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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

TRABALHO FINAL DA DISCIPLINA MU056 – TÓPICOS ESPECIAIS EM MÚSICA

A ESCRITURA INSTRUMENTAL EM AMBIENTE DE LIVE-ELECTRONICS NA


PEÇA “ESPAMOS”

ALUNO: VINICIUS CESAR DE OLIVEIRA

DOCENTE: PROF. DR. JOSÉ HENRIQUE PADOVANI


Introdução

“Espasmos” foi composta entre novembro de 2016 e abril de 2017 e dedicada ao


trombonista Daniel Soares. A obra trabalha com a ideia da proliferação de pequenos impulsos
ou gestos executados pelo trombone, através da eletrônica em tempo real. O material
melódico do trombone passa por contrações e dilatações, as quais são capturadas pela
eletrônica e espacializadas em quatro canais ao redor do publico. O título da obra vem da
presença desses gestos e impulsos operados pelas constantes contrações temporais e
melódicas pela qual o material musical passa.
Nesta peça a eletrônica exerce função de interação em três níveis composicionais:
espectral, estrutural e espacial. Espectral no sentido de haver a manipulação em tempo real
do espectro do som do trombone através dos processamentos; estrutural, pois a ultima sessão
da obra é construída totalmente pelos sons instrumentais processados pela eletrônica; e
espacial pela projeção de tais sons no espaço quadrifônico.
No entanto, a escrita instrumental se dá através da constituição de um material
harmônico-melódico proveniente de uma melodia de Gesualdo, a qual passou pelas redes
harmônicas de Pousseur afim de gerar um novo material. Esse novo material ainda foi
submetido à algumas variações dentro de seu espaço melódico1, sendo contraído e dilatado
em diferentes registros afim de criar variabilidade, porém sem perder sua relação intervalar.
Já a eletrônica em tempo real consiste em sete tipos de processamentos do som do trombone:
delay espectral, freeze, harmonizer, harmonizer + time stretch, processamento granular e
time stretch + processamento granular, ainda foram atribuídas para cada processamento,
diferentes trajetórias espaciais.


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O conceito de espaço melódico aplicado neste contexto vem do pensamento de Pousseur, quando classifica a
organização de um certo dado harmônico em quatro categorias, sendo uma delas denominada espaço melódico.
“É aqui que se constitui o espaço fictício no qual as escalas musicais permitem que nos movamos, onde podemos
ascender, descer, efetuar passos de diversas grandezas, medir entre pontos diferentes distâncias de variações
consideráveis” (POUSSEUR, 2009, p.177) Ao falar em espaço fictício, Henri Pousseur refere-se à essência da
melodia, a espacialidade dos intervalos, distância espacial entre uma nota e outra.
Materiais harmônicos

Para gerar material harmônico, foram usadas duas das principais técnicas da
segunda metade do século XX: redes harmônicas de Pousseur e a multiplicação de acordes
de Boulez. As redes harmônicas é uma técnica de estruturação de alturas e surge da vontade
do compositor de “rimar” Monteverdi com Webern, muito por consequência de uma crítica

ao serialismo pós-werberiano, no qual o próprio Pousseur fazia parte.


“como conseguir fazer “rimar” numa mesma composição uma citação de Gluck ou
Monteverdi com uma de Webern (dois domínios gramaticais que me pareciam até
então exatamente opostos e praticamente incompatíveis), como conseguir
“conjugá-los”, encontrar-lhes funções comuns, e, para começar, estabelecer entre
eles uma série de tipos intermediários suscetíveis de convencer o ouvido musical
de que pertenceriam a um mesmo domínio mais geral?” (POUSSEUR, 2009b, p.
194)
Tal técnica consiste da constituição de malhas ou redes harmônicas e da projeção
de estruturas intervalares nessas redes, em referencialidade histórica. Como resultado, tem-
se a possibilidade de transformar constituições intervalares de modo orgânico, conservando-
se o perfil original e assim construindo um elo. O primeiro material para esta peça foi gerado
a partir da melodia inicial (cantada pelo soprano) do madrigal Se La Mia Morte Brami, de
Gesualdo.
Localização da melodia de Gesualdo em sua rede harmônica

Projeção da melodia de Gesualdo na rede transformada





Como pode ser observado nas imagens acima, primeiramente a melodia de
Gesualdo foi projetada em uma rede harmônica composta por eixos de oitavas, quintas e
terças menores, os quais conseguem comportar a estrutura do material a ser manipulado de
forma a representa-lo. Em seguida tais eixos foram distorcidos, os de oitava passaram ser
sétimas maiores, os de quinta transformaram-se em quartas justas e os de terça menor foram
mantidos, dessa forma obtemos um novo material, porém, mantendo-se certas características
do original, como mostra a figura abaixo.

O próximo passo foi dividir o aglomerado gerado pela rede harmônica em dois
outros aglomerados e aplicar a multiplicação de Boulez afim de expandir o acorde e gerar
um aglomerado mais complexo.
Construção do material inicial

Para gerar o material incial da obra, tomou-se como pondo de partida o


aglomerado gerado pela multiplicação de acordes e transpondo-o de forma cíclica gerando
assim uma série de 85 notas, as quais foram organizadas em perfis melódicos de acordo com
a tessitura do trombone, como mostra a figura abaixo.

No que diz respeito à parte rítmica, a organização se deu de acordo com um


processo de sobreposições de estruturas relacionadas a diferentes parâmetros: 8 formulas de
compasso, todas preenchidas apenas com colcheias; 5 quiálteras de diferentes valores: 4, 5,
8, 3, 2; ligaduras localizadas na terceira, segunda e quartas notas de cada compasso e por fim,
pausas na segunda, quarta e quinta notas de cada compasso. Cada uma dessas estruturas se
desloca de forma cíclica durante 24 compassos até começar a se repetir, dessa forma criando
uma espécie de espiral com a proporção 24:8:5:3:2.
Com a estrutura rítmica e o material hamonico-melodico organizados, o passo
seguinte foi criar gestos que se comportassem como pares de oposição. Legato e stacato,
periódico e aperiódico, nota e apogiatura, ralentando e acelerando, nota longa e nota curta,
etc. Sendo assim, a peça foi composta a partir de variações desse material inicial exposto
abaixo.

Live-Electronics

Para a parte eletrônica foi elaborado um patch em Max/MSP, capaz de operar


sobre os sete tipos de processamento do som do trombone, a saber, delay espectral, freeze,
harmonizer, harmonizer + time stretch, processamento granular e time stretch +
processamento granular. Para a captura do som instrumental existe uma entrada de sinal
(microfone), na qual é conectada a todos os processamentos contidos no patch, além de
também estar conectada direto à um reverb afim de equilibrar o som do trombone puro (sem
nenhum processamento) com os sons processados. Para cada processamento existe um slider
de controle de ganho antes do sinal passar para o subpatch de espacialização. Dessa forma,
foi implementado um botão que liga, desliga e reseta cada processamento, esses botões foram
vinculados cada um a uma tecla do computador, assim facilitando sua operação. O patch
ainda conta com um botão que liga e desliga o áudio geral e outro que oferece três opções de
espacialização (estéreo, quadrifônico e octofônico). Abordaremos agora o funcionamento de
cada processamento.

Ressonador: Criado a partir de um patch de modelagem física do som de uma


corda pinçada (karplus Strong), esse subpatch foi alterado, substituindo a simulação de um
ataque pinçado na corda pelo som que entra pelo microfone. Dessa forma o trombone passa
a ser o excitador que faz as cordas vibrarem. Como ressonância do ataque, aqui temos cinco
frequências: 121 Hz, 212 Hz, 165 Hz, 264 Hz e 243 Hz. O sinal ainda passa por reverb interno
e é mandado ao subpatch de espacialização, como mostra a figura abaixo.
Delay espectral: Esse subpatch utiliza FFT para dividir o sinal de entrada em
uma série de bandas de frequência discretas e aplicar um atraso em cada uma delas de forma
individual. Neste patch o coeficiente de delay e de feedback são operados de forma
randômica. No fim, todo o sinal processado ainda passa por uma linha de atraso de 2 segundos
antes de ser enviado às saídas.
Freeze: Este subtpatch assim como o anterior utiliza FFT para operar o sinal no
domínio da frequência e assim ser capaz de capturar frames do som. É possível sobrepor até
oito sons capturados.

Harmonizer: Composto por oito pitch shifter, esse subpatch utiliza o objeto
gzimo~ dentro de um subpatch que calcula FFT. Gzimo~ implementa um pitch shifter no
domínio da frequência. Este objeto funciona através de uma análise dos bins de frequência
de um sinal passando por FFT, encontrando os picos no espectro e deslocando-os no eixo da
frequência e assim transpondo o som. Esse processamento possui seis tipos de multiplicação
intervalar, o primeiro transpõe para as notas Sib, Dó, Mi, Fá#, Ré, Si, Ré# e Fá, ou seja, são
as oito primeiras notas do material harmônico-melódico do trombone. A partir do segundo
preset o harmonizer vai contraindo e expandindo os intervalos em relação às oito primeiras
notas do material original do trombone. Para isso calcula-se a distância em semitons da
frequência mais grave até a mais aguda contidas no material do trombone, após isso é
definido um âmbito para alocar o material distorcido, calcula-se então a razão entre esse
âmbito, em seguida faz-se a raiz da distância entre frequência grave e aguda, multiplicada
pela razão entre o âmbito escolhido, como resultado tem-se o coeficiente que equivale ao
semitom dentro do âmbito escolhido. Portanto, se multiplicarmos cada frequência do material
original pelo coeficiente temos a projeção do material original em outro espaço melódico,
seja ele dilatado ou contraído. Portanto, além do primeiro preset que transpõe o som
instrumental para as notas do material original, temos o segundo que transpõe dentro de um
âmbito de sétima maior (Mi3 até Ré#4); o terceiro, sexta maior (Fá4 até Ré5); quarto preset,
oitava + sétima (Ré5 até Dó7); quinto, trítono (Sol4 até Ré#5) e sexto, oitava + terça (Ré#4
até Sol4).

Harmonizer + time stretch: Esse subpatch é uma combinação de dois


processamentos, time stretch que passa pelo harmonizer. O processo de time stretch se dá
gravando o som do trombone em um buffer e logo em seguida o reproduzindo com
velocidade alterada e então passando pelo harmonizer. Ainda foi adicionado um oscilador
com baixa frequência afim de modular a amplitude do sinal processado.
Processamento granular: Trata-se de um processamento de tipo granular em
tempo real, onde captamos o som do instrumento e cortamos em pequenos grãos antes de
enviar ao subpatch de espacialização. Aqui temos o controle de dois parâmetros: tamanho do
grão e sua altura.
Time stretch + processamento granular: Aqui temos novamente a junção de
dois processamentos: time stretch e processamento granular. O som do trombone é gravado
em um buffer e imediatamente começa a ser reproduzido com velocidade alterada, em
seguida passo pelo granulador e é mandado para a espacialização.

Espacialização: A espacialização dos sons processados pode ser feita em


estéreo, quadrifônica ou octofônica. Cada processamento está vinculado à um tipo de
trajetória espacial, sendo duas randômicas, duas circulares e três senoidais. Para cada
trajetória existe um subpatch, o qual desenha a representação de sua trajetória no objeto LCD,
mandando as informações de eixo x e y para outro subpatch que controla faders e por fim
enviando para os canais de saídas.

Considerações finais

Nesta peça, a eletrônica em tempo real age diretamente em três níveis estruturais,
o primeiro é o espectral, onde trabalha de forma a alterar o espectro do som instrumental com
base no material harmônico e melódico, seja na expansão e contração do mesmo, assim
desdobrando características especificas e gerando aglomerados densos, seja na criação de
linhas de delays em bandas de frequência, ou mesmo na granulação do som do trombone. No
nível estrutural e formal, a eletrônica ao interagir com a escritura instrumental acaba por gerar
uma estrutura formal, onde os processamentos ativados na penúltima sessão da peça se
desdobram ao ponto de criar uma outra sessão, ou seja, este tipo de interação opera no nível
macroestrutural e formal da obra. E por fim, o nível espacial, o qual todos os sons processados
são espacializados compondo um espaço sonoro através de trajetórias.
Bibliografia

BITTENCOURT, M, A. Um modelo computacional das teorias de Edmond Costère e da


teoria de conjuntos implementado em uma ferramenta analítica em PHP.Universidade
estadual de Maringá.
COSTÈRE, Edmond. Lois et Styles des Harmonies Musicales. Paris: Presses Universitaires
de France, 1954.

COSTÈRE, Edmond. Mort ou Transfigurations de l'Harmonie. Paris: Presses Universitaires


de France, 1962.

LAUTMAN, A. Essai sur les notions de structure et d’existence en mathematique. In:


Les mathématiques, les idées et le réel physique, Paris, Vrin, 2006.

LOSADA, C. Between Modernism and Postmodernism: Strands of Continuity in College

Compositions by Rochberg, Berio and Zimmermann. In Music Theory Spectrum. 2009.

POUSSER, Henri. Apoteose de Rameau e outros ensaios. Sao Paulo: Editora Unesp, 2009.

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