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A falsa crise fiscal e o estrangulamento do Estado pelas taxas de juros escorchantes – Fonte Hora do Povo

No artigo abaixo, o professor Nildo Ouriques refere-se, em determinado trecho, à parte da arrecadação dos
impostos que é confiscada e transferida aos rentistas (bancos, sobretudo estrangeiros, fundos, etc.). Realmente, se
tomarmos as transferências do governo federal via juros desde janeiro de 2011 até abril de 2015 (R$ 998,849
bilhões) e compararmos com a arrecadação de impostos, também do governo federal, no mesmo período (R$ 1
trilhão, 590 bilhões e 904 milhões), veremos que nada menos de 62,78% do que a população paga em impostos foi
destinada aos cofres dos rentistas, sob a forma de juros – e somente sob a forma de juros; não estamos incluindo
nem as amortizações nem o refinanciamento da dívida pública. A questão parece ainda mais grave se examinamos o
resultado ano a ano: em 2011 foram 60,65% da arrecadação de impostos que foram sequestrados pelos juros. Em
2012, 51,55%. No ano de 2013, 59,01%. Em 2014, 69,56%. E até abril de 2015, nada menos que 83,77% do que o
povo paga de impostos foram desviados do Tesouro para os juros.
Se o leitor quiser conferir, basta consultar o Balanço Orçamentário da União (para a arrecadação de impostos) e os
Relatórios de Política Fiscal do Banco Central (para as transferências sob a forma de juros) correspondentes ao
período citado. Essa é a crise que existe no país (pelo menos, a mais básica das crises), inteiramente decorrente da
política econômica do governo Dilma. Que país pode suportar esse peso do parasitismo financeiro? Nenhum, tanto
assim que, exceto o Brasil, isso não existe em país algum.
Mas isso significa a destruição da economia nacional, ou do que restava dela, substituída por algum arremedo
colonial. Esse é, precisamente, o projeto do governo Dilma. Por isso, é bobagem ficar esperando pelo que virá depois
do “ajuste”. Não virá nada enquanto essa malta sem sentimento de Pátria – como dizia Barbosa Lima Sobrinho –
estiver no governo. Estamos de acordo com o professor Nildo Ouriques em que toda a concepção da atual política
econômica é de uma estupidez colossal – e uma estupidez causada pela subserviência e covardia.
Para começo de conversa, a ideia (se é que assim podemos chamar essa asneira) de que o equilíbrio fiscal (ou
financeiro) consiste em pagar cada vez mais aos bancos e outros rentistas é coisa da época de Washington Luiz – e
acabou se esboroando, em poucos meses, entre o final de 1929 e o início de 1930. Na época, o grande mito era a
conversibilidade da moeda em ouro – o que significava submeter a nossa moeda ao império da libra esterlina. Como
nota Celso Furtado, “as reservas de ouro do governo alcançaram 31.100.000 libras em setembro de 1929. Em
dezembro de 1930 haviam desaparecido em sua totalidade”.
Mas, para obter a suposta conversibilidade, Washington Luiz congelou a economia. Em interessante trabalho, o
professor Wilson Cano mostra que o regime de 1930, chefiado por Getúlio Vargas, desencadeou a industrialização
do país com a política oposta: “em relação a 1928, o déficit federal de 1930 é seis vezes maior; o de 1931 é 120%
maior; o de 1933 é 134% maior; e o de 1934 é quatro vezes maior” (cf. Wilson Cano, “Crise de 1929, soberania na
política econômica e industrialização”, in P. P. Z. Bastos e P.C.D. Fonseca [orgs.] “A Era Vargas –
Desenvolvimentismo, economia e sociedade”, Ed. Unesp, 2012).
Repare o leitor que nós estamos falando do período inicial daqueles 50 anos (1930-1980) em que o Brasil foi o país
capitalista que mais cresceu no mundo – uma taxa média anual de +6,7% do PIB. Por que, apesar da existência de
déficit público, o país cresceu – e não cresceu pouco – nessas cinco décadas? Porque o equilíbrio, como frisou Celso
Furtado, só é atingido pelo próprio crescimento. Se houver crescimento, o déficit não é um problema. Ele somente
se torna um fator de desequilíbrio quando não há crescimento. Portanto, tudo depende de qual seja a política
econômica. Nesse sentido, há uma nota interessante de Keynes em sua “Teoria Geral do Emprego, do Juro e da
Moeda”: “A expressão ‘despesas com empréstimos’ é (...) conveniente para designar o produto líquido dos
empréstimos contraídos pelas autoridades públicas, seja em conta de capital ou em conta para cobrir um déficit
orçamentário. A primeira dessas formas de despesas de empréstimos atua no sentido de aumentar o investimento e
a segunda, de elevar a propensão a consumir” (grifo nosso).
Porém, é possível cavar um rombo nas contas públicas e, ao mesmo tempo, estagnar ou destruir um país. A maior
prova do que estamos dizendo é a situação do Brasil no governo Dilma, em que as transferências – de nada menos
que um trilhão - sob a forma de juros aos bancos, fundos e demais rentistas não levaram (nem podiam levar) ao
“equilíbrio” das contas públicas. Pelo contrário, o déficit do setor público foi R$ 107,963 bilhões (2011), R$ 108,912
bilhões (2012), R$ 157,550 bilhões (2013), R$ 343,916 bilhões (2014) e R$ 113,613 bilhões (janeiro-abril de 2015).
Sabe-se qual é a resposta – ou expediente – dos rentistas (e, de resto, do imperialismo, do capital financeiro
externo): a invenção do famigerado “superávit primário”, em que se consideram apenas as despesas primárias (isto
é, não financeiras: Saúde, Educação, etc.) para que os recursos destinados a estas sejam desviados para os juros. Em
suma, a canalha neoliberal e seus lacaios não se importam com o déficit público quando se trata de transferir
enxurradas de dinheiro do setor público para os rentistas – sobretudo quando os últimos têm sede em Wall Street e
outras zonas do meretrício financeiro.
O déficit público que eles querem combater é apenas aquele que está inserido numa política de crescimento e
desenvolvimento do país – por consequência, de independência em relação às matrizes imperialistas. Assim, o
professor Ouriques aponta que a dívida pública atual (R$ 3 trilhões, 468 bilhões e 109 milhões – v. BC, Relatório de
Política Fiscal, Quadro XVII) é um produto dos juros totalmente absurdos, que, aliás, é o próprio governo que
estabelece a taxa sob a qual transfere esse dinheiro aos rentistas. É uma definição do atual governo que ele não
consiga compreender o que até um “homem do mercado” - inclusive partidário dos “ajustes” neoliberais - como o sr.
José Roberto Mendonça de Barros, consegue compreender, até porque é óbvio:
“Forçar a mão nos juros é destruir a demanda, o que vai quebrar muita gente. E, se isso acontece, a arrecadação
diminui e atrapalha o ajuste fiscal. É um meio tiro no pé. (...) Com esses juros altos, o BC está atraindo capital
especulativo e afundando o câmbio. Se o dólar ficar abaixo de R$ 3, o único sinal positivo para os empresários
também se tornará uma dúvida” (v. entrevista, FSP, 21/06/2015).O problema é que não é uma questão de
compreensão, mas de submissão ideológica. E não é o primeiro caso em que o adesista – ou, em palavras mais
francas: o traidor – se porta de modo mais desesperadamente reacionário, submisso, do que aqueles que já estavam
nessa posição reacionária. Daí, por exemplo, o fato de que, politicamente, muitos dos que têm uma posição
sabidamente neoliberal, têm se mostrado, nas votações do Congresso, mais razoáveis do que aqueles que ainda
ontem se achavam o suprassumo da esquerda – e agora parecem almas penadas, se é que as almas penadas andam
de bicicleta. Mas, vamos ao artigo do professor Nildo Ouriques, autor de “O Colapso do Figurino Francês: Crítica às
ciências sociais no Brasil”, livro que recomendamos aos nossos leitores. C.L.
NILDO OURIQUES*
A classe dominante brasileira produziu um consenso perigoso para o país: segundo afirmam os principais jornais,
TVs, rádios, deputados e senadores (dos principais partidos), professores de economia e governadores, o país vive
uma grave crise fiscal. A produção ideológica deste consenso recusa ver a causa fundamental de todos nossos males
atuais: a imensa crise financeira do estado, produto do mega endividamento público (interno e externo) organizado
desde 1994, quando entrou em vigor o Plano Real. Em junho de 1994, quando o ex-presidente Itamar Franco
anunciou o Plano Real, a dívida interna não superava os 64 bilhões de reais. Fernando Henrique Cardoso venceu as
eleições naquele ano e ao término de seu segundo mandato, a dívida alcançou 720 bilhões de reais. A multiplicação
da dívida não tem segredo: os economistas decidiram controlar a inflação com a brusca elevação da taxa de juros em
patamares superiores aos 50%! Nas duas últimas décadas o Brasil foi quase sempre o campeão mundial de juros,
alimentando inédita república rentista, onde todas as frações de capitais (multinacionais, banqueiros, latifundiários,
comerciantes e fundos de pensão) alimentam-se a custa da dívida pública. O governo Lula (2003-2010) dobrou a
aposta, razão pela qual a dívida chegou a 1,5 trilhão de reais. O governo petista de Dilma Rouseff não amoleceu na
generosidade ao rentismo: a dívida alcançou a estratosférica cifra de 3 trilhões de reais.
Qual a consequência mais importante do fenômeno? O governo destina a metade do orçamento público, ou seja,
quase a metade de tudo que arrecada em impostos para o pagamento dos juros da dívida que, não obstante, segue
crescendo em ritmo vertiginoso. Em 2014, por exemplo, o governo destinou 45,11% de toda a arrecadação fiscal
para o pagamento de juros e amortização parcial da dívida. É como se o país funcionasse no ritmo de uma economia
de guerra, tal como a Nicarágua nos anos 1980. No entanto, a dívida segue crescendo todos os meses, alimentando
o rentismo dos detentores dos títulos da dívida pública.
Os números deixam claro que não sofremos uma crise fiscal, ou seja, originado pelo suposto de que o “governo
arrecada muito e gasta pior”. De fato, existe superávit fiscal se excetuamos da conta o gasto financeiro do governo
com os juros da dívida. A constituição de 1988 em vigor prevê a auditoria da dívida, mas a maioria parlamentar
composta pelos dois principais partidos do país (o governista PT e o oposicionista PSDB) impede qualquer
movimento nesta direção. Assim, os partidos se digladiam em questões menores (redução da maioridade penal,
sistema de cotas, etc.) enquanto mantêm sólida aliança nas questões econômicas de fundo. Da mesma forma,
qualquer tentativa séria de reformar o sistema político termina em pequenas alterações no sistema eleitoral que, de
fato, são incapazes de outorgar representatividade ao sistema político, cada dia mais distante das maiorias
populares e ainda do eleitor médio, a caricatura moderna do cidadão.
Há que observar o essencial: o consórcio ‘petucano’ maneja bem a situação política. A despeito das acusações
mútuas sobre corrupção e pequenas desavenças no congresso, a verdade é que no terreno da economia e das
questões centrais, tanto o PT quanto o PSDB estão basicamente de acordo. É o sistema ‘petucano’, mistura de
petistas e tucanos que, para quantidade expressiva de eleitores não possuem diferença alguma, razão pela qual
entre o abstencionismo, o voto nulo e o branco, alcançou 37 milhões de pessoas no segundo turno de uma eleição
considerada como “a mais disputada da democracia brasileira”. Trata-se de cifra considerável quando levamos em
conta que a presidente reeleita levou 54 milhões e o senador Aécio Neves, candidato derrotado, chegou aos 51
milhões.
Neste contexto, mais importante que a existência dos programas sociais do petismo é a continuidade desta regra de
ouro da estabilidade monetária no país: o pagamento religioso dos juros do sistema de dívida. É verdade que as
últimas medidas votadas no parlamento tiram direitos dos trabalhadores e, também neste caso, podemos ver como
petistas e tucanos votam conjuntamente nas questões centrais. Ambos possuem o mesmo enfoque e discurso
público: o país “precisa” buscar o superávit fiscal primário para honrar o custo financeiro da dívida interna e os
custos adicionais da dívida externa.
No debate público, este assunto medular é, sempre, ocultado do grande público. A imprensa, exibindo inabalável
compromisso com a liberdade de imprensa, atua como se estivesse, de fato, submetida à ordem unida que podemos
ver nos desfiles militares. Em consequência, simplesmente ignoram o fenômeno como se não existisse. Ninguém
escreve ou debate o mega-endividamento público do Estado que garante lucros extraordinários para todas as
frações de capitais e destina aos setores mais empobrecidos da população míseros 0,47% do PIB para o programa
Bolsa Família, considerado o principal programa social do governo. Enfim, enquanto o governo gasta quase 10% do
PIB com o aumento anual da dívida, não reserva sequer 0,5% para o programa social que tem sido considerado o
mais importante da história do país.
Portanto, não podem existir dúvidas sobre o futuro imediato. As ilusões liberais segundo as quais a “questão social”
estaria sendo resolvida por políticas sociais chegaram ao fim. A abissal desigualdade de renda – produto da
superexploração da força de trabalho – não pode ser resolvida sem tocar na propriedade e no poder dos ricos. O
sistema ‘petucano’ vivia comodamente mantendo os pobres na situação de pobreza sem matá-los de fome. As
migalhas orçamentárias (0,47% do PIB) constituíam caridade católica e passavam a agradável impressão para os ricos
e poderosos de que era possível enfrentar a violência e miséria de milhões de brasileiros com programas que
rapidamente encontraram o apoio dos dois principais partidos do país. A crise econômica, derivada da ação
corrosiva e silenciosa dos juros da dívida e a queda dos preços dos produtos agrícolas e minerais exportados pelo
Brasil, limitou drasticamente as possibilidades do consenso e, em consequência, o sistema ‘petucano’ concordou em
que o ajuste era mesmo inevitável.
Qual será o resultado da política econômica aplicada no país? Será possível sair da crise econômica e política? É
muito pouco provável. As medidas orientadas pelo Fundo Monetário Internacional – incapazes de tirar os pequenos
países periféricos da Europa da violência da crise financeira – tampouco funcionará na periferia capitalista latino-
americana. A quantidade de pobres e miseráveis já voltou a crescer e não existe qualquer programa de privatização
– estradas, portos, aeroportos, etc. – capaz de elevar a taxa de investimento na economia, pois a elevação continua
da taxa de juros torna sempre mais atrativo o investimento rentista ao produtivo. Neste ano, há clara redução do
setor industrial e o sustento de taxas de crescimento do PIB próximas ao zero somente é possível porque a
agricultura – turbinada com agrotóxicos e destinada à exportação – segue crescendo. Em resumo, o país sofre grave
regressão industrial e fortalece sua posição na divisão internacional do trabalho como mero exportador de produtos
agrícolas e minerais. No entanto, os acadêmicos, o jornalismo dominante e os políticos e empresários exitosos,
seguirão afirmando seu otimismo no país enquanto o Brasil aprofunda as características essenciais de qualquer país
subdesenvolvido e dependente.
* Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC), Presidente do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA)

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