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mais sistemática de estudos sobre federalismo, por Olhares cruzados nas análises de
exemplo, teria muito a enriquecer a narrativa que o políticas públicas
autor formulou sobre a democracia brasileira, pro-
blematizando o diagnóstico simplificador de que, da Eduardo Cesar Marques e Carlos Aurélio Pimen-
década de 1980 em diante, não houve qualquer des- ta de Faria (orgs.). A política pública como campo
centralização política no país (Abrucio, 1998). multidisciplinar. Rio de Janeiro/São Paulo, Fio-
Do modo como é apresentado – o pemedebis- cruz/Editora da Unesp, 2013. 282 páginas.
mo como fator a imobilizar a sociedade brasileira
Renata Bichir
em crescente movimento –, o livro de Marcos No-
bre apresenta sérias lacunas que o fragilizam quer No Brasil, especialmente após a redemocratiza-
como ensaio de interpretação, quer como estudo ção, os processos de produção de políticas públicas
empírico a contribuir para o quadro geral das ciên- são cada vez mais complexos. Envolvem diversida-
cias sociais brasileiras. de temática, grande número de atores estatais e não
estatais em intricados padrões de interação e pro-
cessos decisórios que se desenvolvem em distintas
BIBLIOGRAFIA arenas, com consequências para públicos distintos.
Construir modelos de análise para compreender a
ABRUCIO, F. (1998), Os barões da federação: os go- produção de políticas públicas, desde os processos
vernadores e a redemocratização brasileira. São decisórios até a implementação e a avaliação, não é
Paulo, Hucitec. uma tarefa trivial. Isso implica, no plano analítico,
ALMOND, G. & VERBA, S. (1963), The civic modelos explicativos que combinem distintas con-
culture: political attitudes and democracy in five tribuições disciplinares por meio da articulação coe-
nations. Princeton, Princeton University Press. rente de variados arsenais teóricos e metodológicos,
LIMONGI, F. (2006), “A democracia no Brasil: para além de macroexplicações por vezes superficiais.
presidencialismo, coalizão partidária e proces- Como compreender melhor os atores, as insti-
so decisório”. Novos Estudos Cebrap, 76: 17-41. tuições e as dinâmicas envolvidos na produção das
LIMONGI, F. & CORTEZ, R. (2010), “As elei- políticas públicas senão a partir de múltiplos olhares
ções de 2010 e o quadro partidário”. Novos Es- disciplinares? A coletânea organizada por Eduardo
tudos Cebrap, 88: 21-37. Marques e Carlos Faria reforça essa perspectiva,
MELO, C. & CÂMARA, R. (2012), “Estrutura da trazendo um excelente panorama da contribuição
competição pela presidência e consolidação do sis- de diferentes campos do saber, a partir de deba-
tema partidário no Brasil”. Dados, 55 (1): 71-117. tes originados no fórum A Multidisciplinaridade
NOBRE, M. (2013), Choque de democracia: razões na Análise de Políticas Públicas, realizado no VII
da revolta. São Paulo, Companhia das Letras. Encontro da Associação Brasileira de Ciência Po-
OLIVEIRA, F. de. (2010), “Hegemonia às avessas”, lítica (ABCP), em 2010, no Recife. Ao longo do
in R. Braga, F. Oliveira e C. Rizek (orgs.), He- livro, que reúne ensaios inéditos elaborados por
gemonia às avessas, economia, política e cultura na especialistas em suas áreas, somos convidados a
era da servidão financeira. São Paulo, Boitempo. conhecer melhor as abordagens de diferentes dis-
SINGER, A. (2012), Os sentidos do lulismo: reforma ciplinas sobre as políticas públicas, tanto aquelas
gradual e pacto conservador. São Paulo, Compa- envolvidas diretamente na sua análise – ciência
nhia das Letras. política, administração pública e mesmo sociolo-
gia e relações internacionais –, como aquelas que
MARCELO MOREIRA contribuem com modelos e categorias analíticas,
é professor adjunto da Universidade Federal explicações para o comportamento de indivíduos
de Lavras (UFLA). E-mail: e grupos – sociologia, antropologia, psicologia so-
marcelomoreira@dch.ufla.br.
cial –, ou ainda disciplinas que fornecem subsídios
DOI: http//dx.doi.org/10.17666/3089171-175/2015 para o processo de produção de políticas públicas –
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direito e demografia. Há ainda o caso da história, percebe possíveis pontos de contato entre as abor-
que tem parte de seu arcabouço conceitual apro- dagens disciplinares. A lógica de organização de
priado por outras disciplinas para o entendimento muitos dos ensaios é similar: é apresentada, a tra-
de políticas públicas. Evidencia-se assim a ampli- ços largos, a evolução disciplinar daquele campo
tude temática, conceitual e metodológica propos- específico do saber, internacionalmente e no caso
ta por essa coletânea, que promove um necessário brasileiro, sendo identificados os principais temas
cruzamento de olhares analíticos sobre as políticas de pesquisa e possíveis conexões com as políticas
públicas, ainda que contribuições de outros cam- públicas, tanto de maneira direta – envolvimento
pos disciplinares importantes, como a economia, profissional e/ou analítico com as questões do “Es-
tenham ficado de fora. Por um lado, o livro con- tado em ação” – quanto indireta, fornecendo pos-
tribui para a articulação de algumas das principais síveis subsídios para o desenvolvimento de outros
matrizes analíticas e agendas de pesquisa desenvol- olhares sobre a ação estatal. Alguns ensaios procu-
vidas por campos disciplinares mais diretamente re- ram, inclusive, quantificar a presença da temática
lacionados com a análise de políticas, como a ciên- das políticas públicas nas linhas de pesquisa de sua
cia política e a administração pública. Por outro, disciplina – caso dos capítulos elaborados por So-
somos surpreendidos pelas fecundas possibilidades raya Côrtes (sociologia), Piero Leirner (antropolo-
de interpretação oriundas de campos disciplinares gia), Marta Farah (administração pública) e Peter
que não estão, necessariamente, voltados para a ex- Spink (psicologia social).
plicação das ações estatais, tais como antropologia Conforme reconhecido no título do livro e res-
e psicologia social. saltado pelos organizadores, o “estado da arte” do
A relevância do olhar interdisciplinar deriva campo é ainda muito mais “multidisciplinar” – reu-
também da constatação da evolução institucional nindo contribuições de mais de uma área do conhe-
das políticas públicas no Brasil, seja no âmbito go- cimento sem profunda interligação entre as discipli-
vernamental, seja no âmbito acadêmico, com a mul- nas – do que um diálogo com integração disciplinar,
tiplicação dos cursos de graduação e pós-graduação quanto mais “transdisciplinar”, no sentido da criação
na área. Como reconhecido pelos organizadores do de uma macrodisciplina de análise de políticas pú-
livro e também nos ensaios elaborados por Carlos blicas. Carlos Faria, em seu capítulo sobre a multi-
Pimenta e por Marta Farah, há muitas expectativas disciplinaridade, discorre sobre os sentidos desses
e muitos desafios colocados pela institucionalização qualificativos,1 reconhecendo a existência de algumas
do campo de políticas públicas no Brasil, uma vez disciplinas que já são, de modo constitutivo, inter
que esses novos cursos já nascem multidisciplinares. ou multidisciplinares, mas não transdisciplinares,
Como alerta Marta Farah, a expansão desse campo tais como as relações internacionais e a demografia.
nem sempre é acompanhada de reflexão sobre a in- O autor reconhece que, por um lado, as “fronteiras
corporação de diferentes disciplinas nas análises de porosas” da análise de políticas públicas facilitam a
políticas públicas, considerando-se requisitos bási- interdisciplinaridade; por outro, aponta um rol de
cos de coerência teórica e metodológica. Ecoando constrangimentos à sua efetivação, que vão desde
o diagnóstico sobre o campo elaborado nos anos de problemas organizacionais, como a lógica disciplinar
1990 por Marcus Melo (1999), Eduardo Marques que ainda organiza as universidades, até problemas
e Carlos Faria reconhecem, na introdução do livro, ligados às carreiras profissionais, passando pela socia-
que a multiplicação de estudos sobre políticas públi- lização disciplinar precoce e por impedimentos ins-
cas e a crescente especialização dos debates acabou titucionais (incentivos, financiamento, prioridades)
por estimular ainda mais a fragmentação do campo. (pp. 13-15).
Desse modo, seria uma “tarefa urgente” sistematizar Conferir coerência teórica e metodológica à
esse campo dos estudos no país, lacuna muito bem multiplicidade de abordagens possíveis não é uma
preenchida por essa coletânea. tarefa que possa prescindir da análise dos padrões
A despeito dos distintos arcabouços teóricos, de produção de políticas públicas. Eduardo Mar-
conceitos e abordagens em cada ensaio, o leitor ques, em seu ensaio “As políticas públicas na ciên-
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cia política”, parte do conceito consagrado por Jo- ressalta a perspectiva mais instrumental de utiliza-
bert e Muller, que compreendem as políticas pú- ção da disciplina nas políticas públicas.
blicas como o estudo do “Estado em ação”, para Também o Estado é abordado de maneira cada
mostrar que a análise dos “por quês” e “como” nas vez mais complexa e contraditória – modelos analí-
ações estatais é cada vez mais complexa, envolven- ticos oriundos de distintas matrizes disciplinares re-
do a interação entre distintos atores, para além do conhecem que é necessário abrir essa “caixa preta” e
Estado. Em uma densa síntese analítica das princi- considerar os interesses, as ideias, as estratégias e os
pais abordagens de políticas públicas desenvolvidas conflitos dos atores que podem ser classificados no
no campo da ciência política, Marques identifica âmbito estatal. Nesse sentido, a politização das análi-
um processo de politização crescente das análises, ses, que ocorre não somente no campo da ciência po-
passando pelos momentos fundadores do campo lítica, como notado por Marques, mas também nos
de análise e seus principais deslocamentos, desde a campos da administração pública e das relações in-
consideração dos limites à racionalidade dos policy ternacionais – discutidos, respectivamente, por Mar-
makers, as críticas ao modelo do ciclo de políticas, ta Farah e Maria Regina Soares de Lima –, contribui
até perspectivas incrementalistas das políticas pú- para a consideração dessas dinâmicas internas ao Es-
blicas, mais abertas à contingência, ao papel das tado. Tanto no caso da administração pública quan-
ideias, dos conflitos e mesmo das não decisões, con- to no caso das relações internacionais, temos campos
siderando-se de maneira mais central os momentos disciplinares que, na sua origem, estiveram muito
pós-decisórios, como a implementação e a avalia- próximos do campo da ciência política, mas que
ção de políticas públicas. Na feliz metáfora utiliza- adquiriram especialização temática e contornos pró-
da pelo autor, a produção de políticas públicas seria prios, voltando, recentemente, a buscar novos pon-
menos uma atividade de design (no sentido de ade- tos de contato com processos analisados pela ciên-
quação racional de meios a fins) e muito mais um cia política.
artesanato, considerando a complexidade de atores Sintetizando a evolução do campo de admi-
e contextos, ideias, estratégias e conflitos (p. 44). nistração pública a partir da tensão constitutiva
O reconhecimento de que a produção de polí- entre administração e política, Marta Farah iden-
ticas públicas envolve um amplo conjunto de atores tifica como deslocamentos analíticos importantes
em interação, para além dos estatais, é outro aspec- a crítica dessa separação, o reconhecimento do ad-
to que justifica a incorporação de olhares discipli- ministrador como um policy maker e a introdução
nares diversos sobre os produtores e os sujeitos “re- recente de perspectivas pós-positivistas. Entretanto,
ceptores” das políticas públicas, tais como os atores a autora reconhece que o mainstream da análise de
societais (ligados à sociedade civil ou ao mercado) políticas públicas na administração pública reintro-
analisados pela sociologia – cujas contribuições duziu a separação entre política e administração,
para a análise de políticas públicas são discutidas mantendo o “sonho positivista da objetividade e da
no capítulo de Soraya Côrtes – e as “minorias”, so- racionalidade” (p. 105). No contexto de reforma
bre as quais se debruça parcela importante da an- do Estado, Farah identifica uma ampliação do con-
tropologia, abordada por Piero Leirner. Adicional- ceito de “público” e do campo de estudo de políti-
mente, a demografia, discutida nessa coletânea por cas públicas a partir do reconhecimento de que as
José Marcos Pinto da Cunha, é imprescindível para políticas públicas dependem de redes de atores que
fornecer elementos básicos de caracterização de po- vão para além do Estado, incluindo também orga-
pulações, para o conhecimento das transformações nizações não governamentais, setor privado, entre
demográficas pelas quais vem passando a sociedade outros. Nesse sentido, as contribuições próprias da
brasileira nas últimas décadas e projeção de tendên- administração pública estariam, segundo Farah, nas
cias futuras, aspectos essenciais para a produção de análises desenvolvidas em torno dos conceitos de
qualquer política pública. A partir de um panora- cooperação, rede e governança (p. 104). As fragi-
ma das principais transformações demográficas em lidades observadas por Farah no âmbito da admi-
curso no Brasil e suas possíveis implicações, Cunha nistração pública (pp. 121-123) certamente não
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se restringem a esse campo disciplinar e servem de “nativo”, como um objeto de análise, e não como
alerta para todo o conjunto de análises de políti- uma figura transcendente. Em sua reflexão sobre as
cas públicas, ainda ecoando o diagnóstico de Melo políticas públicas e a antropologia, o autor reconhece
(1999) mesmo com a maior maturidade do campo: que essas relações não são nem óbvias nem diretas.
produção de viés normativo, voltado para questões Ainda que seja uma área minoritária e permeada por
práticas; desconsideração de esforços anteriores, questionamentos éticos e por complexos padrões de
baixo acúmulo de conhecimento; incorporação de relações entre os antropólogos e o Estado, o autor
temas da agenda governamental com baixa sistema- ressalta que a antropologia do Estado e da política
tização e grande dispersão temática; incorporação que se faz no Brasil é das melhores, mencionando a
acrítica de modelos criados em outros contextos; peculiaridade da nossa antropologia, que nasce po-
problemas de consistência teórica e metodológica, lítica, tanto pela incorporação de teorias antropoló-
dificultando o acúmulo e a densidade do conheci- gicas estrangeiras quanto pelas relações de alteridade
mento produzido. dos antropólogos com seus objetos. Leirner identi-
Por sua vez, Maria Regina Lima apresenta, na fica duas formas de analisar a política, tomando o
trajetória dos estudos desenvolvidos no campo das Estado como “nativo”, a partir dos anos de 1990: 1)
relações internacionais, elementos que contribuíram análise de processos políticos, eleições, como conse-
para o tratamento da política externa como políti- quências de obrigações, dádivas e trocas; 2) análises
ca pública, superando argumentos tecnocráticos da da burocracia e do funcionamento da máquina esta-
“excepcionalidade” dessa política, seja no debate tal. O autor ressalta ainda que conceitos necessaria-
internacional, seja no debate brasileiro. Também mente estão associados a “paisagens etnográficas” (p.
nesse campo disciplinar as análises e as teorias sobre 73), a contextos específicos, sendo essencial conside-
o Estado tornam-se mais multidimensionais. Lima rar a relevância das “categorias nativas”. Na minha
discute em seu ensaio como as análises partiram do leitura, essas considerações são muito pertinentes
modelo do “Estado unitário” e chegaram a interpre- para refletir sobre a tão comum incorporação acríti-
tações mais complexas, considerando dinâmicas in- ca de modelos explicativos, inclusive no campo das
ternas ao Estado e também o seu entorno, incluindo análises de políticas públicas.
atores estatais e não estatais. Nesse processo, foram Outra forma de abordagem da complexidade
incorporados olhares, abordagens e conceitos desen- necessária às análises é encontrada no texto “Psico-
volvidos em outros campos disciplinares, tais como: logia social e políticas públicas: linguagens e ação
incorporação do neoinstitucionalismo, de análises de na era dos direitos”, elaborado por Peter Spink. Se-
processos decisórios e as interações estratégicas entre gundo o autor, no caso brasileiro a psicologia tende
os diversos atores; incorporação de entendimento so- a se afastar das ciências sociais, sendo as relações en-
ciológico de instituições e agentes; reconhecimento tre a psicologia e as políticas públicas uma história
da relevância de normas e instituições. A abertura de conexões parciais e perdidas, com promessas de
para o diálogo com outras disciplinas marcou a evo- reconexão mais durável (p. 161). Em uma aborda-
lução do campo, com importantes pontos de aproxi- gem pós-positivista bastante centrada na dimensão
mação com outras disciplinas, como ciência política discursiva – os pressupostos epistemológicos são
e sociologia. Nos termos de Lima, as relações inter- considerados pelo autor como “línguas” –, Spink
nacionais poderiam ser caracterizadas como uma ressalta a “polissemia do agir público”, as diferen-
“subárea aberta e eclética” (p. 143). tes linguagens de ação, renegociação de processos
Refletir sobre a complexidade das análises e dos de governança, possibilidades de negociação da
padrões de interação entre atores diversos e o Estado linguagem da política e da linguagem dos direitos,
nos termos da discussão da antropologia da política, bem como as diferentes maneiras de “performar” o
apresentada por Piero Leirner, implica o reconheci- político – sendo a política pública uma das lingua-
mento de “muitos mundos do Estado” e também do gens possíveis (p. 179). Nessa perspectiva, a ação
“Estado no interior de muitos mundos sociais” (p. pública é pensada em diferentes arranjos possíveis
79), sendo importante considerar o Estado como das relações entre governo e sociedade. Em sua aná-
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lise acerca das quatro abordagens mais promissoras guindo uma proposição básica de um dos ‘pais fun-
da psicologia social para as análises de políticas pú- dadores’ da área, Harold Lasswell” (p. 63).
blicas – realismo, perspectivismo, construcionismo Outro ponto transversal a alguns ensaios é a
e performatividade –, o autor ressalta um impor- grande influência da agenda pública e dos temas do
tante argumento na busca da multidisciplinaridade debate corrente nas análises realizadas pelas mais di-
no campo das análises de políticas públicas: “a pro- versas disciplinas. Faria afirma que essa proximida-
posta multidisciplinar presume – antes de tudo – de contribui para o crescimento da multidiscipli-
uma competência conversacional” (p. 161). naridade, uma vez que diversas questões da agenda
Ainda que não assumam como objeto central pública demandam tratamento interdisciplinar; en-
as políticas públicas, as contribuições teóricas dos tretanto, o autor reconhece os riscos dessa proximi-
campos da antropologia e da psicologia social po- dade. Podemos considerar que esta é uma dimen-
dem fornecer importantes arcabouços teóricos e são constitutiva do campo das análises de políticas
conceituais para sua compreensão. De maneira si- públicas: a tensão entre proximidade e distância
milar, uma perspectiva de coerência teórica para a em relação à agenda governamental e a necessidade
multiplicidade de análises pode vir da sociologia. de certo distanciamento para que seja possível de-
Nos termos da discussão apresentada por Soraya cantar teoricamente alguns conceitos, para além
Côrtes, a disciplina pode ser uma importante fon- de estudos de caso e análises setoriais. Nesse ponto,
te teórica para a construção de modelos analíticos seguir as lições da antropologia e defender “algu-
para as políticas públicas, ainda que não predomi- ma distância” em relação ao objeto de estudo – no
nem, no caso brasileiro, as análises específicas so- caso, o Estado tomado como “nativo”, como o “ou-
bre políticas públicas (p. 68). Essas contribuições tro” a ser analisado – parece um caminho promis-
advêm especialmente da longa tradição de análise sor. A própria reflexão sobre essas relações diretas e
das relações entre Estado e sociedade e também so- indiretas com o Estado, como realizada em muitos
bre as relações entre estrutura e agência. A autora dos ensaios dessa coletânea, contribui para a conso-
apresenta um panorama das análises sociológicas lidação do campo de análises.
sobre esses binômios desde os trabalhos clássicos de Alguns campos disciplinares são mais dire-
Durkheim, Marx e Weber até autores contempo- tamente afetados por essas relações tensas entre a
râneos. Nessa trajetória, mostra distintas ênfases e agenda de pesquisas e a agenda de políticas. Além
deslocamentos analíticos que dialogam, direta ou de áreas como a administração pública, cuja agenda
indiretamente, com temas caros às análises de polí- de pesquisa ainda é magnetizada pela proximidade
ticas públicas: identidades, atores e grupos sociais; com o Estado e caracterizada pela normatividade,
relações entre atores societais e estatais; luta pelo re- como bem observado por Marta Farah, há dinâmi-
conhecimento; novos grupos sociais; estudos sobre cas similares no caso do direito, em particular no
comunidades de políticas e redes diversas; o papel direito administrativo. No ensaio “O direito nas
estruturador das normas sociais e sua relação com políticas públicas”, Diogo Coutinho caracteriza a
as redes sociais; a relevância crescente das institui- “relação ambígua” dos juristas com as políticas pú-
ções – entendidas como organizações ou como nor- blicas, uma vez que eles são chamados a opinar so-
mas. Desse modo, modelos sociológicos diversos bre problemas relacionados a suas diversas “fases”,
são fontes para compreensão da ação de indivíduos mas refletem pouco sobre as políticas públicas em
e grupos, considerando atores societais e estatais, as sua formação ou mesmo academicamente. A des-
relações entre estrutura e agência, o papel das nor- peito das diferentes ordens de dificuldade que iden-
mas sociais, as motivações e os interesses por trás tifica na interação entre direito e políticas públicas –
das decisões políticas. Na síntese de Côrtes: “In- conceituais, semânticas, metodológicas, teóricas e
dependentemente de sua aplicabilidade para a for- práticas –, o autor acredita que estudar as funções
mulação e implementação de políticas públicas, a desempenhadas pelo direito pode ajudar a aperfei-
disciplina vem se tornando cada vez menos abstrata çoar as políticas públicas (objetivo normativo), uma
e mais orientada para ‘problemas’ da sociedade, se- vez que é possível desdobrá-las em normas, proces-
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sos e arranjos institucionais mediados pelo direito. precisa ir muito além da visão racionalizadora, eta-
O papel que o direito assume nas políticas públicas, pista e simplista do “ciclo de políticas públicas”,
segundo Coutinho, é de coordenador e articulador, ainda que este modelo tenha valor heurístico, como
para além de seu papel indutor (normas e sanções). defendido por Marques. Como aprendemos, por
Defende um direito administrativo mais analítico e exemplo, a partir do arsenal teórico da sociologia,
flexível, que possa servir como “tecnologia de im- são cada vez mais complexas as formas de intera-
plementação de políticas públicas”, para além do ção entre atores estatais e não estatais nos processos
foco no “pode/não pode” e em direção ao “como de produção de políticas públicas. Nos termos da
pode” ser feito, de modo a permitir experimenta- discussão da antropologia da política, essa comple-
ções, revisões e incorporação de aprendizados no xidade encontra-se no reconhecimento de “muitos
campo das políticas públicas (p. 188). mundos do Estado”, sendo necessário reconhecer
Por fim, abordando as possíveis contribuições a “polissemia do agir público”, como lembra Peter
da história – que no Brasil não tem analisado sis- Spink em sua análise a respeito das contribuições
tematicamente as políticas públicas – e também os da psicologia social. Por meio de estilos distintos,
desafios das ciências sociais em tratar as políticas somos convidados a explorar mundos analíticos
públicas “no tempo”, Gilberto Hochman traz refle- por vezes pouco conhecidos nesses tempos de ex-
xões importantes que “transbordam” as fronteiras cessiva especialização temática, compreendendo,
desse campo disciplinar e possibilitam pensar diá- de fato, os sentidos possíveis de “complexidade” e
logos inter/trans/multidisciplinares nas análises de “interdisciplinaridade”.
políticas públicas. O autor reconhece que, a despei- Entretanto, cumpre notar que esse “passeio
to da incorporação crescente de um vocabulário li- disciplinar” não é desprovido de dificuldades: os
gado à história por parte das ciências sociais em ge- referenciais teóricos, conceituais e analíticos mo-
ral – e da ciência política em particular –, a história bilizados pelos autores na coletânea nem sempre
tem sido incorporada mais como adjetivo do que são acessíveis a leitores não iniciados naquela área
substantivamente, como disciplina e arsenal meto- específica; há debates complexos e multifacetados.
dológico para a análise de políticas públicas. Iden- Fica o convite ao aprofundamento em cada uma
tifica, inclusive, mais possibilidades de competição dessas possibilidades de análise, em busca de no-
do que interdisciplinaridade entre análises que in- vos pontos de contato.
corporam o “tempo” e a “história”. O autor reforça Para além do otimismo gerado pelas múlti-
um alerta, muitas vezes ignorado: “‘pensar no tem- plas possibilidades de olhares cruzados nas análi-
po’ não é necessariamente pensar historicamente” ses das políticas públicas contemporâneas, os en-
(p. 234). Em contraponto, Hochman argumenta saios contidos nessa coletânea trazem importantes
que a história importa também como disciplina, alertas: não sejamos nem incautos, nem ingênuos
e não só como tempo. O autor identifica análises nesse percurso disciplinar. Como lembra Spink,
históricas de políticas públicas em certos setores – a “proposta multidisciplinar presume – antes de
com destaque para a saúde pública – e ressalta que tudo – competência conversacional” (p. 161).
a sensibilidade histórica permite a abertura de “cai- Hochman indaga: como se dá essa incorporação
xas pretas” (p. 237), especialmente quando se leva de olhares? Cria-se, de fato, uma abordagem in-
a sério que o passado deve ser tomado “como país tegradora ou há uma incorporação instrumental e
estrangeiro” (p. 239). Mesmo com os avanços se- predatória de certos conceitos e abordagens? Faria,
toriais, na avaliação de Hochman permanecem em outro texto (2003), percebe ainda uma “Babel
obstáculos conceituais e normativos na relação da de abordagens” nas análises contemporâneas so-
história com as políticas. bre políticas públicas. Nessa coletânea, Marques e
Ao longo desse bem-vindo conjunto de aná- Faria esperam que o debate multidisciplinar pro-
lises, ficamos convencidos da importância da in- movido possa provocar um debate transdiscipli-
terdisciplinaridade para dar conta de um processo nar, “em que sejam ultrapassadas as fronteiras das
de produção de políticas que, para ser entendido, disciplinas de forma profícua para a produção do
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conhecimento” (p. 9). é tanta que não é possível separar as contribuições


Discorrendo sobre as relações entre as ciências individuais e cria-se uma macrodisciplina (p. 16).
sociais e a história, Gilberto Hochman menciona
um risco que pode ser generalizado para as pos-
síveis interações entre outros campos do saber: a BIBLIOGRAFIA
associação perversa entre “monólogos disciplina-
res” com “baixa capacidade auditiva” por parte de FARIA, C. A. P. (2003), “Ideias, conhecimento e
outras disciplinas. (p. 227). Dando ressonância a políticas públicas: um inventário sucinto das
preocupações presentes em Faria, Hochman tam- principais vertentes analíticas recentes”. Revista
bém nos alerta para os riscos de incorporação sim- Brasileira de Ciências Sociais, 18 (51): 21-30.
plesmente instrumental de disciplinas, sem levar a MELO, M. A. (1999), “Estado, governo e políticas
sério os contextos de produção de certos conceitos públicas”, in Sergio Miceli (org.), O que ler na
e o conjunto da disciplina, conformando “diálo- ciência social brasileira (1970-1995), São Paulo,
gos predatórios” (p. 241). Tomando emprestado o Sumaré.
diagnóstico de Hochman para a análise de políticas
públicas como um todo, eu diria que o avanço da RENATA BICHIR é professora de
multidisciplinaridade no campo dos estudos de graduação e pós-graduação em gestão
políticas públicas depende das possibilidades e de políticas públicas da Escola de Artes,
dos limites de um “diálogo incomum, perene, não Ciências e Humanidades (EACH) da
Universidade de São Paulo e pesquisadora
predatório e interdisciplinar”, para além dos “mo- do Centro de Estudos da Metrópole. E-mail:
nólogos disciplinares” que ainda marcam o campo renatabichir@gmail.com.
atual, muito mais “multidisciplinar” do que “in-
terdisciplinar”, quanto mais “transdisciplinar”. DOI: http//dx.doi.org/10.17666/3089175-181/2015

Por tudo o que foi exposto, essa coletânea re-


presenta um ponto de partida importante e bem
fundamentado para a transição dos “monólogos
disciplinares” em direção a uma maior “compe-
tência conversacional” entre diversos campos do
saber que podem contribuir para o entendimento
mais completo de nossas políticas públicas.

Nota

1 Faria conceitua a multidisciplinaridade como a


agregação de informações de mais de uma área do
conhecimento para solução de um determinado
problema, sem que haja preocupação com a inter-
ligação das disciplinas ou alteração/enriquecimento
das mesmas, em um “encontro entre monólogos
disciplinares” (Santos, 2007, apud Marques e Faria
(orgs.), 2013, p. 15). Por sua vez, a interdisciplinari-
dade seria a interação entre uma ou mais disciplinas
com intercâmbio e integração, sendo repensadas,
conjuntamente, teorias e metodologias – em um
“diálogo constituído entre disciplinas diferentes” (p.
16). Transdisciplinaridade seria uma “etapa superior
da integração das disciplinas”, na qual a cooperação

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