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A China no Walmart

Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 20 de junho de 2005

Para saber quanto a intelligentzia brasileira está por fora do que se passa no mundo, basta uma visita ao
Walmart em qualquer cidadezinha americana.

Setenta por cento dos produtos aí vendidos são chineses. Os dados são da revista China Business Weekly .
“Se o Walmart fosse um país” – escreve Ted C. Fishman no seu recente livro China, Inc ., “seria o quinto
maior mercado exportador da China, acima da Alemanha e da Inglaterra”.

E não é só no Walmart: em todos os supermercados populares dos EUA, é difícil encontrar algum móvel
ou eletrodoméstico barato, com marca americana, que não seja fabricado na China.

Nenhum cidadão americano ignora o que isso significa: 2.900.000 vagas perdidas nas fábricas e a atrofia
das velhas cidades industriais como Detroit, Cleveland, Allentown, Bethlehem e Pittsburgh. Alguns
estudiosos de estratégia militar, como Jeffrey Nyquist – um dos homens mais inteligentes da América --
vão um pouco além: sabem que os fregueses da rede mais barateira de supermercados da América estão
financiando o crescimento da máquina de guerra chinesa, cujo objetivo explícito, já reiterado mil vezes
em publicações militares da República Popular da China, é a destruição dos EUA (explicarei mais sobre
isto nas próximas semanas). Essa máquina aumenta dia a dia seu estoque de bombas atômicas, num ritmo
jamais conhecido pelos EUA e pela URSS durante a Guerra Fria, e investe maciçamente na produção de
armas biológicas cujo estoque atual já seria suficiente para infectar toda a população americana em
questão de horas. E, quando os estrategistas advertem que o gasto americano com produtos chineses
fomenta o crescimento de um inimigo potencial, eles não se referem apenas ao ganho implícito que as
forças armadas de qualquer país têm quando a economia nacional cresce. O Exército é o principal
capitalista da China: ele lucra diretamente com a venda de cada TV, tocador de CD ou telefone celular
que as fábricas chinesas vendem no exterior. E ganha em dobro, pois ao lucro se soma a verba que o
governo chinês recolhe em impostos e repassa às forças armadas. Em dobro, não: em triplo, porque,
quanto mais os produtos chineses fazem sucesso nos EUA, mais investimentos americanos vão para as
empresas chinesas, isto é, para o Exército chinês.

É sobretudo graças à ajuda americana que a China cresce num ritmo capaz de fazer dela em 2012 a maior
potência industrial e em 2050 a maior economia do mundo.

Nada disso, é claro, resulta em benefício considerável para o povo chinês. Em volta de cinco cidades que
prosperam em ritmo alucinante, estende-se um continente de misérias que o público ocidental mal pode
imaginar. O salário de um trabalhador na China é cinco vezes menor que no México. E não pensem que
os serviços públicos – a desculpa máxima do socialismo -- equilibrem a baixa remuneração. Os hospitais
chineses, todos do governo, não fazem um parto, não engessam um braço, não arrancam um dente sem
enviar a conta no fim do mês. A rede de água e esgotos é péssima em todo o interior, e a dificuldade de
sobrevivência para as famílias camponesas é tanta que o governo se torna cúmplice delas na chamada
“guerra contra as meninas”: o hábito de jogar as recém-nascidas aos porcos (e depois comer os porcos, é
claro). A prosperidade chinesa não se assenta só na cegueira americana, é claro, mas na polícia política
onipresente, no trabalho escravo, na esterilização forçada de milhões de mulheres e na perseguição
maciça das minorias, especialmente religiosas (o número de cristãos assassinados pelo governo chega a
vinte mil por ano). À violência e à crueldade de um Estado policial soma-se a sem-vergonhice
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institucionalizada: dos lucros da indústria chinesa, 50 bilhões de dólares anuais são em produtos
falsificados.

Também não caiam na esparrela de imaginar que toda essa quantidade monumental de sofrimento
humano tenha servido ao menos para preservar uma cultura milenar. A “Revolução Cultural” de Mao
Tsé-tung devastou a cultura tradicional da China mais do que poderia tê-lo feito uma ocupação
estrangeira. E o que sobrou foi totalmente deformado pelas reinterpretações oficiais que, incrivelmente,
trataram de dar um sentido materialista aos clássicos da espiritualidade chinesa. Hoje, nas universidades
de Pequim, é impossível encontrar um estudioso que compreenda o sentido do taoísmo ou o simbolismo
do I-Ching. Se estudiosos ocidentais como René Guénon e Marcel Granet não tivessem preservado esses
conhecimentos, o tesouro espiritual chinês estaria irremediavelmente perdido para a humanidade.

Ciência e tecnologia também não ganham nada com o investimento americano na China. A maior parte
dos conhecimentos chineses nessa área é simplesmente comprada em Nova York ou na Flórida e copiada
com a maior cara-de-pau. O que não se pode comprar em loja obtém-se por espionagem – às vezes sob a
proteção do próprio governo americano, como aconteceu no caso do laboratório nuclear de Los Alamos,
onde o presidente Clinton em pessoa mandou bloquear as investigações (nada mais lógico, aliás, uma vez
que empresas estatais chinesas tinham contribuído substantivamente para a sua campanha eleitoral).

Como foi possível que tanto dinheiro americano fluísse para alimentar essa monstruosidade?

O nome do culpado é “globalização”. E é olhando as coisas desse ponto de vista que se percebe a total
alienação da mídia brasileira e principalmente dos intelectuais iluminados que a freqüentam com suas
lições de sabedoria. “Globalização”, para essa gente, é sinônimo de Império Americano. Nos nossos
debates públicos, o triunfo da doutrina do livre mercado na década de 90 é apresentado invariavelmente
como um artifício maquiavélico inventado por estrategistas de Wall Street para implantar no mundo o
american way of life . Alguns desses estrategistas, de fato, alegavam que a abertura das fronteiras
comerciais espalharia a democracia americana no mundo. Mas outros alertavam que a simples liberdade
econômica não poderia operar essa mágica, sobretudo se adotada no ar, em abstrato, fora de um enfoque
geopolítico que levasse em conta, para além da concorrência empresarial, a concorrência estratégica entre
os Estados. A abertura econômica da China, diziam, era perfeitamente compatível com a continuidade da
ditadura comunista e de uma política exterior agressiva, militarista e expansionista. Este lado do debate
americano foi inteiramente ignorado pela nossa mídia: raciocinando exclusivamente na base do
estereótipo Estado versus mercado, que se tornou o fetiche máximo do pensamento esquerdista nacional,
ela identificou a priori o dogma do livre mercado com o interesse nacional americano, vendo uma
convergência justamente onde os melhores analistas americanos viam uma contradição. A relação entre
liberdade de mercado e interesse nacional é ambígua, para dizer o mínimo, e se torna altamente
problemática quando não há reciprocidade suficiente na abertura dos mercados de parte a parte, isto é,
quando um dos Estados aposta tudo na liberdade econômica e o outro no crescimento do poder nacional,
usando como arma a abertura oferecida pelo outro. A abertura econômica é fórmula boa para as relações
entre povos comerciantes. Mas, entre o comerciante e o guerreiro, a vantagem a favor deste último é
esmagadora. No romance de Flaubert, Salammbo , dois mercenários conversam sobre o que planejam
fazer quando a guerra entre Roma e Cartago acabar. Um deles sonha comprar uma fazenda e um arado,
para enriquecer no comércio de alimentos. O outro responde que não precisa de nada disso para
enriquecer. Mostrando a espada, diz: “Este é o meu arado.” Tal é a diferença entre americanos e chineses:
os primeiros apostam no sucesso de um sistema econômico; os segundos usam esse sucesso como meio
provisório para crescer e vencer no campo das armas. Os americanos querem apenas dinheiro, e se iludem
pensando que os chineses querem o mesmo. Os chineses alimentam essa ilusão, apostando que ela os
ajudará a obter o que querem: o dinheiro e tudo o mais – a completa destruição cultural, política, militar e
econômica do inimigo. No começo, as apologias abstratas do livre mercado tendiam a encobrir essa

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diferença. Hoje ela é patente aos olhos de todos, e é nela, exclusivamente nela, que reside a causa do
crescimento inusitado da China, paralelamente ao enfraquecimento da indústria americana.

As relações entre ideologia e poder são obviamente mais complexas do que as concebe a vã filosofia das
classes falantes brasileiras. O que um observador atento aprende no Walmart é que a doutrina do
capitalismo liberal pode ajudar a liquidar o capitalismo liberal, fomentando o crescimento de uma
ditadura comunista tão agressiva, pelo menos, quanto a antiga URSS.

Disponível em: http://www.olavodecarvalho.org/semana/050620dc.htm. Acessado em: 06, abril de 2017,


às 23h23min.

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