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Sto.

Tomás, a vaca voadora e nós


OLAVO DE CARVALHO (1)

Caderno de Cultura do IDEAS – Instituto de Estudos e Ações Sociais – da UniverCidade. Ano I, número I,
Outubro de 2001.

A Antônio Donato Rosa e Júlio Fleichman.

Nenhum historiador profissional do mundo aceita hoje em dia a lenda setecentista que deprecia a Idade Média
como “Idade das Trevas”, mas ela continua firmemente arraigada no credo universitário brasileiro e é
repassada de geração em geração por sociopatas militantes e analfabetos funcionais aos quais um abuso de
linguagem confere o estatuto de intelectuais acadêmicos.

Só isso já bastaria para ilustrar a imensidão do abismo mental que se alarga dia a dia entre as nações cultas e
aquelas onde a negligência ou cumplicidade dos governantes permitiu que as instituições de ensino fossem
monopolizadas por propagandistas e demagogos a serviço de grosseiras ambições de poder.

O discurso de depreciação da Idade Média foi criado por beletristas e agitadores do século XVIII como
expediente de ocasião para a propaganda anti-religiosa, destinada a minar as bases morais e ideológicas da
monarquia. Malgrado a imensa penetração que obteve na mitologia popular, graças ao respaldo de toda sorte
de organizações políticas e sociedades pseudo-iniciáticas, o fato é que ela jamais existiu como teoria histórica
aceitável nos meios científicos e hoje subsiste apenas em círculos de ativistas semiletrados do Terceiro Mundo,
à margem das correntes vivas do pensamento mundial.

No Brasil ou na Zâmbia, “medieval” ainda pode ser usado como termo pejorativo nas polêmicas da mídia,
mas quem quer que se deixe impressionar por isso mostra que é escravo de uma atmosfera mental provinciana,
sem a mínima abertura para o horizonte maior da cultura universal.

Em contrapartida, não há estudioso sério que hoje possa contestar a afirmação de Schelling, segundo a qual a
transição da filosofia medieval para a atmosfera moderna inaugurada por Descartes assinala a queda do
pensamento filosófico para um nível pueril. (2)

Essa queda revela-se da maneira mais escandalosa na simples perda da técnica filosófica cujo domínio
distingue o filósofo do beletrista e do ideólogo.

A longa prática da disputatio nas universidades havia dotado os intelectuais europeus de uma habilidade lógica
extraordinária, capaz de apreender num relance o sentido dos conceitos, a distinção entre vários níveis de
abordagem, os pressupostos embutidos nas discussões, o senso das relações entre a parte e o todo, a hierarquia
de credibilidade das premissas, enfim, todas as condições indispensáveis para uma investigação filosófica
consistente.

De repente, tudo isso se perdeu. Descartes, malgrado sua alegação de aprendizado escolástico, recai em erros
lógicos primários que nenhum estudante medieval cometeria, como o de não perceber que uma noção puntual
do ego pensante é um conceito abstrato e não uma intuição direta. (3)

O show de inépcia prossegue ao longo de dois séculos com a disputa de racionalistas e empiristas, que qualquer
escolástico treinado resolveria em vinte minutos.

Malgrado a introdução meritória de novos temas e a persistência de alguma habilidade escolástica notada em
casos esparsos, o ciclo filosófico moderno é em geral de uma grosseria sem par e o pouco que dele se aproveita
reside precisamente nos sistemas que, nadando a contracorrente, conservam o essencial do legado escolástico,
como é o caso dos de Leibniz e Schelling. Não por coincidência, esses sistemas foram os que encontraram
menos compreensão entre seus contemporâneos, tendo de esperar o século XX para que o mundo acadêmico
percebesse sua importância incomum.

Também não é de estranhar que, em plena ascensão do estilo moderno, algumas antecipações geniais feitas
pelos escolásticos remanescentes, especialmente na Espanha e em Portugal – como a teorização da economia
de mercado dois séculos antes de Adam Smith e a formulação do indeterminismo físico três séculos antes de
Heisenberg -, passassem completamente despercebidas, enquanto a moda mecanicista, hoje totalmente
desmoralizada, posava como a encarnação mesma do espírito científico em oposição às “trevas” escolásticas.

Tudo isso revela o quanto a história da filosofia, como a história de tudo o que é humano, está sujeita a
oscilações inteiramente irracionais e fortuitas, e o quanto é imprudente tentar enxergar na sucessão temporal
das filosofias algo como uma progressiva vitória da luz sobre as trevas. Habet mundus iste noctes suas, “este
mundo tem suas noites”, dizia S. Bernardo de Clairvaux, e nada o ilustra melhor do que as crises de regressão
e de esquecimento que pontilham a história da filosofia, obrigando cada geração de estudiosos a desencavar
dos escombros os tesouros que suas antecessoras, imbuídas da ilusão de estar no pináculo da evolução humana,
atiraram ao esquecimento.

Um desses tesouros, ciclicamente esquecido e reencontrado, sempre diferente a cada reencontro, é a filosofia
de Sto. Tomás de Aquino.

O que ela tem a dar ao mundo de hoje já não coincide exatamente com aqueles aspectos seus que foram
trazidos à luz pelo renouveau tomista inspirado pelo Papa Leão XIII. O neotomismo do século XX, com todas
as contribuições esplêndidas que trouxe à reconquista de uma perspectiva cristã na filosofia, talvez constitua,
hoje em dia, até mesmo um obstáculo a uma tomada de consciência dos ângulos da filosofia tomística que
mais urgentemente a atual geração necessita redescobrir.

Mas algumas outras dificuldades, mais elementares, se apresentam desde logo ao estudante que se aventura
nas páginas de Sto. Tomás. Examinarei aqui duas delas.

A primeira é que a filosofia de Tomás não pode ser facilmente resumida em alguma fórmula como “Penso,
logo existo”, “Todo o real é racional e todo o racional é real” ou “A existência precede a essência”, com que
o público moderno se acostumou a gravar na memória a imagem vulgar dos sistemas mais badalados.
Nenhuma filosofia verdadeiramente grande se deixa aprisionar nesses rótulos. Eles servem para condensar
universos filosóficos pobres ou fictícios – pobres como o de René Descartes ou fictícios como os de Hegel e
Sartre –, mas não servem para Aristóteles, Leibniz, Schelling ou Husserl, cujos sistemas não se fecham nas
fórmulas de uma geometria imaginária mas permanecem abertos à complexidade do real vivente, cheio de
surpresas. Também não servem para Tomás de Aquino, pela mesmíssima razão. É relativamente fácil
conceber, a partir de certas fórmulas resumidas, o que Descartes ou Hegel teriam dito sobre isto ou aquilo
quando não se conhece o que disseram efetivamente. Mas o que Tomás tem a dizer não é nunca inteiramente
previsível, porque seu sistema tem a complexidade orgânica de uma criação da natureza, que não é linearmente
coerente mas contém sempre incoerências superficiais absorvidas numa coerência mais profunda.

Essa dificuldade leva muitos estudiosos a simplificar o pensamento do grande santo, espremendo-o numa
logicidade um tanto estereotipada que, se o torna mais digerível desde os princípios do próprio intérprete –
freqüentemente mais interessado numa apologética paroquial do que em filosofia -, acaba por eliminar a
variedade e o elemento surpresa que constituem um dos encantos maiores da obra tomística.

Um exemplo característico é a eliminação habitual do componente astrológico, essencial à obra e à sua


compreensão. A justa rejeição magisterial da astrologia como técnica preditiva levou com freqüência a jogar
a criança fora junto com a água do banho, e no caso de Tomás a “criança” era nada menos que toda uma
filosofia da natureza e da liberdade. Para ele, Deus move os corpos inferiores por meio dos superiores; logo,
todos os fenômenos da ordem natural terrestre são reflexos dos movimentos dos astros. Como o corpo humano
faz parte da ordem natural, ele está tão sujeito às influências dos astros quanto qualquer outra coisa que se
mova sobre a Terra; e como as mutações sofridas pelo corpo interferem na conduta por intermédio dos sentidos
e das paixões, está claro que tudo quanto na conduta humana seja de ordem puramente passional, isto é,
independente da influência ordenadora da inteligência e da vontade racional, pode muito bem ser
compreendido com base na influência dos astros. Essa clara reivindicação de uma astrologia natural soa
demasiado escandalosa aos ouvidos dos crentes, e por isto foi freqüentemente suprimida das exposições
“oficiais” da filosofia tomista, o que se tornou no entanto indefensável depois do estudo definitivo de Thomas
Litt. (4)Não obstante, a edição eletrônica da Summa Contra Gentiles no site do Jacques Maritain Center omite
ainda os capítulos concernentes à influência dos astros, que se contam entre os mais notáveis da filosofia
tomística da natureza. (5)

Esses arranjos e supressões, criando uma facilidade enganosa, acabam por dificultar a compreensão do que
existe de mais característico no pensamento de Tomás, que é precisamente a coexistência de uma poderosa
inteligência metafísica com a boa-fé quase simplória com que sua alma santa se abria aos dados do real e da
ciência do seu tempo, sem nenhuma prevenção dogmática. A história da vaca voadora é provavelmente
fictícia, mas reflete bem o espírito de Tomás. O santo estava estudando quando um monge o chamou às pressas
para ver uma vaca que passava voando diante da janela. Tomás saltou da cadeira e, reclinado ao parapeito,
vasculhou os céus em busca da vaca, enquanto em torno os outros monges explodiam numa gargalhada
coletiva. Surpreendido, o santo se explicou: “É que achei mais razoável uma vaca voar do que um monge
mentir.” O que é certo é que Tomás, alertado para qualquer fenômeno, por mais esquisito e alheio a suas
crenças, jamais recusaria examiná-lo com a maior boa fé, mesmo que isto o levasse a conclusões bem diversas
das esperadas. Nada poderia contrastar mais enfaticamente com a imagem de um sistema hierárquico fechado,
que se consagrou na imaginação do leitor contemporâneo por obra de apologistas ingênuos e adversários
astutos. Diz Eric Voegelin: “Esse sistema frouxamente atado, em certos pontos repleto e abundante de
excessos de digressão, é o perfeito símbolo de uma mente que não é nem apriorística nem empirista, mas em
si mesma um ser histórico vivente, experienciando sua harmonia com a manifestação de Deus no mundo
histórico.” (6) Não por coincidência, prossegue Voegelin, algumas das idéias mais interessantes de Tomás se
encontram espalhadas nas digressões e não no corpo central dos argumentos.

Entre perder-se na riqueza inesgotável do sistema vivente e recortá-lo segundo um esquema didático prévio,
o leitor moderno optará, decididamente, pela última alternativa, preferindo antes conformar-se com “manuais
de tomismo” – quando não com aquelas reduções pejorativas tão caras à mentalidade uspiana (7) — do que
lançar-se a uma leitura direta que o atemoriza e confunde.

Uma segunda dificuldade, diretamente ligada à primeira, é a resistência obstinada que a mente moderna
oferece a uma proposta filosófica que pretenda ser ao mesmo tempo realista e cristã. Mentes forjadas no molde
do preconceito kantiano segundo o qual Deus, por estar infinitamente separado da esfera da nossa experiência
sensível, só pode ser objeto de crença e não de conhecimento — preconceito que se incorporou na cultura
universitária contemporânea com uma autoridade dogmática intolerante a avassaladora –, dificilmente podem
conceber que a referência a Deus seja senão o apelo a um artigo de fé, totalmente separado do conhecimento
dos fatos da ordem sensível e até da especulação filosófica racional. Essa mente acabará por dividir a filosofia
de Sto. Tomás em dois compartimentos estanques, separando “filosofia” de “teologia” segundo noções
estereotipadas de uma e da outra. Com isso, perderá justamente o essencial dessa filosofia, que é a unidade
tensional e viva do imanente e do transcendente.

Tomás, embora rejeitando a convicção de seu amigo S. Boaventura de que Deus é um dado intuitivo imediato,
e embora subscrevendo tudo quanto a doutrina da Igreja afirma sobre o papel decisivo da fé para a salvação
das almas, jamais se conformou com um Deus que fosse simples objeto de crença ou mesmo a pura conclusão
de um silogismo. Deus para ele é ineludivelmente uma presença, e esta presença se manifesta de maneira
prioritária nos dados do mundo sensível. Ele estava persuadido de que os fatos da ordem sensível, sendo
expressões diretas do Verbo criador, jamais poderiam mentir. Por isto ele não hesita em sacrificar a coerência
superficial do sistema em favor da variedade dos fatos, que têm para ele uma autoridade divina. Daí seu
realismo, inseparável do seu cristianismo. No universo tomístico, o verso do salmista, Coeli enarrant gloriam
Dei — “Os céus exibem a glória de Deus” — significa, da maneira mais enfática, que astronomia, geologia,
zoologia e demais ciências da ordem sensível não são, em última instância, senão teologia simbólica.
Na Summa Contra Gentiles ele enuncia a fórmula mesma da hermenêutica simbólica da natureza: “Nós
falamos por meio de palavras, Deus fala por meio das coisas.” Logo, a transmissão da mensagem divina, para
Tomás, não se esgota no conteúdo verbal explícito da Bíblia e na doutrina formal que dele extrai o magistério
da Igreja; ela prossegue, diante de nós, no desdobramento inesgotável dos fatos da ordem natural e histórica.
Entre a verdade que “desce” na revelação do Sinai e na encarnação de N. S. Jesus Cristo e a verdade que
“sobe” dos fatos sensíveis ao sentido eterno que neles se manifesta, aí residem precisamente o desafio e a
tarefa do filósofo, erguido assim ao estatuto de pontifex, de construtor de pontes entre os dois mundos que o
homem habita simultaneamente. Que a construção seja trabalho inesgotável e altamente problemático, que ele
seja sistêmico e orgânico por vocação mas jamais redutível a um sistema perfeito e fechado, eis o que dá à
filosofia tomística a peculiar tensão intelectual que o torna, para nós, de uma rara força estimulante.

Essa tensão reaparece, sob formas diversas, em mil e um pontos da doutrina tomística. Um deles, realçado no
belo estudo que Luiz Jean Lauand antepôs à sua tradução (de parceria com Mário Bruno Sproviero) de duas
“questões disputadas” do mestre, é que a noção mesma de “conhecimento”, nessa doutrina, tem seu
fundamento último na teologia da criação: “Não é possível apreender o núcleo da expressão ‘verdade das
coisas’ – ele simplesmente nos escapa – se nos recusarmos a pensar as coisas expressamente como criaturas,
projetadas pela intelecção de Deus, que pensa-o-ser… O ser-pensado das coisas por Deus fundamenta a sua
inteligibilidade para o homem.” (8)

Na entrada do ciclo moderno, Descartes, ignorando por completo esse item da doutrina tomística, retornará à
noção de Deus como fundamento do conhecimento, mas compreendendo-O apenas como garantia externa da
conexão entre o ego pensante e o mundo físico. Que diferença entre essa justaposição mecânica de três fatores
e a reabsorção tomística de sujeito e objeto na sua condição originária de criaturas!

Por isso mesmo é puramente metonímica – e, se tomada ao pé da letra, até insultuosa – a noção vulgar que
apresenta Tomás como o homem que se dedicou a “harmonizar teologia cristã e filosofia grega”. Harmonizar
doutrinas seria antes trabalho de um erudito de gabinete, não de um filósofo. Tomás é um filósofo, e não
menor do que seu mestre Aristóteles, justamente porque o que ele busca não é a harmonia entre doutrinas
prontas, mas o elo perdido entre dois universos de experiência: a experiência do apelo divino, a experiência
do mundo sensível. O que ele busca é a absorção de toda a realidade num sentido espiritual, e não a solução
de um problema dogmático-administrativo.

Que esse empreendimento tivesse também, no contexto histórico imediato, uma tremenda importância política
que passou despercebida a seus contemporâneos, os quais por isto precipitaram a Igreja numa longa sucessão
de quedas e humilhações que ainda está longe de ter-se esgotado, é um desses casos de engano geral ante um
acerto individual, que mostram, acima de toda possibilidade de dúvida, que a verdade aparece com mais
facilidade à alma do homem singular empenhado em conhecê-la do que à autoridade coletiva, mesmo quando
respaldada em garantias divinas de última instância.

Tomás compreendia, mais que ninguém, que da tensão harmônica entre o espiritual e o sensível dependia a
sobrevivência da própria Igreja enquanto instituição, e mais ainda a do sacrum imperium que deveria
representar a forma histórica por excelência da civilização cristã, a encarnação da Igreja na história.

Por isso ele insistia na compreensão simbólica da natureza, que integra as ciências do mundo físico numa
visão metafísica que é, em essência, a mesma que se depreende da revelação evangélica. (9)

A dissolução da síntese civilizacional da Idade Média e a quebra da unidade da Igreja acompanham pari
passu a divisão irrecorrível de “ciências sagradas” e “ciências profanas”, que, a partir do século XIII, e contra
a intenção manifesta de Tomás, foi suprimindo destas últimas toda significação espiritual, até torná-las
independentes e hostis a qualquer consideração de ordem metafísica, para não dizer teológica, de modo que
não resta ao apologeta cristão senão tentar harmonizar a posterioriciência e teologia, num esforço vão de
reduzir a uma linguagem comum conclusões obtidas por métodos incompatíveis e mutuamente excludentes.
No século XIX, a ciência da natureza já se declara inimiga aberta da religião cristã. Acuados, os cristãos mal
conseguem resistir, no século seguinte, à tentação de apegar-se, in extremis, à conciliação falsa e oportunista
elaborada pelo Pe. Teilhard de Chardin, prostituindo a religião no leito da ciência e vice-versa. (10)

Ao mesmo tempo, o simbolismo da natureza, expelido do mundo católico “oficial”, era açambarcado pelas
seitas heréticas e gnósticas, que o modificaram a seu belprazer — embaralhando as criteriosas distinções que
nele Tomás havia estabelecido entre o racional e o supersticioso, entre o divino, o natural, o humano e o
demoníaco — e fazendo dele a base de não sei quantas concepções mágicas e loucas que deram origem às
sociedades secretas revolucionárias do século XVIII, (11) ao florescimento mórbido de pseudo-
espiritualismos no século XIX(12) e por fim à grande farsa da New Age nos anos 60 do século XX. (13)

Tal como a divisão de racionalismo e empirismo – cuja unidade dialética, no entanto, transparece tão
nitidamente na filosofia do próprio Tomás –, a ruptura entre religião e ciência solapava a base mesma
do sacrum imperium e da inserção da Igreja no mundo como Mater et magistra do devir histórico.

Perdido o elo essencial entre o espiritual e o sensível, era inevitável que se rompesse mais cedo ou mais tarde
a unidade da Igreja com o corpo político da sociedade, como de fato veio a acontecer com o advento das
monarquias nacionais, condenadas à morte já no nascedouro, e, em seguida, do moderno Estado leigo, no qual
a autoridade religiosa recua para o domínio privado enquanto a esfera pública é entregue à guarda daquela
mistura inextricável de cientificismo, ocultismo e ideologias revolucionárias milenaristas, que compõe a
fórmula da típica mixórdia mental do intelectual moderno.

Paralelamente, o credo cristão, ao perder sua função orgânica na sociedade, perde também, sobretudo no meio
protestante, a flexibilidade e a sabedoria medievais, enrijecendo-se num moralismo incompatível com a vida
prática moderna e impondo às almas uma carga pesada demais, que elas acabam por rejeitar ante as ofertas
tentadoras de uma vida mais fácil e confortável no seio do agnosticismo e da indiferença espiritual.

O humilde pároco de aldeia de Bernanos, encarnação de valores da França medieval no seio do clero moderno,
compreendia ainda, como a Igreja de São Luís e de Joana d’Arc, que numa paróquia — e a paróquia simboliza
o mundo humano em geral –, o pecado e a graça vivem num estado de equilíbrio instável cujo centro de
gravidade, no entanto, é “baixo, muito baixo”. Ele compreende isso, mas não consegue transmitir essa verdade
a seus superiores, típicos representantes do clero moderno, tão enrijecidos numa moral monástica
incomunicável com a complexidade do mundo quanto, por outro lado, flácidos e complacentes ante o atrativo
intelectual de idéias modernas cuja periculosidade lhes escapa porque elas não ofendem diretamente o
receituário moral em que se resume o seu cristianismo.

Estudando a história dos costumes medievais, (14) surpreende-nos observar o quanto a Igreja daqueles tempos
era tolerante e compassiva com fraquezas humanas que, num período posterior, bastariam para expor um
pecador à execração geral, principalmente no ambiente protestante cujo advento condensa simultaneamente
as duas tendências opostas e inseparáveis nascidas da quebra da unidade medieval: o recuo da religião para a
esfera privada e a adoção de rígidos critérios de moral monástica para toda a sociedade civil. Um caso como
o de Jimmy Swaggart, o pregador fervoroso submetido a humilhação pública e obrigado a abandonar o
magistério por conta de um simples pecado carnal, seria impensável na Idade Média: o pecador confessaria
seu erro e voltaria ao púlpito com mais entusiasmo ainda, arrebatado pela efusão da Graça. Seu arrependimento
seria propagado de cidade em cidade e, no ambiente fortemente emocional da época, suscitaria lágrimas de
comoção entre os fiéis.

É um erro enorme, criado pela propaganda anticristã, imaginar a “igreja institucional” como sede do
moralismo autoritário e portanto a supressão da autoridade pública da Igreja como uma libertação da
consciência pessoal. A religião medieval, justamente por sua participação imediata no mundo social e político,
podia ser mais compreensiva e flexível justamente porque arcava com parte da responsabilidade pela esfera
mundana, onde o centro de gravidade é “baixo, muito baixo”. Recuando para a esfera privada, ela se imbui de
um monasticismo deslocado e intolerante, ao mesmo tempo que, para piorar as coisas, o Estado, prevalecendo-
se de seu prestígio de libertador e progressista, se aproveita da ocasião para impor a populações
desmemoriadas toda sorte de exigências tirânicas que elas aceitam porque não vêm sob a chancela de um
dogma religioso, mas sob a bandeira da liberdade e das luzes. Qualquer papa medieval consideraria um pecado
contra a ordem divina do mundo humano tentar derrubar um governante bom e eficiente sob a acusação de
vida dissoluta ou corrupção pessoal, pois sabia que, na paróquia como no mundo, o bem comum está acima
das exigências de perfeição individual. Uma igreja sem responsabilidade de governo não tem por que se
preocupar com isso, e pode, a pretexto de moral, ajudar a desequilibrar a ordem social e facilitar a ascensão
de insensatas ambições revolucionárias.
Tudo isso já estava, de certo modo, previsto e remediado na filosofia de Tomás. Quando ele sonda os
“processos ocultos da natureza”, (15) admite a existência de fundamento na quirologia e na
alquimia, (16) distingue entre adivinhação natural e demoníaca (17) ou estabelece os limites entre um estudo
científico e uma abordagem supersticiosa da influência dos astros na conduta humana, (18) só a extrema
covardia ante a hegemonia do cientificismo moderno pode levar um intérprete cristão a depreciar tudo isso
como meros passos obscuros de um precursor canhestro da ciência materialista. Bem ao contrário, esses
aspectos que muito tempo foram tidos como menores e marginais na interpretação do tomismo representam,
para nós hoje, a mais bela promessa de um resgate cristão do simbolismo da natureza, que já por tempo
demasiado permanece refém de feiticeiros, gnósticos e heréticos, parceiros ocultos do cientificismo
dominante.

Felizmente, ainda está em tempo de reconquistar o terreno perdido. Para isso, é preciso apenas reencontrar o
sentido da filosofia cristã da natureza, sem a qual uma filosofia cristã da sociedade e da política não passará
nunca de um arranjo improvisado ex post facto e sempre sujeito a ser explorado em benefício de ideologias
anticristãs. Mas essa reconquista pressupõe inteligências capazes de inspirar-se no exemplo de Tomás –
capazes de suportar a tensão criadora entre o imanente e o transcendente, entre o natural e o espiritual, e de se
abrir à variedade dos fatos com a certeza absoluta de que, malgrado suas aparências contrastantes e
assustadoras, por eles fala a voz do Divino Salvador. Muitos dizem que a Igreja de hoje precisa de santos. Mas
o próprio Tomás dizia que um pouco de santidade com muita sabedoria era preferivel a muita santidade com
pouca sabedoria. Talvez o que a Igreja de hoje precise é de inteligências desassombradas, capazes de não
recuar nem mesmo ante a hipótese da vaca voadora.

Olavo de Carvalho

19 de maio de 2001

1 Diretor do Seminário de Filosofia do Centro Universitário da Cidade (UniverCidade). Autor de Aristóteles


em Nova Perspectiva (Rio, Topbooks, 1998), O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras (Rio,
Faculdade da Cidade Editora, 1997), O Futuro do Pensamento Brasileiro(Rio, Faculdade da Cidade Editora,
1998), Como Vencer um Debate Sem Precisar Ter Razão: a Dialética Erística de Arthur
Schopenhauer (Rio, Topbooks, 1999), O Jardim das Aflições. De Epicuro à Ressurreição de César: Ensaio
sobre o Materialismo e a Religião Civil (Rio, Diadorim, 1995; 2a. ed., São Paulo, É Realizações, 2000) e
outras obras. Colunista dos jornais O Globo (Rio de Janeiro), Zero Hora(Porto Alegre) e Jornal da
Tarde (São Paulo) e das revistasÉpoca e Bravo!. Website: http://www.olavodecarvalho.org.

2 F. W. J. von Schelling, On The History of Modern Philosophy, transl. Andrew Bowie, Cambridge
University Press, 1994, p. 42.

3 V. Olavo de Carvalho, “René Descartes e a Psicologia da Dúvida”, comunicação apresentada no Colóquio


Descartes da Academia Brasileira de Filosofia, Faculdade da Cidade, Rio de Janeiro, 9 de maio de 1996.
Transcrição completa nowebsite do autor.

4 Les Corps Célestes dans l’Univers de Saint Thomas d’Aquin, Louvain, Publications Universitaires, 1963.

5 Jacques Maritain Center:http://www.nd.edu/Departments/Maritain/etext/gc.htm.

6 Eric Voegelin, History of Political Ideas, vol. II, The Middle Age to Aquinas, ed. Peter von Sievers,
Columbia, University of Missouri Press, 1997, p. 215.

7 V. a propósito Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições. De Epicuro à Ressurreição de César: Ensaio
sobre o Materialismo e a Religião Civil, 2a. ed., São Paulo, É Realizações, 2000, Cap. I, §§ 2-3.

8 “Introdução” a: Sto Tomás de Aquino, Verdade e Conhecimento. Questões Disputadas “Sobre a


Verdade”, “Sobre o Verbo” e “Sobre a Diferença entre a Palavra Divina e a Humana”, trad. Luiz Jean
Lauand e Mário Bruno Sproviero, São Paulo, Martins Fontes, 1999.
9 V. Seyyed Hossein Nasr, The Encounter of Man and Nature. The Spiritual Crisis of Modern Man,
London, Allen & Unwin, 1968.

10 V. Wolgang Smith, Teilhardism and the New Religion. A Thorough Analysis of the Teachings of Pierre
Teilhard de Chardin, Rockford (Illinois), Tan Books, 1988.

11 V. James H. Billington, Fire in The Minds of Men. Origins of the Revolutionary Faith, NewYork, Basic
Books, 1980.

12 V. René Guénon, Le Théosophisme. Histoire d’une Pseudo-Réligion, Paris, Éditions Traditionnelles,


réed. 1978, e Peter Washington, O Babuíno de Madame Blavatski. Místicos, Médiuns e a Invenção do Guru
Ocidental, trad. Antônio Machado, Rio, Record, 2000.

13 V. Russel Chandler, Compreendendo a Nova Era, trad. João Marques Bentes, São Paulo, Bompastor,
1993, assim como Olavo de Carvalho, A Nova Era e a Revolução Cultural. Fritjof Capra & Antonio
Gramsci, Rio, IAL e Stella Caymmi Editora, 2a. ed., 1997 (há transcrição completa no website do autor).

14 V. Life in the Middle Ages, selected and annotated by G. G. Coulton, Cambridge University Press,
4 vols., 1954.

15 Cf. De occultis operibus naturae, Opera, 27, 504-7.

16 Meteor., III, 9.

17 Summa, II, ii, 95, art. 5.

18 Contra Gentiles, III, 82-87.

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