limitou a discordar com a cabeça. Talvez
se tomasse algo doce acabaria vomitando ali mesmo.
— E eu preciso de você — continuou, quando a jovem foi embora. — Porque você é
inteligente.
— Quê? — perguntou, recobrando aos poucos à consciência.
— Eu sei que não é um argumento sólido... — Daniel disse, entre uma careta e outra.
— Mas... você nos ajudou naquela situação. Sei que deve ser demais, mas sério, Tália
está engajada nos próprios problemas, e eu acho que o lobisomem que está por trás de
tudo isso é um peixe grande.
Nina apenas tentou manter-se centrada. Daniel tinha razão. Gostava de ser chamada de
inteligente, de esperta. Isso aguçava seu ego. Em contraparte, estava cansada de uma
jornada diária de trabalho. Era sexta-feira à noite. Poderia ir para casa e madrugar
assistindo filmes, lendo pilhas e mais pilhas de livros que ainda tinha pendentes. Ou até
mesmo ir ajudar Ian, contra sua vontade.
Porém a hipérbole de Daniel falava mais alto. Aquele jeito objetivo dele, que soou rude
nas primeiras empreitadas, a fazia criar e nutrir uma empatia por ele. Diferente de seu
namorado, Daniel era um anjo jogado num inferno, com um dever maior do que suas
asas. Ian fazia o que fazia por dinheiro, porque, em partes, gostava. Daniel nunca teve
escolha, assim como ela. Ele também não parecia gostar de seu destino cruel.
Num ato automático, Nina passou a mão na Lâmina Vorpal. Uma adaga que carregava
em sua coxa, numa capa de couro, presa na perna esquerda, entre a meia-calça e o
vestido. Sempre que precisou decidir algo em sua vida, a faca de sacrifício estava ali,
fria, indiferente a situação. Mesmo que fosse apenas um pedaço de metal recheado de
encantamentos e magias de disfarce, era a única e verdadeira companhia de Nina.
— Acho que posso te ajudar — disse, incerta.
Daniel assentiu, com um ligeiro sorriso.
— Então vamos andando — falou, depois de empurrar o copo transparente e vazio para
o centro da mesa. — Pois a noite será longa.

O Bala de Prata ficava num beco escuro.


Úmido, malcheiroso e pouco acessível. Era uma boa combinação para atrair infernais.
O bar dos lobisomens era um ponto de encontro com os infernais mais jovens. Eles
cediam o espaço todos os finais de semana para uma banda de jovens garotos
lobisomens. Nina nunca havia ido lá antes. Daniel sabia o exato caminho a ser trilhado
pelos becos e ruas escuras.
A semelhança com o bar dos vampiros se encerrava aí. Lobisomens tinham um senso
grande de família e alcateia, eram mais do que um grupo com superiores e subjugados.
Não eram tratados como peças, iguais os vampiros. Ali havia ternura, o ar quente dizia
isso, juntos aos risos e a música ao fundo.
Entraram depois que um grupo de garotas bruxas os mediram dos pés à cabeça. Nina
teve a comum insegurança de viver na sociedade. Verificou a barra do vestido, checou a
athame. Apalpou a meia-calça, e a puxou para cima. Murmurava para si mesma para
não ter medo, para não se sentir desconfortável. Pessoas eram assim, e sua insegurança
apenas reforçava seu medo de aglomerados. Não tinha problema algum. Tinha que
manter esse pensamento na cabeça, e não deixar olhares e sorrisos a desestabilizar.
Nina teve o desprazer de reconhecer as garotas. Não lembrava dos nomes, mas eram
novas iniciadas. Não havia nem um mês que Eliza as batizara, fazendo-as beber do
sangue de um demônio invocado com sua ajuda. Na verdade, senão por ela, o ritual
nunca seria efetuado.
Eliza não era boa com rituais. Quando pegou a folha para analisar e corrigir alguns
erros, viu cálculos errados, formulas tortas e sem fundamento, sem falar da
inconsistência de tudo aquilo. Corrigiu tudo, com prazer. Exercia seu papel no clã,
como qualquer outra bruxa. Eliza a pagava, e dava-lhe acesso total à biblioteca.
Lembrar-se disso a fazia viajar em devaneios, e, consequentemente, se afastava da
multidão que fazia faltar-lhe ar.
Daniel foi na frente, abrindo caminho como um antigo conhecido. Garotas e garotos o
olhavam, interessados. Como um raio, ele era objetivo o suficiente para atingir apenas
um lugar. Os ignorou, não desviando o olhar.
Por dentro, o bar tinha mesas circulares espalhadas, um balcão com bebidas no fundo e
um palco um pouco elevado, com luzes amareladas atrás. A bandinha de lobisomens
tocava.
Depois da meia-noite
Nós acendemos as luzes da cidade
Nos abraçamos e ficávamos juntos
Até nascer o sol

Nina teve o instinto de se encolher ao ver Nicolas ao fundo. O rapaz que passara mais
cedo na livraria, que deixou seu telefone na esperança dela ligar. Os olhos cor de âmbar
dele se perdiam no mar de lobisomens que abusavam de alucinógenos. Sintomas da
transformação eram comuns quando um licantropo usava drogas, principalmente as
mágicas.
— Ela está ali — Daniel disse, a pegando pelo braço. Nina o olhou, assustada. —
Barbara — se explicou, apontando para o balcão. — Barbara está ali.
E de fato ela estava. Sentada no balcão, com um copo de bebida nas mãos, com o
pescoço alto observando a banda. Os cachos dourados de seu cabelo caiam até os
ombros. Ela conversava vagamente com Theo, o líder dos lobisomens, que servia as
bebidas da noite.
— Vai falar com ela? — perguntou Nina.
Daniel engasgou-se antes de falar.
— Sim. É a única que pode me falar sobre esse lobo que anda matando garotas.
— Mas você disse que ela não quer mais te ver — Nina o lembrou.
Daniel revirou os olhos.
— Ela não quer — ele soltou, um pouco risonho.
Daniel a deixou para trás e arrumou o cabelo, indo em direção ao balcão. Certamente,
se Tália estivesse ali, falaria que Daniel estava prestes a usar seu charme com cheiro de
suor. Nina riria, contente por estar em grupo. Porém, fora deixada mais uma vez, e se
perguntou se estava fazendo a coisa certa o acompanhando.
De forma que não ficasse aparente, Nina se esgueirou entre a multidão, ficando perto
deles. A guitarra tocou mais acordes, e Barbara balançou a cabeça, empolgada.
— Barbara — ele começou, com voz branda.
Nina conseguiu ver a garota revirando os olhos.
— Bem que eu senti um cheiro ruim — ela respondeu, descruzando as pernas e
pousando o copo sobre o balcão, ao seu lado. Theo desviou a atenção para a simples
tarefa de secar os copos. — O que você quer, Daniel?
— Te ver. Escuta, eu só não liguei ontem de manhã porque eu...
— Talvez porque ontem de manhã a gente não tivesse nada para falar. Talvez
anteontem. Mas para você, não faz a mínima diferença.
Daniel deu um passo para trás, acuado.
— Barbara, eu estive ocupado.
— Ocupado demais com outras meninas, não? — inquiriu, retórica. — Eu andei
conversando com algumas garotas bruxas, elas disseram que você era ótimo na cama. E
também confirmaram que você é um cretino.
— Eu errei! — quase gritou, com os punhos fechados ao lado do corpo. — Talvez eu
fui mesmo um cretino. Mas nós podemos recomeçar, não? — Com mãos rápidas, ele
pegou o copo no instante que ela iria o fazer. As mãos de ambos se tocaram. Barbara se
retraiu, depois de longos segundos encarando a situação que num primeiro encontro
poderia ser embaraçosa. Daniel ficou com o copo para si, bebeu um gole de seja lá o
que a garota desfrutava. — Eu ouvi dizer que um lobo está causando um tumulto por aí.
O olhar de Barbara decaiu, entediado e com raiva. Se entreolhou com Theo, antes de
falar:
— Seja o serviço que for que você está fazendo para Eliza, não venha pedir
informações para mim. Não seja tão baixo, Daniel. — Barbara pulou do balcão,
sinalizando com o cabeça para Theo. Disse, de costas: — Pode ficar com a bebida.
O que restou a ele fora o amargo gin que estava no copo. Nina se aproximou, com uma
ligeira vontade de rir. O colocou a mão no ombro, como uma consolação malfeita.
A música parou de forma abrupta, com as batidas rompendo, sem continuidade. Num
instante para o outro, todos os licantropos dali estavam de pé, olhando para a porta, com
olhos ardendo em amarelo. O cheiro ácido das drogas empesteava o local, fazendo Nina
piscar repetidas vezes. Sua visão demorou alguns segundos para focar, e, o que viu, não
foi muito agradável.
Vampiros em território inimigo.
Lá estavam as caras pálidas, com olhos desinteressados e sorrisos que tiravam sarro de
tudo. Se achavam superiores pelo simples fato de serem o que eram. Desprezavam os
licantropos mais do que costumavam fazer com qualquer outro infernal.
Ao fundo, Nina viu as garotas bruxas, já drogadas e sem muita ciência, se encolherem
numa parede.
Mikael, o líder dos vampiros — um sujeito alto, loiro e tão branco como a lua —, deu
um passo à frente, com ambas as mãos para cima.
— Viemos em paz — falou, entre um sorriso sarcástico.
Theo cerrou os olhos, desconfiado. O lugar se afundou num silêncio de burburinhos.
Alguns licantropos cochicharam entre si, outros apenas se preparavam para um possível
embate. Embora os vampiros se achassem melhores, o simples ato de desafiar os
colocaria em pedaços. Eram um pequeno grupo de cinco. Apenas Mikael, mais três
sujeitos, e Solange, a segunda em posto, e, pelos boatos, namorada de Theo.
Nina teve o reflexo de se afundar nas sombras, com Daniel. Eram figurinhas no álbum
de Mikael. Ele a ajudara num passado nada distante. Tinha uma dívida com ele, questão
de honra. Quis, por ora, evitar constrangimentos.
— O que veio fazer aqui, Mikael? — Theo perguntou, deixando um copo em cima do
balcão, com cuidado.
— Resolver problemas, Theo — falou, com um tremendo esforço. Mikael se
assemelhava a um boneco mecânico, com falar forçadas e um jeito que deixava
qualquer um intrigado. Carregava ódio nos olhos escuros, mas um sorriso de deboche na
face alva. Se debruçou no balcão, aproximando o rosto a ponto de se olhar nos olhos do
lobisomem. — Quero um vinho, só para abrir a noite.
Os vampiros seguiram seu mestre. Solange se perdia, encarando o longe, evitando
encarar Theo. Os lobisomens se eriçaram em seus lugares, rosnando baixo.
— Calma, pessoal — Theo entoou, rígido como deveria ser um líder. — Mikael, seja o
que esteja pensando, aquele lobisomem não é da alcateia.
— Eu não estou pensando nada, não sobre o lobisomem. — O olhar dele se estreitou.
— Penso sobre a vampira que acabamos de encontrar morta, na frente do meu bar. É
bom que ensine seus homens a não deixar rastro, da próxima vez.
Os dedos finos e ossudos de Mikael deixaram um grande tufo de pelo prateado em
cima do balcão. Brilhavam como um fragmento da lua.
— Eu já disse que ele não pertence a alcateia, não é um problema meu — Theo
argumentou, sólido.
Mikael respirou calmo, e arrumou a gravata vermelha.
— Primeiro as fadas, depois os ordinários, e agora a gente — falou, apertando os pelos
e depois soltando. — Você está brincado com fogo, lobisomem. Estão furiosos com
você e essa sua falta de interesse. Controle os seus, para se impor ao resto. — Mikael se
virou em cima dos pés, leve como uma pena.
Os vampiros saíram sem muita cerimônia, apenas deixando o clima tenso no lugar.
Demoraram alguns minutos para que tudo se acalmasse, e todos parassem de olhar para
Theo, que não dava a mínima para a situação.
Daniel comparou o pelo do balcão com o que tinha no bolso. Eram igualmente
prateados.
— Isso está ficando pior do que pensei — comentou, realmente preocupado.
— Ian havia me dito sobre a vampira — Nina explicou. — Não pensei que Mikael
fosse realmente se abalar.
— Melhor do que isso, impossível. Haverá uma guerra entre os infernais se eu não
parar esse lobisomem — murmurou, nada satisfeito. Cruzou os braços acima do peito.
— Precisamos de mais informações, não podemos ficar de braços cruzados. —
Contraditório, ele desfez a postura.
Nina olhou em volta, confusa e um pouco zonza. Viu rostos risonhos, outros aflitos.
Em suma, eram uma maré mutável e forte, carregados de emoção. As garotas bruxas
tinham ido embora, deixando seus parceiros lobisomens numa parede, desfrutando de
bebidas.
E, enquanto tentava arranjar uma solução, Nina viu Nicolas no meio da multidão. Ele
estava no meio de uma roda de colegas, em pé, ao lado duma mesa. Com uma das mãos
segurava um copo cheio, e, com a outra, portava um longo cigarro.
Sem muitas opções, Nina resolveu recorrer a opções rudes e instintivas, a sedução.
Tentou arrumar os cabelos, puxou o vestido e acertou as meias. Cobriu a athame para
que ninguém pudesse a ver.
— Você veio, afinal — ele falou, ao vê-la. Abriu os braços, olhando para todos os
amigos em volta. Eles sorriram, curiosos e satisfeitos. Ao fundo, a banda se recompunha
em acordes lentos e progressivos, se elevando numa melodia quente. O cheiro cítrico do
cigarro a fez tossir. — Pessoal, essa é a garota de quem eu falei mais cedo.
— Da livraria? — perguntou um sujeito corpulento com roupas escuras. Ele fedia a
drogas.
— Sim — Nicolas concordou, risonho. — Então, Nina, veio sozinha ou aquele
feiticeiro ali é seu namorado? — indagou, apontando com o queixo para Daniel.
Nina olhou por cima do ombro, e viu Daniel confuso, a encarando.
— Ele é um amigo, só. — Suas mãos envolveram forte a barra do vestido, num gesto
incontrolável. Sentiu-se suar pela nuca. Aspirou mais ar podre. — Nicolas...
— Nic, para você — ele corrigiu, chegando mais perto.
— Nic — disse, engolindo em seco. — Será que podemos conversar? — Olhou para os
sujeitos na mesa. — Em particular — acrescentou, desviando dos olhares maliciosos
dos outros lobisomens.
Nicolas a levou para fora daquele lugar. Quis agradecer por ele ter o feito. Nina não
aguentava mais os olhares, os corpos, o calor humano dali. Do lado de fora, conseguia
ouvir apenas o som abafado da música. Fugiu do olhar malicioso dele, olhando para a
fila de pessoas na entrada. Daniel saiu disfarçadamente, se enfiando na multidão para a
vigiar, de propósito.
O licantropo a puxou pelo pulso, a puxando para perto. Gritou, baixo. O punho cerrado
desceu severo, na direção da athame. O bafo quente e alcoólico foi arrepiante contra seu
pescoço. O viu mais de perto. Os cabelos curtos e mal penteados.
Se empurrou para trás, tentando não parecer abrupta.
— Não é isso, Nic — falou, se controlando para não mata-lo ou sair correndo. Forçou o
máximo de sua visão periférica, e pôde ver Daniel, conversando com uma garota loira
com asas coloridas nas costas. Talvez realmente estivesse sozinha. — Eu preciso saber
de uma coisa...
— Isso não pode ficar para depois? — A mão dele deslizou até seu quadril. Nina o
policiou, colocando sua mão sobre a quase transformada pata de lobisomem.
— Não — disse, em tom mais rígido.
Como um cachorro de rua, o cenho de Nic baixou quando ela engrossou a voz. Ele
gemeu baixo.
— Tá certo — ele concordou, sem querer de fato. — O que é?
— Esse lobisomem que anda matando garotas... — começou, introduzindo tudo que
sabia. Com Nic distraído e perdido encarando apenas seus olhos, ela conseguiu se
desfazer das mãos dele. Se colocou numa distância recomendada para manter uma
conversa entre dois recém-conhecidos. — O que você sabe?
Nic a encarou com receio. Seus lábios mexeram, mas não emitiram som algum. Se
perguntou se não tinha o ouvido, já que a música batia forte contra a parede dos fundos,
balançando os vidros da janela. Na verdade, o movimento sutil na boca do licantropo
pareceu-se mais com um espasmo causado por algum efeito colateral das drogas.
Nina percebeu também que Nic suava.
— Eu não posso falar sobre isso — falou, se arrastando para o lado. Suas pupilas
dilatadas começaram a se fechar. — Ele não é da alcateia. Theo não gosta que falemos
dele.
Nicolas deu mais dois passos com as costas coladas na parede, olhando diretamente nos
olhos de Nina. Na imensidão que alternava entre o âmbar vívido dos lobisomens
tomados pela besta interior e o castanho suave do garoto causal, ela vislumbrava uma
ponta de inocência, tomada pelo medo.
Se viu ali.
Pegou Nic pelo pulso.
— Por favor — apelou, tentando lançar um olhar compreensivo.
Ele olhou para os lados, cuidadoso.
— Isso é para o seu namorado feiticeiro? — indagou, tão rápido que demorou cerca de
três segundos para Nina decifrar o que ele havia dito.
— Não... — respondeu, passando a certeza que não tinha. — E Daniel não é meu
namorado. Eu era amiga da vampira que morreu — belfou. — Quero achar quem a
matou.
— Foi o lobo da lua... — a voz dele tremeu, como uma criança que contava uma
anedota temida para um amigo. — É como o chamam. É uma lenda, entre nós,
lobisomens.
— O que mais você sabe? — Nina apertou o pulso do rapaz, involuntariamente.
— Não muito — seu medo em estar contando o que não devia transparecia a
sinceridade. — Não se sabe muito. Tudo que sabem é que são pessoas que perdem o
controle, e viram bestas para sempre. Não tem controle algum. E são mais fortes que os
outros lobisomens. São brancos, como a lua, pegam toda sua força dela. — Ele parou
para respirar. — Ouvi dizer que o investigador dos vampiros já está atrás dele. Não há
de que se preocupar. Apesar de eu achar que ele vá morrer.
Nina tremeu por dentro. O investigador dos vampiros, conhecido por toda a cidade e os
infernais por essa alcunha infeliz, era Ian, seu namorado. A história do pacto dele com
Mikael era complexa, e, já feita, por mais que desejasse, nada que os dons dela
pudessem fazer ajudaria Ian, o tiraria daquele meio podre.
— Não vá atrás dessa besta — Nic falou, atormentado. Seus olhos se abriram muito,
suas sobrancelhas quase se juntaram com o cabelo. — É imparável. É uma praga. Vai
rondar a região, até não sobrar mais nada. É impossível de controlar um ser como esse.
Vá embora, você é uma garota, corre perigo.
O calafrio desceu pela espinha, balançando as pernas.
— Obrigada — agradeceu, forçando um sorriso para Nic. Seus lábios espasmaram,
iguais ao dele.
Nic não se despediu. Apenas virou em cima dos calcanhares e se foi.

Nina girou o novelo de pelo nos dedos, pela décima vez.


Daniel entrou pela porta em seguida. As luzes já estavam acesas. Ele estava um pouco
desarrumado, com o cabelo fora do lugar, e uma das mangas da camisa amassadas.
Perto da sua boca, havia uma mancha roxa de batom. Provavelmente da garota fada que
conversava com ele mais cedo.
Ele sorria, contente.
O relógio ao lado da porta marcava meia-noite em ponto.
O apartamento de Nina era o modelo convencional de cozinha americana. Em suma,
tinha forma de L. Mikael havia lhe dado o imóvel logo quando chegara na cidade.
Ficava num dos bairros dos vampiros, e tinha, entre os prédios maiores, uma boa vista
para o mar.
Um vento mais frio entrou pela janela. Ela puxou a barra do vestido para baixo, e
arrumou as meias, que terminavam na metade de suas coxas.
— Onde você estava? — Daniel perguntou.
— Você foi quem desapareceu — retrucou, ainda se fixando no amontoado de pelos
que havia pego com ele. — Por isso vim para cá, para pensar melhor.
Daniel só sabia onde ela estava graças a mensagem de texto que Nina tinha mandado.
— Que seja. — Ele pegou uma das cadeiras da pequena mesa que ficava presa à
parede. Sentou-se de frente para ela, com os braços em cima do encosto. — Descobriu
alguma coisa com aquele seu amigo?
— Ele disse que esse lobisomem que anda matando as pessoas, é uma espécie de besta
incontrolável. — Nina fechou a mão, e deixou os pelos em cima do sofá, ao seu lado. —
Tirando isso, mais nada. Também disse que tentar alguma coisa é dar soco em ponta de
faca, não dá para o parar.
— Não tenho muita opção — Daniel falou, mordendo o lábio.
— O que você conseguiu com aquela garota fada? — perguntou, sorrindo.
Daniel a encarou, confuso.
— Como você...
— Eu te vi conversando com ela — explicou. — Além do mais, tem glamour no seu
rosto, e eu te conheço. Sei bem como consegue informação.
Daniel não se sentiu insultado. Tália dizia que ele era “seu postituto informante
preferido”. Ele apenas se apressou em limpar o resto de batom em sua face. O olhar dela
saiu pela janela, balançando sutil como as ondas do mar sereno. Onde Ian estaria?
Onde Tália estaria? Onde aquela besta estaria?
— Ela falou que esse lobisomem é uma espécie de bicho desenfreado. Um vargulf —
pronunciou, com receio. — Não me lembro o nome ao certo. De qualquer forma, ela
também me disse que a ordinária que morreu, Maria Bárbara, não era tão ordinária
assim. Namorava com um vampiro.
— Nicolas o chamou de lobo da lua... — comentou.
— Não tem nada sobre isso nos seus livros? — Ele apontou para a prateleira abarrotada
de tomos e grimórios grossos e pesados. — Você tem quase tudo ali.
— Quase — ela completou. — Infelizmente, nada que fale sobre lobisomens lunáticos
que devoram garotas. — Cerrou os olhos, encarando os próprios livros. — Eu sei onde
deve ter algum tipo de informação...
— Não — ele disse, a vetando. Comumente, Daniel costumava ser objetivo, porém,
para disfarçar seu jeito prepotente e egocêntrico de se colocar na frente de todos, ele
aderia a uma personalidade brincalhona, irônica. E agora, em seu rosto, não tinha mais
nenhum vestígio do Daniel piadista. — Eu não quero envolver a Eliza nisso.
— Eu não falei em envolve-la nisso — Nina murmurou. — Eu sou uma bruxa. Tenho
total direito à biblioteca.
— Em plena sexta-feira, meia noite, você vai lá. Eliza pode até ser ignorante, mas ela
não é burra — Daniel argumentou. — Quero manter distância dela, pelo menos por
agora. Ela não pode desconfiar que eu sou o que sou.
A preocupação de Daniel por manter a sua verdadeira identidade tinha um bom
fundamento. Apesar de Nina ser uma relíquia viva, assim como ele, ela podia se exibir,
ser quem realmente era. Daniel e Tália, em contrapartida, tinham que se esconder, e agir
nas sombras das sombras. Os infernais — descendentes de diversas linhagens
demoníacas — não podiam nem ao menos suspeitar que descendentes diretos de anjos
perambulavam entre eles.
Aflita, deixou-se vagar por seus pensamentos. A sua tão falada inteligência não
funcionava nas horas que mais precisava, e isso fazia odiar a si mesma. Hipóteses
surgiam nos pensamentos, se desmistificando e naufragando quando as ideias colidiam.
Não conseguia consolidar nada, não sem uma base adequada do relato. O temor de
Nicolas a assombrou. Aqueles olhos dilatados, aquela postura trêmula. O medo em sua
voz cochichou em seu ouvido.
Você deve ir embora.
Por algum motivo, pensou em Daniel transando com a garota fada. Quis se desfazer da
memória inventada. Ian estava pelas ruas. Vivo ou morto.
Talvez pudesse invocar um demônio milenar, para pedir informações mais precisas.
Não! Gritou a si mesma. Idiotice, concluiu. Era uma ideia tola, digna de uma criança de
doze anos.
Soprou uma mexa de cabelo para fora do rosto.
— Você pode rastreá-lo, não pode? — Daniel perguntou, chegando mais perto e a
entregando o tufo de cabelo prateado.
— Claro que posso — disse em resposta, em tom fraco, ainda em conflito consigo
mesma. — Mas ir de encontro é uma péssima ideia.
— Eu sei — falou, ameno. Seus olhos refletiram a luz da noite. Seu semblante
angelical deu as caras. Era desse jeito que ele conseguia qualquer das informações que
queria. — Mas não temos outra escolha. É isso ou nada.
Nina não disse resposta alguma. Mas quando o nada representava ser morta em alguma
noite num futuro próximo e ver o namorado morrer por um lobisomem descontrolado, a
outra opção era a única válida.
Invocar um demônio não era simples. Não para as bruxas convencionais. Nina era uma
difundida, uma bruxa agraciada por uma linhagem única de sangue, de uma entidade
pagã. Mesmo sendo apenas um quarto demônio, seus dons e habilidades se
manifestavam de forma especial, a dando uma vantagem crucial na frente de qualquer
outra bruxa, ou feiticeiro. No seu caso, seus dons eram concentrados na habilidade de
abrir portas para outras dimensões, enquanto o seu sangue funcionava como uma
espécie de controlador para os demônios que invocava. Bruxas convencionais mal
podiam tirar os demônios que invocavam do pentagrama, e, se o faziam, os diabretes
ficavam atrelados a sua figura, usando-a como fonte de energia.
Como sempre, foi até o pentagrama desenhado no chão do segundo quarto no corredor.
Era um cômodo que havia sobrado, então Nina havia feito dali um lugar especial. Além
do desenho no chão, um pequeno altar com a imagem de Hécate descansava ao lado.
Velas enfeitavam as pontas da enorme estrela, assim como do glifos, que corriam por
toda a extensão do desenho.
Sentou-se ao centro. Tirou a athame da capa e passou a lâmina gelada na mão. A
cicatriz reabriu-se, pingando sangue no chão. Daniel encarava tudo impressionado, ao
lado.
As palavras de invocação saíram automáticas já. Um discurso de exigência, carregado
de um cântico antigo e de língua arcaica.
Lentamente, as velas foram se apagando, uma a uma. Das sombras do quarto, surgiu
um lupino. De corpo esguio, sem olhos. As orelhas altas eram feitas de osso, e os dentes
vazavam da boca. O focinho era avermelhado, parecia estar inchado.
Ele bebeu o sangue da invocadora.

O kerberus havia os guiado por algumas ruas velhas da cidade.


Chegaram no Centro por volta das uma da manhã. O sono se somava com o cansaço, e
agora, com a fadiga da invocação. Nina queria muito dormir. Daniel sugeriu que ficasse
em seu apartamento. Nina foi avessa a ideia, já que não tinha muita certeza da distância
que conseguia manter um elo com o demônio invocado. Os kerberus eram cães do
inferno, invocações básicas e simples. Eram raptores, portanto, ótimos farejadores e
ouvintes, o que compensava pela falta de visão.
Já era típico as noites terminarem em algum prédio abandonado, onde o infernal
perseguido se escondia. Porém, dessa vez, o kerberus parou perto de uma árvore, na
Praça Visconde de Mauá. Passaram pela grama um pouco mal aparada, encarando todos
os lados do espaço aberto. O demônio era encoberto por feitiços naturais que o
substituía por algo mais real. As pessoas normalmente veriam um cachorro de rua, ou
até mesmo não o veriam. Já eles, Nina e Daniel, não tinham nada que os ocultasse.
Passaram pelo piso da praça. Os grandes círculos confundindo os olhos embaçados dela.
De súbito, sentiu um ardor correr pela palma da mão. O corte estava demorando para
cicatrizar, e era bom que não o fizesse. Tinha que manter o machucado aberto, para que
pudesse alimentar seu elo com o familiar. Há um tempo que não sentia essa dor. Já
estava desacostumada.
O kerberus pulou para a grama. Começou a cavar a base do tronco. Espalhou a relva,
que farfalhou ao ser jogada. Havia uma grade. Como uma tampa de bueiro. Ao seu
comando, e com a ajuda de Daniel, o demônio arrancou aquela tampa que não estava
muito firme.
Por um breve instante, se entreolharam.
Daniel jogou uma pedra para medir a profundidade. Desceu, caindo com um baque
abafado. Pelo visto, a queda não era tão alta. Nina pulou, seguida pelo seu demônio.
Armada apenas com a sua adaga de sacrifício — que não era a escolha certa para um
embate — ela não demonstrava muita confiança em si. Sua vista não conseguia focar
direito. Precisava comer algo, reforçar a energia.
Estava muito escuro para poder enxergar alguma coisa. Tudo que ouvia, era sua
respiração forte, e as baforadas de kerberus.
— Eu consigo sentir energia — Daniel sussurrou, o que não teve muito efeito, já que
sua voz ecoou forte. — Acho que posso...
Ele estalou os dedos e fez o seu esquema.
Daniel nunca explicara com clareza, mas suas habilidades — ou afinidades, como
gostava de definir — tinham a ver com eletricidade. Ele era uma bateria ambulante. Por
isso, conseguiu energizar os cabos que sentiu atrito, fazendo assim, uma trilha de
pequenas lâmpadas se acender pelo caminho.
Suspiraram, juntos.
O familiar de Nina seguiu, batendo os cascos fortemente contra o concreto rústico do
lugar. Era um túnel improvisado, só um pouco maior que Daniel. As luzes que faziam a
trilha eram caseiras, lâmpadas pequenas de abajur. Era tudo muito estranho. Cheirava a
materiais de construção, parecia ser recente.
Tiveram que apertar o passo quando o demônio de Nina sumiu de vista. Ela não se
importou. Poucas coisas estavam realmente às suas vistas. Tudo era, em sua grande
maioria, um enorme borro mal definido.
Chegaram em um lugar mais aberto, no fim do túnel. O lugar tinha um cheiro salgado,
ferroso.
O rosnado do kerberus ecoou, seco. Ela e Daniel pararam onde estavam, pasmos. O
lugar em questão não se deu de muita importância. Um pequeno pátio, com escadas ao
fundo, com uma porta de barras. Haviam mais lâmpadas ali, era como um refúgio, um
abrigo subterrâneo. O que impressionava era o monstro no canto.
Lobisomens não se transformavam em lobos, não de fato. Ainda mantinham uma
essência humana. Uma postura um pouco bípede. Todavia, aquele ser que viam, não se
assemelhava a um lobisomem. Era grande, muito grande. Era um lobo branco, esguio
também, e muito mais acima da média. Seus dentes amarelos brilhavam como ouro, e
seus olhos eram brancos. Seu focinho estava vermelho, encharcado do sangue do corpo
que devorava.
Nina viu apenas as asas coloridas.
— Barbara — Daniel murmurou, de olhos arregalados.
— Quem? — perguntou, um pouco desnorteada.
— A garota fada... Daniela Barbara — ele gaguejou. — Ele... a matou.
O lobisomem virou seu rosto. Suas orelhas se eriçaram. O seu ronco profundo
aumentou, para os intimidar. Na escuridão, seus olhos brancos estavam acesos, como
dois faróis. Os pelos que subiam pela crina de kerberus se arrepiaram, e ele tomou uma
postura para defender sua mestra. A diferença entre os dois era mais do que visível, era
cômica.
— Precisamos ir embora daqui — ela murmurou, retrocedendo alguns passos. Evitava
fazer movimentos bruscos. — Precisamos pensar melhor.
Daniel não respondeu.
Ele avençou, desenfreado. Pulou sobre o demônio de Nina e, de palmas abertas, lançou
um relâmpago na direção no licantropo. Os embates de Daniel não costumavam durar
muito. Eletrocutar alguém costumava deixar o ser sempre imóvel, se debatendo no chão,
tendo espasmos involuntários. Tudo se resumia ao clarão de relâmpago e o corpo
soltando fumaça no piso. Daniel estava tomado por ira, por algum motivo. Tão fora de
si, tão não objetivo, que errou o alvo, acertando na parede, fazendo apenas uma escura
mancha no concreto.
De acordo com suas ordens, o kerberus tentou atacar. Mas foi atirado longe quando o
lobo branco pulou para cima de Daniel. Nina sentiu uma fisgada no peito, um terço da
dor de seu demônio familiar.
Daniel tentava lutar, mas mesmo com sua força um pouco mais elevada, era inútil. De
surpresa, ele deu outra descarga elétrica no lobisomem branco. A pelugem prateada se
elevou com a estática, e as pontas brancas decaíram para o preto, queimadas e exalando
fumaça.
Com raiva, o licantropo abocanhou seu ombro, sem piedade. Daniel gritou, um agudo
tão alto que Nina achou o pior. A cabeça dele caiu para trás.
O lobo se aproximou dela, à passos lentos. As pernas de Nina bambeavam pelo efeito
da invocação. Estava fraca, aquilo tudo era muito para só uma noite. Com a athame em
mãos, tudo que conseguia era tremer. Assistiu calada quando os olhos brancos colaram
ao seu pescoço, e o focinho úmido de sangue a cheirou. Profundamente.
O licantropo seguiu reto, com passos rápidos para o túnel por onde entraram. Parecia
mancar.
Nina andou o mais rápido que pôde até o corpo desacordado de Daniel.
Precisavam de ajuda.

O café estava doce demais.


Nina guardou sua observação para si mesma. Respirou fundo, sentindo o calor dali
vindo forte. Claro, o cheiro da bebida também veio, revigorante, assim como o cheiro de
poeira. Sua visão já não se enturvava mais, não depois de comer quase uma pequena
fôrma de bolo de laranja. Seu familiar estava sentado, ao pé da mesa, de cabeça baixa,
como um cachorro normal.
Estava segura agora. Ou quase. Poderia não estar vulnerável a o ataque daquele
lobisomem, mas Eliza podia ser tão mortal quanto, ou mais. Depois que o licantropo os
deixou no subsolo, Nina pegou Daniel com a pouco força que sobrou. Ele era pesado, só
músculos e sangue. A mordida em seu ombro não se fechava, pelo contrário, apenas
vazava mais sangue a cada puxão que ela dava para o firmar em suas costas.
Não soube de onde tirou forças para permanecer de pé, no entanto, não tinha que se
questionar.
Eliza abriu a porta com a cara de quem atende uma visita às duas da manhã. Não era
dia de reunião no clã, e nem de festa. Era um dia de tranquilidade, pelo menos até a
chegada deles. Como líder das bruxas, Eliza não podia fechar a porta na cara de Nina.
Ainda mais quando viu Daniel, ensanguentado, nas costas dela. Pelo que sabia, Eliza e
Daniel eram companheiros de uma banda, há pouco tempo. Inclusive, já tinham até
transado, segundo ela.
Ela os mandou entrar, com pressa na fala. Os criados de Eliza — ordinários recheados
de feitiços para a obedecerem piamente — levaram Daniel para um quarto. Ela foi
junto, sem perguntar muito. Luan — um dos servos da bruxa — conduziu Nina para o
andar superior. A casa de Eliza era abaixo de um prédio comercial. Pelo menos essa era
a fachada. Na realidade, toda a propriedade era dela, e os apartamentos eram os quartos
de bruxas que não tinham moradia.
Luan, assim como Nina lembrava, agia como um robô. Falava o necessário, quando
necessário. Ele a deixou num dos quartos provisórios. Logo em seguida a levou outro
vestido, um mais largo, com uma saia mais curta, porém, ainda parecido com o seu.
Nina tomou banho.
Pôde refletir pouco, já que Luan bateu à porta do quarto não muito depois. Tudo que
conseguiu se focar foi na rejeição do licantropo, e Ian. Tivera sorte de ser rejeitada. Será
que Ian teria a mesma ajuda do acaso?
O rapaz hipnotizado pediu que Nina o acompanhasse. Dentro do covil das bruxas, o
silêncio reinava naquela noite. Os corredores antigos de madeira ecoavam o som dos
sapatos dela batendo contra o piso oco.
Luan a deixou na biblioteca. Na mesa principal, havia bolo e um bule, com café.
Agora, tudo que ela fazia, era lembrar da noite agitada. Pensando em Ian, Tália, Daniel.
Como ele estava?
Nina não tinha a concentração necessária para ler. Tinha uma pilha de volumes
intermináveis à sua frente, e tudo que conseguia fazer era perambular de um lado para o
outro, pensando em possibilidades infindáveis. Pegou-se encarando a janela. Uma
nebulosa passou pelo espaço escuro. As cores espiralaram os contornos da janela. A
biblioteca era grande demais para ficar num prédio compacto como aquele. Nina não
estranhou quando viu aquele pequeno universo particular de Eliza.
A porta dupla se abriu.
Eliza entrou, sozinha. Seus cabelos compridos estavam roxos — quando a conheceu,
eram azuis — e os chifres demoníacos despontavam no topo da cabeça, como uma
coroa. A elegância de Eliza se dava em todos os seus gestos, falas e manias. Ela mordia
o lábio suavemente, alisava as mechas quando preocupada, e tinha um perfume que
exalava a quilômetros. Tudo isso para uma jovem de vinte e poucos anos. Com apenas
essa idade, já era a Suprema do clã de bruxas. Sua posição era questionada pelas bruxas
mais leigas dali, que a acusavam de herdar o posto da mãe falecida, mas Nina tinha mais
do que certeza que Eliza era digna.
Eliza era a bruxa que todas queriam ser.
— É bom você ter uma boa explicação — falou, neutra como a ponta de uma faca
gelada.
— Nós fomos atacados — disse, incerta. Suas palavras não eram verdadeiras. Na
verdade, Daniel que partira para o ataque. Nina não o culpou, não depois de pensar um
pouco. Ele tinha um histórico ruim de pessoas que morreram por sua culpa. O que
estava fazendo, afinal? Ir para Eliza não era uma boa escolha. Não estava sã quando
decidiu, devia ter sido por isso que seus pés a levaram para lá. Poderia ter ido à Beth,
mas andar até a Santa Casa era irrevogável. Quando saiu pela porta de grades, dando de
cara com a Catedral, tudo que conseguiu discernir era que a casa de Eliza não estava tão
longe. Agradeceu por Daniel não estar acordado. O dar de bandeja para Eliza era a
morte, ela tinha o corpo de um descendente direto de um anjo ao seu dispor, e mal sabia.
— Por um lobisomem.
— Só um lobisomem? — Eliza tornou a perguntar. — Por que eu posso ir agora até
Theo e o fazer punir esse maluco. Se te atacaram sem motivo, terão que pagar.
— Na verdade, não — replicou, cabisbaixo. — O que nos atacou foi um lobo da lua...
— Um o quê? — Eliza franziu o cenho, estranhando.
— Um vargulf — Nina reforçou. — Eu não sei como se chama. Sei que é grande, e
diferente dos outros lobisomens. É branco, muito branco!
Eliza desfez a expressão de curiosidade, e ergueu as sobrancelhas.
— Um berserker, você diz.
— Eu não sei. Procurei nesses livros, não achei nada. — Apontou para os tomos em
cima da mesa.
Eliza mexeu alguns dedos, e partículas azuis cintilaram aqui e ali, manifestando um
encanto cinético básico, que levou um dos livros da prateleira até sua mão. Era um
grimório antigo, grande, grosso e bem empoeirado. Ela soprou o pó, e, com outro
feitiço, fez as páginas se folharem sozinhas, até que encontrou a folha certa. Deixou o
volume flutuando em pleno ar, mostrando as figuras para Nina.
— Isso é um berserker — falou, espontânea. Seu dedo fino bateu contra a figura de um
homem forte, grande e parrudo. — Eram guerreiros incontroláveis. — A folha virou
quando Eliza dobrou uma falange. Era uma gravura de um lobo grande, todo branco. —
Isso é um berserker... ou um vargulf. Nomes diferentes em culturas diferentes — riu. —
O fato é que, vargulfs, ou berserkers, são lobisomens que foram transformados de
maneira brutal. São mais agressivos do que o normal, e incansáveis.
— Como os paro? — indagou, direta.
— Um berserker só morre de duas maneiras — Eliza murmurava, solene. — Nunca
tente o atacar fisicamente, nem com feitiços. Ele irá resistir, e voltar mais forte. Na
verdade, não se para um berserker desse jeito. Graças a seu rendimento acima da média,
eles não costumam viver muito, morrem por insuficiência em menos de três anos, com a
média de vida de um ano e meio...
— Não podemos esperar tudo isso! — protestou. — Seremos todas mortas!
Eliza respirou fundo antes de dizer o outro método:
— Há outra maneira, um tanto quanto incomum... — Fez uma pequena pausa. Seus
lábios se fecharam e demoraram para se abrir, dando um suspense dispensável. — Você
pode o chamar pelo nome.
Tudo que Nina fez foi desmoronar em cima da mesa da biblioteca. Eliza fechou o livro
e o colocou no lugar. Ela ainda precisava digerir todas as informações. Queria ter mais
tempo para formular teorias. Não podia esperar um ano e meio para que aquele lobo
morresse. Sabia que a próxima vez que o encontrasse, ele não teria piedade. A sua
mente preferia a encher de preocupações a dar-lhe uma solução para o problema.
A voz de Daniel estourou ao fundo, num grito de agonia.
— O que está acontecendo com ele? — perguntou, sentindo o coração bater forte
contra o peito angustiado.
— Licantropia — a voz controlada de Eliza conseguia disfarçar qualquer outro
sentimento que o sorriso gelado dela poderia sofrer. — Ele foi mordido.
— Ele pode virar um lobisomem? — a dúvida que veio-lhe à mente não pôde ser
contida. Os estudos sobre os filhos dos anjos eram escassos, tendo em vista que eram
seres raros. — Digo...
— Eu não sei — Eliza não era do tipo fácil de se dar por vencida. Ela sempre tinha uma
carta na manga, nunca ficava de mãos para o alto. Mas dessa vez, ela realmente não
tinha muitos recursos. Daniel um dia tinha lhe dito que dissera ser um difundido para
Eliza, para manter o disfarce e atuar no submundo sem chamar atenção. — Eu não sei o
demônio que o rege. Ele está eletrocutando qualquer um que chega perto.
— Não há uma cura para isso?
— Se houvesse não existiram os lobisomens — Eliza foi sólida nas palavras. A líder
das bruxas sempre teve o aspecto frio de uma boneca de porcelana. Ela não tremia ao
falar sobre nada. Sabia do verdadeiro frio da realidade. — Mas Daniel é diferente de
ordinários. A saliva dos licantropos tem efeito diversos em infernais. Como nos
vampiros, que morrem ao contato. Com bruxos, o efeito é só dor mesmo. Em alguns
casos nos transformamos num monstro irracional. Quando não morremos, é claro.
As possibilidades de Eliza não tinham fundamento algum, principalmente quando
Daniel não era um deles. Era um Nephilim, e seu corpo estava além dos conhecimentos
da bruxa. Nina achou lógico o julgar pela sua metade humana. Se estivesse de acordo
com sua teoria formulada, Daniel teria um meio de chance de se transformar em um
lobisomem.
— Há um antidoto — Eliza murmurou, sem fé. — Mas para o preparar, eu preciso de
um tufo do pelo do lobisomem que o mordeu. Do vargulf.
— Isso vai curá-lo?
— Nós podemos testar — de fato, ver Eliza atingindo o fundo do poço, sem jogadas
ensaiadas, era atormentador. Se Eliza, a mulher mais esperta que ela conhecia estava
sem recursos, quem diria ela. — E, pelo que vi, a transformação está se dando muito
rápido.
— O que você quer dizer com isso? — Nina indagou, curiosa.
— Normalmente, uma pessoa mordida por um lobisomem tem no mínimo doze horas
para se curar, tomando esse remédio... — Eliza enrolou uma das mechas de seu cabelo
purpura. Um pouco da tinta saiu na ponta do dedo. — Mas o caso de Daniel é diferente.
Ele foi mordido por um vargulf... ele deve ter apenas uma hora e meia para poder ser
salvo.
Nina respirou fundo, para não cair no chão de vez. Lentamente, pegou a adaga onde
guardava. Passou o dedo pela lâmina prateada, e vislumbrou o desenho da lua
minguante no centro. Se ver no reflexo não a acalmou muito. Aquela athame era seu
único recurso, e sua única companheira.
— O que vamos fazer?
— Há um vargulf pela cidade — Eliza soava teatral, assim como sempre quis soar. —
E eu tenho que cuidar de Daniel. Alertar as outras bruxas é pedir para ter um rebu. Você
é a única que sabe de alguma. Quem, senão você, sabe o que é melhor para fazer agora?
Eliza não esperou uma resposta, até porque Nina não tinha nenhuma. Ela saiu porta à
fora, se afundando no corredor mal iluminado onde a voz de Daniel vinha, gritando
outra vez.
A tormenta não passava. O problema era seu agora, tinha se arrastado para o centro do
furacão, e não podia escapar, para nenhum dos lados. Via tudo rodar ao seu redor,
Daniel agonizando, Ian, perambulando pelas ruas, e outras garotas, morrendo. O que
poderia fazer para ajudar em alguma coisa? Por que não parava de pensar na sua própria
morte? Onde estava sua infame inteligência quando precisava?
E, mesmo que chegasse a uma solução, os seus últimos recursos eram sua faca de
sacrifício, o seu ridículo por atlético e o seu familiar, deitado no pé da mesa.
Bateu com os punhos na mesa, ansiosa. Revisitou todos os lugares da noite, desde o
início. Desde Nicolas na livraria, até o momento atual. Ian, Nic, Theo, Mikael, Eliza,
Tália, Bárbara...
Barbara.
Percebeu estar olhando para outra chuva de cosmos quando chegou à conclusão
daquele axioma. Viu um mapa cerebral, como o seu, com as sinapses de sua cabeça
explodindo uma a uma, pouco a pouco, irradiando luz e clareza. Tinha poucos
argumentos, poucas apostas. Mas, senão em si, em quem poderia confiar?
Tropeçando nos próprios passos, correu para a saída.

Bastou apenas uma ligação.


Ian atendeu. No fundo, uma música lenta tocava. Batidas calmas que iam e vinham,
músicas que os vampiros gostavam. Ele provavelmente estaria no bar de Mikael, numa
distância considerável.
— Nina? — a pergunta dele já tinha uma reposta que nunca precisou ser dita. — O que
aconteceu?
— Qual era o nome da garota vampira? A que morreu hoje? — perguntou, ofegante.
— Barbara... Fernanda Barbara, na verdade — Ian respondeu. Nina não o via, porém
não precisava o fazer para ter certeza que o namorado estava com cara de paisagem do
outro lado da linha. Ian bebeu alguma coisa. — Por quê?
— Você sabe onde aquela licantropo mora, não sabe? — sua voz batia contra o vento e
quase se esvaia. Mal ela conseguia se ouvir. — A segunda em posto da alcateia. Onde
fomos buscar seu irmão uma vez. Me encontra lá. Agora!
Nina desligou em mais delongas, e, por fim, ouviu um curto protesto de Ian.
Não tinha tempo para explicar, era hora de agir. Tinha cerca de uma hora para arranjar
outro tufo de pelo para o antidoto de Daniel, já que Eliza disse que precisava de mais, e
os que Nina tinha entregue seriam o suficiente para criar um amenizador, que apenas
prolongaria o tempo de Daniel como um ser pensante.
Saiu correndo do esconderijo das bruxas, sem olhar para trás. Acompanhada apenas de
seu demônio invocado, que corria ao seu lado. Nina não ligou se era uma jovem sozinha
correndo em plena madrugada pelas ruas do Centro, tudo que precisava era chegar o
mais rápido possível.
O mapa da cidade se desemaranhava dentro de sua cabeça. Uma esquina após a outra.
Correndo desenfreada por ruas e avenidas, atravessando as alamedas sem olhar duas
vezes, e disfarçando o mínimo quando avistava um carro ou alguém. Só conseguia
pensar em Barbara, vê-la encharcada pelo próprio sangue, eviscerada, com os cachos
desfeitos.
Quase caiu quando virou na última esquina. A casa de Barbara era feita de tijolinhos
vermelhos. A luz da sala estava acesa.
Nina apertou a campainha, com força, como se aquele ato infantil fizesse o bipe soar
mais alto.
Barbara saiu de dentro da casa com os cabelos presos, e cara lavada. Ainda estava com
as mesmas roupas de mais cedo.
— O que você quer? — perguntou, quando chegou a base da escada. — Você não era
aquela garota que estava com o Daniel? Olha, se ele te comeu e te deixou no meio da
rua, eu não tenho nada que ver com isso. Eu acabei de chegar, e estou podre. Se puder ir
embora...
Nina arfou algumas vezes antes de conseguir dizer uma palavra.
— Eu preciso te avisar. — Parou, recuperando o ar que faltava-lhe. — O vargulf está
atrás de você
— Eu sou uma lobisomem — Barbara disse, segura de si. — Consigo ouvir e cheirar
melhor do que tudo. Sei que não tem nada atrás de mim, garota. A única coisa que
consigo ouvir é o seu coração, e parece que vai explodir... se aclame! — exclamou,
baixo para não acordar a vizinhança. Ela olhou para os lados, desconfiada. — Eu sei que
não devia estar fazendo isso. Entra aí, vai.
Barbara saiu da frente da entrada para a guiar. Subiram uma curta escadaria de pedra
rústica e plantas. Musgo crescia entre as placas, verde e vivo. Nina ainda tentava
manter-se respirando, o que era uma tarefa difícil, tendo em vista que correra alguns
quilômetros no meio da noite.
Entraram numa sala de estar, com sofás forrados com lençóis caseiros. Barbara seguiu
para a cozinha, contornando o balcão. Ela colocou água e açúcar num copo. O colocou
ali, para que Nina tomasse.
Negou.
— Você é bem ansiosa, né? — comentou, a olhando com o canto de olho e dando uma
última olhada na geladeira. Na pia, notou Nina, a louça do jantar dela estava suja e
jogada, assim como a embalagem de macarrão instantâneo em cima da lata de lixo.
Enquanto Barbara se arrependia de ter a deixado entrar, Nina deu um gole demorado na
água com açúcar. — Espera. Você é a namorada de Ian, não é? A cunhada de Levi.
Acho que lembro de ti.
Nina bateu o fundo do copo contra o mármore gelado do balcão.
— Não temos tempo para isso — balbuciou. Kerberus se eriçou por inteiro, se
levantando numa postura predadora. — Ele está vindo.
— Mas que porra é essa?! — exclamou, ao finalmente ter percebido o demônio que
tinha entrado em sua casa.
Kerberus latiu no momento que um baque levou a porta à baixo. O lobo branco pulou
para dentro, caindo em cima das suas patas, com a mesma leveza de uma pluma. Ele
rosnou na direção do pequeno demônio raptor e o bateu com rapidez, o empurrando ao
longe com uma patada.
Nina sentiu novamente um puxão no corpo, que quase a levou para o chão. Pulou por
cima do balcão e agarrou Barbara pelo pulso. Usando o seu demônio para distrair o
vargulf, conduziu Barbara para a saída mais próxima, a escada.
Os degraus ecoaram junto aos passos turbulentos delas. Nina jogou Barbara para dentro
do primeiro cômodo que viu, se atirando no escuro logo em seguida. Seu familiar
conseguiu entrar no último segundo, antes dela bater a porta atrás de si. Tateou
procurando uma chave, uma tranca. Não havia nada ali. Empurrou uma cômoda
próxima para a saída, trancando-as ali dentro do espaço pequeno.
Não teve tempo — e nem vontade — de reparar no quarto de Barbara. Era um
quadrado de paredes amarelas, uma tevê e uma cama. Talvez tivessem mais coisas
enfeitando, mas Nina se focou em sobreviver, ou, pelo menos, pensar em como o faria.
— Que merda é essa? — Barbara a perguntou, gritando.
— Esse é o vargulf que eu te disse. — Se afastou com calma da porta.
— E o que esse bicho quer comigo? — Barbara não cessou com as perguntas. Seu
timbre gritava indignação. — Juro que nunca vi um licantropo assim antes.
— O seu nome — Nina disse. — Ele te quer por causa do seu nome.
— Isso é sério?!
— Sim... — a voz de Nina parou quando o vargulf bateu mais forte contra a porta. A
cômoda deslizou para frente. — Droga — praguejou. Deu dois passos até chegar à
grande janela do quarto. Abriu as grossas cortinas e colocou a cabeça para fora. — Você
consegue pular, não é?
— Eu não vou te deixar aqui na minha casa, garota — Barbara cuspiu as palavras,
encarando Nina com receio. — Não sozinha.
— Você não tem outra escolha — argumentou, puxando Barbara.
A garota se desfez de seu toque.
— O que você planejava quando veio atrás de mim? — perguntou ela, com o cenho
franzido.
— Eu não sei — Nina admitiu. — Eu sabia que você poderia ser a próxima vítima... na
verdade, eu tenho uma teoria. Mas agora não dá pra testá-la.
Outra batida fez a penteadeira ir mais para frente.
— Filha, não temos outra escolha! — Barbara entoou, alto. — Faça logo o que acha
que pode dar certo!
A porta foi ao chão e o lobo prateado entrou, caindo, solene, sem perder o equilíbrio.
Seus olhos brancos iam contra Nina como duas agulhas, a espetando, desde a base até a
ponta de seus fios. Aquele era o momento da provação, de botar toda a sua teoria na
prática. De ser mais do que uma mente inteligente, de ser a salvadora da noite.
O lobo pulou contra Barbara.
“Há outra maneira, um tanto quanto incomum...”
As palavras de Eliza bateram pela última vez contra os pensamentos de Nina. “Você
pode o chamar pelo nome”.
Nina apenas gritou o verdadeiro nome da fera:
— Barbara! Pare!
As duas a olharam, assustadas. O lobo caiu no chão, parando o trajeto em pleno ar.
Começou a gemer e ronronar, se contorcia também, e uivava, manifestando a dor que
sentia. O barulho de ossos se quebrando soou alto, assim como o barulho da carne se
ajeito por debaixo da pele. Boa parte do pelo não pôde voltar ao corpo, o que resultou
num tapete de tufos brancos pintados de vermelho — sangue que vazou na
transformação, por algum motivo. O latido fraco e fino de agonia se deu no lugar de um
grito.
A garota no chão — Barbara, também — se mexia de um lado para o outro. As veias
saltadas em sua barriga despida pareciam a ponto de explodir.
Quando os ânimos se acalmaram, Barbara deu uma coberta para a garota nua no meio
do seu quarto.
— Obrigada — a garota no chão agradeceu, tirando do rosto os cabelos escuros,
encharcados de sangue. Seus olhos estavam claros, como antes. Ela parecia estar cega.
No meio da turbulência preta que eram suas mechas, havia uma pequena faixa branca.
— Meu Deus. Eu consigo falar...
— O que você fez? — Barbara perguntou, assustada. Julgando a posição de seu cenho,
estava incrédula com o que viu.
Nina soltou os dedos que tinha apertado com tanta força. Viu a palma voltando a corar,
aos poucos.
— Era o único meio de fazê-la parar — começou a explicar, relutante. — Dizendo seu
nome, o de verdade. Daniel achava que o vargulf era um assassino em série, uma
espécie de tarado. Mas Barbara só queria avisar... desde o começo. Eu pensei nisso, e
tentei.
Ambas a olhavam, fascinadas. De fato, aquilo tudo era muito para uma noite.

A porta aberta da livraria deixou entrar um vento repentino.


Já era noite de quarta-feira. Morna e calma. O movimento na avenida da loja nunca era
pouco, mas, comparado aos dias de pico, estava escasso. E, como sempre, as pessoas
pareciam ignorar o conhecimento, passando sem dar a devida atenção para a porta
aberta e seguindo em direção ao shopping, ou para a praia.
Nina não era a única a estar ali. Sua colega de trabalho passeava pela livraria, com uma
cliente que já estava fazendo uma pilha de livros — e, pelo jeito, levaria dois apenas. A
mulher usava uma jaqueta branca. Tão clara como a lua. Pensou em Barbara — a
vargulf — e seus cabelos escuros, que, depois daquela noite, foram perdendo melanina e
ficando cinzentos. Depois de tudo, Barbara — a licantropo sadia — a levara embora,
dizendo que os lobisomens da alcateia teriam um lugar para ela. A história da vargulf
era triste. O seu antigo namorado, um lobisomem também, a mordeu durante uma
discussão. Ele já tinha um sádico histórico de descontar suas frustações na pequena
garota. Ele quase a matou.
Daniel entrou pela porta. Já estava bem melhor, pelo menos era o que parecia. A sua
graça angelical cintilava pelo olhar. Ganhara uma cicatriz no ombro direito, depois
daquela noite. Um queloide sutil e rosado.
Ele jogou um jornal por cima do balcão. A folha caiu, espalhafatosa. Nina não precisou
procurar pelas minuciosas letras para encontrar o que Daniel queria que visse. A
manchete estava em letras vermelhas e garrafais.
GAROTA PULA DO OITAVO ANDAR E SE MATA.
Não precisava ser um detetive para juntar as peças. Bastava apenas ver os cabelos
brancos no corpo morto. Uma foto de Barbara quando ordinária também enfeitava no
rodapé da página.
— Que merda — Nina resmungou. — Eu não acredito.
— Eu também não acreditei quando Barbara me ligou — ele respondeu, encostando no
balcão, um pouco de lado. Seus olhos se afundaram nas prateleiras de livros. — Ela
disse que a garota estava se dando bem na alcateia. O problema era que o vargulf dentro
dela não podia ser controlado, de jeito nenhum.
Nina sacudiu o jornal, tentando ler mais alguma coisa. Todavia, seu olhar se
embaralhava nas letras miúdas.
— Nem todos conseguem, não é verdade?
— Quê? — Daniel perguntou, a olhando com o canto do olho.
— Conviver com o monstro de dentro. Digo, todos nós somos monstros. Você, eu, os
vampiros lá fora.
— No caso dos lobisomens é mais difícil, ouvi dizer. — Daniel endireitou sua postura.
O suicídio de Barbara não era um fato a ser encarado de forma boa, não para ele. Os
infernais da cidade deviam estar comemorando, já que o vargulf havia se ido, de vez.
Mas, para um Nephilim, aquilo era um fracasso. O objetivo de Daniel era proteger os
ordinários. — Eles ouvem mesmo uma segunda voz na cabeça. O lobo dentro deles.
— Que seja. — Nina deixou o jornal no balcão. — Certas coisas são inevitáveis.
— É — Daniel concordou, e se desgrudou do balcão.
— Vai sair? — Nina perguntou, olhando no relógio. As horas tinham-se passado o mais
rápido do que de costume. Faltava apenas cinco minutos para o seu expediente acabar.
— Sempre há problemas por aí — ele disse, encarando porta à fora, um tanto quanto
incerto de si. A voz vaga. — Um gatinho preso numa árvore, um ladrão de pirulitos...
quem sabe.
— Não se sobrecarregue — ela o policiou. Daniel estava um pouco abalado, de ombros
frouxos. — Vamos beber alguma coisa, para distrair. Me espere. — Tirou o avental por
cima do pescoço. — Eu já volto...
O toque do celular dela soou muito alto, contra o ambiente mudo. Pegou o aparelho no
bolso, para atender. Deu uma última olhada para Daniel.
— Acho que você já tem compromisso para hoje à noite — ele disse, antes de sair
andando, sem rumo.
Nina o entendia. Daniel queria um tempo sozinho, ele precisava. Os infernais, além de
seus poderes extraordinários, tinham a infame habilidade de encher o psicológico de
qualquer um. Levando até o suicídio, como fizeram com Barbara. A história daquela
garota era só mais uma numa primavera qualquer, que já cairia no esquecimento eterno
no vazio.
Os olhos dela desceram até a mão. Sorriu para si quando viu que era Ian que ligava.

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