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O objetivo deste estudo é analisar o conteúdo das letras das músicas em português mais
executadas nas rádios brasileiras no ano de 2014, com enfoque nas diferenças de gênero.
Foram analisadas, com o auxílio do software Alceste, as letras das 100 músicas mais
tocadas no Brasil em 2014, identificadas através de um programa de monitoramento de
rádio. Os dados indicaram a preponderância do amor romântico como tema principal das
músicas, e foram organizados em três classes: “promessas e amor”; “incertezas e fim”;
“hedonismo e saudade”. As músicas mais tocadas nas rádios referem-se ao amor
romântico em sua trajetória clássica, manifestando forte naturalização de pensamentos
heteronormativos e reforçando a desigualdade imbricada nas relações de poder entre o
homem e a mulher. A voz é essencialmente masculina e prioriza os sentimentos do
homem, sua perspectiva, seu sofrimento ou sua felicidade. Das 100 músicas analisadas,
apenas oito não tratam de alguma dimensão do relacionamento amoroso entre um homem
e uma mulher e apenas 11 são cantadas por intérpretes femininas. A grande projeção da
música popular no Brasil por meio do rádio se constitui como vetor fundamental de
compartilhamento social de normas, valores e códigos sociais. No entanto, apesar do
avanço realizado na luta pela igualdade dos gêneros, as canções mais tocadas pelo país
reforçam a concepção da mulher-símbolo, o objeto de desejo e causa da
felicidade/infelicidade dos homens heterossexuais.
1
Mestrando em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo. Bolsista pela FAPES.
marcopontual@gmail.com
2
Mestrando em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo. Bolsista do CNPq.
odacyrroberth@gmail.com
3
Professora Adjunta do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento da Universidade
Federal do Espírito Santo. marianadalbo@gmail.com
1 INTRODUÇÃO
3 MÉTODO
4 RESULTADOS E DISCUSSÃO
4
Caraca, Muleke (Thiaguinho); Meu Mundo e Nada Mais (Daniel); Onze Vidas (Lucas Lucco); Copo na
Mão (Munhós e Mariano); Gaguinho (Hugo e Tiago); País do Futebol (MC Guimê); Beijinho No Ombro
(Valeska Popozuda); Anjos Pra Quem Tem Fé (O Rappa)
5
Paula Fernandas; Anitta; Ivete Sangalo; Tania Mara; Valeska Popozuda e Ludmilla
A Figura 1, apresentada abaixo, demonstra a disposição das informações
oferecidas pelo software, organizadas em eixos e classes de acordo com a análise textual
realizada pelo programa:
R=0,54
Figura 1. Dendrograma com as classes identificadas pelo software Alceste, nomeadas posteriormente em
função de seus contextos. UCE refere-se a Unidade de Contexto Elementar, apresentada com o valor
percentual da classe na totalidade do corpus analisado e com o R, que representa o grau de vinculação entre
elas. A coluna x², dentro de cada classe, representa a relevância de cada um dos 11 principais termos.
Nota: *Na classe 4, a referência (*gen_05) indica que esse gênero (rock) foi marcante na constituição da
classe. Os termos seguidos pelo sinal de + são aqueles cujas diferentes terminações foram levadas em
consideração (exemplo: quis, quiser, quiseram, quisemos).
Conforme pode ser observado, o dendrograma gerado pelo Alceste é composto
por dois eixos, nomeados posteriormente em razão de seus conteúdos: Ciclo romântico e
Euforia e tristeza.
O eixo Ciclo romântico é formado por duas classes distintas, também nomeadas
a posteriori: Promessas e amor (Classe 1) e Incertezas e fim (Classe 2). O dendrograma
demonstra uma correlação de R=0,54 entre essas duas classes.
Já no segundo eixo, Euforia e tristeza, está presente uma única classe: Hedonismo
e saudade (Classe 3). Os termos aqui utilizados para categorizar o eixo e a classe são
sinônimos por tratarem de uma mesma realidade, apenas explorada em relação a bases de
comparação distintas.
Cada uma dessas classes é, por sua vez, formada por um conjunto de 11 palavras,
selecionadas de acordo com o valor de seu qui-quadrado em função do discurso analisado.
Tais palavras, assim como as classes e eixos, serão destrinchadas e contextualizadas nos
parágrafos seguintes.
A Classe 1 se refere ao ideal romântico do ponto de vista do apaixonado, com
promessas de amor eterno, incondicional e monogâmico. Quem fala é o homem, à mulher
perfeita para si. É um discurso feliz, otimista, vinculado ao momento inicial do cortejo.
Algumas das palavras principais dessa Classe são: ‘lado’, que se refere ao
companheirismo associado ao relacionamento romântico (“acordar do seu lado amanhã
6
”, “sou tudo ao seu lado7”, etc.); ‘amor’, aqui predominantemente inserida como um
sentimento positivo e arrebatador (“eu vou morrer de amor, eu gosto tanto dela8”, “é
maravilhoso, é amor, é felicidade9”); ‘nós’ e ‘dois’, que aparecem frequentemente juntos
(“nessas frases tem um pouco de nós dois10”, “nós dois, sem dor e em paz11”) e que,
mesmo quando separados se referem ao casal romântico (“tá com medo do que pensam
de nós?12” e “dois corpos, dois corações13”); ‘sonho’, aqui aludido pelo cantor
apaixonado tanto em sua forma literal quanto como sinônimo de desejo (“pra lembrar
6
Te dar um beijo (Michel Teló)
7
Tudo com você (Victor e Léo)
8
Vou morrer de amor (João Bosco e Vinicius)
9
Tempo de alegria (Ivete Sangalo)
10
Na linha do tempo (Victor e Léo)
11
Sem você a vida é tão sem graça (Thiaguinho)
12
Longe daqui (Munhoz e Mariano)
13
Dentro de um abraço (Jota Quest)
dos sonhos que eu sonhei com você14” e “eu tenho um sonho de viver amando você15”);
‘quis+’, que aparece nesta classe predominantemente enquanto proposta do homem
apaixonado à mulher amada (“se você quiser te dou meu sobrenome16”, “se você quiser,
podemos ser um caso indefinido17”, etc.); feliz, que se refere a um tema central na
narrativa do amor romântico, que o descreve como condição sine qua non da obtenção da
felicidade suprema; ‘flores’, que, em sincronia com os demais elementos da Classe, é um
objeto cultural associado ao cortejo/início da relação amorosa e à celebração do amor;
‘seu’, termo que no discurso do apaixonado trata tanto dos traços físicos e afetivos da
amada (“seu corpo sem véu18”, “seu olhar19”, “seu rosto é perfeito20”, etc.) quanto da
condição de entrega a que o amante se coloca (“sou seu confidente, seu melhor amigo21”,
“sou seu amanhecer22”, etc.); ‘dela’, reforçando a voz masculina como emissora do
discurso romântico também de maneira indireta, se referindo à sua amada na terceira
pessoa e ‘menina’, último elemento da classe, que aparece como forma de tratamento
íntima e carinhosa, em harmonia com os demais elementos da Classe.
As seguintes UCEs foram destacadas por bem representar a constituição do
universo simbólico da Classe 1:
primeiro, tudo comeca com a paquera, o #seu olhar bem #dentro #do olhar
#dela. E com jeitinho #lhe tire #para dancar, dance macio pra #ela se
aconchegar. (x²=14) Os dez mandamentos do amor (Eduardo Costa); 2014
#calma jorge_mateus nao #chore mais, #sorria #amor. eu trouxe o fim da sua
dor, nao #chore #nunca mais #amor. eu #sou o sol cercando a chuva, #do #seu
olhar #sou eu #quem #cuida. (x²=18) Calma (Jorge e Mateus); 2014
E nao serei mais #um desconhecido, serei #teu #sonho de #amor preferido. E
o que #vai #ser o tempo #vai #dizer. (x²=13) Faz de conta (Eduardo Costa);
2013
14
Esse copo aqui (Hugo e Tiago)
15
Asas (Pixote)
16
Tudo que você quiser (Luan Santana)
17
Caso indefinido (Cristiano Araújo)
18
Ponto G (Edy Britto e Samuel);
19
Sorte é ter você (João Bosco e Vinicius)
20
Mudar pra quê? César Menotti e Fabiano
21
Melhor amigo (Turma do Pagode)
22
Pega eu e leva pra você (Leonardo)
desta estirpe robustecem ainda mais a imagem da mulher como dócil, passiva e frágil,
que necessita de cuidados de alguém forte (no caso, um homem) capaz de mostrar a ela
que só é possível ser feliz ao lado dele.
Gripp e Pippi (2013) apontam uma representação da mulher cantada no funk que
desmistifica todo este estereótipo social em torno da feminilidade trazida pela música
sertaneja. Em uma análise realizada nas letras interpretadas pela Valesca Popozuda os
autores mostram que o discurso apresentado no trabalho da funkeira é socialmente visto
como indiscreto justamente por romper esta lógica da passividade da mulher numa
sociedade onde há um consenso que ela é proibida discursar sobre o sexo, silenciando-a
e negando, consequentemente, a existência de ideais machistas na sociedade, partindo do
pressuposto de que o que não é falado, não existe.
A Classe 2, por sua vez, refere-se tanto a incertezas e crises no relacionamento
quanto a tentativas de reatar um relacionamento romântico que terminou, e que portanto
não se desenrolou conforme o planejado na Classe 1. O tom do discurso é mais sombrio,
e o descompasso entre o planejado e a realidade do momento é frequentemente atribuído
ao comportamento feminino, uma vez que a música apresenta a versão dos
acontecimentos do ponto de vista masculino.
Algumas palavras que representam bem o rompimento do ideal outrora anunciado
são: ‘tenh+’ e ‘medo’, que frequentemente aparecem na mesma frase (“E dá pra ver que
hoje estamos divididos, tenho medo de não ter você comigo23”); ‘mim’, com frequência
alinhado ao contexto apresentado desta classe, se referindo a desventuras amorosas
(“Arrancou de mim a paz, o sorriso e a razão24” e “E você nem aí pra mim aqui do
lado25”); ‘recomeç+’, que reflete diretamente uma das duas dinâmicas principais desta
classe, na medida em que reconhece o fracasso da situação presente e projeta as
esperanças para o futuro (“confesso que às vezes penso na gente, e em um recomeço
melhor e bem diferente26”, “Já estou indo, embarco no próximo vôo da meia-noite,
perfeito pra recomeçar27”); “fiz”, nesta classe acentuada como parte do discurso do
amante inconformado com a separação (“que mal te fiz eu? Pra me tratar assim como
23
Onde nasce o sol (Bruninho e Davi)
24
Jogado na rua (Guilherme e Santiago)
25
Bem apaixonado (Israel e Rodolffo)
26
Diz pra mim (Gusttavo Lima)
27
Onde nasce o sol (Bruninho e Davi)
farrapo28”); “isso”, regularmente usado nesta classe para se referir a situações
indesejáveis, condizente com a negatividade contextual já pontuada (“eu já sabia que isso
ia acontecer... é ilusão achar que tudo está igual29”, “vai dizer que era isso que eu
queria?30”); “diz”, que no discurso desiludido é a forma do homem de apresentar ou
solicitar os argumentos da mulher (“e agora você diz pra mim que já não é bem assim, já
está tão perto o fim31”, “me diz o que aconteceu, era pra ser diferente32”); ‘posso’,
associado ainda ao cenário pós-término, em contexto desfavorável ao amante (“não posso
esquecer o seu olhar no meu, eu sei que nosso amor ainda não morreu33” e “não posso
aceitar, não é nosso fim, está escrito nas estrelas você nasceu pra mim 34”); ‘evit+’, que
alude à dimensão irracional e incontrolável do sofrimento amoroso (“não dá pra evitar,
o seu olhar me disse que ainda há tanta coisa pra se entender35”, “não posso evitar me
sentir assim36”); ‘não’, que apesar de presente em todo o corpus analisado, mantem
relação mais próxima com esta classe, frequentemente retratando a negação de uma
realidade positiva (“acreditar no amor já não faz mais sentido37”, “não encontro jeito pra
gente viver em paz38”) e ‘mudar’, que descreve tanto a insegurança do amante frente ao
porvir quanto ao remorso pelo relacionamento que já terminou (“nem tive tempo pra
mudar o que errei39”, “morro de medo de você mudar40”).
As vicissitudes dos relacionamentos amorosos não é um fenômeno recente.
Acredita-se que estas incertezas, juntamente com suas idas e vindas sempre estiveram
presentes na história da humanidade. A antiga lenda celta do amor entre Tristão e Isolda
é costumeiramente invocada por estudiosos da história do amor no ocidente por retratar
os elementos centrais da narrativa do amor romântico, ou o amor-paixão, de seu início
até os dias atuais. A história gira em torno de Tristão, virtuoso cavaleiro, que se vê
28
Que mal te fiz eu (Gusttavo Lima)
29
Planos impossíveis (Jads e Jadson)
30
Não fui eu (Paula Fernandes)
31
Diz pra mim (Gusttavo Lima)
32
Sem você a vida é tão sem graça (Thiaguinho)
33
O tempo não apaga (Victor e Léo)
34
Diz pra mim (Gusttavo Lima)
35
Só vejo você (Tania Mara)
36
Planos impossíveis (Jads e Jadson)
37
Até você voltar (Henrique e Juliano)
38
Guerra fria (Sorriso Maroto)
39
Anjos de plantão (Ivo Mozart)
40
Mudar pra quê? (César Menotti e Fabiano)
apaixonado por uma mulher que fora encarregado de resgatar em nome do rei. A paixão
se manifesta após o resgate, quando Tristão e a recém resgatada e futura rainha, Isolda,
acidentalmente bebem juntos a poção do amor, que deveria ser bebida pelo rei e sua
prometida. Tristão e Isolda passam a partir de então a viver uma história clandestina de
amor, pontuada pelas díades aproximação e separação, sofrimento e euforia (BÉDIER,
1994).
De acordo com Costa (1998), histórias como essa foram se tornando cada vez mais
presentes no acervo cultural das nações ocidentais em tempos recentes, principalmente a
partir do séc. XIX. Com base em narrativas como a de Tristão e Isolda e outros escritos
análogos, o autor identifica três elementos comuns às histórias do amor romântico desde
a sua elaboração até os dias atuais: a) o amor é um sentimento universal e natural; b) o
amor é um sentimento “surdo à voz da razão” e c) o amor é condição sine qua non para
atingir plena felicidade. Assim como Posadas (2001), o autor refuta tais noções e aponta
para a coerção social e o condicionamento cultural como responsáveis por essa forma de
se experienciar o amor.
A Classe 3 é a única que trata de duas temáticas distintas: amor romântico e festas.
Essas temáticas intersetam-se na medida em que uma das formas de se celebrar ou
lamentar o fim do ciclo amoroso é através de comportamentos hedonistas culturalmente
reforçados, como o consumo de bebidas alcoólicas e o comparecimento a festas. Aqui vê-
se tanto o homem feliz, sociável e otimista que quer aproveitar a vida como o homem
deprimido e amargurado, que declara, e até mesmo se orgulha, de consumir quantias
copiosas de álcool. Termos que exemplificam essa interceção de temas são: ‘beber’,
‘copo’, ‘tô’, ‘rua’, ‘sai’ e ‘noite’. Uma das canções que compõe o corpus e que bem
exemplifica esse comportamento chama-se Esse copo aqui, da dupla sertaneja Hugo e
Tiago:
Sabe onde eu estou? Tô num bar. Sabe o que tô fazendo? Tô bebendo. E vou
beber até o dia clarear. Mas quer saber onde estou? Eu tô num bar. Sabe o que
tá doendo? É saudade de você. Tô te ligando pra te avisar, ficou lembrança sua,
o cheiro da sua pele ainda está no ar. Eu vou beber pra não chorar. Esse copo
aqui eu vou tomar pensando em noites que eu passei com você, esse outro aqui
é pra lembrar dos beijos que eu te dei até o amanhecer. Esse copo aqui é pra
lembrar dos sonhos que eu sonhei com você, esse outro aqui é pra ver se eu
consigo te esquecer. Ficou lembrança sua, o cheiro da sua pele ainda está no
ar. Eu vou beber pra não chorar.
O fim do relacionamento é, todavia, associado também ao sofrimento sóbrio, à
reflexão saudosa sobre o passado associada, frequentemente, ao desejo de recomeçar.
Neste caso o vocabulário se manifesta mais intimista e, ao invés de ‘rua’, ‘noite’ e ‘saída’,
tem-se a manhã, a casa e o aqui. As palavras que compõe esse cenário são: ‘tá’, ‘casa’,
‘fica’, ‘manhã’, ‘aqui’. Uma canção construída em torno dessa temática é Fui fiel, da
celebridade sertaneja Gusttavo Lima:
Foi bonito, foi, foi intenso. Foi verdadeiro, mais sincero. Sei que fui capaz, fiz
até demais. Te quis do teu jeito. Te amei, e mostrei que o meu amor foi o mais
profundo. Me doei, entreguei, fui fiel, chorei, chorei. Hoje eu acordei, me veio
a falta de você. Saudade de você, saudade de você. Lembrei que me acordava
de manhã só pra dizer: bom dia, meu bebê, te amo, meu bebê.
no rio pos agua #doce, o sal no #mar. ela me deixou suave. era #linda a vida
quando ela partiu, deixou #saudade. ela me deixou, #saudade. #minha vida
quando ela surgiu, #aqui #ficou suave. #na #linha do horizonte evaporou,
#nenhum sinal. sumiu da tela a cor da imagem. (x²=10) Ela me deixou (Skank),
2014
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ABRIC, J-C. A abordagem estrutural das Representações Sociais. In: MOREIRA, A. S.
P.; OLIVEIRA, D. C. (Orgs.). Estudos Interdisciplinares de Representação Social.
Goiânia: Editora AB, 1988. p. 27-38.
COSTA, J.F. Sem fraude nem favor: estudos sobre o amor romântico. Rio de
Janeiro: Rocco, 1988.
GRIPP, P.; PIPPI, J. O prazer feminino em discurso: uma análise da presença de ideais
feministas em músicas do gênero funk. Anais do XXIX Congreso Latinoamericano
de Sociología – ALAS. Chile, 2013.
NEDER, A. “Um homem pra chamar de seu”: discurso musical e construção de gênero.
Per Musi, Belo Horizonte, n.28, p.170-175, 2013.