Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
JORNAL CATARSE
Beneditojfc@hotmail.com Março de 2018 número 94
APRESENTAÇÃO
Todas as fotos aqui exibidas foram feitas pela equipe que vem desenvolvendo os trabalhos no edifício
A edição deste artigo é do sociólogo Benedito José de Carvalho Filho. Professor-doutor da Universidade
Federal do Amazonas.
2
1
Ver Chaiderman, M; Sapozink A.; Bento, S.; Janovith, P.; Siglen, L; Robles, P. Sensações esparsas: a experiência do
Cambridge ou psicanálise nômade, publicada na Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, v. 19, p.211-
220, 2017), conta a sua experiência de caminhar pela cidade. O coletivo é formado por psicanalistas, que encantadas
com a cidade e com a imagem, dispõem-se a uma perambulação permanente em busca de “uma cartografia própria”,
tentando escutar (por isso se chama “escutadoras”) o que se passa na cidade. Essa experiência em curso está voltada
para a grande ocupação do Hotel Cambridge, em São Paulo. Hoje, o coletivo perambula pela cidade, atento a
demandas possíveis.
4
Essa expressão da Paula, que nos faz lembrar Ítalo Calvino, que chama
de “pulsão exploratória”, o que nos leva a sermos tomados pela surpresa,
“deixar-se perder” para poder compreender um pouco. Como analista com
grande capacidade de escuta, sabem muito bem como é importante “deixar-
se perder”. Isso vem, como ela afirma, de “uma vontade irrefreável de ir
desvendando lugares (sinto-me como uma criança vendo coisas pela
primeira vez) ”. Nós sociólogos temos a tendência que encaixar o que vemos
dentro de uma teoria, rotulando pessoas, obturando o que observa o que anula
o outro, enquadrando-os. “Vou andando e me deixo levar por pequenos
detalhes que chamam minha atenção: uma placa de ferro, uma fachada, um
cheiro, uma lojinha. ”
Mesmo assim, uma revelação:
“O mais perturbador (afirma Alessandra) é que posso fazer esse
exercício de me deixar em muitas outras cidades do mundo, em São Paulo,
não consigo agir da mesma maneira. Não consigo ter a mesma liberdade para
fazer as minhas associações, me sinto insegura, perco o faro. E me incomoda
demais me sentir assim em relação à minha própria cidade. Entrar em contato
com o estranho e o desconhecido que tanto me atrai quando estou fora aqui
gera tensão e me paralisa”.
Interessante essa observação dela. Isso me faz lembrar Roberto da
Matta, que no seu livro de introdução à Antropologia se refere a isso.
Lembrei, também, do texto de Freud chamado O Estranho.
Soraia nos fala no “vício no olhar e escutar”, ao se dirigir à Ocupação
Cambridge”. “Vou desde o ônibus, em horário de rusch, ouvindo os sons
mudos dos cidadãos mergulhados nos seus celulares, desdenhando o espaço
coletivo. Ouso conversar entre novos amigos que a geografia cria: muitas
pessoas tomam a mesma condução, no mesmo horário, por anos, e ouço
ainda os ruídos internos que nunca me abandonam. ”
E lembra da antiga cidade que lhe era familiar:
“Quando criança fazíamos as compras do dia-a-dia num lugar
chamado pela minha mãe de cidade. O centro era a cidade, o comércio, era
a cidade. Tempo de consumo pela necessidade. Curiosa imagem. Onde
circulavam as pessoas de todas as camadas sociais. Enquanto ali era a cidade,
nos vivíamos no bairro. ”
8
A “psicanálise andarilha”
adentrar outros mundos, outras formas de vida. Quero falar do dentro e fora,
do diferente, daquilo que em nós é ao mesmo tempo estranho e familiar, de
que quando eu estou nos grupos existe uma parte de mim que se sabe analista
mas outra que está em um lugar mais híbrido. Que lugar é esse?
Uma dessas alunas se chama Luísa Tolentino Bento da Silva, que por um feliz
acaso encontrei na Internet, depois de muitos anos. Luísa foi minha aluna de Sociologia
Urbana no curso de Arquitetura da Universidade Federal do Amazonas. Hoje está na
Europa, onde já conheceu mais de 16 países e está vivendo uma experiência incrível, tanto
do ponto de vista da sua formação acadêmica, como do ponto de vida existencial.
Na verdade, Luísa, como nos ensinou Deleuze e Guatarri, está vivendo uma
experiência de “desterriorização”, onde, como dizia o poeta, navegar é possível, viver é
impossível.
Luiza não mais aquela jovem que conheci na sala de aula. Aliás, desde cedo
percebia que ela tinha paixão pelo estudo e conhecer “novos mundos” (tanto externo
como interno). E, quem tem paixão (tesão, como se diz) vai longe!
17
Que continue nessa toada. Só posso dizer, como o nosso grande poeta - que não
está mais entre nós - mas continua nos inspirando quando dizia: “vai ser guache na vida”.
Vai, Luísa, desvela os novos e velhos mundos! Eu não te vejo, como muitas jovens, que
só pensam em se formar (ou deformar?), com anseios voltados somente para o consumo
e o desejo de construir um lar-doce-lar, como vemos hoje na universidade. Quem não
ousa e se arrisca tem muita possibilidade de viver uma vida medíocre.
Achei incrível em perceber como a internet nos aproxima (e muitas vezes nos
afasta) das pessoas. Passamos, então, a nos comunicar e eu tive a feliz ideia de convida-
la para uma entrevista. Perguntei para mim mesmo: “Como uma pessoa sai da Parnaíba,
vai para a Amazônia e hoje está na Europa? ”
Talvez a descoberta da terra onde viveu meu pai tenha a ver, também, com o
desejo de elaborar e perda precoce dele quando aos 12 anos e não tinha noção do mundo.
Mas, felizmente, mesmo nas dores do mundo a gente pode imaginar, sonhar e elaborar
perdas que deixaram marcas tão profundadas na vida da gente e que faz lembrar aquele
lamento de Cristo, que, nos seus últimos momentos, revelou seu desamparo, quando
disse: “Pai, por que me abandonaste”. Somos todos desamparados. O difícil é lidar com
eles. Uns vivem esse desamparo no limite da sobrevivência, como vimos no relato da
experiência dos sem teto em São Paulo, narrados pelas psicanalistas. O desamparo físico
é algo cujas consequências não conseguimos imaginar. Mas, de uma forma ou de outra,
não escapamos dele. Mas isso nada tem a ver com a Luísa, claro!
Em 2013 fui aprovada para um intercâmbio pelo Ciências sem Fronteiras para Hungria. Não sabia muita coisa do país,
apenas que a capital era Budapeste.
18
Qual foi sua trajetória até chegar na UFAM? Soube que você é
uma nordestina, nascida na Parnaíba.
Nasci em 1990, em Parnaíba, e vivi até os 08 anos lá. Depois
mudei para Teresina com toda minha família pois meus irmãos mais
velhos estavam iniciando a graduação e meus pais consideraram
mudar com toda a família do que mantê-los em Teresina. Durante
os 10 anos seguintes vivi em Teresina e vi a família começar a se
separar. Um dos meus irmãos foi para Fortaleza e minha irmã para
Manaus. Em 2009 nos mudamos então para Belém e lá estudei meu
último ano no ensino médio. Prestei vestibular em Belém e Teresina,
além de fazer a prova do Enem, que pelo primeiro ano poderia ser
utilizada para ingressar em Universidades Públicas. Com a minha
nota obtive bom resultado para cursar Arquitetura e Urbanismo na
UFAM, e como minha irmã já morava na cidade, decidi morar com
ela. Passei os últimos 07 anos na cidade.
Por que resolveu sair do Brasil? Acha que valeu a pena? Passou
a ver o mundo de outras perspectivas? O que isso está significando para
sua existência e quais são seus projetos de vida?
Saí do Brasil por questões pessoais, não por questões políticas ou
econômicas, apesar de não concordar com o rumo que o país está tomando.
Até o momento não me vejo voltando para o país e nem necessariamente
vivendo o resto da vida na Hungria. Gosto de conhecer e morar em
diferentes lugares. Acredito que essas experiências nos ensinam a ser mais
tolerantes e abertos a novas experiências. Penso em trabalhar como
arquiteta e continuar estudando.