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Seriados atropelam cinema e

tornam-se protagonistas do debate


cultural
The Handm

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LUCIANA COELHO
13/01/2018 06h00

RESUMO Num movimento que se acentuou nos últimos anos,


as séries televisivas assumiram protagonismo na indústria
audiovisual, fazendo do cinema um coadjuvante. O formato de
seriado foi o que melhor acompanhou a mudança de hábitos do
espectador e as produções para TV passaram a pautar os debates da
sociedade.

Quando o debate feminista explodiu de forma estrepitosa em 2017,


em meio à revelação de casos de assédio sexual no show business
americano, foi a ficção televisiva que entregou a peça mais bem
acabada a respeito do tema: a série "The Handmaid's Tale".

Trata-se de adaptação do romance "O Conto da Aia" (1985), da


canadense Margaret Atwood, sobre uma fictícia república futurista na
qual as mulheres são categorizadas por sua capacidade reprodutiva.
A série é exibida pelo site de streaming Hulu —joint-venture entre a
Disney/Fox, a operadora de cabo Comcast e a Time Warner—, uma
plataforma de reprodução de vídeo on-line que se convencionou
chamar também de TV e que tem nesse drama sua mais ousada
aposta em produção de conteúdo original.

A produção —cujo lançamento no Brasil está programado para


março— virou o epítome do debate político-comportamental recente
e do que se aventa para o futuro, frequentemente servindo de alegoria
para se construírem argumentos e teses.

Cinco meses depois da estreia de "The Handmaid's Tale", foi ao ar


outra versão televisiva de um romance de Atwood: "Alias Grace"
("Vulgo Grace", na tradução brasileira), escrito em 1996. Com um
episódio histórico como mote, o seriado também ajudaria a explicar o
ano que passou.

O caso das adaptações de Atwood não é único, mas marca com


perfeição como as séries de TV tomaram o lugar do cinema como
propulsor do debate cultural mais relevante —intelectual ou pop.
Mais rápidas em capturar o zeitgeist e absorvê-lo em seus roteiros,
que podem mudar de rumo ao longo da exibição, as séries firmaram-
se como elemento central da conversação em diferentes círculos.

Mesmo um crítico de cinema como Richard Brody, que publicou na


revista "The New Yorker" o ensaio "Why movies still matter" (por que
os filmes ainda importam), reconhece o protagonismo crescente dos
seriados televisivos.

Ele escreveu: "A principal característica positiva da TV de alta


qualidade mostra-se ser sua capacidade de gerar discurso —não
apenas da parte dos críticos e dos espectadores, mas também da
parte dos jornalistas. Conforme as séries, particularmente, mas
também a TV como um todo se tornam objeto de um amplo debate
público —e debate no sentido literal de roteiristas e espectadores
respondendo uns aos outros—, esse debate se torna notícia. E a TV é,
repentinamente, propelida da página de artes para a primeira página
do jornal".

O texto de Brody era uma resposta elegante a Brian Raftery, repórter


de cultura pop que escreveu na revista Wired o artigo "Could this be
the year that movies stopped mattering?" (poderia este ser o ano em
que os filmes deixaram de ter importância?), no qual defende a
importância minguante do cinema em contraposição à relevância
crescente da TV.

TEMÁTICA

Por relevância não se entenda qualidade, alcance ou influência —já


estabelecidas há anos—, e sim poder de suscitar discussões que
interessem às pessoas.

"A ênfase [das séries] em enredos e personagens envolvidos em


fenômenos icônicos da história cultural e em assuntos candentes da
sociologia e da política contemporâneas se compara ao faro
jornalístico. Muitas delas existem apenas para apresentar temas
prontos para o debate e são construídas como instrumento para
'artigos que fazem pensar', algo que se tornou a forma dominante de
crítica", completa Brody.

Embora pouco lisonjeira, sua argumentação não trata a ficção para a


TV como algo pior, mas com status diferente do que têm os filmes.
Estes, a seu ver, podem existir meramente para a satisfação estética,
pois são arte. Já as telesséries, afirma, não encontram sua
concorrência em cinemas, museus e livros, e sim no jornalismo.

Raftery, por sua vez, sustenta que, sem essa conexão com temas de
interesse da sociedade, os filmes arriscam se tornar "aquilo que você
faz quando o wi-fi não funciona".

Para ele, as telesséries podem ser a primeira rival de atenção do


cinema, mas o páreo inclui videoclipes, jogos virtuais e mesmo o
teatro, especialmente se forem levados em conta apenas os filmes de
distribuição ampla —ou seja, com alcance de televisão—, e não
aqueles reservados a mostras e salas de arte.

Desde a virada do milênio, fala-se em nova "era de ouro" da TV, com


uma leva de produções sofisticadas que cativam mais pessoas e
plataformas. "Família Soprano" (1999-2007), o drama da HBO sobre
um mafioso que se submete a sessões de psicanálise, é comumente
apontado como capítulo seminal desta nova fase e responsável pela
ascensão da figura do anti-herói.

A entrada de personagens mais densos e enredos nuançados, em


substituição ao maniqueísmo das fórmulas fáceis e claques que
persistiam nas telas menores, é um dos fatores que permitiram às
séries avançarem no debate cultural.

"A Escuta" (2002-08), "Breaking Bad" (2008-13), "Mad Men" (2007-


15), "Big Little Lies" (2017) e a combalida "House of Cards" (2013-18)
são os exemplos mais óbvios, mas essa fórmula mais complexa está
presente mesmo em fantasias como "Game of Thrones" (2011-19).

Outro fator, que se impôs na virada desta década e ganhou tração nos
últimos três anos em escala global, é a multiplicação de plataformas.
As veiculações já não se limitam aos canais de TV, suas bandas e
licenças para operação; agora elas se disseminam pela internet com o
streaming.

Em 2015, tornou-se assunto o cálculo feito pelo CEO do canal FX,


John Landgraf: naquele ano, foram exibidas 415 séries originais na
TV americana, superando pela primeira vez a marca de quatro
centenas. Em 2016, foram 455; em 2017, 487.

EXPERIMENTAÇÃO

Essa ampliação teve como consequência a possibilidade de investir


em "séries de nicho", com público fatiado —o que, somado ao modelo
de negócios que dispensa anunciantes, possibilitou aos produtores
ousar na produção de conteúdo sem arriscar o forte investimento
exigido por um blockbuster, ou mesmo por um filme mediano, cujo
orçamento costuma avançar para as dezenas de milhões de dólares.

As plataformas atuais não são apenas netflixes, hulus e amazons, mas


também canais de veiculação individuais.

O humorista Louis C.K., hoje no ostracismo, lançou em seu próprio


site os dez episódios de sua obra-prima "Horace and Pete" (2016), um
teleteatro sobre relações humanas ambientado em um pub pouco
frequentado. Ele vendeu cada capítulo diretamente ao espectador por
US$ 3, em média; ficou no prejuízo, mas foi indicado a dois cobiçados
Emmy.

A possibilidade de experimentação sem maior risco passou a atrair


para a TV nomes relevantes do cinema, numa inversão do caminho
"natural" de apogeu e validação das estrelas de TV na tela grande.
Apenas no último ano, Spike Lee ("Ela Quer Tudo"), David Fincher
("Mindhunter") e Gus van Sant ("When We Rise") dirigiram
telesséries. Atores e atrizes premiados já vinham nesse fluxo há uma
década.

Mais do que os nomes envolvidos nos projetos, contudo, é o universo


temático abordado nesses últimos anos que tem sacudido os modelos
de cultura de massa. Para Brody, o formato serializado, afinal, casa,
muito mais do que o cinema, com a necessidade do público e da
imprensa de analisar acontecimentos correntes e tirar suas
conclusões.

É o caso da série "13 Reasons Why" (2017), sobre as razões que


levaram uma adolescente ao suicídio. O produtor e roteirista do
seriado, Brian Yorkey, não tinha nada relevante no currículo, e o
elenco, essencialmente adolescente, é formado por nomes pouco
conhecidos.

Ainda assim, a história pautou por semanas conversas, análises e


debates na imprensa, redes sociais e encontros, chamando a atenção
para pelo menos dois males modernos: o "bullying" (ou assédio moral
contínuo) e a depressão.

Entre os temas das 20 séries mais populares de 2017 segundo o site


especializado IMDb, que congrega opinião de leitores e críticos, estão
feminismo, suicídio, misoginia, alcoolismo, terrorismo, autismo,
violência doméstica, crimes financeiros, vigilantismo e uma
variedade de psicopatias.

O levantamento dos filmes mais populares do ano, feito pelo mesmo


site, revela uma lista com predominância de fantasias e filmes de
herói sem maiores nuances, além de comédias e musicais igualmente
rasos.

Há apenas cinco ou seis produções mais ambiciosas ao abordar as


relações humanas, o que é certamente reflexo do fato de o principal
público de cinema visado por grandes estúdios ter menos de 20 anos.

Outro dado importante é a nota média dada pelo público a essas


séries do ano passado: 8,2, contra 7,6 recebida pelos filmes mais
vistos. Em levantamento similar feito pelo site Metacritic, que
compila avaliações profissionais, 19% das séries de 2017 consideradas
na lista receberam nota superior a 8; entre os filmes, 14% ficaram
nessa faixa.
Os números, claro, não traduzem com precisão a qualidade dos meios
—o cinema sempre será capaz de produzir obras-primas que
influenciam e inspiram o que de melhor é produzido para a TV— mas
revelam uma mudança de paradigma na indústria.

As séries deixaram de ser vistas como um formato de diversão inócua


que, mesmo quando tinha pretensões mais profundas, era raramente
capaz de driblar as limitações dos grandes canais, seus anunciantes e
a grade de programação.

Foi a TV que melhor captou a mudança de hábitos do espectador e a


evolução na forma de se contar uma história, fazendo das séries o
produto cultural do nosso tempo.

Luciana Coelho, 39, é editora de “Mundo” e editora de séries de TV


da Folha.

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