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Democracia participativa: plebiscito,

referendo e iniciativa popular

ALMINO AFFONSO

SUMÁRIO

1. Democracia participativa – introdução ao


tema. 2. Plebiscito e referendo. 2.1. Experiência
brasileira. 2.2. Doutrina e direito comparado. 2.3.
Questões práticas. 3. Iniciativa popular. 3.1. Novi-
dade constitucional. 3.2. Doutrina e direito
comparado. 4. procedimento regimental. 4.1.
Regimento Comum do Congresso Nacional. 4.2.
Substitutivo Almino Affonso. 5. Conclusão.

1. Democracia participativa –
introdução ao tema
À medida que a sociedade foi se tornando
mais complexa, a começar pela dimensão
populacional, a democracia direta cedeu lugar
à democracia representativa . Do antigo
modelo, que teve nos Estados gregos a sua
expressão mais alta, sobram-nos poucos
exemplos nos Cantões Suíços de Glaris,
Unterwalden e Appenzell. Mesmo assim,
segundo ilustra Barthélemy et Duez, é
questionável sua eficiência: no Cantão de Uri,
em 1911, “várias sessões foram dedicadas à
questão de permitir dançar aos domingos, e em
uma única sessão foi aprovado um Código Civil
completo”.1 No mais, o que resta da democracia
direta, segundo Burdeau, é “mera curiosidade
histórica”.2
O povo, fonte originária do poder, impos-
sibilitado por um conjunto de fatores a exercer,
de maneira direta, as funções de Governo, passa
a delegá-las a seus representantes, eleitos de
1
AZAMBUJA, Darcy. Teoria geral do estado.
Rio de Janeiro : Globo, 1941. p. 273.
2
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de
Almino Affonso é Advogado e Deputado Federal teoria geral do estado. São Paulo : Saraiva, 1982.
(PSDB/SP). p. 134.
Brasília a. 33 n. 132 out./dez. 1996 11
acordo com certa periodicidade. Nasce assim, Como se sabe, houve época em que os
no bojo do Estado burguês, a democracia representantes do povo estavam atados a um
indireta, também chamada democracia repre- mandato imperativo. Não lhes cabia senão
sentativa. O importante, no entanto, é destacar cumprir as instruções expressas de seus
que – de acordo com a teoria da representação eleitores. Mas, como lembra Darcy Azambuja,
política – “o representante não fica vinculado isso era possível porque os representantes –
aos representados, por não se tratar de uma reunidos nos Estados Gerais da França ou no
relação contratual: é geral, livre, irrevogável Parlamento inglês – não eram eleitos em nome
em princípio, e não comporta ratificação dos da nação, mas tão-somente de determinadas
atos do mandatário.3 circunscrições territoriais. Cada qual trazia os
Conforme ensina José Afonso da Silva, é cahiers,
livre “que determinavam o modo como
“porque o representante não está responderiam às perguntas e solicitações
vinculado aos seus eleitores, de quem não reais, aliás em pequeno número e
recebe instrução alguma, e se receber não previamente conhecidas, pois constavam
tem obrigação jurídica de atender, e a da própria carta régia de convocação”.7
quem, por tudo isso, não tem que prestar Com a Constituição Francesa de 1791, o
contas, juridicamente falando, ainda que mandato imperativo deixou gradualmente de
politicamente o faça, tendo em vista o existir, à medida que o direito constitucional
interesse na reeleição. Afirma-se, a moderno foi incorporando essa mesma diretriz:
propósito, que o exercício do mandato “Os representantes eleitos nos depar-
decorre de poderes que a Constituição tamentos não serão representantes de
confere ao representante, que lhe garante nenhum departamento em particular,
a autonomia da vontade, sujeitando-se mas de toda a nação e não lhes poderá
apenas aos ditames de sua consciência”. 4 ser dado nenhum mandato”.
Tendo por base essa conceituação, a crítica Vale dizer, nenhum mandato específico, salvo
do eminente jurista é avassaladora: o de representar a nação em seu conjunto. Como
“Há muito de ficção, como se vê, no observa Darcy Azambuja, se acaso se mantivesse
mandato representativo. Pode-se dizer a instituição do mandato imperativo, a
que não há representação, de tal sorte que “consequência mais profunda seria tornar
a designação de mandatário não passa inúteis as assembléias deliberativas, pois,
de simples técnica de formação dos se cada deputado fosse obrigado a votar
órgãos governamentais. E só a isso de acordo com as instruções recebidas
reduziria o princípio da participação de seus eleitores, a discussão seria inútil
popular, o princípio do governo pelo e a deliberação não existiria”.8
povo na democracia representativa”. 5 Posto à margem o mandato imperativo, com
Na verdade, não é de hoje a crítica às os inconvenientes apontados, a dinâmica polí-
limitações da representação política. O próprio tica foi introduzindo, na democracia represen-
Rousseau, em sua obra clássica, depois de tativa, alguns institutos que possibilitam “a
afirmar que “a soberania não pode ser participação direta do povo nas funções de
representada”, deu-nos o testemunho mais governo, institutos que, entre outros, integram
desconcertante de sua visão sobre a democracia a democracia participativa” 9 : a iniciativa
moderna: popular, o referendo popular e o plebiscito.
“o povo inglês acredita ser livre, mas se Foi na Suíça onde essas instituições primeiro
engana redondamente; só o é durante a se desenvolveram e onde se enraizaram, impri-
eleição dos membros do parlamento; uma mindo à terra de Rousseau as características
vez eleitos estes, volta a ser escravo, não de uma democracia avançada. Basta assinalar
é mais nada”.6 que, das
3
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito “seis constituições que a Suíça se deu, a
Constitucional Positivo. São Paulo : Revista dos contar de 1798, apenas uma, a de 1801,
Tribunais, 1990. p. 123. não foi submetida à ratificação popular.
4
SILVA, op. cit., p. 123.
5 7
Ibidem, p. 124. AZAMBUJA, Darcy. Op. cit. p. 234.
6 8
ROUSSEAU, J.J. El Contrato Social. Madri : Ibidem. p. 235.
9
Edaf, 1969. p. 145. SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 121.
12 Revista de Informação Legislativa
Pela Constituição de 1874, ainda em desastrado gesto de dissolver a Assembléia
vigor, toda matéria constitucional deve Constituinte, com que empanara a fundação do
ser submetida a referendum. Qualquer império. De todo modo, vale a pena, a título de
reforma ou revisão constitucional, tanto curiosidade histórica, registrar que a Câmara
na esfera federal, como nos cantões, tem Municipal de Recife e a Câmara Municipal de
de ser proposta e aprovada pelo povo”.10 Itú (São Paulo) manifestaram-se contra a apro-
No Brasil, com a promulgação da Consti- vação da Constituição que, na essência, nos fora
tuição Federal de 1988, artigo 14, incisos I, II outorgada.
e III, instituíram-se o plebiscito, o referendo e Com o advento da República, o Governo
a iniciativa popular, abrindo espaço, pela Provisório, por meio do Decreto nº 1, art. 1º,
primeira vez em nossa história, para a confi- de 15 de novembro de 1889, tornou explícito
guração da democracia participativa. A rigor, que a forma de governo proclamada era
a transformação não podia ser maior, pois, já “provisória”; e em seu artigo 7º condicionou a
em seu enunciado vestibular, ela proclama o vigência da República à opinião da cidadania:
princípio fundamental de nossa organização “o Governo Provisório não reconhece
política: “Todo o poder emana do povo, que o nem reconhecerá nenhum governo
exerce por meio de representantes eleitos ou local contrário à forma republicana,
diretamente, nos termos desta Constituição”. aguardando, como lhe cumpre, o
Vale dizer, a Assembléia Constituinte optou por pronunciamento definitivo do voto da
articular à democracia representativa a demo- nação, livremente expressado pelo
cracia participativa, deixando ao legislador sufrágio popular”.
ordinário a tarefa de definir os enlaces da nova A Constituição da República de 1891 não
ordem institucional. acolheu, em suas normas, o compromisso
assumido pelo Governo Provisório, enunciando
desde logo a República como forma de governo.
2. Plebiscito e referendo Em resumidas contas, o fato é que referendo
nunca houve; ressalvada a consulta plebiscitária
2.1. Experiência brasileira sobre a forma de governo (república ou
monarquia constitucional), realizada a 21 de
Não temos tradição jurídica e política a abril de 1993.
recorrer para definir com clareza o plebiscito, A Constituição de 1934 fez silêncio no que
o referendo e a iniciativa popular, modalidades tange a plebiscito e referendo. A de 1937, que
de exercício da soberania popular que, pela instituiu o Estado Novo, em seu artigo 187,
primeira vez – com essas dimensões inovadoras dispunha que ela própria seria “submetida ao
– inscrevem-se na Constituição da República. plebiscito nacional na forma regulada em
Com efeito, o referendo pioneiro, se assim decreto do Presidente da República”. Também
podemos denominar o episódio, dá-se em meio previa, em seu artigo 174, § 4º, a convocação
aos embaraços de nossa organização constitu- plebiscitária na hipótese de emenda, modificação
cional, nos primórdios de nossa Independência. ou reforma da Constituição, no caso de ser
Tendo dissolvido a Assembléia Constituinte, rejeitado projeto de iniciativa do Presidente da
Dom Pedro I cria um Conselho de Estado e lhe República, ou ainda se o Parlamento aprovasse,
entrega a tarefa de elaborar a Constituição do apesar da oposição daquele, projeto de iniciativa
Império, ao mesmo tempo em que prometia da Câmara dos Deputados. Sobra dizer que o
formalmente – pelo Decreto Imperial de 13 de plebiscito jamais foi convocado. O regime
novembro de 1823 – submetê-la às Câmaras ditatorial durou o quanto pôde, sem jamais
Municipais para “fazerem as observações que indagar do povo sobre seu destino.
lhe parecerem justas”. Em pleno torvelinho da crise institucional,
Apoiado nessa consulta, Dom Pedro I resultante da renúncia do Presidente Jânio
promulgou a Constituição do Império, mediante Quadros, o chamado Ato Adicional (emenda
a Carta de Lei de 25 de março de 1824. É difícil nº 4 à Constituição de 1946) introduziu, em
dizer que tal procedimento tenha tido força de nosso ordenamento jurídico, a figura do
um referendo. Mais parece um recurso político plebiscito, mas tão-só para que o povo se
de que se valeu o Imperador para minimizar o definisse sobre a manutenção do sistema
parlamentar de governo ou restauração do
10
AZAMBUJA, Darcy. Op. cit., p. 225. presidencialismo, devolvendo a João Goulart
Brasília a. 33 n. 132 out./dez. 1996 13
os poderes que lhe haviam sido usurpados. Giovanni Queiroz, Zaire Rezende, Aldo Rebelo,
Realizado o plebiscito a 6 de janeiro de 1963, o Marconi Perillo e Senador Lúcio Alcântara,
instituto converteu-se em letra morta. Como nos subordinados, na forma regimental, ao Projeto
demais casos referidos, não se tratava de de Lei nº 3.589/93.
institucionalizar o plebiscito, mas de simples Nas referidas proposições, analisadas no
uso do instituto para resolver determinado parecer em detalhe, a conceituação dos
impasse político. institutos do plebiscito e do referendo carece
A primeira grande inovação nessa matéria de maior clareza, refletindo a controvérsia
deu-se, na verdade, na própria Constituição de doutrinária, inclusive no âmbito nacional, e a
1946, que instituiu o plebiscito – como conditio diversidade de tratamento dado à matéria no
sine qua non – nos casos de incorporação, direito constitucional comparado. Por isso,
subdivisão ou desmembramento de Estados. E impõe-se maior cuidado na definição dos
a Constituição de 1967, em seu artigo 14, alcances dos mencionados institutos, de modo
limitou-se a prescrever “a consulta prévia às a evitar que a prática política seja amanhã
populações”, na hipótese de criação de turbada, em prejuízo da nascente democracia
municípios, a ser regulamentada por lei participativa entre nós.
complementar; texto mantido, literalmente, na Gládio Gemma, no Dicionário de Política
Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de Norberto Bobbio e outros, depois de assinalar
de 1969. que a “noção de plebiscito é controversa”,
É pobre, como se vê, a rigor quase nenhuma, indaga-se: “Mas existe realmente uma diferença
a experiência plebiscitária em nossa história conceptual rigorosa entre ambos?” Pondera que
política; o mesmo se diga em relação ao os “estudiosos defendem, em geral, que existe
referendo; e da iniciativa popular, no âmbito uma diferença. Mas as definições que dão de
federal, não há exemplo que se evoque na plebiscito e que deveriam distinguir do
legislação brasileira. referendum, não se coadunam com o uso da
linguagem apresentado no curso da história”.
2.2. Doutrina e direito comparado Depois de alongar-se numa resenha de
conceituações, resultantes da prática histórica,
Na vigência da Constituição de 1988, vários Gládio Gemma conclui: “os dois termos são, a
projetos de lei foram apresentados, no Senado rigor, sinônimos”, cabendo assim optar, em
Federal e na Câmara dos Deputados, dispondo termos normativos, por uma definição que os
sobre a regulamentação dos institutos do distinga.11
plebiscito, do referendo e da iniciativa popular Nesse contexto, não é de estranhar que
(CF, art. 14, incisos I, II e III). nossos constitucionalistas tampouco sejam
Foi grande a contribuição de eminentes uniformes ao referirem-se a esses institutos da
senadores na formulação do texto legislativo, chamada democracia mista. Araújo Castro, em
em sucessivas proposições, como destaca o sua obra A Constituição de 1937, assim
nobre Senador Jarbas Passarinho em seu doutrina:
conciso e bem elaborado parecer. Além dos “Em alguns países, o povo não se
Projetos de Lei de autoria do Senador Wilson satisfaz em escolher os seus represen-
Martins (PLS nº 4/91) e do Senador Marco tantes: quer ter a iniciativa das leis e o
Maciel (PLS nº 206/91), é de justiça relembrar direito de recusá-las ou sancioná-las com
o Projeto de Lei do Senado nº 5/91, apresentado o próprio voto. É o processo do Refe-
pelo Senador Nelson Carneiro – que a morte, rendum”.12
não faz muito, arrebatou-nos –, cujo articulado Como se vê, para Araújo Castro, há tão-
e respectiva justificação constituem uma somente o referendo ou, se assim não é,
admirável peça de ciência política e abalizado refere-se aos dois institutos com a mesma
saber jurídico. expressão.
Ao projeto do Senado Federal, consubstan- Pinto Ferreira, o consagrado mestre
ciado no Substitutivo do Senador Jarbas Passa- pernambucano, classifica o referendo em
rinho, foram apensados, na Câmara dos diversas modalidades:
Deputados, os Projetos de Lei nº 4.160/89, nº 11
GEMMA, Gládio. In BOBBIO, Norberto et
1.748/91, nº 3.876/93, nº 4.137/93, nº 1.616/ al. Dicionário de Política. Brasília : UnB, p. 927.
96 e nº 1.578/96 de autoria, respectivamente, 12
CASTRO, Araújo. A Constituição de 1937.
dos nobres Deputados Sigmaringa Seixas, Rio de Janeiro : Freitas Bastos, 1938. p. 45.
14 Revista de Informação Legislativa
“ a) referendum constituinte, quando se “Dentro da teoria dos governos
refere à reforma, revisão ou emenda da democráticos, não há como negar as
Constituição, e referendum legislativo, vantagens do referendum. Nenhum outro
atinente às leis ordinárias; b) referendum instituto de Direito Constitucional
obrigatório ou facultativo, conforme a aproxima tanto, quanto ele, o governo
consulta popular é exigida necessa- da democracia pura. Entre os processos
riamente pelas disposições constitu- de racionalização do poder, o referendum
cionais ou, no segundo caso, fica subor- é o mais direto e perfeito”.16
dinada à livre disposição de uma autori- Ao conceituar o referendo, assim se
dade, ou dependente de uma petição expressa Darcy Azambuja:
formulada por um certo número de elei- “A aplicação do referendum consiste
tores; c) referendum consultivo, quando em que todas ou algumas leis, depois de
o povo é previamente solicitado para elaboradas pelo Parlamento, somente se
exprimir a sua manifestação popular tornam obrigatórias quando o corpo elei-
sobre a lei já votada pelo Parlamento”.13 toral, expressamente convocado, as
Diz ainda o ilustre constitucionalista: aprova”.
“O referendum em sentido restrito se E acrescenta, linhas adiante:
aplica a uma decisão do povo sobre uma “Há o referendum consultivo, ou
medida legislativa. O plebiscito é a decisão plebiscito, quando o povo é chamado a
do povo sobre um ato do Executivo”.14 pronunciar-se sobre a conveniência ou
José Cretella Jr., em seus Comentários à não de uma lei a ser feita pelo Parlamento;
Constituição Brasileira de 1988, assim e o referendum deliberativo, quando a
conceitua: “Em nossos dias, plebiscito é a consulta do povo é posterior à elaboração
consulta ao povo para que este, mediante da lei”.17
pronunciamento, manifeste livremente sua
Tudo, a rigor, em sua terminologia, é
opinião sobre assunto de interesse relevante”.
E, linhas adiante, acrescenta: referendo.
José Afonso da Silva, constitucionalista da
“a Constituição do Brasil prevê o insti- maior grandeza, é mais abrangente e mais
tuto do plebiscito, não como instrumento definidor em suas lições a respeito dos institutos
de direito das gentes, mas como meio de sobre os quais nos debruçamos: o referendum
direito interno, como trabalho comple- popular caracteriza-se
mentar ao do legislador constituinte, “no fato de que os projetos de lei apro-
mediante sufrágio universal e pelo voto vados pelo legislativo devam ser subme-
secreto, como igual valor para todos”. tidos à vontade popular, atendidas certas
Ao que parece, em sua visão, o plebiscito exigências, tais como pedido de certo
implica consulta formulada antes que o ato número de eleitores, de certo número de
legislativo se configure, dedução essa que se parlamentares ou do próprio chefe do
reforça quando o eminente constitucionalista executivo, de sorte que o projeto se terá
se pronuncia sobre o conceito de referendum: por aprovado apenas se receber votação
“é medida a posteriori, sendo o instituto favorável do corpo eleitoral, do contrário,
de direito constitucional, de direito reputar-se-á rejeitado; está previsto no
interno, pelo qual as coletividades se mesmo art. 14, II, sendo da competência
pronunciam sobre decisão legislativa, exclusiva do Congresso Nacional auto-
desde que o pronunciamento reúna rizá-lo (art. 49, XV), mas a Constituição
número de assinatura, fixado em lei”.15 não estabeleceu as condições de seu
Darcy Azambuja, em sua Teoria Geral do exercício; fica livre o Congresso Nacional
Estado, faz o elogio do referendum com enorme de autorizá-lo também em matéria cons-
titucional; ele pode mesmo expedir uma
entusiasmo: lei definindo critérios e requisitos para
13
FERREIRA, Pinto. Curso de direito seu exercício”.18
constitucional brasileiro. São Paulo : Saraiva, 1993. No que se refere a plebiscito, o ilustre mestre
p. 189. paulista não é menos claro e direto:
14
Ibidem.
15 16
CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à AZAMBUJA, op. cit., p. 225.
17
Constituição brasileira de 1988. São Paulo : Saraiva, Ibidem. p. 224.
18
1989. p. 1095-1096. SILVA, op. cit., p. 126.
Brasília a. 33 n. 132 out./dez. 1996 15
“é também uma consulta popular, seme- o povo ratifica ou rejeita determinado ato
lhante ao referendo; difere deste no fato governamental.
de que visa a decidir previamente uma A Constituição da Espanha (1986), ao
questão política ou institucional, antes definir as normas que regem a reforma consti-
de sua formulação legislativa, ao passo tucional, dispõe:
que o referendo versa sobre aprovação “Aprovada a reforma pelas Cortes
de textos de projeto de lei ou de emenda Gerais, será submetida a referendo para
constitucional, já aprovados; o referendo ratificação, quando assim o solicitar, nos
ratifica (confirma) ou rejeita o projeto quinze dias seguintes à sua aprovação,
aprovado; o plebiscito autoriza a formu- uma décima parte dos membros de qual-
lação da medida requerida; alguma vez quer das Câmaras” (art. 167, 3. CE).
fala-se em referendo consultivo no O instituto do plebiscito surge com a deno-
sentido de plebiscito, o que não é minação de referendo consultivo :
correto”.19 “As decisões políticas de especial
Vale, por fim, lembrar que, no direito importância poderão ser submetidas a
constitucional comparado, não se aclara a referendo consultivo de todos os cida-
controvérsia conceitual, cuja resenha se vem dãos” (art. 192, 1, CE).
fazendo. A Constituição da República Portu- No Chile, na vigência do regime chefiado
guesa (3ª revisão, 1992), em seu art. 118, pelo General Augusto Pinochet, a eleição de
institui o referendo, não se reportando ao Presidente da República se processava medi-
instituto específico do plebiscito. Dir-se-á que ante indicação unânime dos Comandantes-em-
ambos os institutos se fundem na designação Chefe das Forças Armadas; e, em caso de não
constitucional: referendo, por “decisão do lográ-la, devia ser convocado plebiscito para
Presidente da República, mediante proposta da que a cidadania decidisse, confirmando a de-
Assembléia da República ou do Governo, nos signação ou rechaçando-a. O plebiscito tinha,
casos e nos termos previstos na Constituição e nessas circunstâncias, uma clara função cesa-
na lei”. Cabe, ainda, destacar que as emendas rista (arts. 27 e 28 das Disposições Transitóri-
à Constituição estão excluídas do âmbito do as, CC).
referendo, assim como “as questões e os atos Na Constituição da República de Cuba, em
de conteúdo orçamental, tributário ou finan- seu art. 75, item b, estabelece-se, dentre as atri-
ceiro” (art. 118, inciso 3º, CRP). buições da Assembléia Nacional do Poder
A Constituição da França (1986) prevê o Popular, a de
instituto do referendo no caso de reforma cons- “aprovar, modificar ou derrogar as leis e
titucional – desde que já tenha sido aprovada submetê-las previamente a consulta
pela Assembléia Nacional e pelo Senado, popular, quando a considere procedente
quando, então, o povo poderá ser convocado tendo em vista a índole da legislação de
para confirmá-la ou rejeitá-la. Contudo, trata-se que se trate”.
de uma faculdade do Presidente da República, Nos Estados Unidos, o referendum também
já que lhe cabe submeter o projeto de reforma tem uma larga tradição. Valho-me, uma vez
tão-somente ao Parlamento (reunido em mais, dos ensinamentos de Darcy Azambuja:
Congresso), se isso lhe parecer politicamente “Desde os primeiros anos deste
mais adequado. século, em grande número de Estados,
De igual modo, o Presidente da República principalmente os do Oeste, o referen-
– facultativamente – poderá “submeter a refe- dum foi estendido a todas as leis, desde
rendum todo projeto de lei que se refira à orga- que em cada caso o solicite um certo
nização dos poderes públicos” (art. 11. da CF). número de eleitores, que nunca é muito
Assim sendo, a figura do plebiscito, entendido elevado, variando de 5 a 8 por cento do
como consulta prévia, não tem presença insti- eleitorado. Cerca de 30 Estados praticam
tucional na França. Nem se trata de uma o referendum geral, para todas as leis, e
questão terminológica: resulta evidente do texto tudo faz crer que os demais seguirão de
constitucional que o referendo só se convoca perto essa prática”.20
pelo Presidente da República, no exercício de Pelo exposto, a controvérsia em torno dos
sua prerrogativa, como medida mediante a qual institutos do plebiscito e do referendo dá-se no
19 20
Ibidem. p. 126. AZAMBUJA, op. cit., p. 227.
16 Revista de Informação Legislativa
plano da história e se reflete nos dias de hoje, lembrar que a Constituição de 1988, em seu
em termos doutrinários e de direito constitu- art. 1º, parágrafo único, proclamou: “Todo o
cional. Desde a simples terminologia, a diver- poder emana do povo, que o exerce por meio
sidade conceitual, até os alcances de sua de representantes eleitos ou diretamente nos
aplicação, nada há de consentâneo quando se termos desta Constituição”. Ora, conside-
trata dos institutos do plebiscito e do referendo. rando-se que a soberania popular pode ser
Nesse particular, parece que ainda não exercida mediante plebiscito e referendo (art.
descemos da Torre de Babel. 14, incisos I, II, CF) – vale dizer diretamente
pelo povo –, que razão mais forte há para justi-
2.3. Questões práticas ficar o argumento de que a Constituição não
Tendo em vista a controvérsia, no âmbito pode ser emendada por meio desses institutos?
da doutrina e da história, sobre a conceituação Cabe insistir – porque ainda prevalece a cultura
de plebiscito e referendo, valho-me da lição de do sistema representativo puro – que agora o
Gládio Gemma (“os dois termos são, a rigor, povo também exerce o poder diretamente. Por
sinônimos”) e opto por defini-los de maneira que é pacífico que o exercita por meio de seus
direta e objetiva: plebiscito e referendo são representantes eleitos e se refuga que o faça de
consultas ao povo para que delibere sobre maneira direta, se o faz nos termos da Consti-
matéria de acentuada relevância, de natureza tuição mediante plebiscito ou referendo?
constitucional, legislativa ou administrativa, A tese da cláusula pétrea implícita também
cabendo diferenciá-los, tão-somente, quanto à merece reparos. José Afonso da Silva preleciona,
ordem da convocação: o plebiscito há de sê-lo a respeito, com a clareza de sempre:
com anterioridade a ato legislativo ou admi- “Quanto às limitações implícitas ou
nistrativo, cumprindo ao povo aprovar ou inerentes, a doutrina brasileira as vinha
denegar o que lhe tenha sido submetido; e o admitindo, em termos que foram expostos
referendo, ao revés, com posterioridade a ato por Nelson de Souza Sampaio. Há, no
legislativo ou administrativo, requerendo ao entanto, uma tendência a ampliar as
povo a respectiva ratificação ou rejeição. hipóteses de limitações naturais expressas
Reporto-me, uma vez mais, a Gládio que, por certo, tem a conseqüência de não
Gemma: mais reconhecer-se a possibilidade de
“Sob o aspecto normativo, poder-se-á limitações materiais implícitas. É o caso,
apresentar uma definição de plebiscito por exemplo, da Constituição Portuguesa
que o distinga do referendum; a partir que arrolou como limites materiais de sua
daí, qualificar-se-ão ou não como revisão enorme relação de matérias (art.
plebiscitos as votações populares histo- 290). Assim também, quando a Consti-
ricamente verificadas, se, por suas tuição Federal enumera matérias de
conotações, entrarem ou não na definição direitos fundamentais como insuscetíveis
pré-escolhida. Mas, sob o aspecto de emendas, há de se tomar essa postura
descritivo, é de registrar a falta de uma como inadmitindo hipóteses de limitação
definição unívoca de plebiscito que o implícita”.22
diferencie do referendum.”21 Nos estudos de teoria geral do Estado, onde
Assim sendo, evoco a conceituação dada a matéria da democracia participativa é tratada
pelo eminente Professor José Afonso da Silva, em tese, não há objeções, por parte dos autores
e deixo à norma jurídica o encargo de definir o pátrios, à possibilidade de consulta popular
que a doutrina, ao longo dos séculos, não logrou abranger temas constitucionais.
fazê-lo com precisão. Pode ser citada, em tal sentido, a opinião
Os percalços, no entanto, continuam. Não abalizada de Darcy Azambuja, que assinala, a
é pacífico que se possa recorrer ao plebiscito propósito:
ou referendo na hipótese de emenda à Consti- “Pode-se, ainda, dintinguir o refe-
tuição. O argumento básico é o de que a própria rendum constituinte, quando versa sobre
Lei Maior estabelece o processo a ser respeitado reforma ou emenda à Constituição, do
quando se pretenda alterá-la; procedimento esse referendum legislativo, quando se refere
que configura uma cláusula pétrea implícita. a leis ordinárias”.23
A contraditar essa tese, cabe, desde logo,
22
SILVA, op. cit. p. 59-60.
21 23
GEMMA, op. cit., p. 927. AZAMBUJA, op. cit., p. 224.
Brasília a. 33 n. 132 out./dez. 1996 17
De igual forma, Dalmo Dallari, com o quer mediante o mecanismo representa-
prestígio de seu magistério, preleciona: tivo, é um verdadeiro princípio consti-
“O referendum vem sendo largamente tucional substantivo, e não adjetivo, para
utilizado, atualmente, constituindo-se na retomarmos a classificação proposta pelo
consulta à opinião pública para introdução Professor Jorge Miranda. Ora, ainda que
de uma emenda constitucional ou mesmo se considere que as manifestações diretas
de uma lei ordinária, quando esta afeta de soberania popular estão em nível igual
um interesse público relevante”.24 e não superior ao exercício dessa sobe-
Pedro Calmon, dissertando sobre a consulta rania por intermédio de representantes,
popular, observa que, nas reformas que signi- não se pode negar que a equivalência
ficam alteração sensível do Estado: constitucional de ambas impede que se
“Não pode ser posta em dúvida a sua considerem admissíveis o referendo, o
constitucionalidade nos regimes que – a plebiscito e a iniciativa popular, uni-
exemplo das Cartas de após-guerra – camente quando previstos de modo
dizem-se emanados do povo e em nome expresso e pontual no texto da Constitu-
deles exercidos. Nesta declaração há uma ição. Seria isto colocar tais mecanismos
ressalva implícita ao princípio da repre- de democracia direta em posição basi-
sentação. Como todo poder vem do povo camente inferior à representação popular.
e é desempenhado em seu nome, não A fórmula final do dispositivo contido
contrariará o regime, nem lhe infringirá no art. 1º, parágrafo único – “nos termos
a sistemática, a interferência acidental desta Constituição” –, significa, pois,
do povo, nos casos que a requeiram. O simplesmente, que as formas diretas de
referendum torna-se aí legítimo e lógico. soberania popular são aquelas três
Assegura equilíbrio oportuno; ou pelo indicadas na Constituição”.27
menos o invoca”.25 Cabe ainda relembrar, com riscos de ser
O eminente Professor Fábio Comparato, repetitivo, que o Professor José Afonso da Silva
analisando a matéria à luz da Constituição (com toda a autoridade de um dos mais
vigente, confirma a tese sustentada por tão festejados constitucionalistas do país) tampouco
ilustres mestres: objeta o uso do plebiscito ou do referendo em
“Havendo a Constituição de 1988 matéria constitucional, como já deixei claro ao
admitido o exercício direto da soberania transcrever seus ensinamentos pertinentes,
popular como princípio, a sua exclusão, recolhidos de seu consagrado Curso de Direito
para as emendas de revisão, dependeriam Constitucional Positivo.
de uma norma explícita. Como esta não A Constituição de Portugal (segunda
existe, deve-se concluir que toda e revisão, 1989) proibiu o emprego do referendo
qualquer reforma da Constituição pode em matéria constitucional, como se lê em seu
ser ratificada – como também iniciada – art. 118, inciso 3:
pelo voto popular. Seria, no entanto, da “São excluídos do âmbito do referendo,
maior conveniência que este princípio designadamente, as alterações à Consti-
constitucional implícito fosse declarado tuição, as matérias previstas nos artigos
e regulado por lei complementar”.26 164º e 167º da Constituição e as questões
Na XIV Conferência Nacional dos Advo- e atos de conteúdo orçamental, tributário
gados do Brasil, realizada em Vitória, em ou financeiro”.
setembro de 1992, Fábio Comparato reafirmou De todo modo, antes mesmo da referida
seu ponto de vista anteriormente manifestado, Revisão, já era acesa a polêmica sobre a possibi-
em confronto aberto com a tese defendida pelo lidade de, mediante referendo, alterar-se a Cons-
consagrado jurista português Jorge Miranda: tituição. A combater a tese favorável, destaca-
“Entendemos que a manifestação da ram-se sempre dois eminentes juristas – Jorge
soberania popular, quer de modo direto, Miranda e José Joaquim Gomes Canotilho,
catedráticos das prestigiosas Universidades de
24
DALLARI, op. cit., p 135. Lisboa e de Coimbra, respectivamente, nos
25
CALMON, Pedro. Curso de teoria do estado. quais se apoiam os que por aqui sustentam tese
Freitas Bastos, 1958. p. 286.
26 27
COMPARATO, Fábio. Emenda e revisão na COMPARATO, Fábio. In : Conferência
Constituição de 1988. Revista de Direito Público, Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, 14,
n. 93, p. 128, 1990. 1992. Anais. OAB, 1992. p. 52.
18 Revista de Informação Legislativa
igual. Segundo eles, exabundantia, é inad- Assembléias Legislativas, ao próprio povo,
missível a reforma constitucional, conseqüente observados determinados requisitos. Essa
de referendo ou plebiscito, extra constitutione, formulação, entretanto, embora pela sua abran-
vale dizer, quando não expressamente consa- gência seja mais democrática, extrapola o limite
grados na Lei Fundamental. rígido do art. 49, XV, já referido.
No que se refere à abrangência do plebiscito Com efeito, suponha-se a hipótese do
ou referendo, incidindo sobre matéria legisla- Presidente da República propondo a convocação
tiva strictu sensu, não conheço objeções que plebiscitária. Se lhe couber essa iniciativa, é
lhe tenham sido levantadas; e no tocante a atos evidente que passa a ser parte desse processo,
administrativos, retomo as ponderações de à semelhança do que se dá na elaboração das
Gládio Gemma e reitero que tudo dependerá leis ordinárias e complementares. O Presidente
da normatividade que se venha a adotar. Na da República torna-se, no caso em espécie,
Suíça, mediante o referendo de ratificação, o “colaborador” do Poder Legislativo. Como con-
povo interfere nas decisões do “Grande ciliar o Decreto Legislativo – cuja elaboração
Conselho que implicam despesa total de mais nasce e morre no âmbito do Congresso Nacional
de um milhão de francos para um item; nas – com a faculdade do Presidente da República
decisões de empréstimo destinadas a reembolso formular proposta plebiscitária?
de dívidas existentes; nos aumentos de impostos Pode-se argumentar que, apresentada a
além de um certo limite”.28 Não vejo por que proposição por qualquer dos atores políticos
não possa o povo, em convocação plebiscitária (previstos nos PLs nº 3.589/93 e nº 3.876/93),
ou em referendo, aprovar ou rejeitar a venda o Congresso Nacional, ao dar-lhe curso, na
da Companhia Vale do Rio Doce, que o realidade estaria assumindo a competência que
Governo se apresta a fazer, no exercício dos lhe é própria. Mas, a rigor, o sofisma não se
poderes imperiais que o sistema presidencia- sustenta. Não há como recusar: a competência
lista lhe confere. exclusiva se confunde com a iniciativa de
Definidos os institutos do plebiscito e do propor. Nem é outro o ensinamento de Pedro
referendo, aclarando, inclusive, com precisão Calmon:
seus alcances, cabe esclarecer quem há de ter o “Iniciativa é proposta. É faculdade de
poder de iniciativa para convocá-los. A Cons- indicar a proposição, e fazê-la discutida.
tituição Federal, em seu art. 49, estabeleceu: Traduz-se no primeiro ato da elaboração
“É da competência exclusiva do Congresso legislativa: a apresentação do projeto. É
Nacional: (...) XV – autorizar referendo e con- por onde começa a colaboração para a
vocar plebiscito”. O texto é claro como água: feitura das leis”.30
cabe aos parlamentares – Deputados Federais É verdade que, em certos casos, a
e Senadores – a prerrogativa da convocação, “competência exclusiva” do Congresso
conforme o procedimento pertinente. Ora, para Nacional pressupõe iniciativa do Poder Exe-
que seja efetiva sua competência exclusiva, o cutivo. Por exemplo: “resolver definitivamente
Congresso Nacional precisa valer-se de “decreto sobre tratados, acordos ou atos internacionais”
legislativo”, exatamente porque – segundo (CF, art. 84, VIII). Mas, a Constituição Federal
definição de Pontes de Miranda – ele constitui também estabelece, como competência priva-
a lei “a que a Constituição não exige a remessa tiva do Presidente da República: “celebrar
ao Presidente da República para sanção tratado, convenções e atos internacionais” e
(promulgação ou veto)”.29 ainda os sujeita à concordância do Congresso
De acordo com os Projetos de Lei nº 3.589/ Nacional (art. 84, VIII – CF). São atos que se
93 e nº 3.876/93, a convocação pode ser completam; são competências que se interde-
proposta, facultativamente, por qualquer dos pendem. Não se encontra nada semelhante em
vários atores políticos, desde o Congresso relação à prerrogativa de “autorizar referendo
Nacional, ao Presidente da República, às e convocar plebiscito”, própria do Congresso
Nacional.
28
CINTRA, Antonio Octávio. Instruções da De igual modo, descarto a extensão propo-
democracia direta no contexto da democracia sitiva dos projetos de lei mencionados, embora
representativa. Brasília : Assessoria Legislativa da me seduza a sua visão democrática, indutiva
Câmara dos Deputados, 1992. p. 25.
29 30
MIRANDA, Pontes de. Comentários à CALMON, Pedro. Curso de direito constitu-
Constituição de 1967. 2. ed. Revista dos Tribunais, cional brasileiro. São Paulo : Freitas Bastos, 1947.
t. 3, p. 142. p. 159.
Brasília a. 33 n. 132 out./dez. 1996 19
de uma participação popular mais ampla. Mas analítico. Pois é evidente que não configuraria
como assegurar ao povo, mediante requerimento, processo legislativo. Logo, se “autorizar o
a iniciativa de propor convocação de plebiscito? referendo” equivale a uma resposta à iniciativa
Se o “decreto legislativo” é o instrumento do Presidente da República, a solene afirmação
adequado a regular “as matérias da exclusiva do art. 49 da Constituição perde sentido.
competência do Poder Legislativo” (Regimento Pode-se ainda supor que a mencionada
Interno, art. 109, inciso II), como pode a cida- prerrogativa do Congresso Nacional (“autorizar
dania intervir na convocatória plebiscitária? o referendo”) vincula-se às seguintes atribui-
Pode fazê-lo como petição, é claro; no exercício ções do Presidente da República, previstas no
da pressão social. Mas isso escapa à normati- art. 84 da Lei Maior: inciso VIII – “celebrar
vidade, a que nos dedicamos, buscando regu- tratados, convenções e atos internacionacionais,
lamentar o art. 14, incisos I, II e III da Consti- sujeitos a referendo do Congresso Nacional”;
tuição Federal. inciso XIX – “declarar guerra, no caso de
Ao longo da discussão de meu parecer, na agressão estrangeira, autorizado pelo Congresso
Comissão de Constituição e Justiça e de Nacional ou referendado por ele, quando
Redação, o nobre Deputado Vicente Cacionne ocorrida no intervalo das sessões legislativas,
fez-me justificada ponderação a respeito do e, nas mesmas condições, decretar, total ou
inciso XV do art. 49 da Lei Maior : “autorizar parcialmente, a mobilização nacional”; inciso
referendo e convocar plebiscito”. A simples XX – “celebrar a paz, autorizado ou com o
interpretação léxica, centrada nos verbos referendo do Congresso Nacional”. Mas,
“autorizar” e “convocar”, sugere dinâmicas como é evidente, tudo não passa de esforço
diferenciadas para os dois institutos. Se o analítico: nos casos referidos, as expressões
legislador constituinte refere-se a “autorizar “referendo” ou “referendado” são tão-
referendo”, é legítimo presumir-se que a somente sinônimos de “ratificação”, a ser
iniciativa de propor o referendo cabe a outro exercida – como está expresso – pelo próprio
ator político, cumprindo o Congresso Nacional Congresso Nacional.
o papel de autorizá-lo ou não. Confesso que, A olhos vistos, o “referendo” (mencionado
debruçado sobre o texto constitucional, já havia nos incisos acima transcritos) não se confunde
tentado decifrar esse enigma em vão. Por não com o “referendo” – instituto acolhido pela
conseguir, dei à matéria o tratamento que me Constituição de 1988, como uma das modali-
parece coerente com o conjunto das normas que, dades de exercício da soberania popular – do
direta ou indiretamente, dizem respeito a ela. qual só o povo, diretamente, pode ser o agente.
Repito o trajeto de minha análise. Se ao Logo, não há de ser o jogo verbal (“autorizar”
Congresso Nacional compete “autorizar”, devo / “convocar”) do legislador constituinte, segu-
entender que o Presidente da República assume ramente descabido, que anulará a análise
a iniciativa da proposição. Respeitada a sistemática da Constituição Federal: o plebis-
sistemática constitucional, há de formular a cito e o referendo são da iniciativa exclusiva
proposta mediante projeto de lei ordinária, dado do Congresso Nacional.
que o decreto legislativo – como já ficou visto Ademais, não vejo por que, forçando a
– é prerrogativa exclusiva do Congresso interpretação, outorgar-se-ia mais uma prerro-
Nacional. Concluída a tramitação do projeto gativa ao Poder Executivo, que já legisla por
enviado pelo Poder Executivo, aprovado ou não, meio das medidas provisórias e que, valendo-se
ele sobe à sanção presidencial. Como dizer-se de eventual maioria parlamentar, poderia
que, com esse procedimento, respeitou-se o art. sufocar o Congresso Nacional recorrendo à
49 da Constituição, inciso XV, para o qual prática do referendo popular, a um só tempo
“autorizar referendo” é da “competência exclu- anulando-lhe os alcances democráticos e
siva do Congresso Nacional”? restaurando a prepotência cesarista, da qual a
Não há voltas a dar. Além da iniciativa (“o história está cheia de exemplos.
primeiro ato da elaboração legislativa”) ter Não obstante os institutos do plebiscito e
passado a ser, na hipótese que formulo, do do referendo, como já ficou assinalado, signi-
Presidente da República, a ele também vai caber ficarem um grande avanço na organização
o ato final mediante a sanção. Há, por acaso, democrática do país, é importante que não
meio de reduzir o projeto governamental em sejam banalizados, a cada instante convocados.
simples “mensagem”, à maneira de sugestão? Por isso, a meu ver, a iniciativa da proposta de
Só me imponho a indagação por excesso de zelo decreto legislativo, formalizando a convocação,
20 Revista de Informação Legislativa
deve ser subscrita, no mínimo, por um terço dos projetos de leis complementares (CF,
dos membros que compõem qualquer das Casas art. 69) – maioria absoluta”. 31
do Congresso Nacional. Se o legislador constituinte houvesse
Recorro, assim, ao mesmo critério, consti- querido condicionar a convocação plebiscitária
tucionalmente exigido, para a apresentação de ou de referendo à aprovação por maioria abso-
emenda à Lei Maior. Contudo, a experiência luta, teria assim, explicitado, à semelhança dos
parlamentar revela que, do mesmo modo que exemplos citados. Pelo exposto, apesar de
essa cláusula restritiva não impede o acúmulo reconhecer que seria prudente a adoção do
de projetos de emendas constitucionais, é de quorum qualificado, vejo-me na contingência
receiar-se a prática abusiva de proposições de sustentar a tese da maioria simples como
plebiscitárias ou de referendos. Há de caber à requisito para aprovação de projeto de decreto
Comissão Especial que lhes faça a triagem um legislativo mediante o qual se convoque o
papel saneador da maior importância e ao plebiscito ou referendo.
Plenário, a audácia de rechaçar o projeto
descabido.
Sem dúvida, com essas mesmas preocupa- 2.4. Plebiscito específico
ções, em mais de um dos projetos de lei já Por outro lado, cabe assinalar que a Cons-
referidos, foi incluída a norma segundo a qual, tituição Federal de 1988, em seu art. 18, § 3º,
para que seja aprovada a proposição convoca- prevê a hipótese de os Estados incorporarem-se
tória, exige-se o voto da maioria absoluta dos entre si, subdividirem-se ou desmembrarem-se
membros da Câmara dos Deputados e do para se anexarem a outros, ou formarem novos
Senado Federal. A meu ver, entretanto, esse Estados ou Territórios Federais. Para tanto
requisito não se coaduna com a regra implícita exige que se atendam três condicionantes:
de quorum simples para a elaboração “aprovação da população diretamente interes-
legislativa. O quorum qualificado, por ser sada, através de plebiscito”; e aprovação do
norma de exceção, deve ter previsão constitu- “Congresso Nacional, por lei complementar”;
cional, como resulta evidente nos casos de ouvidas as respectivas Assembléias Legislativas,
emenda à Constituição ou de votação de leis nos termos do art. 48, inciso VI, da Consti-
complementares. tuição Federal.
Nesse sentido é a lição de Pinto Ferreira: Cabe acrescentar que, nos casos referentes
“A norma dominante na Constituição a Municípios (criação, incorporação, fusão e
Federal é da maioria simples. A Lei desmembramento), deve ser preservada a
Magna propõe a maioria qualificada em continuidade e a unidade histórico-cultural do
diversos momentos, quais sejam: 1º) ambiente urbano, tudo em decorrência de lei
rejeição pelas Câmaras Municipais do estadual, “obedecidos os requisitos previstos em
parecer prévio do Tribunal de Contas – lei complementar estadual,” e dependendo “de
decisão de dois terços (CF, art. 31, § 2º); consulta prévia, mediante plebiscito, às popu-
2º) aprovação de lei orgânica dos muni- lações diretamente interessadas” (CF, art. 18,
§ 4º).
cípios (art.29, caput) e do Distrito
Impõe-se, desde logo, que se qualifiquem
Federal (art. 32) – dois terços das as expressões “populações diretamente interes-
Câmaras Municipais ou das Câmaras sadas”, relativas ao art. 18, § 3º e 4º da
Legislativas; 3º) convocação extraordi- Constituição Federal, já que se têm prestado a
nária do Congresso Nacional (art. 57) – controvérsias jurídicas. Com efeito, não raro
maioria absoluta; 4º) aprovação da se tem sustentado que a consulta popular – em
proposta de emenda constitucional (CF, repartição de município, por exemplo – circuns-
art. 60, § 2º) – maioria de três quintos; creva-se à população que propugna pelo
5º) declaração de procedência de acusa- desmembramento de determinada área. Os
ção de Presidente da República pela Projetos de Lei nº 4.160/89 e nº 4.137/93, com
Câmara dos Deputados (CF, art. 85) – clareza exemplar, corrigem a mencionada
maioria de dois terços; 6º) rejeição de deformação hermenêutica, na mesma linha de
veto – maioria de dois terços (CF, art.
66, § 4º); 7º) eleição do Presidente da 31
FERREIRA, Pinto. Comentários à Consti-
República no primeiro turno (CF, art. 77, tuição brasileira. São Paulo : Saraiva, 1990. v.
§ 2º) – maioria absoluta; 8º) aprovação 2, p. 505.
Brasília a. 33 n. 132 out./dez. 1996 21
pensamento que o eminente jurista Geraldo que desapareceu. A aprovação pelo
Ataliba sustentava: Congresso Nacional é de exigir-se, de
“A interpretação sistemática também lege ferenda e de lege lata, porque, sem
conduz à insuperável necessidade de ela, poderia dar-se que Estados-membros,
serem ouvidas as populações, tanto do facciosos e separatistas, vissem na fusão
município desmembrado quanto do o primeiro passo para supremacia ou
futuro, resultante do desmembramento”. secessão, ou que dualidades partidárias
Sem lugar a dúvida, o plebiscito – com a ou de governo chegassem a subdivisões
função específica prevista no art. 18 e § 3º da como recurso de acordo. Se, nos outros
Constituição Federal – é tão-somente autori- Estados (Estados Unidos da América,
zativo. A Lei Maior é expressa: além da vontade República Argentina), é indispensável tal
favorável da população interessada, impõe-se aprovação, e assim se justifica plenamente
“a aprovação do Congresso Nacional”. Aliás, a regra, na sua parte final, mais ainda
em tudo semelhante ao que determinava a no Brasil que, historicamente, concedeu
Constituição de 1946, em seu artigo 2º : às antigas Províncias que se fizessem
“Os Estados podem incorporar-se Estados-membros, em vez de nascer das
entre si, subdividir-se ou desmembrar-se antigas Províncias”.33
para se anexarem a outros ou formarem Ou seja, como justifica o eminente consti-
novos Estados, mediante voto das tucionalista: “A aprovação pelo Congresso
respectivas assembléias legislativas, Nacional resulta do princípio da federati-
plebiscito das populações diretamente vidade”. 34
interessadas e aprovação do Congresso A Primeira Constituição Republicana, em
Nacional”. seu art. 4º, estabelecia:
Trata-se, portanto, de um ato complexo, “Os Estados podem incorporar-se
como assinala J. Cretella Jr. Ou seja: o plebis- entre si, subdividir-se ou desmembrar-se,
cito é um requisito necessário, mas não sufi- para se anexar a outros ou formar novos
ciente. Na primeira abordagem do tema, parece Estados, mediante aquiescência das
contraditório: recorrer-se ao povo, em consulta respectivas assembléias legislativas, em
plebiscitária – ao povo que é o poder consti- duas sessões anuais sucessivas, e
tuinte originário – e, não obstante, subordinar aprovação do Congresso Nacional”.
sua aprovação à decisão conclusiva do Congres- João Barbalho, o grande comentarista da
so Nacional. Carlos Maximiano, em seus Constituição de 1891, doutrina sobre a questão
Comentários à Constituição Brasileira (1946), em análise da seguinte forma:
referindo-se à questão em análise (art. 2º CF “A reunião de dois ou mais Estados
1946), assim se expressa: para constituir um só (incorporação), a
“O estatuto de 1946 adotou o sistema divisão de algum deles quer para
bastante usado nos domínios do Direito anexação de uma parte de seu território
Internacional – o do plebiscito, ao qual ao de outro, quer para da porção separada
concorram as populações diretamente formar-se um novo Estado, são opera-
interessadas na adoção ou rejeição da ções políticas, que não só entendem com
medida planejada. Vencedora a inovação, o direito dos cidadãos dos Estados a que
nos meios locais, por um dos processos acrescerem ou de que se desmembrarem
indicados, o Congresso Nacional dá a partes ou que se reduzirem a um só, mas
última palavra, votando depois de amplo também interessam à União, de que eles
debate”.32 são membros”. 35
Dando dimensão maior à matéria sobre a Diz ainda o emérito constitucionalista:
qual se está discorrendo, Pontes de Miranda, “Há, em todos os casos deste artigo,
em uma de suas lições de mestre, assim se submissão de cidadãos, do povo, a auto-
pronuncia:
“O plebiscito funciona aí, como 33
MIRANDA, Pontes de. Comentários à
democracia direta, sucedâneo da dupla Constituição de 1946. Rio de Janeiro : Borsoi, 1950.
votação por Assembléias consecutivas, p. 381.
34
Ibidem. p. 380.
32 35
MAXIMIANO, Carlos. Comentários à BARBALHO, João. Constituição Federal
Constituição brasileira, 1946. São Paulo : Freitas brasileira : comentários. Rio de Janeiro : Briguiet,
Bastos, 1954. v. 1, p. 177. 1924. p. 24.
22 Revista de Informação Legislativa
ridades a que dantes não estavam sujeitos vez proclamada a aprovação popular, em ato
e também perda ou acréscimo de território. conclusivo ou em projeto de lei complementar.
E isto envolve ato de soberania; pelo que
torna-se necessária manifestação afirma- 3. Iniciativa popular
tiva da vontade popular. Essa manifes-
tação a Constituição proporcionou fosse
feita por intermédio dos corpos legis- 3.1. Novidade constitucional
lativos dos Estados interessados, e pelo Pela primeira vez, o instituto da “iniciativa
Congresso Federal.”36 popular” se insere na Constituição da República.
Justifica-se, pelo exposto, a interferência do Não obstante sua enorme significação política,
Congresso Nacional nos casos previstos pelo não foi objeto dos Projetos de Lei nº 1748/91 e
art. 18, § 3º – da Constituição de 1988: são nº 4.137/93, além de ter sido tratada nas demais
Estados a alterarem a sua configuração geopo- proposições sem maior criatividade.
lítica, com riscos de uma repercussão direta no O Senador Nelson Carneiro, em seu Projeto
próprio pacto federativo. É legitimo, portanto, de Lei do Senado nº 5/91 – que foi um dos
que o Congresso Nacional diga a última lastros fundamentais do Projeto de Lei nº 3.589/
palavra, desde que as populações diretamente 93 –, destaca que a
interessadas, mediante plebiscito, já tenham “iniciativa popular tem sido um
dado a sua aprovação e tenham sido ouvidas as mecanismo muito disseminado. Nos
respectivas Assembléias Legislativas. Estados Unidos é admitida para leis
Afora razões de ordem política, que locais e estaduais e até se formaram
envolvam a unidade federativa, o surgimento organizações especializadas, transfor-
de novos Estados – por qualquer das modali- mando-a (ou deformando-a) numa
dades previstas na norma constitucional – espécie de lobby profissionalizado. É
demanda a análise de vários aspectos de ordem comum em países capitalistas e socialistas.
administrativa, social, econômica e financeira, Tem sólida experiência na Suíça. No
difíceis de serem avaliados na consulta popular Brasil, tinha escassas práticas localizadas
e que não podem deixar de sê-lo, sob pena de e, antes da Constituição de 1988, não fora
as populações abrangidas se exporem a uma aplicada no âmbito federal”.
aventura danosa a seus interesses. Sem dúvida, José Afonso da Silva – que propugnou pela
essa é uma razão de ser a mais da cautela do adoção da iniciativa popular no âmbito da
legislador constituinte ao impor, além da Comissão Afonso Arinos – lamenta que ela não
consulta plebiscitária, a aprovação do Congresso tenha sido acolhida “em matéria constitu-
Nacional por lei complementar. cional”. O Senador Nelson Carneiro, na justi-
Assim sendo, o plebiscito, em nossas insti- ficativa de sua proposição, dá-nos um
tuições jurídicas, assume duas modalidades: a testemunho valioso:
de ordem geral, que abrange questões de “No processo constituinte de 1987/
relevância e de âmbito nacionais, cuja resposta 88, entre nós, tornou-se um instrumento
popular configura decisão que obriga o Poder de ampla aplicação. Neste processo
Legislativo ou o Poder Executivo; e a de ordem foram formuladas 122 propostas de
específica, que atende às hipóteses previstas no iniciativa popular, das quais 83
art. 18, § 3º, da Constituição Federal, com cumpriram as disposições regimentais
função autorizativa. (mínimo de 30.000 assinaturas e três
Nem o Projeto de Lei nº 3.589/93, oriundo entidades responsáveis) e foram, como
do Senado Federal, nem os que lhe foram apen-
sados na Câmara dos Deputados detiveram-se tais, oficialmente admitidas. Tiveram
na análise dessa dicotomia do plebiscito, influência na redação do texto constitu-
conforme resulta incontornável da Constituição cional”.
de 1988. Se prevalece a tese que venho de A Constituição Federal, ao contrário do
esboçar, a lei que a regulamente deverá silêncio que guardou com as instituições do
contemplar um procedimento comum – em plebiscito e do referendo, traçou as linhas
termos de iniciativa da consulta plebiscitária, fundamentais da iniciativa popular:
mediante decreto legislativo – para ambas as “pode ser exercida pela apresentação à
modalidades plebiscitárias; bifurcando-se, uma Câmara dos Deputados de projeto de lei
subscrito por, no mínimo, um por cento
36
Ibidem. p. 24. do eleitorado nacional, distribuído pelo
Brasília a. 33 n. 132 out./dez. 1996 23
menos por cinco Estados, com não menos 3.2. Doutrina e direito comparado
de três décimos por cento dos eleitores
de cada um deles”. Darcy Azambuja, em sua Teoria Geral do
A iniciativa popular não é instrumento hábil Estado, destaca que:
a que se recorra para a reforma constitucional. “A iniciativa popular aproxima-se
E está contida, como todo o processo legislativo, ainda mais da democracia direta. Pelo
pelas normas de caráter proibitivo da Lei Maior. referendum, a lei elaborada pelo Parla-
No mais, está a serviço da capacidade inova- mento adquire força obrigatória; pela
dora da cidadania. iniciativa popular, o Parlamento é obri-
O Deputado Sigmaringa Seixas, preocupado gado a elaborar uma determinada lei. Se
em dar maior espaço ao conceito de iniciativa um certo número de eleitores se mani-
popular, incorpora à sua proposição normas festa pela necessidade de uma certa lei,
regulamentadoras dos artigos 37, § 3º ; 58, § o Parlamento fica juridicamente obrigado
2º, inciso IV e 197 da Constituição Federal, a discuti-la e votá-la. Geralmente, a lei
assegurando a cada cidadão “o direito de votada pelo Parlamento em consequência
reclamar contra irregularidades na prestação da iniciativa popular é submetida ainda
de serviços públicos”. a referendum”.37
A olhos vistos, a matéria escapa do âmbito A iniciativa popular, conforme o nível de
da iniciativa popular, conforme a conceitua o sua elaboração, classifica-se em : articulada ou
art. 61, § 2º, da Constituição Federal: “A por moção. Na primeira, o projeto subscrito
iniciativa popular pode ser exercida pela pelo povo é apresentado, como é de praxe no
apresentação à Câmara dos Deputados de pro- Legistativo, mediante sucessão de artigos que
jeto de lei”. Trata-se, pois, de um instituto da conformam a proposição; na segunda, isto é
democracia participativa: o povo assumindo a por moção, equivale a uma petição mediante a
iniciativa do processo legislativo. Ora, isso em qual a cidade pleiteia, junto ao Parlamento, a
nada se confunde com o “direito de reclamar elaboração de um projeto de lei sobre assunto
contra irregularidades na prestação de serviços que vai especificado.
públicos”. A iniciativa popular é usual na Suíça, assim
Contudo, da norma constitucional salta uma como o referendum e o voto popular:
dúvida: “A iniciativa popular pode ser exercida “A Constituição Federal de 1874,
pela apresentação de projeto de lei”. De certo pela revisão de 1891, admite a iniciativa
modo, soa como uma prescrição exemplificativa: popular para a sua reforma, mas não a
pode ser exercida por meio de um projeto de obrigou em matéria de leis ordinárias.
lei. Mas, também, acaso pode mediante outro Nos cantões, ao contrário, a iniciativa
procedimento? Ou seja: é dado, ao legislador popular é largamente aplicada na elabo-
ordinário, criar outras modalidades de inicia- ração das leis ordinárias”.38
tiva popular, nos limites do ordenamento Curioso observar que os projetos de lei – de
constitucional. De todo modo, opto – em nome iniciativa popular – podem ser submetidos a
da técnica legislativa – por não misturar alhos referendum, como se o legislador quisesse testar
com bugalhos: os artigos da Constituição até onde a vontade da cidadania respalda
Federal referentes à prestação de serviços determinada proposição. Não disponho de
públicos merecem ser disciplinados à parte do dados atuais, porém recolho o exemplo que
projeto em estudo. figura na mencionada obra de Darcy Azambuja:
Entre as sugestões apresentadas pelo “Em 1920, no cantão de Zurique, o
Deputado José Genoíno – em seu voto em povo reprova por enorme maioria a lei
separado – que a rigor configuram um Substi- do voto feminino, feita na Assembléia
tutivo, merece acolhida pelo seu caráter por iniciativa popular”.39
prudencial a seguinte: Com a mesma ressalva de a referência ao
“projeto de lei de iniciativa popular que fato reportar-se a décadas, refiro-me a outra
atender ao disposto no caput deste artigo aparente resistência a projetos legislativos
não poderá ser rejeitado por vício de oriundos do povo:
forma, cabendo à Câmara dos Deputados, “Na Alemanha, até 1932, foram 7 os
por seu órgão competente, providenciar 37
AZAMBUJA, op. cit. p. 224.
a correção de eventuais impropriedades 38
Ibidem. p. 226.
de técnica legislativa ou de redação”. 39
Ibidem. p. 232.
24 Revista de Informação Legislativa
projetos emanados da iniciativa popular, aguardando o resultado das urnas, quando mais
e somente 2 foram aprovados em não seja por uma questão de economia proces-
referendum, ao passo que de 36 elaborados sual. No caso do referendo, que pressupõe ato
pelo Parlamento, 28 mereceram a sanção legislativo ou administrativo, anteriormente
popular”.40 assentado, o prazo há de ser de uma brevidade
Vale lembrar que a iniciativa popular é um sensata, de modo que se tenham conseqüências,
projeto que tem a respaldá-lo um determinado dificilmente contornáveis, se acaso o povo
número de cidadãos que o subscrevem. Ao ser rejeitar as medidas que lhe forem submetidas à
submetido a referendum, uma vez aprovado no consulta.
Parlamento, está sujeito à análise de um Todo procedimento, aliás, está a reclamar
universo muito mais amplo. É compreensível normas que agilizem a tramitação dos decre-
que certos temas, ainda não acolhidos pela tos legislativos, dada a natureza dos institutos
grande maioria, logrem brechar as eventuais em análise, inclusive o projeto de iniciativa
resistências no Parlamento e ainda não o popular. Mas devem ser definidas mediante
consigam perante as amplas decisões da socie- reforma do Regimento Interno do Congresso
dade. É o caso, suponho, do rechaço ao direito Nacional, mediante projeto de resolução. Como
de voto feminino, ocorrido em Zurique, em bem acentuou o Deputado Aloysio Nunes
1920. Ferreira, Presidente da Comissão de Constituição
Como se vê, a iniciativa popular pode, e Justiça e de Redação, ao ensejo da discussão
exatamente, cumprir o papel vanguardeiro, de meu Parecer, não tem cabida proceder a
como instrumento político que vai rompendo alteração regimental por meio do projeto de lei
as barreiras ou determinados interesses sociais, ordinária, ora em curso. Dado que o Regimento
representativos de privilégios ou de preconceitos. Interno é prerrogativa da Câmara dos Deputados,
Nos Estados Unidos, onde a democracia do Senado Federal ou do Congresso Nacional,
participativa também se desenvolveu ampla- em cada caso respectivo, a espécie normativa
mente, o instituto da iniciativa popular tem a para efetuar a Reforma é o projeto de resolução,
sua presença institucional significativa. Ela que independe de sanção do Presidente da
pode configurar-se como República. Pelo exposto, deixo de incluir no
“iniciativa direta, pela qual o projeto de Substitutivo as regras de tramitação, que hão
constituição ou de lei ordinária contendo de ser apresentadas, a seu tempo, em compe-
a assinatura de um número de eleitores tente emenda ao Regimento Interno do
deve, obrigatoriamente, ser submetido à Congresso Nacional.
deliberação dos eleitores nas próximas
eleições; e iniciativa indireta, que dá ao 4.2. Substitutivo Almino Affonso
Legislativo estadual a possibilidade de
Por tudo quanto se vem de expor, à falta de
discutir e votar o projeto proposto pelos
critérios doutrinários uniformes ou de experi-
eleitores, antes que ela seja submetida à ência nacional que nos possa guiar, evocando
aprovação popular”.41 o conselho de Gládio Gemma, considero legí-
timo que, livremente, sem peias conceituais,
4. Procedimento regimental adotemos o que nos pareça mais adequado ao
avanço da democracia participativa entre nós.
4.1. Regimento Comum do Substitutivo ao Projeto de Lei nº
Congresso Nacional 3.589/93
O Congresso Nacional decreta:
A definição dos prazos, a que se devem Art. 1º – A soberania popular é
conter os autores, na iniciativa de consulta exercida por sufrágio universal e pelo
plebiscitária e de referendo é de uma relevância voto direto e secreto, com valor igual para
que salta aos olhos. No plebiscito, tudo está em todos, nos termos desta lei e das normas
que, ao ser formalizado, tenha o condão de constitucionais pertinentes, mediante:
sustar a tramitação de projeto legislativo ou de I) plebiscito;
medida administrativa que se relacione direta- II) referendo;
mente com o objetivo da consulta popular, III) iniciativa popular.
Art. 2º – Plebiscito e referendo são
40
Ibidem. consultas formuladas ao povo para que
41
DALLARI, op. cit., p. 136. delibere sobre matéria de acentuada
Brasília a. 33 n. 132 out./dez. 1996 25
relevância, de natureza constitucional, Federal e dos Municípios, o plebiscito e
legislativa ou administrativa. o referendo serão convocados de confor-
§ 1º – O plebiscito é convocado com midade com a Constituição Estadual ou
anterioridade a ato legislativo ou admi- respectiva Lei Orgânica.
nistrativo, cabendo ao povo, pelo voto, Art. 7º – Nas consultas plebiscitárias
aprovar ou denegar o que lhe tenha sido previstas nos artigos 4 º e 5º entende-se por
submetido. população diretamente interessada tanto
§ 2º – O referendo é convocado com a do território que se pretende desmembrar,
posterioridade a ato legislativo ou admi- quanto a do que sofrerá desmembramento;
nistrativo, cumprindo ao povo a respec- em caso de fusão ou anexação, tanto a
tiva ratificação ou rejeição. população da àrea que se quer anexar
Art. 3º – Nas questões de relevância quanto a da que receberá o acréscimo; e a
nacional, de competência do Poder vontade popular aferir-se-á pelo percen-
Legislativo ou do Poder Executivo, o tual que se manifestar em relação ao total
plebiscito e o referendo são convocados da população consultada.
mediante decreto legislativo, por Art. 8º – Aprovado o ato convocatório,
proposta de um terço, no mínimo, dos o Presidente do Congresso Nacional dará
membros que compõem qualquer das ciência à Justiça Eleitoral, a quem
Casas do Congresso Nacional, de incumbirá, nos limites de sua circuns-
conformidade com esta lei. crição:
Art. 4º – A incorporação de Estados a) fixar a data da consulta popular;
entre si, subdivisão ou desmembramento b) tornar pública a cédula respectiva;
para se anexarem a outros, ou formarem c) expedir instruções para a realização
novos Estados ou Territórios Federais do plebiscito ou referendo;
dependem da aprovação da população d) assegurar gratuidade aos partidos
diretamente interessada, por meio de políticos, nos meios de comunicação de
plebiscito, e do Congresso Nacional, por massa concessionários de serviço público,
lei complementar, ouvidas as respectivas para a divulgação de seus postulados
Assembléias Legislativas. referentes à matéria em questão.
§ 1º – Proclamado o resultado da Art. 9º – Convocado pelo plebiscito,
consulta plebiscitária, sendo favorável à o projeto legislativo ou medida adminis-
alteração territorial acima prevista, o trativa não-efetivada, cujas matérias
projeto de lei complementar respectivo constituam objeto da consulta popular,
será proposto perante qualquer das Casas terá sustada sua tramitação, até que o
do Congresso Nacional. resultado das urnas seja proclamado.
§ 2º – À Casa perante a qual tenha Art. 10 – O plebiscito ou referendo,
sido apresentado o projeto de lei convocado nos termos da presente lei,
complementar, referido no parágrafo será considerado aprovado ou rejeitado
anterior, compete proceder a audiência por maioria simples, de acordo com o
das respectivas Assembléias Legislativas. resultado homologado pelo Tribunal
§ 3º – O Congresso Nacional, ao
aprovar a lei complementar, tomará em Superior Eleitoral.
conta os aspectos administrativos, finan- Art. 11 – O referendo pode ser
ceiros, sociais e econômicos dos Estados convocado no prazo de trinta dias, a
ou Territórios afetados. contar da promulgação de lei ou adoção
Art. 5º – O plebiscito, em caso de de medida administrativa que se rela-
criação, incorporação, fusão e desmem- cione de maneira direta com a consulta
bramento de Municípios, será convoca- popular.
do de acordo com os requisitos previstos Art.12 – A tramitação dos projetos
em lei complementar estadual e aprova- de plebiscito e referendo obedecerá às
do pela população diretamente interes- normas do Regimento Comum do
sada, preservando-se a continuidade e a Congresso Nacional.
unidade histórico-cultural do ambiente Art. 13 – A iniciativa popular
urbano. consiste na apresentação de projeto de
Art. 6º – Nas demais questões, de lei ordinária à Câmara dos Deputados,
competência dos Estados, do Distrito subscrito por, no mínimo, um por cento
26 Revista de Informação Legislativa
do eleitorado nacional, distribuído pelo Com a devida vênia, o eminente jurista não
menos por cinco Estados, com não menos alongou a visão além do horizonte. Começo
de três décimos por cento dos eleitores assinalando o fato de que a Constituição Federal
de cada um deles. – como nenhuma outra, de quantas pude
§ 1º – O projeto de lei de iniciativa compulsar –, ao cimentar os princípios funda-
popular deverá circunscrever-se a um só mentais em que se apóia, proclamou como
assunto. enunciado básico: “Todo poder emana do povo,
§ 2 º – O projeto de lei de iniciativa que o exerce por meio de representantes eleitos
popular não poderá ser rejeitado por vício ou diretamente, nos termos desta Constituição”
de forma, cabendo à Câmara dos Depu- (art. 1º, parágrafo único, Constituição Federal).
tados, por seu órgão competente, provi- A democracia representativa abre espaço à
denciar a correção de eventuais impropri- participação direta do povo, o que significa
edades de técnica legislativa ou de redação. verdadeira revolução política.
§ 3º – É vedada a iniciativa popular É certo que, na prática de nossos dias, pela
nas matérias da competência exclusiva inorganicidade social que ainda nos caracteriza,
do Presidente da República, do Poder os instrumentos da democracia participativa,
Legislativo e do Poder Judiciário. recém-incorporados ao ordenamento constitu-
Art. 14 – A Câmara dos Deputados, cional, parecem esgotar-se em simples decla-
verificando o cumprimento das exigências ração. Prefiro, no entanto, entrevê-los no
estabelecidas no art. 13 e respectivos amanhã quando os homens – sem a prevalência
parágrafos da presente lei, dará segui- dos privilégios da minoria – “se comunicarem
mento à iniciativa popular, consoante às instantaneamente, mediante sistemas integra-
normas do Regimento Interno. dos que lhes captem a opinião, o próprio voto”.43
Art. 15 – Esta lei entrará em vigor Sei que pode parecer utópico. Contudo, eu
na data de sua publicação. me pergunto:
Art. 16 – Revogam-se as disposições “O caráter excludente da tecnologia,
em contrário. pelo elitismo que encarna, não estará em
algum tempo mais se transformando em
espaço aberto à participação política?
5. Conclusão Supondo que a tecnologia torne possível
Pinto Ferreira, referindo-se às instituições o cenário entrevisto, é hora de ir apri-
do plebiscito, do referendo e da iniciativa morando as instituições políticas, ao
popular, ponderou que a “Constituição Brasi- menos para que, no momento oportuno,
leira de 1988 permitiu uma pequena infiltração o descompasso entre técnica e política
da democracia direta”.42 não seja tão grande”.44

43
AFFONSO, Almino. Parlamentarismo,
governo do povo. São Paulo : Letras e Letras, 1993.
p. 182.
42 44
FERREIRA, op cit., p. 188. Ibidem. p. 182.
Brasília a. 33 n. 132 out./dez. 1996 27

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