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Urbanicidade

Um compromisso necessário para a produção de um espaço metropolitano sustentável1


Roberto Luís Monte-Mór2

1. Introdução
A metrópole, neste início de século e de milênio, tem sofrido transformações de magnitude e
natureza impensáveis há poucas décadas. A concentração da riqueza, e portanto, também da pobreza
e dos assustadores problemas sócioambientais contemporâneos, vem exigindo uma tomada radical
de posição por parte da sociedade, tanto através do Estado e quanto dos seus setores organizados.
Tomar decisões, marcar posições e assim, redefinir as formas de produzir, ocupar e se apropriar do
espaço de vida – o oikós – implica o resgate de alguns sentidos que se encontram na base da nossa
vida coletiva: a civitas, a polis, a urbs, a cidadania, a civilização, a política, a urbanidade e,
contemporaneamente, a urbanicidade.
O conceito que ora tomamos como síntese contemporânea desses sentidos originários da
civilização – a urbanicidade – busca combinar a idéia do espaço urbano, que se estende pelo
território, e a idéia ontológica3 de cidade, locus da vida coletiva, da solidariedade, da política, da
inovação e da gestão de todo o território e espaço sociais. Urbanicidade é, assim, o mote de uma
campanha que visa provocar a conscientização e o debate dos problemas contemporâneos ligados à
necessária produção de um espaço de vida sustentável – no caso, o espaço metropolitano, que
responde pelo quotidiano de grandes parcelas da população mineira, nacional e mundial.
A metrópole contemporânea, por vezes uma megalópole, é um espaço social que marca de
forma inelutável, irrecusável e indelével os tempos atuais. Dela emanam os principais paradigmas
da vida social, definidos em cada tempo e espaço, como também os produtos materiais e culturais e
a tecnologia que nos conduzem no dia-a-dia. No entanto, nela também, vive-se mais imediata e
claramente o terror contemporâneo de uma vida quotidiana desumanizada e a cada dia mais
ameaçada pela anomia social4 e pelo colapso ambiental.
Estes são alguns dos inúmeros elementos referenciais que informam nosso pensar e nossa

1 Texto elaborado por solicitação da Sedru – Secretaria de Estado de Desenvolvimento Regional e Política Urbana,
para servir de 'documento-guia' da Campanha Urbanicidade, montada no âmbito do Projeto Estruturador RMBH, e
resultante de um "work-shop" interno, organizado na Sedru em março de 2009, envolvendo o autor, a equipe técnica
da Sedru e convidados. Publicado em PIRES, M.C.S e PEREIRA, J.A.B. (orgs) Caderno Metropolitano II: a
(re)construção da RMB, o papel do empreendedor na produção do espaço metropolitano sustentável. Belo
Horizonte: SEDRU: CREA-MG, 2010 (pp.11-18).
2
Arquiteto, Urbanista, Mestre e Ph.D. em Planejamento Urbano, Professor da UFMG, pesquisador do CNPq.
3 'Idéia ontológica de cidade' refere-se aqui à essência da cidade, à sua ontologia referente à centralidade do excedente
coletivo, do poder e da 'festa'. “Urbanicidade” implica, portanto, o compartilhamento de conhecimentos relacionados
à história, às idéias e interpretações da cidade, em sua essência, e à realidade urbana atual, estendida a uma região –
a região metropolitana.
4 'Anomia’: ausência de lei ou de regra, desvio das leis naturais; anarquia, desorganização (Dicionário Houaiss, 2001).
Emile Durkheim discutiu a perda de valores e de padrões como uma ameaça à coesão social e o sociólogo americano
Robert K. Merton cunhou o conceito de 'anomia social'.
prática de vida na metrópole contemporânea. Por metrópole contemporânea, nos referimos não
apenas à centralidade da grande cidade industrial – no caso, Belo Horizonte – mas também ao seu
espaço circundante, em desdobramentos e extensões várias que podem ser delimitadas como uma
'região', um 'colar', um 'entorno', ou outra categoria socioespacial que venhamos a definir 5. Não é
mais possível pensar apenas no lugar imediato em que se vive. O que fica cada vez mais claro nas
relações de tempo/espaço da vida contemporânea é o fato de que esse espaço vital do quotidiano
haja que ser também radical, das raizes. 'Pensar global e agir localmente' é um mote
contemporâneo muito difundido, mas que ainda soa como verdade pura e duradoura. Plagiando,
poderíamos propor 'pensar metropolitanamente e agir na rua, no bairro, no quotidiano'.
Ao pensar metropolitanamente, o cidadão deve se imbuir de sua forma de agir no dia-a-dia,
na rua, no bairro de sua cidade, no caminho diário que faz rumo ao local de trabalho, tendo como
referência a metrópole e a região onde ganha a vida. A campanha Urbanicidade se preocupa com a
ampliação do lugar imediato em que vive o cidadão metropolitano por meio da sua sensibilização
para a ambiência metropolitana. Ainda que tenha suas raízes num certo município da RMBH, o
cidadão deve se perceber como um sujeito que atua consciente e responsavelmente na construção e
na dinâmica da sua cidade e das demais 48 cidades da região e do colar metropolitanos.

2. A Campanha Urbanicidade
É neste contexto que se insere a Campanha Urbanicidade, uma iniciativa do governo do
Estado de Minas Gerais, inserida na política urbana de recorte metropolitano, hoje a cargo da
Secretaria de Estado de Desenvolvimento Regional e Política Urbana (Sedru), em articulação com a
Agência de Desenvolvimento Metropolitano da RMBH, a Assembléia Metropolitana e com o
Conselho de Desenvolvimento Metropolitano, e com a participação do CREA e do IAB/MG.
A Campanha Urbanicidade, pensada como uma iniciativa coesa, comportará duas vertentes
metodológicas de abordagem, uma a cargo do Convênio Sedru-CREA, outra a cargo do Convênio

5 Ainda que o espaço polarizado ou o entorno metropolitano possam ser tomados de forma mais estendida,
oficialmente existem apenas Região e Colar metropolitanos, que incluem 48 municípios. A RMBH é constituída por 34
municípios: Baldim, Belo Horizonte, Betim, Brumadinho , Caeté, Capim Branco, Confins, Contagem,
Esmeraldas, Florestal, Ibirité, Igarapé, Itaguara, Itatiaiuçu, Jaboticatubas, Juatuba, Lagoa Santa,
Mário Campos, Mateus Leme, Matozinhos, Nova Lima, Nova União , Pedro Leopoldo, Raposos,
Ribeirão das Neves, Rio Acima, Rio Manso , Sabará, Santa Luzia, São Joaquim de Bicas, São José da
Lapa, Sarzedo, Taquaraçu de Minas e Vespasiano .
O colar metropolitano de BH é composto por 14 municípios: Barão de Cocais, Belo Vale, Bonfim,
Fortuna de Minas, Funilândia, Inhaúma, Itabirito, Itaúna, Moeda, Pará de Minas, Prudente de Morais,
Santa Bárbara, São José da Varginha e Sete Lagoas. Tais municípios não se encontram conurbados e,
oficialmente, não integram a região metropolitana.
Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Regiao_Metropolitana_de_Belo_Horizonte>
acesso em março de 2009.
Sedru-IAB em duas campanhas com o mesmo nome Urbanicidade, porém com dois focos de
atuação: uma com foco no empreendedor, outra com foco no cidadão. Pretende-se que essa
campanha contribua na construção de um novo pacto metropolitano, envolvendo radicalmente os
empreendedores públicos e privados, e os cidadãos como um todo.
De fato trata- se, no mais das vezes, de papéis distintos desempenhados pelos mesmos
habitantes metropolitanos: empreendedor, enquanto usuário do espaço metropolitano com sentido
predominante de ganho econômico, seja na acumulação capitalista, seja no simples sustento
familiar; cidadão, enquanto usuário do espaço metropolitano como espaço da vida quotidiana,
como puro valor de uso, espaço de fruição da metrópole e do exercício próprio da política, da
cidadania e do sentido mesmo da urbanicidade.
O cidadão, que nessa campanha também será chamado cidadão “comum”, é aquele que
mora na região metropolitana de Belo Horizonte e será alcançado por essa campanha em atividades
de sensibilização sobre o seu papel diante da função social da cidade e da integração de esforços no
sentido de garantir intervenções urbanas responsáveis e usos adequados dos espaços públicos e
privados.
O empreendedor será sensibilizado sobre o seu papel enquanto cidadão na qualificação da
ambiência metropolitana.
A dicotomia entre esses dois papéis, o papel de ganhar economicamente a vida e o papel de
fruir a vida, é característica da vida moderna e, particularmente, da lógica impessoal do capitalismo
e é também a causa de muitas das mazelas e disfunções já citadas (como uma vida quotidiana
desumanizada e ameaças de anomia social e colapso ambiental).
Ainda que não se possa descartar a existência de papéis distintos, do empreendedor e do
cidadão, há que compreender também sua articulação intrínseca, entender a consciência da sua
unidade, construir a desalienação e o compromisso compartilhado em qualquer dos papéis
desempenhados no exercício da vida metropolitana. Como concretizar esse discurso?
A campanha Urbanicidade com foco no empreendedor visa traduzir esse discurso em ações
concretas dirigidas aos profissionais do Sistema Confea-Crea-MG e Órgãos e Entidades do Estado,
Assembléia Legislativa (Frentes Parlamentares), Grambel, Municípios da RMBH e do Colar de BH,
Conselhos Estaduais, a Sociedade Civil organizada (Empresários, Universidades, ONGs,
Movimentos Populares, Sindicatos de Trabalhadores), Fórum de Vereadores Metropolitanos, sendo
também convidados representantes da Região Metropolitana do Vale do Aço, dentre outros Agentes
Técnicos e Políticos. Será discutido, em momentos e formas várias, o papel do empreendedor na
produção do espaço metropolitano sustentável e a (re) Construção da RMBH.
A campanha Urbanicidade com foco no empreendedor , a cargo do CREA-MG, realizará
ações concretas tais como: identificar pesquisas, empreendimentos e intervenções na RMBH;
provocar diálogo entre agentes que atuam nas cidades da RMBH divulgando as informações
identificadas; mobilizar os profissionais do Sistema CONFEA/CREA para refletir sobre a relação
entre os municípios e Região Metropolitana de Belo Horizonte; refletir sobre o lugar dos
profissionais do Sistema CONFEA/CREA na produção da cidade; promover o intercâmbio de
experiências entre profissionais do Sistema e a sociedade civil sobre governabilidade e governança;
refletir e apresentar experiências exitosas na produção e/ou manutenção da cidade. Para tanto, a
Campanha Urbanicidade-empreendedor divulgará o material de campanha em eventos, seminários
temáticos, entrevistas e debates na TV e rádio, publicações na mídia e prevê-se a elaboração de um
caderno com a síntese das idéias discutidas nos eventos da campanha.
A campanha Urbanicidade com foco no cidadão ficará a cargo do IAB-MG e visará traduzir
tal discurso referente ao compromisso assumido pelo cidadão no exercício da vida metropolitana,
em ações concretas tais como: sensibilizar grupos organizados da sociedade civil sobre a
importância do uso responsável dos espaços públicos e privados; inibir as práticas transgressoras no
uso e ocupação do espaço urbano, estimular diálogos sobre desenvolvimento urbano, fomentar
processos culturais e cognitivos relativos à cidade com vistas à formação da memória e à elevação
da auto-estima dos habitantes; transferir conhecimento relacionado com ambiência urbana, melhoria
do uso e apropriação do espaço urbano, melhorar a relação público-privado no espaço urbano,
estimular a percepção da relação espacial da moradia, da rua, do bairro e da cidade, valorizar
marcos referenciais metropolitanos, alertar sobre a manutenção e preservação de espaços públicos
metropolitanos, desenvolver a consciência metropolitana, fomentar a participação cidadã, contribuir
na minimização da poluição ambiental em suas diversas conotações, promover a inclusão social
dos cidadãos (em especial o cidadão idoso), contribuir com sugestões para reciclar o lixo, incentivar
soluções arquitetônicas sustentáveis com aproveitamento da iluminação natural, aproveitamento de
águas pluviais etc, estimular o cidadão a preservar o patrimônio material e imaterial da cidade e da
metrópole, incentivar boas práticas quotidianas de convívio do cidadão na sua cidade e na
metrópole.
Nesse primeiro texto-guia da Campanha Urbanicidade, focaliza-se o empreendedor.
Esclarecemos que haverá outro texto-guia, semelhante a esse, porém com foco no cidadão.
Visto da ótica do empreendedor, esse que é o sujeito focal desta fase da Campanha –
construída de forma conveniada entre a Sedru e o CREA/MG – há que se construir um novo pacto
metropolitano, um sentido mais claro de unidade interna entre os espaços de vida e os espaços de
produção. As centralidades metropolitanas, o poder expresso na cidade capital, o excedente
coletivo concentrado nas áreas nobres e centrais, os vários espaços da cultura e da festa presentes
nas cidades6, existem também a partir das suas relações com as periferias metropolitanas, onde a
produção se concentra e onde parcela expressiva da população trabalhadora que gera essa riqueza,
vive e trabalha. Hoje, cada vez mais, os centros e periferias não podem subsistir sem a construção
de uma harmonia relativa entre eles, dado que as velhas relações de dominação que marcaram essa
dialética centro-periferia se mostram cada vez menos dicotomizadas, cada vez mais imbricadas,
aqui como em outras partes do mundo. Novas centralidades surgem em áreas antes periféricas e os
centros urbanos ali se reproduzem, multiplicando assim os dois lados da unidade dialética, o centro
e a periferia, que passam a definir novas relações de dominação e assim, novos espaços de
manifestação do excedente, do poder, e da festa no território urbanizado7.
Assim, é preciso construir um sentido metropolitano, ou seja, resgatar a consciência da
articulação solidária entre esses espaços sociais que coexistem, interagem e se influenciam
mutuamente no quotidiano. Assim como aconteceu em tempos passados nos países capitalistas
centrais na Europa e na América do Norte, há que construir entre nós um 'novo pacto', mais amplo
social e territorialmente, e isto implica completar a produção e organização do território
metropolitano. Não pode haver solução futura sem a produção do 'país do pobres', sem que haja
uma efetiva inversão de recursos nos espaços de vida marcados pela pobreza, desta forma reduzindo
o abismo sociocultural, político e econômico que marca países subdesenvolvidos, como o Brasil.
Não pode haver virtualidade de harmonia possível sem reduzir as desigualdades gritantes internas a
este espaço social integrado, a metrópole belorizontina em sua totalidade e plenitude.
A(s) centralidade(s) de Belo Horizonte, seus espaços de comando econômico, sociopolítico
e cultural, só podem se realizar plenamente a partir do fortalecimento de outras centralidades nas
suas periferias, dos municípios no seu entorno, das suas cidades, seus distritos, áreas de indústrias,
cultivo e lazer. A ampliação, horizontalização e estreitamento das complementaridades entre a
metrópole e seu entorno afirma e expande a unidade metropolitana, ao mesmo tempo em que cria
condições para maior autonomia das várias partes – municípios, comunidades – que a compõem.
O espaço metropolitano de Belo Horizonte se construiu a partir da criação de sua área
industrial, e se consolidou na década de 1970 quando se implantou aqui uma indústria de bens de
consumo duráveis, que tem no parque metal-mecânico seu carro chefe. Minas Gerais, do gado e do

6 Partindo de conceitos desenvolvidos por Henri Lefebvre, discutimos a 'tríade urbana' (em outros textos), ou seja, a
centralidade da cidade expressa nos três elementos estruturantes de uma sociedade: o excedente coletivo, expressão
da força econômica no espaço da centralidade; o poder político e social, expresso nas instituições, entre as quais o
Estado é a mais significativa; e a 'festa', expressão da cultura e dos valores sociais. O 'centro urbano', na cidade
capital por excelência, expressa essa tríade em símbolos urbanos (monumentos, espaços públicos e edificações) que
manifestam no espaço o poder econômico, sóciopolítico e cultural de uma sociedade ou comunidade).
7 Em Belo Horizonte, como também se deu há trinta anos na capital bahiana (Salvador), a (re)localização do Centro
Administrativo em uma área pobre e periférica deve criar uma nova centralidade metropolitana e assim, provocar a
redefinição daquela periferia. Ao sul, na divisa com Nova Lima, um processo capitaneado pelo grande capital
comercial já acontece há décadas. Em países como EUA e França, entre outros, centralidades metropolitanas se
multiplicam, possibilitadas pelos sistemas de transporte e comunicação e dando origem a metrópoles policêntricas,
que têm em Los Angeles sua expressão maior, apontada como um paradigma da metrópole deste século.
ferro, com uma nova capital política e de serviços, planejou-se então para a nova era fordista8 que
se implantava no país na esteira da indústria automobilística. A Fiat e a Regap simbolizam também
a consolidação de uma área metropolitana, criada então por emenda constitucional. A criação de
empresas estaduais de serviços urbanos (Cemig, Copasa, Telemig, CDI, entre outras); o
equipamento do estado para o planejamento (Secretarias, Fundações, Superintendências e
Institutos), em consonância com o aparato de planejamento nacional e regional; a necessidade de
legitimação técnica para um regime militar ditatorial que carecia de legitimidade política; a
concentração de recursos públicos nas áreas ricas onde se concentravam os consumidores dos
automóveis, geladeira, televisões, eletrodomésticos em geral, entre outros bens fordistas (como
também as condições infraestruturais para seu consumo: eletricidade, água encanada, ruas calçadas,
viadutos, saneamento e drenagem) contribuíram para fazer do arranjo tecno-político metropolitano
um pacto nem sempre legitimado política e socialmente aos olhos das periferias da capital. As
marcas políticas desse planejamento tecnocrático e autoritário, em que pese a excelência e boa
vontade dos planejadores de então, podem ser (re)vistas na fragilidade do arranjo metropolitano que
se seguiu à redemocratização do país.
Entretanto, a 'Constituição Cidadã' de 1988 foi benéfica para as cidades e áreas urbanas. As
lutas de classe tão marcadas no contexto rural, da reforma agrária e da UDR, ajudaram a abrir
espaço para uma 'reforma urbana' mais generosa, onde a pedra de toque atinge, ao final, todo o
espaço nacional, virtualmente: o reconhecimento e o fortalecimento do conceito da 'função social
da propriedade', criando as condições sóciopolíticas e legais para o controle dos sobrelucros
fundiários face ao interesse coletivo. Mesmo que os instrumentos e condições efetivas de controle
sejam insuficientes para resolver os imensos problemas que teimam em crescer, e que não tenhamos
atingido de forma alguma uma situação geral satisfatória, parece não haver dúvidas sobre avanços
conseguidos nas políticas urbanas herdeiras de 1988. De forma similar, questões contemporâneas,
muito próprias do nosso tempo, como os limites, a degradação e os conflitos ambientais; os direitos
das diversas populações pobres tradicionais, antes invisíveis; novas formas para organização social
e coletiva, agora legitimadas e incentivadas; enfim, todo um sentido democrático foi reinstituido e
valorizado a partir da nova Constituição e teve nas lutas em torno do espaço de vida – no limite, o
espaço urbano – seu sentido e expressão maiores.
Por outro lado, se o capital imobiliário como um todo não internalizou essas novas
condições socio-políticas e ambientais, a população como um todo se organizou em níveis
inesperados já nos anos finais da ditadura. No início dos anos oitenta, os movimentos sociais
urbanos proliferaram e se fortaleceram principalmente nas metrópoles e capitais, mas também nas

8 O 'Fordismo', termo criado por Antonio Gramsci para explicar a forma de organização da produção industrial norte-
americana que emergiu do arranjo proposto por Henry Ford, é usado hoje para se referir à produção em massa,
centrada em grandes indústrias verticalmente integradas, e relações entre capital e trabalho mediadas pelo Estado.
cidades médias e industrais. Foi nesse fortalecimento da consciência urbana, das condições efetivas
e virtuais do espaço de vida, que se gestou a Constituição Democrática. Quando as condições
urbanas se extenderam, mais ou menos precariamente, às suas periferias imediatas, e logo, às mais
distantes, a região urbanizada se estruturou de fato. Movimentos pendulares dos trabalhadores,
impactos socioambientais comuns e/ou complementares, interesses compartilhados por vários
empreendedores no espaço urbano-regional e, finalmente, um incremento no setor de transportes e
transformações nas comunicações com a revolução microeletrônica, fizeram com que a região
'urbanizada' se estendesse, rapida e amplamente, ao 'colar', ao 'entorno' e, no limite, ao global.
Já nos anos oitenta, o adjetivo 'urbano' não servia mais aos movimentos sociais, eles já
estavam no campo, nas matas, no cerrado, nas barragens, babaçuais, em toda parte. Todo o espaço
se politizou e a cidadania se estendeu pelo território nacional. Novas regiões metropolitanas, em
cidades médias, e não exatamente em metrópoles, foram criadas. Em paralelo, algumas cidades
pequenas e médias praticamente se conurbaram e/ou se organizaram em consórcios, associações,
bacias hidrográficas e outros arranjos e formas de cooperação, formais e semi-formais.
Paradoxalmente, a instância metropolitana foi subestimada, simplificada e minimizada. E assim, os
problemas urbanísticos, sociais e ambientais das grandes áreas urbanizadas muito se multiplicaram
e se agravaram.
Por outro lado, estamos assistindo no mundo contemporâneo a um aumento crescente da
importância da reprodução coletiva, que coloca limites cada vez mais claros e rígidos à produção
industrial que caracterizava as grandes metrópoles modernas. A indústria tende a ser cada vez mais
domada pelas imposições da vida coletiva e pelas restrições que a crise ambiental coloca com força
e extensão crescentes. Assim, o espaço urbano, locus privilegiado dessa reprodução coletiva, ganha
conseqüentemente também uma importância crescente, trazendo conceitos como qualidade de vida,
qualidade ambiental, acessibilidade, cidadania, direito à cidade, entre outras questões próprias da
polis, para o centro das preocupações da sociedade contemporânea.
É nesse contexto de crescente politização, de reconhecimento da necessidade de promoção
da inclusão social e econômica, de preocupação com a degradação ambiental e com a
democratização dos processos de decisão e gestão, que se insere a atual questão metropolitana.
Trata-se de organizar o território, identificar e fortalecer processos socioambientais transformadores
e desenhar políticas públicas, em articulação com a sociedade como um todo, que venham
contribuir com eficácia para a construção um espaço de vida mais equânime, mais inclusivo e mais
sustentável ambiental, social e economicamente. Para isto, os vários agentes que atuam no espaço
urbano – tratados aqui como empreendedores – necessitam abrir corações e mentes para a
construção de um 'novo pacto', social e ambiental, mais justo.
A Campanha Urbanicidade aqui proposta pretende, assim, dar início a um grande debate na
sociedade com o sentido de estimular e intensificar o diálogo metropolitano e as discussões sobre as
crises, conflitos, potenciais e oportunidades comuns e complementares no espaço urbano-regional,
além de repensar processos de produção do espaço na metrópole e em seus entornos e identificar,
criar e aperfeiçoar instrumentos e mecanismos para intervenção nesses processos. Pretende, assim,
resgatar e difundir uma visão e uma mentalidade metropolitanas, construídas a partir de um amplo
diálogo e um sentido de solidariedade territorial e ambiental imprescindíveis para a melhoria das
condições de vida na região e nas cidades.
Para tanto, cabe estimular e fortalecer as práticas e processos de planejamento metropolitano
e a troca de experiências, tanto internamente à região quanto com outras regiões metropolitanas do
país e do continente, e mesmo, do mundo. Incorporar novos sentidos da cidade e da metrópole, tal
como se anunciam neste início de século em várias partes do mundo, implica aceitar as grandes
transformações socioambientais e territoriais que se anunciam ou já se manifestam, privilegiando
práticas políticas inclusivas e emancipatórias, redefinindo e criando alternativas contemporâneas
aos pactos formados em torno do progresso e do desenvolvimento social e econômico.
Diante desse quadro, há que se discutir outras questões e implicações implícitas no debate
metropolitano que se propõe, questões estas que podem fortalecer, clarear ou obstacularizar o bom
andamento das ações e políticas no espaço metropolitano. È o que se propõe a seguir.

3. Competências e responsabilidades
A inserção e fortalecimento da instância metropolitana no contexto federativo atual levanta
questões políticas, e institucionais que necessitam ser encaradas de frente e amplamente debatidas
se se pretende atingir os objetivos buscados de cooperação interescalar e ordenamento territorial e
ambiental adequado. Os ecos da experiência de planejamento metropolitano autoritário anterior
exigem que hoje se discuta amplamente o papel dos municípios, do estado e das instituições
metropolitanas na condução do debate proposto, na elaboração de políticas e competências
supramunicipais, e até mesmo sobre o sentido das múltiplas identidades que podem se construir
e/ou se fortalecer na Região Metropolitana de Belo Horizonte.
O que é hoje a metrópole belorizontina? Até onde se estende? O que inclui? O que são as
suas cidades? E as outras áreas urbanas, existentes ou em formação, como se inserem no contexto
metropolitano? Como se relacionam com seus municípios e com a metrópole? Quais processos
exigem uma escala supra-municipal para sua abordagem e tratamento? Como podem ser construídas
políticas comuns, complementares, e/ou solidárias entre tantos e tão díspares municípios?
Acima de tudo, uma questão central se coloca: como se (re)define hoje o papel do Estado,
em seus níveis de governo, no contexto contemporâneo da crise do capitalismo global e da falência
da ditadura do mercado, ou do chamando 'neoliberalismo'? No novo papel que parece se atribuir ao
Estado, como se redefine a instância metropolitana para abordar um processo de gestão em um
território comum e de forte interdependência social, econômica, ambiental e funcional?
Uma primeira tentativa de abordar essa questão nos remete à natureza do planejamento que
hoje se constrói, com implicações claras na própria concepção e orientação dessa Campanha. Trata-
se de fortalecer uma nova visão do planejamento urbano-regional, afinada com os tempos atuais, em
que a competência técnica carece de legitimação política para além do aparato governamental,
superando assim o pensamento tecnocrático que alimentou muitas práticas reformistas anteriores.
O amadurecimento político da sociedade brasileira; o forte processo de (re)democratização que vem
vivendo o país; o reconhecimento da inutilidade de planos, propostas e políticas não calçadas na
prática efetiva das populações-alvo; a crescente preocupação com a construção de sujeitos políticos
territorializados, que não mais aceitam uma posição de objetos passivos das ações governamentais;
a importância atual das parcerias público-privadas e o amadurecimento das classes empresariais;
enfim, tudo isto (e muito mais poderia ser listado) aponta para a necessidade de se repensar o
planejamento, tanto em sua natureza precípua quanto na sua concepção, implantação e gestão.
Trata-se de redefinir formas de participação, de construir processos de gestão compartilhada,
de fomentar a colaboração entre agentes diversos, e de explicitar conflitos e interesses que devem
ser trazidos à arena política para debate racional e conseqüente negociação. De outra parte, trata-se
também de reconhecer as limitações do conhecimento técnico-científico e a ineficácia de uma
racionalidade instrumental valorizada por si mesma, e em contrapartida resgatar práticas sociais,
modos de vida e conhecimentos tradicionais amparados na vida quotidiana e no senso comum,
reconhecendo e valorizando a diversidade de saberes que marcam a realidade metropolitana.
Os objetivos de valorização da autonomia das comunidades organizadas e sua auto-gestão
tampouco podem ser subestimados ou minimizados, uma vez que a emergência e fortalecimento de
sujeitos do desenvolvimento social e econômico passa necessariamente pela incorporação ao
planejamento das práticas quotidianas dos cidadãos e do compromisso político e social da sociedade
como um todo. Neste aspecto, há que chamar a atenção para o papel crítico que os empreendedores
públicos e privados, em diversos níveis de atuação, desempenham na produção e na organização do
espaço urbano e metropolitano. Sejam as grandes empresas construtoras e imobiliárias, as várias
prestadoras de serviços, as indústrias, os governos municipais, as empresas públicas, e todo o rol de
grandes empreendedores, sejam os pequenos empresários de atuação local, de base popular e/ou
familiar, todos eles têm uma atuação determinante na organização e valorização do território.
A observância e o reconhecimento de um sentido socioambiental além do ganho monetário e
da maximização de lucro devem, portanto, ser valorizados e estimulados, ressaltando-se sua eficácia
no médio e longo prazo para a construção de uma sociedade mais justa e, conseqüentemente, social
e ambientalmente sustentável. O compromisso do empreendedor com a coletividade metropolitana,
responsabilizando-se conjuntamente com o poder público e os cidadãos pela produção de um
espaço comum, integrado e interdependente, há que ser enfatizado e, mais que isto, exigido pelos
poderes públicos com seus mecanismos de regulação, como também, pela população organizada
fazendo uso dos instrumentos legais e institucionais de pressão política e social.
Ao estado, através de suas diversas esferas de atuação, cabe conduzir o processo de debate
visando a conscientização da sociedade, em particular da classe empresarial e dos empreendedores
como um todo, além de promover a regulação através das instituições e mecanismos disponíveis.
Ao estado, cabe também induzir um sentido redistributivo no contexto metropolitano, tanto no nível
intermunicipal como internamente aos municípios, a exemplo de políticas tributárias de incentivo já
utilizadas, premiando investimentos e ações municipais que visam a valorização do patrimônio
cultural, histórico e ambiental, as políticas de atendimento social, entre outras, que contribuem para
a produção de um espaço de vida inclusivo e que beneficie a grande maioria dos cidadãos.
Aos municípios, além do seu papel regulador, muitas vezes a ser assumido e fortalecido,
cabe encetar esforços para captar recursos disponíveis em outras esferas de governo e se capacitar
para uma ação mais efetiva ao nível local, principalmente na esfera do bem-estar social onde sua
atuação se faz sentir de forma mais direta e eficaz. A existência de recursos para investimentos
públicos nos outros níveis de governo não exime os municípios – pelo contrário, exige deles – de
uma atuação mais efetiva criando as condições locais adequadas para o sucesso das políticas,
complementando e exercendo de forma mais eficiente o controle e a regulação da implantação e da
gestão desses recursos, manifestos em políticas e programas. Da boa gestão municipal depende o
sucesso de muitas das grandes decisões de investimentos tomadas nos níveis mais altos de governo.
Ao nível metropolitano, abrigado na esfera do estado, mas também resultante da cooperação
colegiada dos municípios e da sociedade civil na sua Assembléia, no Conselho, na Agência e no
Colegiado, entre outros níveis de assessoria e de decisão eventualmente a serem criados, cabe
promover a articulação dos vários interesses manifestos em prol do bem comum. Isto implica a
cooperação entre os agentes através da construção do sentido de pertinência a um espaço comum,
promovendo a conscientização de que apenas a partir do esforço concertado de todos os agentes
haverá um avanço expressivo na qualidade de vida no espaço metropolitano como um todo.
Da cooperação efetiva e eficaz desses três níveis de governo depende a gestão adequada da
produção, apropriação e organização do território, sendo necessário definir competências a cada
nível, combinando ações de produção e de gestão do espaço para a regulação urbanística. As ações
do poder público e os investimentos privados (e públicos) se refletem diretamente na valorização do
território, com implicações determinantes sobre a organização espacial, a segregação social, os
ganhos imobiliários, a acessibilidade aos serviços públicos, o consumo coletivo e individual e,
conseqüentemente, o próprio sentido contemporâneo de inclusão e cidadania. A apropriação dos
ganhos fundiários, expressos na mais-valia fundiária resultante da valorização da terra, tanto pelo
controle do uso e ocupação do solo quanto pelos investimentos de capital concentrados nela ou no
seu entorno, é determinante central no processo de produção e apropriação do espaço, definindo
conseqüentemente os níveis de inclusão e de justiça social.
Para os empreendedores, como para os cidadãos, é importante entender esses mecanismos
de valorização do espaço urbano. É preciso compreender que a dinâmica da valorização do solo,
como também a apropriação de espaços privilegiados e de recursos como um todo, gera problemas
sociais e econômicos com conseqüências no curto, médio e longo prazo que se situam para além
dos interesses imediatos dos agentes. A desalienação da sociedade – em particular, dos
empreendedores – só será conseguida a partir do (re)conhecimento dos processos correntes de
geração e apropriação de sobrelucros por parcelas do capital que, na maioria das vezes, implicam a
socialização de custos de maneira perversa para a sociedade, aproveitando-se do desconhecimento
dos processos em pauta.
Assim, é intenção da Campanha Urbanicidade esclarecer ao máximo os mecanismos
perversos que se impõem sobre a sociedade a partir da dinâmica urbana e que, por vezes, seus
próprios geradores desconhecem ou, pelo menos, não se dão conta inteiramente de suas
implicações.
Portanto, uma vez mais é preciso reconciliar os dois papéis – cidadão e empreendedor – de
modo a evitar falsas dicotomias e compreender que, entre valor de uso (coletivo) e valor de troca se
situa a complementaridade necessária à vida urbana contemporânea. Clarear a necessidade de
compatibilizar papéis, como também os sentidos do espaço urbano – a cooperação necessária para a
vida coletiva e a competição que lhe é intrínseca – faz também parte dos objetivos da Campanha
Urbanicidade.

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