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JORNAL CATARSE
Beneditojfc@hotmail.com Março de 2018 número 94

PSICANÁLISTAS ESCUTAM OS SEM TETOS


(O CASO DA OCUPAÇÃO DO HOTEL CAMBRIDGE NO
CENTRO DA CIDADE DE SÃO PAULO)

APRESENTAÇÃO

Resenha do sociólogo Benedito José de Carvalho Filho

Todas as fotos aqui exibidas foram feitas pela equipe que vem desenvolvendo os trabalhos no edifício

Tentar compreender o que se passa na vida dos que se encontram à margem


da sociedade, portanto em uma situação de extrema precariedade e abandono, tem
sido, ao longo do tempo, uma constante nas práticas de muitos antropólogos e
sociólogos e até mesmo os que estão voltados para a literatura. Eles têm nos
oferecidos materiais abundantes para compreender esse universo e seus atores que


A edição deste artigo é do sociólogo Benedito José de Carvalho Filho. Professor-doutor da Universidade
Federal do Amazonas.
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vivem numa outra margem, sendo, muitas vezes, estigmatizados, desprezados e


vistos com preconceito por quem olha de fora.
É difícil compreender essa massa enorme de pessoas que vive nas ruas das
cidades, onde, cada vez mais, vem aumentando o número de desabrigados em todas
as capitais do país. Aliás, certos ambientes urbanos vêm se transformando em
abrigos para milhares de pessoas sem teto, principalmente nesse momento onde
mais de 12 milhões de pessoas estão desempregadas no nosso país.
No começo do ano dois mil tive a oportunidade de viver uma experiência
única e singular na Praça da Sé, um espaço, até hoje, estigmatizado e muito
reprimido. No governo da Luiza Erundina, passei um ano e meio observando o que
ocorria naquele polêmico espaço público e essa experiência foi muito rica e até hoje
me marca, pois descobri “outro mundo”, com seus personagens que iam de meninos
de rua que dormiam nos bancos da praça, aos adultos, também desamparados e
sujeito às constantes repressões da polícia que era (como até hoje) extremamente
violenta. O que vi e escutei naquele momento me sensibilizou e até hoje, passando
algumas décadas, essa experiência me marcou profundamente, pois compreendi
que sem uma escuta e com uma convivência com as classes populares jamais
conseguiremos compreender seus desamparos e angústias, cada vez mais evidente
nesses tempos sombrios em que vivemos.
Tive a oportunidade, também, de participar do Conselho de Cidadania da
Praça de Sé, composta pela pastoral da Igreja, advogados e tantas outras
organizações sociais não-governamentais, preocupados com a violência e o
desamparo das pessoas. Na verdade, a proposta da Prefeitura era, como se chamava,
“higienizar” aquele espaço público, tentando expulsar as crianças e homens sem
teto.
Recordo que, junto com as diversas organizações que defendiam os direitos
humanos, conseguimos tornar público o que realmente acontecia naquela praça, o
chamado “marco zero” da cidade. Convidamos diversos intelectuais e militantes de
organizações diversas para discutir num seminário os problemas daquele espaço
público. O seminário foi chamado “Praça da Sé, Marco Zero” e teve a participação de
grande número de pessoas (intelectuais e pessoas das classes populares) que
debateram durante três dias os problemas da Praça.
Foi uma tentativa – talvez a última – de um governo progressista que assumia
a Prefeitura da cidade de São Paulo, mas durou pouco, pois assumiu um novo
governo e hoje a Praça da Sé continua sendo um espaço de segregação social, com
um policiamento ostensivo e muita violência.
Não é por acaso, pois o que vemos nos dias de hoje é uma crise que vem se
aguçando, com o desemprego aumentando, assim como as populações que moram
nas ruas (e isso em todas as capitais brasileiras). Um exemplo que vem ganhando
grande visibilidade são as ocupações, como essa que vem ocorrendo na cidade de
São Bernardo do Campo, onde cerca de 8 mil pessoas ocuparam um grande terreno
e estão resistindo até hoje como podem.
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É, portanto, com muita alegria que vemos a iniciativa de alguns (e algumas)


psicanalistas, que juntamente com uma antropóloga e historiadora, vem saindo do
conforto de seus consultórios e indo para as ruas escutar aqueles que estão
desamparados, vivendo as incertezas do dia a dia e resistindo como podem. Trata-
se de personagens, que – como eles dizem – “ocupamos o presente para não
invalidarem o futuro”. O presente é ali, tecido na luta, na urgência da necessidade de
morar, de subsistir e de enfrentar a brutal repressão que se abate sob eles, pois
sabem que o futuro é um jogo incerto, como a própria vida.

“Sensações esparsas: a experiência do Cambridge ou


psicanálise nômade”

Estamos nos referindo, particularmente, ao coletivo “Escutando a


Cidade, - que através do texto Sensação esparsas: a experiência do
Cambridge ou psicanálise nômade,1 formado por psicanalista que,
“encantadas com a cidade e com a imagem, dispõem-se a uma perambulação
permanente” em busca de “uma cartografia própria”, tentando escutar (por
isso se chamam “escutadoras”) o que se passa na cidade. Essa experiência
em curso esteve voltada para a grande ocupação do Hotel Cambridge, em
São Paulo. Hoje, o coletivo perambula pela cidade, atento a demandas
possíveis.

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Ver Chaiderman, M; Sapozink A.; Bento, S.; Janovith, P.; Siglen, L; Robles, P. Sensações esparsas: a experiência do
Cambridge ou psicanálise nômade, publicada na Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, v. 19, p.211-
220, 2017), conta a sua experiência de caminhar pela cidade. O coletivo é formado por psicanalistas, que encantadas
com a cidade e com a imagem, dispõem-se a uma perambulação permanente em busca de “uma cartografia própria”,
tentando escutar (por isso se chama “escutadoras”) o que se passa na cidade. Essa experiência em curso está voltada
para a grande ocupação do Hotel Cambridge, em São Paulo. Hoje, o coletivo perambula pela cidade, atento a
demandas possíveis.
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O que estão fazendo é uma experiência singular, onde procuram


escutar as pessoas “em rodas de conversa, entender formas de viver na cidade
nessas situações limites”, o que supõe sair de si para compreender o outro na
sua singularidade, como faz na escuta psicanalítica.
O grupo se define, como um coletivo, “uma soma de afinidades e
singularidades”. Essa produção – afirmam –“é o reflexo de nosso processo
de trabalho que se encontra em plena construção. Nosso grupo nasceu a partir
de interesses comuns que já circulavam nos espaços de trabalho do
Departamento de Psicanálise, e, assim, irmanados pelo encantamento com a
cidade e com a imagem, permanecemos. Esse repertório nos une e nos leva
a uma perambulação permanente que constrói uma cartografia própria”.
Mais adiante, afirmam:
“Partimos do desejo de conhecer a cidade através de uma visão de
psicanálise que excede o interior do sujeito e se expande para uma
experiência estético-reflexiva sobre o que circula entre o campo social e
individual. Iniciamos nossa atividade como “escutadores” daquilo que
convida a cidade. ”
Esse projeto começa em 2016.
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“Miriam havia trabalhado em um processo coletivo de adaptação


teatral de um texto de Brecht, Na Selva da Cidade, realizado pelo Grupo
Mundana Cia. A peça foi sendo construída na experiência de ocupar espaços
pela cidade. Participamos de ensaios e discussões com o grupo. ”
Outra atividade desenvolvida por eles, “onde novos roteiros foram
projetados, foi em um conjunto habitacional chamado Parque do Gato, que
em 2008 foi concebido como proposta inovadora de democratização de
moradia através da locação social e que, posteriormente, passou a ser
considerada pelos urbanistas como parte dos “lugares de memórias difíceis”
na cidade de São Paulo. Essa experiência dimensionou a complexidade das
questões urbanas que enfrentaríamos. Penetramos uma franja de miséria,
descaso público e riscos insuspeitáveis no universo “marginal”.
Depois dessa experiência no Parque do Gato, afirmam os
psicanalistas, “para nosso alento e surpresa, seguimos para uma outra visita,
convidados pela residência artística da Operação Cambridge para pensarmos
algum projeto conjunto. Escolhemos detalhar essa experiência que nos
absorveu desde nossa chegada lá, pelo enorme impacto que provocou em
todos. O grupo acostumado com as deambulações, viu-se capturado por um
território fixo”.

UMA PEQUENA INFORMAÇÃO SOBRE O QUE É O HOTEL


CAMBRIDGE

Como explica a equipe, “o Hotel Cambridge, desapropriado pela


Prefeitura em 2010, foi ocupado em novembro de 2012 pelo MSTC
(Movimento Sem Teto do Centro), como parte de uma ação coletiva de luta
por habitação popular no centro de São Paulo. O Cambridge é atualmente
considerado uma das maiores ocupações da América Latina, abrigando 170
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famílias (aproximadamente 500 pessoas) compostas, na sua maioria, por


brasileiros, mas também imigrantes e refugiados de países como Bolívia,
Haiti, Palestina, Congo, República dos Camarões e República Dominicana”.
Segundo Miriam, “chegar ao Hotel Cambridge é uma experiência
singular. Andar pela rua que desce até a Av. 9 de julho, onde fica o edifício,
passar pelo mercado Bem-Hur onde adolescentes, de diferentes não-lugares,
conversam na busca de intensidades da noite, passar pela casa noturna gay
que guarda o mesmo estilo anos 50, e depois virar a esquina para alcançar
aquele edifício monumental, lindo. Em frente alguns refugiados falam outras
línguas. Fumando, olhando a rua, encontrando parceiros. ”
Outra observadora, Paula, antropóloga e historiadora, de uma outra
perspectiva afirma:
“No centro os estranhamentos se fazem de forma sutil, silenciosos e
corrosivos porque não conseguimos distinguir rapidamente o que no centro
é nosso e o que foi inventado para acreditarmos no que nos diz respeito. Tudo
fica embaralhado – diz Paula – como se uma cidade invisível morasse dentro
de uma, visível, que está ali, acessível e próxima, pronta para ser usada. ” (a
expressão de Paula lembra Ítalo Calvino, no seu livro Cidades Invisíveis)
Paula pouco a pouco se familiarizando com o ambiente.
“Nos últimos seis meses, o exercício de estar em contato com a vida
do centro passou a ser uma rotina para mim. Através do grupo “Escutando a
Cidade”, todas as terças-feiras aconteceu por aproximados 5 meses, no
antigo Hotel Cambridge, uma roda de conversa como os moradores das
Ocupações da área central. Sempre que vou para lá, me deparo no meu
percurso com a Ladeira da Memória e aquele Obelisco pontudo e escondido
na encosta da Xavier de Toledo. Ele fala de uma Memória Monumental da
cidade que me parece cada vez mais nebulosa e pouco significativa do que
realmente seria a memória de todos. Bem próximo da Ladeira da Memória,
está o antigo Hotel. Dentro dele outras histórias enchem de vida o centro que
por tanto tempo ficou sem moradores e silenciosos...”
Muito interessante a associação que Paula faz sobre a memória (o
nome “Ladeira da Memória” é bem significativa). A nebulosidade da
memória dessa Ladeira, faz como que se associe com uma “nova memória”,
a memória da ocupação de um prédio agora resignificado pelos novos
moradores, os novos ocupantes do que era hotel, agora são os novos
hóspedes chamados de “moradores” que resistem, os “sem tetos”.
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“Se perder pela cidade” e a “pulsão exploratória”

Essa expressão da Paula, que nos faz lembrar Ítalo Calvino, que chama
de “pulsão exploratória”, o que nos leva a sermos tomados pela surpresa,
“deixar-se perder” para poder compreender um pouco. Como analista com
grande capacidade de escuta, sabem muito bem como é importante “deixar-
se perder”. Isso vem, como ela afirma, de “uma vontade irrefreável de ir
desvendando lugares (sinto-me como uma criança vendo coisas pela
primeira vez) ”. Nós sociólogos temos a tendência que encaixar o que vemos
dentro de uma teoria, rotulando pessoas, obturando o que observa o que anula
o outro, enquadrando-os. “Vou andando e me deixo levar por pequenos
detalhes que chamam minha atenção: uma placa de ferro, uma fachada, um
cheiro, uma lojinha. ”
Mesmo assim, uma revelação:
“O mais perturbador (afirma Alessandra) é que posso fazer esse
exercício de me deixar em muitas outras cidades do mundo, em São Paulo,
não consigo agir da mesma maneira. Não consigo ter a mesma liberdade para
fazer as minhas associações, me sinto insegura, perco o faro. E me incomoda
demais me sentir assim em relação à minha própria cidade. Entrar em contato
com o estranho e o desconhecido que tanto me atrai quando estou fora aqui
gera tensão e me paralisa”.
Interessante essa observação dela. Isso me faz lembrar Roberto da
Matta, que no seu livro de introdução à Antropologia se refere a isso.
Lembrei, também, do texto de Freud chamado O Estranho.
Soraia nos fala no “vício no olhar e escutar”, ao se dirigir à Ocupação
Cambridge”. “Vou desde o ônibus, em horário de rusch, ouvindo os sons
mudos dos cidadãos mergulhados nos seus celulares, desdenhando o espaço
coletivo. Ouso conversar entre novos amigos que a geografia cria: muitas
pessoas tomam a mesma condução, no mesmo horário, por anos, e ouço
ainda os ruídos internos que nunca me abandonam. ”
E lembra da antiga cidade que lhe era familiar:
“Quando criança fazíamos as compras do dia-a-dia num lugar
chamado pela minha mãe de cidade. O centro era a cidade, o comércio, era
a cidade. Tempo de consumo pela necessidade. Curiosa imagem. Onde
circulavam as pessoas de todas as camadas sociais. Enquanto ali era a cidade,
nos vivíamos no bairro. ”
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Soraia observa um fenômeno que vem ocorrendo em todas as cidades,


não só do Brasil, mas do mundo. Em Fortaleza, onde me encontro
atualmente, o centro está em decadência e tornou-se “um lugar perigoso”,
como dizem os moradores. A famosa Praça do Ferreira está tomada de
pessoas que moram nas ruas, homens, mulheres e crianças perambulando
pelas calçadas e visto como um lugar perigoso. O antigo cinema, bastante
frequentado pelas classes altas e médias hoje está vazio. Bauman explica isso
em detalhes no seu livro O Medo na Cidade.
Mas, o que particularmente me toca e me deixa triste, é o abandono e
o desamparo das pessoas que habitam as praças e as ruas. O Rio de Janeiro
encontra-se na mesma situação, enquanto as classes de maior poder
aquisitivo refugiam-se nos chamados “condomínios fechados”, criando os
seus muros, que não só fisícos, como nos revela o psicanalista Christian
Dunker, criando a chamada “cultura da indiferença” voltada principalmente
para o consumo e o “narcisismo digital”.

A “psicanálise andarilha”

“Fomos até o Hotel Cambridge com um grupo de psicanalistas que se


dispunha a refletir sobre a errância, sobre a cidade. Queríamos nos impregnar
da fuligem, do asfalto, do burburinho e sermos afetados pela cidade.
Queríamos mergulhar na cidade para refletir sobre a psicanálise a céu aberto.
Uma psicanálise andarilha ... Antônio Lancetti escreveu sobre uma
psicanálise caminhante.”
Miriam informa que “através da Luíza, Ícaro Lira, um artista residente
dessa ocupação, nos contactou pedindo atendimento para alguns moradores.
Nós poderíamos, sim, cuidar de encaminhamentos. Mas estávamos
interessados em atender a ocupação enquanto um todo, em refletir sobre a
moradia, sobre as subjetividades que se formam nessas condições-limites. ”
Miriam relata que foram ao Cambridge num sábado. “Peter Pál Pélbart
faria uma fala aberta aos moradores e outros interessados e havíamos
marcado uma reunião com Danilo, uma liderança do MSTC. Queríamos
deixar claro que não faríamos grupos terapêuticos, que estávamos propondo
uma roda de conversa aberta”.
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“Quando faço essa descrição – afirma Alessandra - me vem à mente


as histórias que escutamos dos moradores nas nossas rodas de conversa de
como foi ocupar esse prédio, e outros também. Mas a primeira que escutei,
foi no primeiro dia de visita, vinda da boca do Danilo. Ele usou a palavra
nascimento para descrever a sensação de estar em um lugar escuro, sujo, sem
pode sair por uma semana e de repente alguém conseguir fazer a ligação da
luz, outra fazer o banheiro funcionar. A partir daí começa o trabalho dessas
pessoas, de fazer com que um lugar fechado e abandonado há anos ganhe
vida e possa comportar um espaço térreo que espontaneamente se
transformou em um “estacionamento” de carrinhos de bebês. ”

Miriam e a experiência de estar no Hotel Cambridge

“Entrar pela porta de ferro que separa a ocupação da rua é sempre


emocionante. A porta se abre e zelosamente somos interrogados sobre nossa
ida. Temos que deixar o nome. Há uma comissão de frente que não deixa
entrar estranhos. Se alguém quer levar um namorado ou namorada tem que
deixar o nome com alguns dias de antecedência. Depois eu veria que o
controle é feito também através de câmaras na sala onde fica a direção da
ocupação. Esse nível de organização e de controle surpreende. Chegar ao
Hotel Cambridge e, depois de explicar a razão de estar lá, ver aquele hall
cheio de brinquedos construídos com pneus, ver mães acompanhando seus
filhos que brincam de subir as escadas e chegar na cozinha e no mezanino,
ver como estão equipados, que vendem bolo durante a semana, é algo
inesperado. Depois, já no grupo, as pessoas fariam dos enormes preconceitos
que existem em torno das pessoas que vivem em ocupação. ”

Soraia, sobre o edifício: “Aqui dentro é um mundo”

Na portaria, encontro o rapaz que cuida das assinaturas de quem chega


e quem sai, sentado ali no balcão, comendo um prato cheio de arroz, feijão,
linguiça e farofa, prato de trabalhador braçal. - “Não tive tempo de cozinhar,
a vizinha trouxe da casa dela pra mim". Logo chega da rua uma moça, outra
vizinha: “ - ai, que fome!! -vem cá, dá pra dois!” E sem nenhuma cerimônia
dividem o garfo, o prato e o que tem dentro. Ainda me oferecem um
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bocadinho porque dá para três. Encanta-me a cordialidade e penso que lá é


assim, tudo junto e misturado. Será mesmo? Não, nem tudo, certamente!
Esse será um tema muito importante na experiência vivida entre nós.
Compartilhar espaço físico, sonhos de conquista de moradia e ações da
militância não abre necessariamente, uma possibilidade de intercâmbio das
histórias pessoais. Descubro uma outra faceta dessa luta: uma posição firme
e clara dos participantes sobre manter os códigos individuais ou familiares
sob a guarda do espaço privado.

Miriam e os não-lugares que se tornam espaços

Sempre lugares de passagem...na ocupação, a escada é passagem


obrigatória. Não há elevadores e todos sobem e descem as escadas em
movimento contínuo infinito. E lá vimos cadeirantes, mães com bebês de
colo, pessoas adoentadas, famílias com crianças de todas idades, subindo e
descendo. Muitas vezes até os catorze andares. Há os horários onde a
movimentação é maior. São os horários de ida para o trabalho e volta para
casa. Um estranho trânsito, o rush da cidade vivido naquela escada.

Soraia : Uma noite, um grupo

Arrumando as cadeiras para constituir o espaço grupal, encontro


pedaços de corpos humanos jogados no chão. Faço uma aproximação
ressabiada, são braços e mãos prontos pro abraço, prontos para a batalha pela
sobrevivência, prontos para construir, limpar, arrumar.... vejo que são partes
de vários manequins que foram desmontados, sabe-se lá porquê. Uma
intervenção artística ou uma brincadeira para assustar um tolo desavisado?
Um descuido? Assim seguimos, parecendo que só a mim aquilo chamava
atenção. O grupo acontecendo e aqueles pedaços a me lembrar que aqui tem
sangue que corre pelas veias. Sinal contraditório que fala da luta travada pelo
direito à moradia, mas também nas dores pelas perdas, como sinal de vida
pulsante. O sangue a lembrar da porta de entrada do prédio pintada de um
vermelho vivo. Nascimento e morte. Qual é o sentido maior desse adereço
nas bordas do mezanino? Com os sentidos bastante aguçados vou ouvindo o
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relato denso da empreitada da Ocupação. Dia D, Dia de Festa.. Faz-se claro


o ambiente, fruto do trabalho orquestrado. Cada um com o seu fazer por
todos e pra cada um. Tantos heróis que sabem que só a força do coletivo para
levá-los a alcançar seus sonhos. Foram dias de superação suportados pela
solidariedade e pela força motivadora. Intuíamos os não-ditos. Tem conflito,
dor , desamparo? Será que só tem bravura? Aos poucos o diálogo foi
permitindo a emergência de experiências comuns de gente comum.

Paula: ritual de confiança

No mezanino do prédio, todas as terças-feiras, acontece a nossa roda


de conversa. Num ritual de confiança puxamos as cadeiras de plástico e
vamos sentando até formarmos uma aliança. Os ruídos da cidade entram
pelas frestas do prédio e muitas vezes sentam na roda também. Não dá pra
esquecer que a rua é logo ali e a fronteira é tênue entre o dentro e o fora. Aos
poucos a pressa, a falta de tempo, os afazeres do dia vão cedendo lugar à
história de cada um. Quase como uma catarse as histórias se ligam formando
um eu repletos de nós. Abre-se uma fissura entre a cidade visível e invisível
e na duração de uma hora e meia aquele vestimenta de pressa, da cidade que
não pode parar, enrijecida nas figuras de pedra que habitam a versão mais
aparente de São Paulo, se desfazem. Tenho a nítida sensação que os ponteiros
andam mais devagar a medida que a roda vai se tornando mais envolvente.
A cada semana, por mais que os integrantes mudem, entramos em contato
com uma camada do prédio, como se explorássemos uma pequena cidade
por dentro, nas suas intimidades, com histórias que mudam conforme o ponto
de vista de quem entra na roda. Conhecemos quartos com portas fechadas,
“copinhas” compartilhadas e solitárias, corrimãos perigosos, andares altos e
baixos, cantos imprecisos e aqueles silêncios e vazios que mesmo no
substantivo de uma Ocupação cavam como cupins um espaço oco dentro da
gente e se instalam sem pedir licença. Acho que só agora estamos chegando
no centro e parece bem mais longe do que a gente imaginou no começo.

Alessandra: que lugar é esse?

Frequentar a ocupação restabeleceu para nós a possibilidade de uma


outra forma de circulação, não apenas pela cidade mas a possibilidade de
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adentrar outros mundos, outras formas de vida. Quero falar do dentro e fora,
do diferente, daquilo que em nós é ao mesmo tempo estranho e familiar, de
que quando eu estou nos grupos existe uma parte de mim que se sabe analista
mas outra que está em um lugar mais híbrido. Que lugar é esse?

Miriam e as casas nômades

Sabemos que o Cambridge é um lugar já conhecido, mapeado. Mas,


estar em meio a uma ocupação fez com que nos indagássemos sobre a
possibilidade de construir casas nômades (Texto da Eliane Brum: Casa é o
lugar onde não tem fome, El País). Ir atrás da errância que nos constituiu
como grupo, buscar o inexplorado de uma cidade como São Paulo, foi para
isso que nossa experiência no Cambridge nos instrumentalizou. Nossa
gratidão.

Soraia, ainda naquela noite, naquele grupo…

Uma ocupante conta que só depois de passar 15 dias internada entre


a vida e a morte percebeu o gostoso de ser cuidada pelo outro. Nunca tinha
sido cuidada e já não queria sair do hospital. Queria viver na retaguarda,
porque lá haviam tantos médicos e enfermeiras fazendo a vida dela ser
mantida. O seu sangue teima em se esvair através de qualquer machucado.
Entendo os corpos aos pedaços no chão, entendo o sangue que não saía da
minha cabeça. Essa mulher que não aguenta mais ser machucada. Um
momento da atenção de todos, mas também um pouco de tensão. Silêncio…
queda da fortaleza. o grupo então se abre para o lado escuro de cada um.
Aparecem outros dias de abandono. Solidão. Luta! Palavra-tatuagem porque
não me saía da cabeça. Nesse grupo, destacam-se as mães, na sua
esmagadora maioria, carregando os filhos pela escada, pra cima e pra baixo
todos os dias. Reflito que o desamparo as levou a rememorar experiências
infantis. Toda mãe foi um dia uma filha e as identificações às vezes
apareciam como mistura entre sujeito e objeto, porém o desejo de liberdade
gritou mais alto na decisão de seguirem seu caminho sem seus parceiros, pais
dos filhos. Não aceitam qualquer acordo para estar junto quando já não são
companheiros em suas jornadas diárias. Num instante, passam a falar a partir
de um único lugar, são mães que superam a ausência dos pais dos seus filhos.
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Voltam as heroínas, mais humanizadas, sem dúvida. Melhor assim! Não


falam como mulheres que se sentem sozinhas. Não se sentem sozinhas.
Sentem a falta que os filhos sentem. Os homens do nosso grupo não são pais
ainda, mas são filhos que sofreram a falta de seus pais também. Eita mundo
cão! Anunciava-se uma espécie de levante feminino e agora quero ver quem
segura essa mulherada.
Coube aos homens restituir um lugar para os pais. Transcrevo: – "Não
foi grande coisa, mas é meu pai e gosto dele assim mesmo. Claro que é
diferente com a mãe, pela mãe daria a vida". - "Eu também” os outros
concordaram. Entretanto, que fique claro, os filhos querem buscar seus pais
mesmo assim! Fomos tateando um jeito para garantir um lugar para eles,
falíveis. Mas quem não é? Será que elas conseguem se refletir na imagem do
ser com fendas, mas sem perder a força e sucumbir nas tragédias vividas?
Precisamos saber dessa condição para possibilitar as entradas e saídas do
outro. Um lindo depoimento vai dando ensejo ao final elaborativo naquele
dia: a filha pequena, conta uma delas, elogiou um dia, seu pijama com
corações desenhados e uma frase sobre amor. Um pouco de cor- de-rosa
açucarado me acalentando. A mãe conta pra filha que ganhou há muitos e
muitos anos do pai da menina. A menina surpresa tenta imaginar, pela
primeira vez, um casal para a sua origem e indaga se eles já tinham sido
namorados. A mãe confirma que sim, há muito tempo. Tempo para pensar
no que constitui cada um. Comovente é a força da palavra que circula e cria
sentidos.
Saímos com a emoção à flor da pele. Uma pizza é entregue pela moto
girl que participou do grupo. Reconhecimento e gratidão deles. Com a pizza
nas mãos precisávamos nos sentar fora dali. Buscamos uma mesa no bar do
Bin Laden, figura folclórica que personifica o tirano nos trajes, mas que
acolhe toda a diversidade que circula naquele quarteirão. Esse espaço ao
lado, fora dali e ainda tão ali. Não dá para ir embora de uma vez .Uma
cerveja, vários copos, guardanapo para a gordura do queijo que transbordava
e celebramos mais um dia naquele lugar contraditório e excitante. Será que
conseguiremos descansar?
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O que fica disso tudo: Reflexões finais do coletivo


“Escutando a cidade”

Nesses últimos meses, deparamo-nos com muitas questões. No início


nos perguntávamos se os moradores viriam por livre e espontânea vontade,
já que algumas atividades de militância contam pontos e alguns deles
poderiam relacionar uma coisa à outra. Trabalhamos grupalmente essa
distinção. Outra questão importante é a saturação de propostas, projetos,
grupos que acontecem semanalmente na ocupação . Atém das atividades
coletivas dentro da ocupação há o trabalho de cada um com pesada carga
horária. Mesmo assim alguns começaram a frequentar quase assiduamente o
grupo, compartilhando suas histórias de vida e escutando as dificuldades,
trajetórias e opiniões de seus companheiros.
Outros demonstravam a dificuldade em compartilhar problemas com
a vizinhança, para falar de seus problemas e temiam sentir-se expostos e
vulneráveis a comentários para além das rodas de conversa.
Temos pensado sobre os desdobramentos daquilo que vimos
escutando nas rodas de conversa. Esse é um trabalho em processo que
seguirá por novos caminhos daqui a um tempo. Alguns pedidos dos
moradores nos levaram a pensar numa rede de encaminhamentos para
psicoterapia individual ou grupal. Alguns desejos nossos de retomar
percursos fora do prédio vêm sendo gestados.
Nesse tempo de intervenção fomos todos atravessados por vicissitudes
políticas maiores. Houve toda a tramitação do impeachment e as
manifestações contrárias. Além disso, as eleições para prefeito reacenderam
o medo do desmonte desse grande projeto de moradia popular em gestação.
As forças de resistência não bastaram.
No Cambridge, aconteceu o momento da decisão de quem vai ficar e
quem vai embora daquela ocupação. Não se trata apenas do desejo de cada
um . O grupo foi minguando por questões que não se limitam a vontade dos
participantes, mas aos atravessamentos sociais e políticos que estes
moradores estão expostos no seu dia a dia.
Tudo isso nos obriga a reflexões que ainda estão em processo de
elaboração. De que modo cada um se apropria do que lhe é singular quando
há uma realidade tão crua? Ou, como é ter algo próprio quando cada escolha
pode pesar na contagem dos pontos que levam a conseguir, ou não, uma
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casa? Existe um coletivo quando a luta é por um chão próprio? O coletivo


possível é a militância?
Estamos em pleno processo de reflexão do que vivemos no
Cambridge. Absolutamente marcados por essa experiência. Como
psicanalistas e como cidadãos.
Terminamos citando uma inscrição encontrada na ocupação das
escolas secundaristas:
“Ocupamos o presente para não invadirem o futuro”

QUEM SÃO OS AUTORES

Alessandra Spoznick: psicanalista, professora do curso: Conflito e


Sintoma do Departamento de Psicanálise (Instituto Sedes
Sapientiae),doutora da Universidade de Complutense de Madri, membro do
coletivo Escutando a Cidade, colaboradora do Grupo de Refugiados,
Imigrante Sem Teto do MSTC) e do Veredas.
Luiza Segulem, psicanalista e acompanhante terapêutica. Cursa
especialização no Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae,
membro do coletivo Escutando a cidade e colaboradora do PAES (Programa
de atendimento e estudos de somatização).
Miriam Chnaiderman, psicanalista, documentarista e ensaísta.
Membro do Departamento de Psicanálise, professora do Curso de
Psicanálise. Membro do Coletivo Estudando a Cidade, Doutora em Artes
pela ECA-USP. Livros publicados: O hiato convexo; Ensaios de Psicanálise
e Semiótica, Dirigiu vários documentários, entre os quais Dizem que sou
louco, Artesãos da Morte e o longa De gravata e unha vermelha.
Pedro Robles é psicanalista e acompanhante terapêutico. Membro do
coletivo. Escutando a cidade e da Rede de atendimento psicanalítico.
Soraia Bento, psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise
do Instituto Sedes Sapientiae, professora do curso Clínica Psicanalítica:
Conflito e Sintoma do mesmo departamento.
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QUANDO NOSSOS EX-ALUNOS E ALUNAS SE


DESTERRITORIALIZAM NO VELHO MUNDO
Benedito José de Carvalho Filho

UMA PEQUENA INTRODUÇÃO

Uma das melhores gratificações na vida de um professor (a) é quando ele


reencontra os nossos ex-alunos e alunas. O velho Freud dizia que ser educador,
psicanalista e tantas outras profissões é algo impossível, pois nós não temos como
comensurar e saber e qual o rumo que cada um toma ao longo de sua vida. Muitas vezes
temos surpresas e pequenas gratificações, quando, por exemplo, esses alunos e alunas
buscam os seus próprios caminhos, enfrentando adversidades e gratificações nos seus
êxitos e aprendendo com seus fracassos, porque a vida é tecida com esses dois
ingredientes.

Uma dessas alunas se chama Luísa Tolentino Bento da Silva, que por um feliz
acaso encontrei na Internet, depois de muitos anos. Luísa foi minha aluna de Sociologia
Urbana no curso de Arquitetura da Universidade Federal do Amazonas. Hoje está na
Europa, onde já conheceu mais de 16 países e está vivendo uma experiência incrível, tanto
do ponto de vista da sua formação acadêmica, como do ponto de vida existencial.

Na verdade, Luísa, como nos ensinou Deleuze e Guatarri, está vivendo uma
experiência de “desterriorização”, onde, como dizia o poeta, navegar é possível, viver é
impossível.

Luiza não mais aquela jovem que conheci na sala de aula. Aliás, desde cedo
percebia que ela tinha paixão pelo estudo e conhecer “novos mundos” (tanto externo
como interno). E, quem tem paixão (tesão, como se diz) vai longe!
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Que continue nessa toada. Só posso dizer, como o nosso grande poeta - que não
está mais entre nós - mas continua nos inspirando quando dizia: “vai ser guache na vida”.
Vai, Luísa, desvela os novos e velhos mundos! Eu não te vejo, como muitas jovens, que
só pensam em se formar (ou deformar?), com anseios voltados somente para o consumo
e o desejo de construir um lar-doce-lar, como vemos hoje na universidade. Quem não
ousa e se arrisca tem muita possibilidade de viver uma vida medíocre.

Como reencontrei Luísa? Foi um acontecimento inusitado. Aproveitei a passagem


do ano nas lindas praias da Paranaíba, terra onde nasceu o meu pai. Passei a investigar as
suas origens. Conheci um monte de pessoas com o sobrenome “Carvalho”. Pessoas das
mais diversas origens, muitas com lojas e supermercados. Tirei fotos e publiquei no meu
Fecebook e pouco tempo depois recebo uma mensagem da Luísa, informando que,
também, tinha nascido na Parnaíba.

Achei incrível em perceber como a internet nos aproxima (e muitas vezes nos
afasta) das pessoas. Passamos, então, a nos comunicar e eu tive a feliz ideia de convida-
la para uma entrevista. Perguntei para mim mesmo: “Como uma pessoa sai da Parnaíba,
vai para a Amazônia e hoje está na Europa? ”

Talvez a descoberta da terra onde viveu meu pai tenha a ver, também, com o
desejo de elaborar e perda precoce dele quando aos 12 anos e não tinha noção do mundo.
Mas, felizmente, mesmo nas dores do mundo a gente pode imaginar, sonhar e elaborar
perdas que deixaram marcas tão profundadas na vida da gente e que faz lembrar aquele
lamento de Cristo, que, nos seus últimos momentos, revelou seu desamparo, quando
disse: “Pai, por que me abandonaste”. Somos todos desamparados. O difícil é lidar com
eles. Uns vivem esse desamparo no limite da sobrevivência, como vimos no relato da
experiência dos sem teto em São Paulo, narrados pelas psicanalistas. O desamparo físico
é algo cujas consequências não conseguimos imaginar. Mas, de uma forma ou de outra,
não escapamos dele. Mas isso nada tem a ver com a Luísa, claro!

AS TRAJETÓRIAS DE LUIZA TOLENTINO, EX-ALUNA DA UFAM,


HOJE VIVENDO NO VELHO MUNDO

Em 2013 fui aprovada para um intercâmbio pelo Ciências sem Fronteiras para Hungria. Não sabia muita coisa do país,
apenas que a capital era Budapeste.
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Qual foi sua trajetória até chegar na UFAM? Soube que você é
uma nordestina, nascida na Parnaíba.
Nasci em 1990, em Parnaíba, e vivi até os 08 anos lá. Depois
mudei para Teresina com toda minha família pois meus irmãos mais
velhos estavam iniciando a graduação e meus pais consideraram
mudar com toda a família do que mantê-los em Teresina. Durante
os 10 anos seguintes vivi em Teresina e vi a família começar a se
separar. Um dos meus irmãos foi para Fortaleza e minha irmã para
Manaus. Em 2009 nos mudamos então para Belém e lá estudei meu
último ano no ensino médio. Prestei vestibular em Belém e Teresina,
além de fazer a prova do Enem, que pelo primeiro ano poderia ser
utilizada para ingressar em Universidades Públicas. Com a minha
nota obtive bom resultado para cursar Arquitetura e Urbanismo na
UFAM, e como minha irmã já morava na cidade, decidi morar com
ela. Passei os últimos 07 anos na cidade.

Você cursou Arquitetura nessa universidade. Hoje


formada, como avalia esse período em que esteve na
Universidade? O que mais chamou a sua atenção nesse período
em que esteve na UFAM?
O curso de Arquitetura na UFAM surgiu em 2010, o que significa que
sou da primeira turma. Tivemos várias dificuldades com relação a falta de
professores, infraestrutura, greves, programas de extensão, entre outros.
Entretanto, com o passar dos anos o curso conseguiu uma boa estrutura e
hoje pode ser considerado uma grande referência na região Norte. Como
parte da primeira turma, juntamente com a segunda, passamos sempre por
muitos testes, principalmente com relação as metodologias dos professores
e infraestrutura, mas entendemos que isso fazia parte da formação do curso.
Sempre gostei da UFAM e me sentia privilegiada de estudar naquele espaço.

Como avalia a vida acadêmica considerando o tempo que


passou por lá?

Para algumas pessoas o curso de Arquitetura pode parecer fácil, mas a


realidade é bem diferente. Estudamos História, Física, noções de Elétrica e
Hidráulica, Estruturas, Metodologia de ensino, Conforto, Geografia,
Sociologia, entre várias outras matérias. É um curso que demanda estudo
teórico e prático em áreas distintas, sendo que a parte prática deve ser
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sempre conectada a perfeição. Um projeto funcional e inovador, exibido


com a melhor representação gráfica e desenhos técnicos. Já os projetos de
extensão e estágios auxiliaram em parte a ver como é a realidade da
profissão.

Você está trabalhando na área em que você se formou, no caso,


Arquitetura?
No momento não estou trabalhando na área, mas tenho a intenção de seguir
carreira na área.

Por que resolveu ir para a Hungria? Que expectativa você tinha?


Como se defrontou com uma nova realidade? Como percebe o grande
desemprego que está ocorrendo na Europa? Segundo informações da
imprensa, os jovens daí estão migrando para a Inglaterra, Holanda e
outros países?
Em 2013 fui aprovada para um intercâmbio pelo Ciências sem
Fronteiras para Hungria. Não sabia muita coisa do país, apenas que a
capital era Budapeste. Meu inglês na época não era dos melhores e minha
avaliação do TOEFL também não foi boa, mas suficiente para escolher a
Hungria e ser aprovada. Sempre quis conhecer a Europa, morar em outro
país e sabia que a melhor oportunidade era através do estudo. Assim como
vários dos meus amigos de curso, Ciências Sem Fronteiras era a
oportunidade perfeita para isso. Era nossa oportunidade de estudar de perto
boa parte da Arquitetura que é estudada apenas em sala de aula, além de
trabalhar com novas metodologias e culturas em uma universidade nova.

Está valendo a pena?


Esse foi sem dúvida o melhor ano da minha vida. Aprendi muito na
universidade com alguns professores e nem tanto com outros, percebi que o
Brasil não é tão ruim quanto parece e que problemas existem em qualquer
sociedade no mundo. Húngaros são simpáticos, gostam de futebol, mas
também podem ser corruptos, preconceituosos e extremistas. Aproveitava
feriados, férias e finais de semana para viajar. Dessa forma consegui
conhecer cerca de 16 países. Além disso, Budapeste superou muito minhas
expectativas. É uma cidade do tamanho de Manaus em população, mas com
todos os serviços de uma cidade como Londres ou Paris. O custo de vida é
bem baixo em comparação a outras capitais da Europa e ao mesmo tempo
é muito rica culturalmente, com vários festivais e eventos ao longo do ano.
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“Gosto de estudar pessoas...”

Depois da minha graduação decidi voltar para Hungria por conta do


meu namorado. Infelizmente, para estrangeiros fora da União Europeia
trabalho é um pouco mais complicado e a obtenção de visto também. As leis
húngaras de certa forma protegem os cidadãos húngaros (o que é correto)
para que, na busca por emprego, eles tenham prioridade, primeiro porque
a taxa de desemprego aqui está elevada e segundo porque a mão-de-obra
jovem está migrando para outros países europeus com melhores condições
e salários, como Inglaterra, Holanda e Alemanha. O que percebo é que da
mesma forma que não estamos satisfeitos com a situação do Brasil, os
Húngaros também não estou completamente satisfeitos com a Hungria e sua
política, de extrema direita.

Pretende voltar para o Brasil? Para onde? Manaus?


No momento não tenho pretensão de voltar ao Brasil, não pela atual
situação econômica e política, mas porque no momento parte da minha
família se encontra aqui. Caso volte, não posso dizer com certeza que
voltaria para Manaus, apesar de gostar muito da cidade.

O que mais você se recorda do tempo em que estava no curso de


Arquitetura na Universidade Federal do Amazona? Lembra dos seus
colegas, dos professores?

Me recordo dos prazos de entrega de projetos, dos almoços com os amigos,


do convívio dentro da faculdade. Do 352 lotado, rsrs.
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Como você via (e vê) as perspectiva de um (a) profissional que se formou


(ou está se formando) no Amazonas? Acha, por exemplo, que essa área
é valorizada nessa região?
Assim como qualquer profissão em que se trabalha diretamente com
pessoas, construir uma reputação e clientela não é fácil. A arquitetura ainda
é muito ligada a decoração e interiores e quem quer trabalhar com outras
áreas precisa batalhar mais. No entanto, acredito que uma vez estabelecido
no mercado de trabalho, as chances de ser obter sucesso são grandes,
mesmo na nossa região.

O que mais te encanta na arquitetura?


Gosto de estudar as pessoas e seus comportamentos. A arquitetura
para mim de certa forma transforma a necessidade das pessoas em algo
concreto e me ajuda a acompanhar o comportamento delas dentro de um
espaço. Por isso, gosto principalmente das áreas de sociologia e
planejamento urbano.

Por que resolveu sair do Brasil? Acha que valeu a pena? Passou
a ver o mundo de outras perspectivas? O que isso está significando para
sua existência e quais são seus projetos de vida?
Saí do Brasil por questões pessoais, não por questões políticas ou
econômicas, apesar de não concordar com o rumo que o país está tomando.
Até o momento não me vejo voltando para o país e nem necessariamente
vivendo o resto da vida na Hungria. Gosto de conhecer e morar em
diferentes lugares. Acredito que essas experiências nos ensinam a ser mais
tolerantes e abertos a novas experiências. Penso em trabalhar como
arquiteta e continuar estudando.

Como você se vê hoje? Como vê o mundo?


No momento me vejo enfrentando novos desafios fora da academia e
no mercado de trabalho, como a falta de experiência, dificuldades com a
língua Húngara. Entretanto, me vejo mais tolerante, aberta a mudanças, e
com maior certeza de que o mundo é muito grande e precisa ser explorado
em sua totalidade, da melhor foram possível.

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