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Revista de Psicologia

RACISMO CORDIAL
Manifestação da Discriminação Racial à Brasileira
Revista
– o domínio público e o privado
de Psicologia Cordial racism racial discrimination manifestation by Brazilian way – the public and private domains

Lwdmila Constant Pacheco¹

Resumo
No Brasil, a presença africana passa pelas mais variadas personificações sociais: de escravo (boçal, ladino, crioulo, ingê-
nuo, liberto) até o ‘mulato’ e negro no contraste e confronto com o índio e o branco, que nas relações políticas, religiosas,
sexuais e lúdicas aparecem como diferente física, psicológica e culturalmente. Porém, a definição polarizada entre bran-
cos e negros numa sociedade que se define por centenas de cores diferentes torna-se inviável, ainda mais se somadas
a questões históricas e culturais, como o mito da democracia racial e o ideal de branqueamento. Assim, no lugar do
racismo declarado desenvolve-se no Brasil uma forma de discriminação contra os não brancos, que se caracteriza por
uma polidez superficial que camufla atitudes e comportamentos discriminatórios, expressando-se ao nível das relações
interpessoais através de atitudes informais. É o racismo cordial, tipicamente brasileiro, que se manifesta nas relações
privadas e se camuflam em suposta tolerância pública.

Palavras-chave: Racismo, público, privado.

Abstract
In Brazil, the African presence passes for many social personifications: from slave (rude, sharp, creole, ingenuous, libe-
rated) to the ‘mulatto’ and black people in contrast and confront with the Indian and the blank, that in playful, sexual,
religious, and political relations appears like physical, psychological and cultural diferences. However, the definition
polarized about white and black people in a society that is defined by hundreds of different colors becomes impracticable,
still if been added the cultural and historical questions, as the myth of the racial democracy and the ideal of bleaching.
Like this, in the place of the racism declared develops in Brazil a form of discrimination against the not white, that is
characterized by a superficial politeness that camouflages attitudes and discriminatory behaviors, expressing in same
level of personal relationships through informal attitudes. It is the typically Brazilian, polite racism, that manifests in
private relations and are camouflaged in supposed public tolerance.

Keywords: Racism, public, private.

1
Mestranda em Psicologia Social pela UFS, bolsista Fapitec. E-mail: lwdmilaconstant@hotmail.com

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1 - Breve histórico das rela- estrutura hierárquica social, foram desenvol-


vidas outras justificativas para a exclusão do
ções raciais no Brasil
negro nos espaços sociais – de incompetên-
A idéia de uma nacionalidade bra- cia para o trabalho à tendência à margina-
sileira se conforma a construção ideoló- lidade, da instabilidade emocional e luxúria
gica de uma mestiçagem – nos corpos e ao incômodo de suas características físicas,
na cultura – que destacaria a produção do rejeitadas e estereotipadas negativamente. A
exotismo típico e uniforme do país. Porém, subjugação, os maus tratos e a desumaniza-
o conjunto dessas afirmações sobre a tipi- ção do período escravocrata provocaram rea-
ficação brasileira, diferentemente do que ções que mesmo não sendo unânimes foram
se possa deduzir, não produz a discussão efetivas para manter sempre ameaçado o sis-
da temática racial em nosso contexto. Ao tema – as fugas, os assassinatos de senhores
contrário, a questão racial é tratada como de escravos, as revoluções abortadas (como
tabu, em que as posições sociais desiguais a dos Malês na Bahia) e a formação dos qui-
são naturalizadas e estabilizadas e, con- lombos.
seqüentemente, as atitudes racistas, num A tensão que era gerada entre os
país onde não há raça pura, mas uma grupos durante a escravidão se estendeu
raça única e onde não se hierarquizam so- depois da abolição da escravatura. O an-
cialmente grupos minoritários, são vistas tropólogo Clóvis Moura (2001) usa o termo
como escassas e se acontecem é de forma “quilombagem” para designar um processo
branda. Assim surge a idéia de que no Bra- permanente e radical entre aquelas forças
sil o racismo só se manifesta, se por acaso que impulsionaram o dinamismo social na
manifesta-se, de forma cordial (SCHWAR- direção da negação do trabalho escravo. De
CZ, 1998). Essa maneira problemática de forma ampla e contemporânea, a quilom-
lidar com o tema, onde ele inexiste ou apa- bagem representa essa sensação típica no
rece apenas no outro, provoca um silêncio Brasil, dos negros militantes (formais ou
perverso para os negros que, não podendo informais) que, conscientes de sua história
se identificar com um grupo racial espe- e situação social, continuam unindo-se em
cífico por serem “forçados” a declarar-se protesto objetivo e vulnerabilizador do sis-
mestiços, não se mobilizam em prol de um tema dominante. Atuam, pois, desgastando
anti-racismo, sofrendo e ajudando, de cer- esse sistema branco, através de derrotas e
ta forma, a manter a dificuldade de afir- vitórias, que vêm desde a época da escra-
mar oficialmente o racismo, lançando para vidão e dos quilombos. Isto é, à partir dos
o terreno do privado o jogo da discrimina- próprios estereótipos construídos em rela-
ção. Com efeito, em uma sociedade marca- ção a figura do africano escravo, depois do
da historicamente pela desigualdade, pelo negro brasileiro, formou-se um medo por
paternalismo das relações e pelo cliente- parte da elite branca, de que esses negros
lismo, o racismo só se afirma na intimida- se vingassem de todos os malefícios infli-
de, no contexto das relações privadas. gidos na história do país a essa parcela da
A construção das relações2 raciais3 população, e esse medo gerou assim, uma
no Brasil sempre foi marcada pela subjuga- tensão ameaçadora constante. Tal tensão
ção de um dos lados: seja na escravidão, na impulsionou a criação de uma identidade
qual o negro era considerado objeto; seja na comum entre os brasileiros, onde não ca-
pós-abolição, onde, na tentativa de manter a beria mais a função de dominantes e do-

2
Relações – Algo que não pode ser sem o outro, sendo uma ordenação intrínseca de uma coisa em direção a outra. Para maior aprofun-
damento do conceito, ver: GUARESCHI, Pedrinho apud JACQUES, Maria da Graça Correia, 2005.
3
Raça – No Brasil é vista como noção ideológica, engendrada como critério social para a distribuição de posição na estrutura de classes,
apesar de estar fundamentada em qualidades biológicas, como a cor da pele. Raça, antes usada como forma de apartar hierarquica-
mente etnias, passou a ser definida como atributo compartilhado por um determinado grupo social, tendo a mesma graduação social, um
mesmo contingente de prestígio e mesma bagagem de valores culturais e ideais. (SOUZA, 1983)

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minados, pois todos seriam descendentes uma identidade racial no Brasil deu origem
de ambos: surgiu a idéia da mestiçagem a um “sub-racismo” derivado do racismo
unânime brasileira. A mestiçagem tem original, criado contra a pessoa de cor ne-
uma função ideológica de massificar e de- gra, pois encobre graduações discriminató-
sorganizar ao mesmo tempo que, através rias associadas a variações cromáticas. Isto
do contínuo de cor, reforça a discriminação é, os vários cruzamentos entre pessoas de
racial (que no Brasil é de cor) que se torna origens diferentes determinariam se este
relativa, dependente da referência momen- descendente está mais próximo ou mais
tânea. Assim, uma pessoa mestiça pode ser distante do ideal branco, incentivando às
discriminada por uma mais branca, assim múltiplas formas de preconceitos determi-
como pode discriminar outra mais escura. nados pela cor da pele e características fí-
Com a miscigenação e o foco na fa- sica, além de favorecer a disputa entre as
mília patriarcal do Nordeste como o gran- pessoas de origem negra em busca de um
de fator da colonização e o princípio único lugar num grupo privilegiado – o dos con-
da formação racial no Brasil, houve a inte- siderados brancos. Para Munanga (2004),
gração de forma harmoniosa da sociedade essa hierarquia das nuanças tem efeito de
brasileira, o que pôs fim a “angustiante” deslocação, porque o sub-racismo nela im-
persistência da heterogeneidade racial, já plicado dificulta a formação da consciência
que a mestiçagem nos torna iguais, supos- comum.
tamente anulando o preconceito racial, de- Assim, com o mito da democracia
sembocando no alívio da “democracia ra- racial, onde todos os brasileiros seriam
cial”. Isto é, as teorias que alegavam que mestiços e levando em consideração o con-
os mestiços eram frutos de um cruzamen- tínuo de cor que hierarquizava os grupos,
to harmonioso entre raças distintas, e que desenvolveu-se no Brasil o chamado “ra-
tal fruto compunha uma nova raça, sendo cismo cordial”. Por racismo entendo o dis-
esta a raça única do povo brasileiro, tra- curso sobre a diferença inata e hereditária,
ziam consigo o objetivo de camuflar as di- de natureza biológica, psíquica, intelectual
ferenças raciais existentes no Brasil e suas e moral, entre grupos da espécie humana,
conseqüentes diferenças sociais. A demo- distinguíveis a partir de características fí-
cracia racial se mitifica por exaltar a idéia sicas, sendo resultado das doutrinas indi-
de convivência harmoniosa entre os indiví- vidualistas e igualitárias que distinguem
duos de todas as camadas sociais e grupos a modernidade da Antiguidade ou do Me-
étnicos, o que permite às elites dominantes dievo e, no nosso caso, do Brasil colonial e
dissimular as desigualdades e impedindo imperial onde surge na cena política como
os membros das comunidades não-brancas doutrina científica, quando se aproxima a
de terem consciência dos sutis mecanismos abolição da escravatura e, como conseqü-
de exclusão da qual são vítima. Encobre os ência, a igualdade política e formal entre
conflitos raciais, já que somos homogêneos todos os brasileiros (GUIMARÃES, 2002). O
enquanto identidade nacional, tirando das racismo cordial, por sua vez, substituiu o
classes subalternas a possibilidade da to- científico pelas justificativas que buscavam
mada de consciência de suas característi- provar a inferioridade biológica do negro
cas culturais que teriam contribuído para terem fracassado. É, portanto, uma forma
a construção e expressão de uma identida- branda, assimilacionistas, sem ódios, se-
de própria. O lugar do mestiço concretiza gregação ou violência constante e explícita,
a não-necessidade de uma ajuda ao negro sendo mais idiossincrático que institucio-
enquanto grupo, sendo a ambigüidade de nal ou estrutural, ainda que implique em
cor/classe no Brasil marcada pela ausên- desigualdades, exploração e sujeição. Essa
cia de coesão e líderes representativos (MU- crença, parcialmente correta, se generali-
NANGA, 2004). zada a todos os espaços e práticas sociais,
A tentativa de usar a ideologia da leva a olvidar modos de dominação de raça
mestiçagem como única forma de expressar e classe brutais, exercidos de forma siste-

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mática, em determinados espaços sociais miliarização de um princípio privado, como


(cadeias, presídios, ruas escuras de peri- explicar de forma clara a nós mesmos ou
feria...), por determinados agentes sociais para os outros, aquilo que constitui nos-
(policiais, agentes penitenciários, justicei- sa personalidade e, acrescento, aquilo que
ros...), ainda que de forma não oficial. nos torna racistas. Isso, porque, quanto
Conduzindo do “mito da democracia mais privatizada é a psique, menos estimu-
racial” ao “mito do racismo cordial”, assim, lada ela será e tanto mais será difícil sen-
nas relações raciais no Brasil se divulga tir ou exprimir (ou assumir) sentimentos.
que o racismo é no mínimo anti-ético, e por As relações sociais na modernidade, depois
isso vergonhoso expressá-lo, com isso, ofi- do advento capitalista, se tornaram formas
cialmente ninguém é racista, mas na práti- mercantilizadas de troca em que gera o de-
ca todos reconhecem que existe racismo no sinteresse do outro, e o auto-conhecimento
Brasil. As práticas racistas se manifestam, é a única justificativa para manter conta-
pois, nos momentos passionais, e nos es- to externo. Tornamo-nos obcecados pelas
paços privados. Segundo Sennet (2002) a pessoas, e não pelo efeito e causa das re-
vida pública se tornou obrigação formal e lações, ficando, por exemplo, a importân-
os indivíduos exprimem suas negociações cia da presença do ‘estrangeiro’ subestima-
com o Estado com um espírito de aquies- da. Assim, no Brasil onde a cultura, com
cência resignada; dessa forma, sendo o ra- toda a amplitude que esse termo carrega
cismo uma prática condenada não só mo- (nos costumes, na culinária, no vestuário,
ralmente mas também legislativamente, a na linguagem, no estilo de vida), é predo-
população tende a acatar “resignadamente” minantemente influenciada pela presença
tal imposição (que foi conquistada pelo pró- africana e posteriormente recriada pelos
prio movimento de pessoas negras organi- afro-brasileiros, mas, não é reconhecida
zadas), porém, isso não significa que haja oficialmente como tal, a não ser que esses
uma concordância da população perante elementos culturais, como a feijoada, a ca-
essas decisões judiciais em relação ao ato poeira, o samba, se diluam na chamada
de discriminação racial se tornar ilícito. Nos cultura nacional. Essa falta de reconheci-
espaços públicos o negro, descendente de mento público da importância da presen-
africanos escravizados ainda considerado ça negra no Brasil, dificulta a formação de
estrangeiro, é na maioria das vezes, apenas uma identificação positiva e um orgulho
tolerado – Sennet descreve que maneiras e por parte dos negros, que só têm contato
intercâmbios rituais com pessoas tidas es- direto com os estereótipos negativos cons-
tranhas são no mínimo considerados for- truídos durante a escravidão para justifi-
mais, áridos e falsos – e, nos espaços priva- cá-la sem culpa, e que foram reforçados
dos, esse mesmo indivíduo negro infiltra-se após a abolição para que a estrutura social
com funções restritas e condicionadas. Por brasileira não sofresse maiores mudanças
esse mesmo motivo, a família racista possui com a libertação dos escravos. Tal estru-
uma cozinheira negra, um jardineiro mesti- tura ainda se mantém, mesmo com a vitó-
ço, ou um motorista de cor, mas dificilmen- ria de determinados indivíduos negros que
te aceitariam um melhor amigo de seu filho, conseguiram ‘infiltrar-se’ na classe média
freqüentador assíduo de sua casa, de cor e, em menor número, na alta. O que ainda
negra, muito menos o namorado negro de é comum é a não aceitação de pessoas de
sua filha. Prova disso está nas estatísticas cor e traços negros em cargos que ‘lidam
formuladas por Ianni (1972), onde o branco diretamente com o público’, pois estes car-
elimina os negros e os mulatos do seu cír- gos exigem “boa aparência”, característica
culo de convivência íntimo, que é a família, essa que uma cor escura, um cabelo crespo
e assim consegue dissimular as barreiras e traços “grossos” não correspondem. As-
rígidas impostas aos não-brancos. sim, o negro encontra as opções de vencer
Sennet (2002) cita que a atenção ex- sozinho, sendo mostrado na mídia como
clusiva dada a nós próprios dificulta a fa- exemplo de superação, de pessoa que, por

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exemplo, não precisou de sistema de cotas associado àquela pertença, formando sua
para entrar na Universidade, ou vai ocupar identidade social (TAJFEL, 1983). Assim, a
os espaços privados das famílias brancas partir da identidade social, que é constituí-
em funções que parecem não ter mudado da pelo processo de categorização, é que se
da época da escravidão para cá. cria e define o lugar do indivíduo na socie-
Segundo Leyens e Yzerbyt (2004), dade. Então, no caso do Brasil e no quesito
a discriminação seria um comportamento raça, quanto mais próximo o indivíduo es-
negativo para com o exogrupo (o grupo dos tiver da categoria racial definida como infe-
‘outros’) diferente do preconceito, que é um rior, num lugar mais marginal socialmente
sentimento negativo direcionado ao mes- será colocado, visto que um mesmo indiví-
mo exogrupo. Assim, para se discriminar duo pertence a vários grupos, além do que,
é necessário sentir-se parte de um grupo o sujeito não se comporta da maneira que o
pelo qual se favorece, nos comportamentos faz (só) por causa da pertença a determina-
ou nas percepções, os membros desse gru- do grupo, mas principalmente por causa da
po de pertença, ou endogrupo. Esse favo- representação mental que faz desse grupo
ritismo instala uma diferença hierárquica, e dos fatos sociais que nele incidem (WAG-
onde somos benevolentes ao atribuir es- NER, 2006).
tereótipos para descrever os membros do À partir do princípio de que as coi-
grupo a qual pertencemos, e somos menos sas possam ter significações nelas próprias
tolerantes com o grupo ao qual não perten- há a penetração de um profundo elemento
cemos. Porém, no Brasil, essa possibilida- de dúvida no aparato cognitivo sobre quem,
de consciente de definir-se como diferente ou que grupo, atribuiu esse significado,
é inviabilizada na mestiçagem nacional e as pois qualquer exercício de discriminação
minorias “sociais” (usando um eufemismo poderá ser um equívoco. Como forma de
tipicamente brasileiro para não expor a ra- desconstruir os estereótipos que legitimam
cialidade como pré-requisito para ser parti- a discriminação e evitar o equívoco, faz-se
cipante dessas minorias) são as prejudica- necessário uma aproximação do estranho,
das, pois, se não há diferenças históricas a construção de uma intimidade – que se-
nem culturais entre as classes sociais, as gundo Sennet nada mais é que uma ten-
diferenças sociais só podem ser auto-atri- tativa de resolver o problema público ne-
buídas e individuais. Isto é, os favorecidos gando que ele exista. Após a escravidão e o
socialmente o são por justiça, por mérito, fracasso do racismo científico, a expressão
os desfavorecidos assim o são por suposta racista foi perdendo força, apesar do pren-
incompetência, tornando-se os únicos cul- conceito racial estar ainda fortemente arrai-
pados por sua situação social. Tal concep- gado na cultura nacional, afinal, com o au-
ção amplamente difundida, inclusive nos mento do desequilíbrio entre vida pública e
meios acadêmicos, provoca o comodismo e vida íntima, as pessoas se tornaram menos
a falta de interesse pelas questões que per- expressivas. E se o racismo não é expres-
meiam a exclusão. so, pelo menos não publicamente, torna-
Segundo Tajfel (1983), a auto-defini- se difícil combatê-lo e a aproximação real
ção do indivíduo só é possível por intermé- das pessoas se torna inviável, já que essa
dio de sua pertença a determinados grupos, aproximação necessita ser testada antes;
e essa pertença contribui positivamente ou e quanto mais o domínio público for visto
negativamente para sua auto-imagem. As- como oportunidade de revelação inter-pes-
sim, não existe o indivíduo isolado de suas soal, compartilhada, a aproximação será
identificações e pertenças sociais, mas sim desviada do uso de sua fraternidade para
o indivíduo que constrói uma parcela de a transformação das condições sociais. Isto
seu auto-conceito à partir do conhecimen- é, quanto mais as pessoas se comunicarem
to adquirido através da sua pertença a um para lamentarem as desigualdades e o ra-
grupo ou mais grupos sociais, juntamen- cismo preemente no Brasil, mais articulada
te com o significado emocional e de valor em prol de uma mudança estarão.

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Além disso, o problema parece ser das desigualdades raciais, que não seja a
o de afirmar oficialmente o preconceito, e troca de lugares entre oprimidos e opres-
não o de reconhecê-lo na intimidade. Tudo sores, ainda está por ser formar.
isso indica que estamos diante de um tipo Se o requisito necessário para que
particular de racismo, um racismo silen- as pessoas se engajem em políticas efetivas
cioso e sem cara que se esconde por trás para melhorias efetivas em suas condições
de uma suposta garantia da universali- sociais é uma identidade positivamente afir-
dade e da igualdade das leis, e que lança mada, então, nessa estreita articulação en-
para o terreno do privado o jogo da discri- tre público e privado nas sociedades moder-
minação, pois o que é da ordem do privado nas, pode-se definir uma outra originalidade
não se regula pela lei nem se manifesta se comparada relativamente ao passado: o
publicamente. discurso e a comunicação com funções po-
O reconhecimento do Outro como líticas e orientados por objetivos de emanci-
diferente do Eu é primordial para a cons- pação, atribuindo ao domínio privado um si-
tituição identitária. Esse contraste entre lenciamento compulsivo não mais tolerado.
o Eu e o Outro é chamado de alteridade, Segundo Bauman (1999, p. 12)), “Ordem e
que é produto de duplo processo de cons- caos são gêmeos modernos. Foram concebi-
trução e exclusão social que mantém sua dos em meio à ruptura e colapso do mundo
unidade por um sistema de representações ordenado de modo divino, que não conhecia
(JODELET, 2002). Tais representações e a necessidade nem o acaso, um mundo que
diferenciação do Outro como diferente do apenas era, sem pensar jamais em como
Eu não devem conduzir, contudo, a subju- ser”. Isto é, não existe ainda uma solução
gação desse último, até porque, a noção de para a luta incessante contra a ambivalên-
alteridade convoca a noção de identidade e cia que a modernidade impõe, e o negro con-
pluralidade. Na teoria, a alteridade traria tinuará sendo alvo desse combate, onde o
tolerância e interesse pelo diferente, mas processo de exclusão/inclusão é um ato de
busca de fato a proteção para o interior do violência perpetrado contra o mundo e re-
grupo ao qual se identifica, tendendo a ti- quer uma dose de coerção. O que, talvez, se
pificação desvalorizante e estereotipada do torne justo não é a tentativa de quebrar essa
diferente. Forma-se o que Jodelet define ameaça da ambivalência, mas possibilitar
como o “racismo auto-referencial” – que es- ao negro brasileiro, ao mestiço, ao “moreno”
tabelece a superioridade hierárquica do ra- ressignificar a experiência da escravidão que
cista que detém poder, e o “racismo hétero- transformou africano em escravo, escravo
referencial” – que atribui as características em negro, e o negro numa pessoa destinada
da vítima de racismo a um lugar inferior e a desaparecer, em nome da constituição de
maléfico. um povo cordial e moreno. A possibilidade,
A identidade é configurada pela di- pois, de conhecer outras versões sobre sua
ferença mais do que a semelhança e essa história e sua descendência e fazer dela o
configuração é, provavelmente fruto da que bem entender.
competição capitalista que nos torna aler-
ta à suposta ameaça, mais do que a pos- 2 -Conclusão
sibilidade de cooperação. A diferenciação
torna o outro a forma vazia de assunção No espaço público, o comportamen-
identitária e os membros de um mesmo to e as soluções que são impessoais não
grupo comum uniformes, sem a caracte- suscitam paixão, a não ser que esses sejam
rística da diferença. Porém, identidade e tratados como questões pessoais, da perso-
diferença são resultados de atos de cria- nalidade (SENNET, 2002). No caso do ra-
ção discursiva (não são, pois, essenciali- cismo, este só se torna prioridade de com-
zadas ou naturais) e por isso mesmo são bate se as pessoas o encaram como uma
passíveis de modificação. Assim, uma ou- afronta pessoal, só que isso só é possível se
tra possibilidade de tentativa de superação as vítimas desse ato se identifica como foco

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deste, se consideram-se negras e não só, entrar na Universidade é que estão ates-
se consideram o racismo uma forma pre- tando incompetência de competir de igual
concebida e injusta de tratar a diferença para igual com brancos”, etc.
historicamente e perversamente construí- O preconceito de cor é tratado como
da. No nosso contexto essa conscientização sobrevivência deslocada e não funcional. A
é dificultada pela massificação da idéia da ênfase é posta no “preconceito de não ter
mestiçagem, de acordo com o qual todos os preconceito” (Bastide & Fernandes, 1955),
brasileiros são mestiços, não existindo raça ou seja, a incapacidade das classes domi-
e, conseqüentemente, racismo. Tal aliena- nantes e das elites de encararem as per-
ção pública é reforçada no silêncio privado, sistências do passado e sobrepujá-las: “A
onde tanto as famílias brancas como as ne- desigualdade de oportunidades é manifesta
gras evitam falar e discutir sobre esse tema, e cristaliza-se em desigualdades sociais ao
como se reclamar ou apenas mencioná-lo longo de linhas raciais, sugerindo a existên-
fosse um assumir-se negro (o que não é de- cia de discriminação contra os não-bran-
sejado, pois dificilmente as pessoas vêem cos. Contudo, o conceito de discriminação
positivamente essa afirmação) ou assumir- apresenta alguns problemas (...) esse con-
se racista, ambas as personalidades tabus ceito estimula a confusão entre o processo
no Brasil da democracia racial, da mesti- e o produto, isto é, entre o processo de dis-
çagem e do branqueamento possível. Essa criminação e o resultado desse processo.
alienação4 não é aleatória, tem função ide- As mensurações da discriminação são com
ológica e foi construída e é mantida para freqüência, na realidade, mensurações de
que a estrutura social não seja modificada. desigualdade. Por essa razão, o uso de me-
Porém, todo esse cuidado no tocante a ex- didas indiretas de discriminação exige não
pressão pública das relações raciais, toda apenas conhecimentos das propriedades
essa contradição de um país que é demo- matemáticas das medidas utilizadas, mas
crático com todas as raças, mesmo não ha- também uma teoria de causação social”
vendo raças distintas, e dum país tolerante (Hasenbalg, 1979, p. 167).
mas que prega o ideal do branqueamento Tal confusão entre os conflitos so-
gera um conflito público que possibilita a ciais e pessoas vistos nas questões raciais
conscientização e provoca uma espécie de é explicado por Sennet (2002) que fala que
guerrilha entre raças. Cito o exemplo do quando um suposto problema público se
advento das cotas raciais nas universida- forma, invade e problematiza a vida privada
des: o sistema de cotas sempre existiu para tornando sem fronteiras o mundo dos sen-
determinadas parcelas da população – os timentos íntimos. Ameaçando, pois, não
filhos de fazendeiros tinham até pouco tem- só os ideais dominantes como a própria
po, acesso direto aos cursos de agronomia personalidade individual que para acatar
e áreas afins – mas, quando reivindicada com uma mudança ideológica precisa es-
para um grupo racial prejudicado histori- tar aberto para constante reformulações
camente pelos 400 anos de escravidão e do nós e do eu. Acatar com tais mudanças
pela marginalização social, pois não houve também supõe assumir-se detentor de uma
política alguma de inclusão social na pós- identidade mutante, é reconhecer-se como
abolição, a polêmica surge com a expressão apenas co-construtor de si, delegando às
de estereótipos que não foram criados ex- relações boa parte da sua definição. O ‘Ser’
clusivamente nessa situação, mas já eram transforma-se num constante ‘tornar-se’ e
alimentados desde antigas gerações no es- as diferenças se evidenciam e se corrobo-
paço privado e que agora tomam o domínio ram, possibilitando uma real mudança na
público: “se negros precisam de cotas para cristalização das relações raciais.

4
Alienação na concepção marxiana de inversão da função do trabalho que, ao transformar a natureza com a predominância do tra-
balho como criador de valor e troca, o homem se aliena, se estranha a si e na relação com o outro, resultando em sua degradação e
desvalorização enquanto ser humano. (MARX, 1980)

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3 - Referências de expressão do preconceito e do racismo.


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