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RESUMO
A partir da análise nietzscheana da tragédia grega e do fenômeno dionisíaco, pretendo abordar
nesta comunicação um possível sentido trágico para a existência, tendo como eixo
argumentativo a particular relação que Nietzsche faz entre os conceitos de liberdade e destino.
Tanto na estética trágica como no êxtase dionisíaco, Nietzsche argumenta que a mensagem
transmitida é a sabedoria da natureza, da vida, do deus Dioniso. Essa sabedoria ensina que o
indivíduo não está desprendido do mundo; o dualismo homem/natureza é abolido pelo frenesi
dionisíaco o qual proporciona um sentimento de unidade no homem tornando-o capaz de
reconhecer-se como natureza, como parte integrante do mundo. Dessa forma, o destino do
homem e do mundo estão ligados, são um; a liberdade deixa de ser encarada como um
posicionamento solipsista do homem ante ao mundo, passando a um novo estatuto. Nele, uma
aceitação e afirmação das contingências e necessidades da existência configura-se como um
ato de fidelidade à terra no qual o homem experimenta o sentimento de liberdade; nesse ato o
homem sente-se livre quando deixa de agir arbitrariamente e passa a fazê-lo harmonicamente
às pulsões terrestres. Assim, Nietzsche faz uma espécie de amálgama entre a liberdade e o
destino. O resultado disso é uma existência consciente de sua tragicidade, da fragilidade que
permeia tanto a fortuna como a má sorte.
PALAVRAS-CHAVE: tragédia, dionisíaco, destino e liberdade.
Introdução
A ação humana pode ser examinada sob várias perspectivas e por diferentes modos.
Entre eles, as tragédias gregas podem se destacar de mera referência para um modo de pensar,
*
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Goiás (UFG), sob orientação
da Prof.ª Dr.ª Adriana Delbó. Bolsista CAPES. E-mail: ederdavid23@yahoo.com.br.
representar e avaliar o drama da ação no mundo dos assuntos humanos (Cf. VERNANT, 1990, p
342-3). Sensível a essa possibilidade, Nietzsche desenvolve em sua filosofia uma estética e uma
ética trágicas. Entretanto, apesar da importância da estética trágica na obra nietzscheana, neste
trabalho o caminho investigativo privilegiará uma parte da reflexão ética, o que mais adiante
será identificado com o conteúdo da tragédia ática. A particular perspectiva da ética esboçada
aqui constitui-se na relação do indivíduo consigo mesmo, em que ele, como avaliador, pondera
acerca dos motivos, propósitos, conseqüências e resultados de sua ação, ou seja, o que
doravante será nomeado simplesmente de relação agente/ato. Relação esta que de forma
alguma é algo simples para Nietzsche, pois como diz em um fragmento póstumo: “Que o gato
humano sempre torne a cair sobre [...] sua única perna ‘eu’, é somente um sintoma de sua
‘unidade’ fisiológica, ou melhor, ‘unificação’: nenhuma razão para acreditar em uma ‘unidade
anímica’” (NIETZSCHE, 2002, p. 63 [FP 1(72)]).
Desenvolvimento
“Os gregos, que nos seus deuses expressam e ao mesmo tempo calam a doutrina
secreta de sua visão de mundo” (NIETZSCHE, 2005b, p. 5 [§1]), elegeram para suas artes dois
deuses: Apolo e Dioniso. O primeiro está associado às artes figurativas, plásticas, dotadas de
medida, tais como a pintura e a escultura. Já o segundo refere-se à arte não figurada e
desprovida de medida, ou seja, a música. Dessa forma, os helenos dividiram as artes como
oriundas de dois tipos de pulsões da natureza. Enquanto Apolo representa a tendência ética
dotada de medida, conformadora (dar forma) do indivíduo; Dioniso, o intenso e incerto jogo de
forças da natureza. (NIETZSCHE, 2007, p. 24-39 [§1-§4]). Esses impulsos normalmente
encontram-se em contraposição e discórdia, entretanto a vontade helênica foi capaz de
reconciliá-los por um certo tempo, e conjugados eles se tornaram aptos ao parto da tragédia.
Nessa união que deu origem à tragédia, tanto o impulso apolíneo quanto o dionisíaco
estão presentes, porém há a possibilidade de reconhecer uma certa prevalência de Dioniso
nessa aliança. Como mostra Roberto Machado, na arte trágica, a cena e a palavra são instâncias
apolíneas, já a música é uma instância dionisíaca (2006, p. 224). E mais, a tragédia, como
descrita por Nietzsche, é a “transformação de um ‘fenômeno natural’ em um ‘fenômeno
artístico’ [sendo que o] fenômeno natural é o dionisíaco puro, selvagem, bárbaro e titânico; o
fenômeno artístico é a arte trágica, o teatro, a tragédia.” (MACHADO, 2006, p. 224), ou seja, a
tragédia grega é o fenômeno dionisíaco posto em cena, música e palavra.
[...] a vida, no fundo das coisas, apesar de toda a mudança das aparências
fenomenais, é indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria, esse consolo
aparece com nitidez corpórea como coro satírico, como coro de seres naturais,
que vivem, por assim dizer, indestrutíveis, por trás de toda civilização, e que a
despeito de toda mudança de gerações e das vicissitudes da história dos
povos, permanecem perenemente os mesmos. (NIETZSCHE, 2007, p. 52 [§7]).
O indivíduo, ante à natureza, é somente um fio trançado pelas Moiras. 1 Por isso Édipo
enreda no parricídio e uni-se em um matrimônio execrável com sua mãe. E Prometeu, apesar
de seu amor pelos homens, de sua sabedoria e do dom da vidência, também não escapa ao
destino, pois é a vida em sua totalidade que deve ser afirmada, não o indivíduo.
1
A palavra moira, de origem grega, quer dizer “destino, fado”. Mas também, quando escrita no plural “Moiras”, é
o nome de três irmãs que, na mitologia grega, teciam em seu tear o fio da vida dos deuses e homens.
O que Nietzsche diz ser o segredo da natureza falado pelo boca de Dioniso — no caso da
tragédia é o coro formado por sátiros que canta esse segredo, essa sabedoria —, é perceptível
através de um duplo sentimento de unidade que o ditirambo provoca. O primeiro refere-se à
afirmação da existência em sua totalidade, quando o homem se vê unido ao mundo; o segundo
diz respeito à natureza dessa existência. Nos cultos a Dioniso, o indivíduo é conduzido a um
poderoso esquecimento de si acompanhado de um sentimento sobrenatural de unidade com
os outros homens e com a natureza, onde “cada qual se sente não só unificado, conciliado,
fundido com o seu próximo, mas um só [com o mundo]” (NIETZSCHE, 2007, p. 28 [§1]). Dessa
maneira, o êxtase dionisíaco configura-se como um instrumento desvelador e afirmativo da
unidade partilhada por todas as coisas, com o que deduz-se que homem e mundo partilham o
mesmo destino, são um.
Esse fluxo incessante do devir conduz os fenômenos em um caminho sem fim. Nele, as
ações enredam-se por uma teia de aniquilamento e fecundidade com um imbricamento tal
entre necessidade e contingência, que
Ou ainda, o “que faço ou deixo de fazer agora é tão importante, para tudo o que está
por vir, quanto o maior acontecimento do passado: nesta enorme perspectiva do efeito, todos
os atos são igualmente grandes e pequenos” (NIETZSCHE, 2001, p. 178 [§233]). E de forma bem
semelhante em um fragmento póstumo da primavera de 1884, assim diz Nietzsche: “Útil é
apenas um ponto de vista para o que está próximo: todas as conseqüências longínquas não são
previsíveis, e toda ação pode ser taxada igualmente como útil e como prejudicial” (NIETZSCHE,
2008, p. 35 [25 (128)]).
[...] aprendi a diferenciar a causa do agir da causa do agir de tal e tal modo [...].
A primeira espécie de causa é um quantum de energia represada, esperando
ser utilizada de alguma forma, com algum fim; já a segunda espécie é algo
insignificante comparado a essa energia, geralmente um simples acaso,
segundo o qual aquele quantum se “desencadeia” de uma maneira ou de outra
[...]. Entre esses pequenos acasos [...] incluo todos os pretensos fins [...]: são
relativamente fortuitos, arbitrários, quase indiferentes, em relação ao enorme
quantum de energia que urge, como disse, para ser de alguma forma
consumido. [...] O “objetivo”, o “fim”, não seria freqüentemente um pretexto
embelezador, um posterior fechar de olhos da vaidade, que não quer admitir
que o barco segue a corrente na qual fortuitamente caiu? Que ele “quer” ir
para lá porque — tem de ir? (NIETZSCHE, 2001, p. 262 [§360]).
A esse modo trágico de ser da ação humana, Dioniso canta uma melodia harmônica,
com a qual ensina esses saberes por meio de um pathos ritualístico, mas também filosófico,
afirma Nietzsche. Esse pathos ocorre no cortejo dionisíaco, quando a natureza (incluso o
atende a esse chamado e ousa buscar em si uma continuação do mundo, não se coloca em uma
posição desprendida, mas integra-se voluntariamente às necessidades e contingências da
existência. Ele encontra em suas entranhas pulsões terrestres, em seu íntimo ele vê devir e
vida. O resultado da harmonia entre as vísceras desse homem e os impulsos terrestres é um
poderoso sentimento de liberdade. No §213 de Além do bem e do mal Nietzsche discorre sobre
isso utilizando como paradigma a criação artística. Segundo ele, ao deixar de criar
arbitrariamente, mas fazê-lo acatando as forças terrestres, surge no artista, em plena
intensidade, a sensação de liberdade.
Os artistas talvez tenham um faro mais sutil nesse ponto: eles, que sabem
muito bem que justamente quando nada mais realizam de “arbitrário”, e sim
tudo necessário, atinge o apogeu sua sensação de liberdade, sutileza e pleno
poder, de colocar, dispor e modelar criativamente — em suma, que só então
necessidade e “livre-arbítrio” se tornam unidos neles (NIETZSCHE, 2005a, p.
108).
Do mesmo modo que a tragédia só é possível a partir da união dos impulsos apolíneo e
dionisíaco, a liberdade humana é entendida por Nietzsche como o resultado da união
voluntária do homem ao mundo. A desmesura dionisíaca e a medida apolínea se
complementam e se limitam na tragédia: nela, a sabedoria dionisíaca ganha forma, aparência,
se transforma em drama, graças a Apolo; já o apolíneo louvor ao indivíduo, transfigura-se na
afirmação do todo, na destruição do indivíduo, “na fé de que apenas o que está isolado é
censurável”, graças a Dioniso. Outrossim, o homem experimenta sua liberdade, tornando-se
complemento ao mundo e sendo limitado por ele. Mas ainda sim uma liberdade, mesmo que
trágica.
Apesar de paradoxal, essa união de impulsos distintos, onde cada um deles limita o
outro, mas também complementa, proporciona uma criação nova, uma liberdade outra. Esta,
não é nem o livre-arbítrio solipsista de Münchhausen, nem uma ausência absoluta de escolha
em um determinismo extremo. Mas sim, uma atitude de integração do homem ao cosmos, em
que se tem entre os resultados, a sensação de liberdade, o sentimento de poder. Ambos são
Que nos rituais dionisíacos esse fato é expresso a partir de um pathos religioso, não
implica a necessidade da religião para a vivência dessa unidade. O que Nietzsche faz não é
doutrinamento religioso, mas sim a construção de uma filosofia a partir da transposição do
dionisíaco em um pathos filosófico, tendo a sabedoria trágica como fundamento.
Conclusão
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARRENECHEA, Miguel Angel de. Nietzsche e a Liberdade. 2ª ed. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Trad. Paulo C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
2001.
______. Além do bem e do mal. Trad. Paulo C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras
[Bolso], 2005a.
______. Crepúsculo dos Ídolos. Trad. Paulo C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
______. Fragmentos finais. Trad. Flávio R. Kothe. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
2002.
______. Fragmentos do espólio: primavera de 1884 a outono de 1885. Trad. Flávio R. Kothe.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.
______. Obras incompletas. Col. Os Pensadores. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho, seleção
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______. O Nascimento da Tragédia. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras
[Bolso], 2007.
VERNAN, Jean-Pierre. Aspectos da pessoa na religião grega. In: VERNAN, Jean-Pierre; VIDAL-
NAQUET, P. Mito e pensamento entre os gregos. Trad. Haiganuch Sarian. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1990.