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EXPANSÕES

CONTEMPORÂNEAS
Literatura e outras formas

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Reitor Clélio Campolina Diniz
Vice-reitora Rocksane de Carvalho Norton

EDITORA UFMG
Diretor Wander Melo Miranda
Vice-Diretor Roberto Alexandre do Carmo Said

CONSELHO EDITORIAL
Wander Melo Miranda (presidente)
Ana Maria Caetano de Faria
Danielle Cardoso de Menezes
Flavio de Lemos Carsalade
Heloisa Maria Murgel Starling
Márcio Gomes Soares
Maria Helena Damasceno e Silva Megale
Roberto Alexandre do Carmo Said

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Ana Kiffer
Florencia Garramuño
Organizadoras

EXPANSÕES
CONTEMPORÂNEAS
Literatura e outras formas

Belo Horizonte
Editora UFMG
2014

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 2014, Os autores
 2014, Editora UFMG

Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização
escrita do Editor.
____________________________________________________________________
E96 Expansões contemporâneas: literatura e outras formas / Ana Paula Kiffer e
Florencia Garramuño, organizadoras. – Belo Horizonte : Editora UFMG,
2014.
155p.: il. – (Babel)
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-423-0043-7

1. Arte – Coletânea. 2. Literatura – Coletânea. 3. Arte moderna – Séc.


XXI – Coletânea. 4. Arte e literatura – Coletânea. 5. Literatura – Estética –
Coletânea. I. Kiffer, Ana Paula Veiga. II. Garramuño, Florencia. III. Série.

CDD: 700
CDU: 7
____________________________________________________________________

Elaborada pela DITTI – Setor de Tratamento da Informação


Biblioteca Universitária da UFMG

Coordenação editorial Michel Gannam


Assistência editorial Eliane Sousa e Euclídia Macedo
Coordenação de textos Maria do Carmo Leite Ribeiro
Preparação de textos Cláudia Campos
Revisão de provas Camila Figueiredo e Thaís Duarte Silva
Projeto gráfico Cássio Ribeiro, a partir do projeto de Marcelo Belico
Formatação e capa Victoria Arenque
Produção gráfica Warren Marilac

EDITORA UFMG
Av. Antônio Carlos, 6.627 | CAD II / BLOCO III
Campus Pampulha | 31270-901 | Belo Horizonte/MG
Tel: + 55 31 3409-4650 | Fax: + 55 31 3409-4768
www.editoraufmg.com.br | editora@ufmg.br

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 7

HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE
Tráfego de imagens, composições anacrônicas e usos da
cultura material nas representações do tupi-guarani
Álvaro Fernández Bravo 17

A ESCRITA E O FORA DE SI
Ana Kiffer 47

POESIA, CRÍTICA, ENDEREÇAMENTO


Celia Pedrosa 69

FORMAS DA IMPERTINÊNCIA
Florencia Garramuño 91

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VIDA E MORTE DA IMAGEM
Karl Erik Schøllhammer 109

FORMAS MUTANTES
Wander Melo Miranda 135

SOBRE OS AUTORES 153

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APRESENTAÇÃO

A estética contemporânea está habitada por uma série


de práticas e intervenções artísticas que evidenciam um
estendido transbordamento de limites e expansões de cam-
pos e regiões. Segundo a descrição que Jacques Rancière
faz dessa nova paisagem,

todas as competências artísticas específicas tendem a sair


do seu próprio domínio e trocar seus lugares e seus poderes.
Hoje temos teatro sem palavras e dança falada; instalações e
performances como se fossem obras plásticas; projeções de
vídeo transformadas em ciclos de afrescos e murais; fotografias
tratadas como quadros vivos ou pintura histórica, escultura
metamorfoseada em show multimídia, e outras combinações.1

No campo das artes visuais, essa paisagem vem sendo


analisada de maneira consistente há alguns anos, numa
reflexão teórica que foi impulsada pelo impacto poderoso

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da arte conceitual e das instalações artísticas. Já há algumas
décadas, com uma marca claramente estruturalista que
talvez tenha sido a sua limitação mais importante, Rosalind
Krauss falou da “escultura num campo expandido” para
situar a aparição de um novo tipo de obras artísticas que
só poderiam ser consideradas como esculturas se a própria
categoria de escultura se expandisse de tal maneira que
deixasse de definir de modo específico algum tipo de obra
em particular.2 Alguns anos mais tarde, e provavelmente
em resposta às críticas que tinha recebido pela rigidez desse
paradigma estruturalista, a própria Krauss será uma das pri-
meiras teóricas a falar da condição post-medial da arte con-
temporânea para se referir à propagação internacional “da
instalação de mixed media [que] tem se tornado ubíqua”.3
Não por acaso, nesse mesmo ensaio, a reflexão de
Krauss se sustentava na análise de algumas obras de Marcel
Broodthaers, entre elas, a entitulada Charles Baudelaire: Je
hais le mouvement qui déplace les lignes, de 1973. Trata-se
de uma obra na qual o artista – convém lembrar aqui, tam-
bém poeta – utiliza esse verso de Baudelaire colocando-o
em cada página em lugares diferentes – às vezes contra a
margem esquerda, depois no centro da página, posterior-
mente na margem direita –, fazendo o texto figurar, sobre
a página em branco, como imagem. O livro, pela sua vez,
converte-se em uma sorte de objeto visual que incorpora o

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verso – e o que o verso tem, sempre, de imagem – como ele-
mento construtivo dessa visualidade. Mas esse dispositivo
não faz o verso abandonar, nessa disposição, sua condição
de verso, nem o livro, sua condição de livro. Muito pelo
contrário, precisamente a repetição e a colocação do verso
na página são alguns dos procedimentos mais paradigmá-
ticos e representativos – próprios e pertinentes – da poesia
enquanto forma discursiva. Ao colocar lado a lado literatura
e visualidade, Broodthaers elabora uma forte crítica à ideia
de um meio específico e se converte – segundo Krauss – em
um dos precursores, numa genealogia da condição post-
-medial, da arte contemporânea. É relevante que tenha sido
Baudelaire quem inspirou essa genealogia, já que foi um
dos nomes fundacionais em um movimento de expansão
dos limites da lírica. Com tal expansão da lírica, Baudelaire
vem consagrar a ideia de uma poesia moderna – e de uma
arte moderna –, para a qual a saída para fora de si seria o
seu dispositivo mais contundente.
Neste momento poderíamos assinalar que tal saída perfa-
zia-se, sobretudo, nos mecanismos de passagens, na própria
relação entre as passagens – do registro crítico ao poético, da
vida cotidiana ao museu, entre outras – que, por sua vez, não
deixavam de inscrever nas próprias passagens arquitetônicas
ícones de um certo modo de “vida moderna” na Paris de
Baudelaire. Essas passagens, ainda ligações entre interior e

APRESENTAÇÃO 9

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exterior, vêm sendo – na arte e na vida contemporânea –
explodidas em seus contornos arquitetônicos, estéticos e
subjetivos. Esta, se poderia dizer, é uma interrogação crucial
deste livro: quais transformações se deixam notar entre a
expansão dos limites da arte moderna e a radicalidade de
um não pertencimento contemporâneo? De que modo o
fora de si, antes marcadamente caracterizado pelos limites
nacionais, territoriais e subjetivos, que faziam com que a
sua aparição se fundasse numa verdadeira transgressão,
passou a caracterizar-se como um operador cotidiano das
experiências-limite ou mesmo desidentitárias pelas quais
passamos mais ou menos todos no mundo atual?
E mesmo no âmbito daquilo que por séculos (desde
praticamente as origens da constituição do que entende-
mos por Ciências Humanas)4 se constituiu como lugar do
“específico” e do “identitário”, hoje vemos, como aponta o
texto de Álvaro Fernández Bravo, “os diferentes modos de
pensar o capital simbólico ameríndio como inespecífico –
móvel e heterocrônico – e por sua vez passível de evocar
conotações simbólicas, históricas, etnográficas e filosóficas”.
Ou seja, a interrogação sobre os diferentes modos do não
pertencimento, ou mesmo sobre a radicalização das expe-
riências que hoje constituem um “estar fora de si”, não
deixa de apontar a força paradoxal que age numa partilha
do sensível no mundo contemporâneo. A própria ideia de

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“formas do não pertencimento” (Garramuño) já é em si um
operador paradoxal, posto que recorre à forma para falar do
inespecífico, ou ainda o “fora de si” (Kiffer), que apela para
uma exterioridade radical, porém ligada à constituição do
subjetivo. Ou, mais longe ainda, todo o desenvolvimento
proposto por Schøllhammer da ideia paradoxal de uma
imagem que é ao mesmo tempo um composto de vida e
afeto, mesmo que saibamos que uma imagem já não é mais
a vida senão que a “sobrevivência” do instante de sua morte,
ali concentrada, congelada ou refluída.
A esse respeito, também a literatura e a poesia contem-
porânea (Pedrosa e Garramuño) participam de uma intensa
expansão de seu campo ou meio específico há alguns anos.
No dizer de Pedrosa, ao analisar a poesia de Marcos Siscar:
“No ir e vir constante em que o dentro e o fora têm sub-
vertidas suas fronteiras e antagonismos, imagens visuais
se mesclam a fragmentos de memória poética, filosófica,
geográfica, geológica, biográfica.” Como na poesia de Mar-
cos Siscar, explorações literárias que estabelecem pontos de
conexão e fuga entre ficção e fotografia, imagens, memórias,
autobiografias, blogs, chats e correios eletrônicos, assim
como entre o ensaio e o documentário, como o demostram
textos tão diversos como os de W. G. Sebald, Bernardo de
Carvalho, John Berger, João Gilberto Noll, Fernando Vallejo
ou Ó, de Nuno Ramos, são cada vez mais numerosas, muito

APRESENTAÇÃO 11

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embora isso não implique que sejam hegemônicas. Caberia
assinalar, aliás, que muitos dos textos que se limitam ao que
poderíamos considerar como o seu próprio “meio” – se de-
cidirmos optar por uma linguagem positivista – evidenciam
uma série de perfurações nas convenções que têm definido
a especificidade literária, abrindo, por conseguinte, outras
possibilidades ou linhas de fuga em relação à ideia da es-
pecificidade do literário.
Trata-se não só de uma implosão do meio específico,
ainda se entendermos “meio” para além do seu suporte
físico, incorporando em sua definição as convenções que o
definem num momento histórico determinado.5 Trata-se,
mais além – e isto é o mais importante –, de um profundo
questionamento do “próprio” enquanto definição estável
e circunscrita de uma especificidade. Especificidade tanto
do meio como do próprio conceito de arte, como um modo
de postular o que em outro artigo temos chamado de “uma
arte inespecífica”.6 É ali que se joga uma noção de literatura
ou de arte que tem incorporado, dentro de sua linguagem,
suportes e funções, uma relação com outros discursos e
esferas nos quais o literário, ou o artístico, não é dado nem
construído, mas, muito pelo contrário, desconstruído ou,
pelo menos, colocado em questão – ou sur rature, como
apontou Jacques Derrida. Esse movimento dispõe textos
que, no dizer de Wander Melo Miranda, deveriam ser

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pensados como “formas mutantes”, onde o dispositivo da
montagem que os constrói “se realiza por meio de cortes e
recortes no contínuo do relato, de migrações e sobrevivência
das ‘figuras’ em que os eventos narrados se transformam”. É
nessas sobrevivências, nessas heterogeneidades7e heteroto-
pias, que essa arte inespecífica cifra uma vontade de imbri-
car as práticas artísticas na convivência com a experiência
contemporânea. Para além mesmo da noção de campo,
enquanto espaço circunscrito por limites e fronteiras, a ideia
de uma arte que seria autônoma e independente aparece
suplantada por uma arte inespecífica que se figura como
parte do mundo.
Na tentativa de pensar essa nova paisagem da arte con-
temporânea, os ensaios deste livro tomam objetos diversos
– práticas estéticas, antropológicas, poéticas, literárias – para
explorar com eles os modos como a expansividade da arte
hoje tem se constituído num fora de si radical. O limite, des-
se modo, deixa de se localizar enquanto uma anterioridade já
dada, para se perfazer de modo transitório, tênue ou poroso
enquanto lugar de experiência da própria obra (Kiffer).
Desde os debates em torno da especificidade da obra de
arte colocados por antropólogos e historiadores (Fernández
Bravo), à expansividade da poesia brasileira contemporânea
concebida a partir de um “hibridismo” entre verso e prosa,
noções como as de “formas mutantes”, “obra-instalação”

APRESENTAÇÃO 13

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(Wander Melo Miranda) ou “imagem pensiva” (Rancière8
e Schøllhammer) buscam definir conceitos que permitam
compreender esse “fora de si” para pensar “a proliferação
escriturária que vai fazer da própria atividade da escrita
uma passagem incessante entre regimes heterogêneos, seja
no interior das artes, seja entre as diferentes camadas de
campos discursivos” (Kiffer).
As organizadoras

Notas
1
Jacques Rancière, El espectador emancipado, Buenos Aires, Manantial, 2010,
p. 27, tradução nossa.
2
Rosalind Krauss, Sculpture in the Expanded Field, October, v. 8, p. 30-44,
Spring 1979. Lembremos a indefinição à que pretende dar nome o conceito:
“Nos últimos dez anos, coisas bem surpreendentes têm vindo a ser chamadas
esculturas: estreitos corredores com monitores de televisão; grandes fotografias
documentando o campo; espelhos colocados em ângulos estranhos em quartos
comuns; linhas temporárias cortadas no piso do deserto. Nada, pareceria,
poderia dar a essa heterogeneidade o direito de reclamar o que poderia ser
significado pela categoria de escultura. Só se a categoria for tornada quase
infinitamente maleável.” (Ibidem, p. 31.)
3
Rosalind Krauss, A Voyage on the North Sea. Art in the Age of the Post-Medium
Condition, London, Thames and Hudson, 1999, p. 20. Hal Foster tem apontado
que “durante as últimas três décadas ‘o campo expandido’ tem lentamente im-
plodido, já que termos antes tidos em contradição produtiva têm gradualmente
colapsado em compostos sem muita tensão, como nas muitas combinações do
pictórico e do escultural, ou de arte e arquitetura, em arte instalação hoje – arte
que, na sua maioria, cabe bem demais na cultura do desenho-exibição criticada
em outra parte neste livro”. (Hal Foster, This Funeral is for the Wrong Corpse,
em Design and Crime, and Other Diatribes, New York/London: Verso Books,
2002, p. 127, tradução nossa.) Segundo Jane Rendell, comentando Foster, o

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campo teria explodido “mais do que implodido, e (...) é por essa razão que as
categorias já não estão postas em tensão”. (Jane Rendell, Art and Architecture:
A Place Between, London, New York, IB Tauris, Sept. 2006, no prelo, tradução
nossa.)
4
Michel Foucault, Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines,
Paris, Gallimard, 1966.
5
Cf. Jacques Rancière, What a Medium Can Mean, Parrhesia, n. 11, p. 35-43,
2011.
6
Cf. Florencia Garramuño, Especie, pertenencia, especificidad, em e-misférica,
v. 10, n. 1, Winter 2013.
7
Ver Ana Kiffer, Sobre limites e corpos extremos, em Karl Erik Schøllhammer e
Heidrun Krieger Olinto (org.), Literatura e criatividade, Rio de Janeiro, 7Letras,
2012.
8
Rancière, El espectador emancipado.

APRESENTAÇÃO 15

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HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE
Tráfego de imagens, composições anacrônicas
e usos da cultura material nas representações
do tupi-guarani

Álvaro Fernández Bravo

O problema que gostaria de analisar brevemente neste


artigo é a posição intermediária ocupada pelos objetos como
evidência material para se teorizar sobre a natureza da cul-
tura. Quando falo de objetos, refiro-me a vestígios de uma
cultura material que se encontram em um espaço indeciso
e em transição: podem ser lidos como restos arqueológicos,
obras de arte, relíquias ou artefatos, mas ficam fora de lugar
e por isso mesmo podem ser apropriados, descontextualiza-
dos ou restituídos no seu entorno (e também num campo
disciplinar), possibilitando que se leia neles inúmeros e
diferentes tipos de evocações. São objetos que, quando se
reconhece seu itinerário, desafiam a autonomia e no seu

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percurso cruzam fronteiras epistemológicas, conceituais,
territoriais e temporais, desenhando assim um mapa de
contornos expandidos.
Durante os anos de 1920, tanto na Europa quanto na
América Latina, consolidou-se um interesse pelo mundo
indígena e sua cultura material como suporte para desen-
volver teorias estéticas e investigações etnográficas, ou ainda
postular hipóteses sobre a natureza das culturas nacionais.
As vanguardas apelaram ao referente indígena, às vezes para
desafiar a hegemonia dos paradigmas nacionalistas, outras
para consolidá-la. O tráfego de coisas aumentou, amparado
pelo aparato colonial (desdobrado tanto pelas potências
coloniais do Atlântico Norte como pelos Estados nacionais
latino-americanos), e com ele o número de depósitos e a
infraestrutura para receber objetos e catalogá-los. Nesse
processo, os etnógrafos ocuparam um rol chave. Como
sabemos, as coisas e os objetos adquirem essa condição
pelo uso e pelas camadas de olhares humanos que foram se
sobrepondo a eles, colocando-os, muitas vezes, em relação
com diferentes campos.
Os objetos que ingressaram e se movimentaram entre os
diferentes museus vão ser um dos focos de minha atenção
aqui, e em particular os debates em torno da especificidade
da obra de arte, posto que muitas delas só adquiriram essa
condição ao serem exibidas e contempladas como tais.

18 Álvaro Fernández Bravo

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Esse problema atraiu o interesse de numerosos pensadores
que se perguntaram pela migração da cultura material não
europeia, que foi trasladada em grandes quantidades desde
seus lugares arqueológicos em todo o mundo até chegarem
aos museus europeus, norte-americanos e também latino-
-americanos, revelando, pela primeira vez, conotações es-
téticas ali onde essa ênfase não se configurava.
Assim se pode falar de uma dupla migração da América,
Ásia e África para a Europa e os Estados Unidos e também
das áreas rurais para as cidades e, uma vez lá, entre os mu-
seus que se multiplicaram e foram ganhando especificidade.
Nas sucessivas trajetórias, os curadores e colecionadores
davam aos objetos novos atributos.
É possível encontrar um antecedente dessa preocupação
na viagem de Aby Warburg (1866-1929) para o território
da tribo dos índios Pueblo, no atual estado de Novo
México, Estados Unidos, em 1896. O contato de Warburg
com os Pueblo marcou as suas teorias sobre o Nachleben
e a sobrevivência de práticas simbólicas arcaicas em
manifestações artísticas contemporâneas e heterocrônicas.1
Warburg tinha começado a pensar na questão da
sobrevivência em obras do Quattrocento italiano, nas quais o
historiador de arte tinha reconhecido restos pagãos arcaicos.
Georges Didi-Huberman tem desenvolvido recentemente
uma provocativa e erudita releitura da obra de Warburg que,

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em contraste com as leituras de Ernst Gombrich com as
quais polemiza, busca reconhecer o valor do anacronismo.
Didi-Huberman procurou recuperar a complexidade do
legado warburguiano e elaborar alguns conceitos sobre
os quais voltarei no meu trabalho, em particular o da
heterocronia das coisas e das imagens.2 O caminho de
Warburg foi precursor, se comparado a outros etnógrafos,
artistas e pensadores que percorreram a América do Sul
poucos anos depois e se detiveram na cultura material
ameríndia para interrogá-la e recuperar as perguntas do seu
trabalho de campo para questionar sua própria prática e,
com ela, os contornos disciplinares e os efeitos do tráfego
de coisas e de conceitos.
Gostaria de pôr em diálogo essas perspectivas para ana-
lisar o problema do tempo heterogêneo, o tráfego de ima-
gens e os usos da cultura material tupi-guarani como meio,
isto é, os diferentes modos de pensar o capital simbólico
ameríndio como inespecífico – móvel e heterocrônico – e
também passível de evocar conotações simbólicas, histó-
ricas, etnográficas e filosóficas distintas. Para tal, vou levar
em consideração os debates que circundaram a publicação
da revista Documents, dirigida por Georges Bataille, e seu
efeito no modo de olhar para a cultura material guarani. O
diálogo e a tensão entre etnografia e vanguarda atravessou
a especulação estética e teórica durante esses anos e pode ser
reconhecido nas pesquisas sobre o mundo guarani.

20 Álvaro Fernández Bravo

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A figura de Alfred Métraux (1902-1963) e seus escritos
iniciais sobre as culturas tupi-guarani e tupinambá são um
ponto de partida para analisar o lugar do objeto de arte
como conglomerado de relações. Interessa-me examinar
a construção de um discurso sobre o mundo guarani a
partir dos restos e dos vestígios da cultura material con-
servados em museus do norte da Europa e consultados por
Métraux para escrever seus primeiros livros. A pesquisa de
Métraux tem apoio em fontes escritas (relatos de viagem,
crônicas coloniais e estudos etnográficos contemporâneos
ao momento de escritura), mas sobretudo em sua leitura
de “documentos” e nos cruzamentos interdisciplinares em
que convergem a etnografia, a arqueologia, a filologia e a
arte, o passado e o presente, a civilização e o primitivo.
Publicado em 1928, o mesmo ano em que Métraux fez a
curadoria, com Georges Henri Rivière, da exposição Les
Arts Anciens de l’Amerique, no Museu do Louvre, e em
que se começa a publicar em São Paulo a Revista de Antro-
pofagia, La civilisation matérielle des tribus Tupi-Guarani
oferece um repertório de objetos a partir dos quais se
desdobra uma teoria cultural. Porém, a assepsia metodo-
lógica do antropólogo nunca perde de vista o objeto que
ele usa para apoiar sua investigação.3 Especula sobre sua
antiguidade, sonda conotações onde se reconhecem os
debates do momento, elabora mapas e propõe itinerários

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para as coisas. Não segue o mesmo caminho do seu ami-
go Georges Bataille, mas mantém algumas preocupações
comuns. É por isso, talvez, que André Breton o chamou
de “o homem antipoético do século XX”.4
Sua intervenção pode ser lida como uma resposta (mas
também como um diálogo) com a revista Documents,
dirigida por Bataille, que começou a ser publicada em
1929, no ano seguinte ao do seu livro e da exposição de
arte americana de 1.200 objetos exibida no Louvre, “a pri-
meira grande exibição de arte pré-colombiana na Europa
ocidental”,5 e da mudança de Métraux para a Argentina,
onde já então dirigia o recém-fundado Instituto de Et-
nologia da Universidade Nacional de Tucumán. Nesse
mesmo ano de 1928, Métraux, com Jean Babelon e Georges
Bataille tinham editado um número da revista Cahiers de
la Republique des Lettres, des Sciences et des Arts intitulado
L’art précolombien. Ali se incluiu “L’Amérique disparue”,
um dos primeiros artigos de Bataille. Essa revista permite
reconhecer uma precoce manifestação do campo expan-
dido no qual se cruzam a história da arte, a ciência e a
literatura. É dentro dessas águas que quero ler a obra de
Métraux. Os objetos ameríndios ocupavam uma posição
desconcertante e aberta na exposição. Veremos os efeitos
dessa posição mais adiante.

22 Álvaro Fernández Bravo

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Cahiers de la République des Lettres, des Sciences et des Arts, 1928.

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Métraux, filho de um médico suíço que tinha se
estabelecido na província de Mendoza, Argentina, passou
sua infância na América do Sul, viajou para realizar estudos
no liceu da sua cidade natal, Lausane, Suíça, e logo continuou
seus estudos universitários em Paris e em Gotemburgo,
Suécia. Defendeu sua tese de doutorado na Sorbonne
no mesmo ano de 1928, e a publicou em duas partes: La
civilisation materielle des tribus Tupi-Guarani e La religión
des Tupinamba et ces rapports avec celle des autres tribus
Tupi-Guarani.6 Escreveu os dois livros sem ter realizado
trabalho de campo, baseando-se nas coleções de cultura
material recolhidas por seu maestro Erland Nordenskiöld
na América do Sul, entre 1901 e 1902, e alojadas no Museu
de Gotemburgo, e visitando os museus de Copenhague e
Berlim. Durante sua permanência em Paris, estudou com
Marcel Mauss e estabeleceu uma longa relação com o grupo
de intelectuais surrealistas que pouco depois iria se nuclear
na revista Documents. Dado meu interesse pelos objetos,
vou me concentrar no primeiro de seus livros.

Documentos da barbárie
Antes de ingressar no problema da heterocronia da civili-
zação material tupi-guarani, quero me deter brevemente no
debate que teve lugar na revista Documents, e que tem um
eco no trabalho do etnógrafo suíço que analisaremos aqui.

24 Álvaro Fernández Bravo

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Muitos dos membros da revista (1929-1930, 15 números)
estavam plenamente imersos na discussão sobre a posição
da cultura material de origem não europeia (primitiva)
nos museus europeus. O subtítulo da revista, Doctrines,
Archéologie, Beaux-Arts, Ethnographie, permite reconhecer
a convivência de categorias heterogêneas dentro da publica-
ção, que rechaçava a ideia do valor estético como autônomo,
desligado dos usos atribuídos às coisas. Essa posição pode
ser lida como um antecedente da perspectiva de Métraux
de ler os objetos num campo expandido. A relação entre
as vanguardas e a arte primitiva, já para fins dos anos de
1920, mostrava seus impactos sobre o mercado de arte e
consagrava a profanação desses objetos ao incorporá-los
decisivamente ao mercado, elevando sua cotização e con-
firmando os efeitos irreversíveis do museu sobre as coisas
que caíam nas suas garras. Como assinala Denis Hollier no
prefácio à edição de 1991, Documents “terá por plataforma
uma oposição ao ponto de vista estético”.7
Gonzalo Aguilar destaca que um andamento seme-
lhante ocorre no Movimento Antropofágico em 1928. A
estética que tinha ocupado um lugar central no Manifesto
Pau-Brasil, de 1924, perde agora importância e resulta
substituída por uma afiliação política ao negócio indígena.8
Trata-se, é claro, de uma afiliação retórica, afastada de todo
conhecimento etnográfico ou contato com o mundo ame-
ríndio, com o qual os membros da vanguarda antropófaga

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nunca tiveram uma aproximação efetiva, diferentemente
de Mário de Andrade, que manteve uma relação ativa com
o conhecimento científico, tanto nas suas viagens como na
sua leitura da obra de Koch-Grunberg, citado várias vezes
por Métraux no livro La civilisation matérielle.
Se as coisas podiam ter um valor como documentos a
partir dos quais se lia rastros de culturas primitivas, quer
dizer, arcaicas e remotas, é nesse valor de “meio” de acesso
que residia uma de suas maiores riquezas, porque em tal
valor já se preparava, naturalmente, uma reflexão sobre o
contemporâneo. Sem dúvida que a defesa do valor de uso em
face do valor de câmbio que o mercado impunha aos objetos
radicava em preservar o resto material que essas coisas ti-
nham tido antes de ingressar na economia da coleção. Muito
embora se tratasse de objetos primitivos, se privilegiava seu
valor de uso e se denunciava os “arqueólogos e os estetas”
pelo seu formalismo, interessados na “forma de uma asa [de
uma peça de olaria]”, mais incapazes de “estudar a posição
do homem que bebe”.9
Também significava conservar o lugar do intermédio
e aberto que tanto as imagens como os objetos possuem.
A condição de “externalidade” das coisas,10 muito embora
fosse fantasmagórica e opaca, as preservava do fetichismo da
mercadoria que sua cotização na bolsa de valores da arte já
começava a lhes imputar. O debate suscitado em Documents

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teve vários participantes ligados a Métraux, como o próprio
Georges Henri Rivière, coeditor de Documents com Bataille.
Rivière tinha sido colaborador, com Métraux, não só na-
quela primeira exposição no Louvre, mas também como
benfeitor, desde a subdireção do Musée de Ethnographie
du Trocadéro, dos envios de cultura material realizados
desde o Chaco até Paris pelo etnógrafo suíço. O Musée du
Trocadéro foi mudando de nome no decorrer dos anos,
primeiro para Musée de l’Homme e depois para o atual
Musée du Quai Brainly, e os objetos remitidos por Métraux
ainda permanecem lá e podem ser observados na página
web do museu. Foi no Musée du Trocadéro onde Picasso
teria se inspirado para pintar Les demoiselles d’Avignon,
logo após observar objetos de procedência africana expostos
nas vitrines.11
Carl Einstein, teórico da arte primitiva e colaborador da
publicação, também se interessou pela questão da cultura
material no campo expandido.12 Einstein tinha proclamado
alguns anos antes que “a era das ficções formalistas sobre a
arte tinha acabado”,13 e atacou a mediação europeia capita-
lista – da qual a vanguarda se revelava, em última instância,
cúmplice –, por considerá-la cultora duma arte burguesa,
elitista, individualista e afastada de um propósito coletivista
que incluía situar os objetos longe da intermediação dos
colecionistas.

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O termo “documento”, que dá título à revista, também
contrasta com a categoria de “monumento”. Monumento
alude à ideia da cultura como troféu e sublimação, que os
membros da revista rechaçavam, como fez Métraux, em
suas leituras etnográficas de objetos da arte a partir de sua
inserção no mundo social de onde tinham sido extraídos.
Não se tratava de sustentar a transparência da coisa, mas de
usá-la como disparador para desenvolver hipóteses sobre o
universo de onde provinham e no qual interatuavam.
As coisas adquiriam, assim, um valor post-medial, pela
sua condição inespecífica: a categoria de “belas artes”, em-
bora aparecesse no nome da revista, estava compreendida no
documento, que rechaçava toda hierarquia (um sapato tinha
o mesmo valor que uma diadema de origem viking ou uma
obra de Giacometti). Recuperava-se, assim, intensamente, o
valor de uso – como ia fazer Métraux na sua reconstrução da
cultura guarani a partir dos objetos reunidos na coleção de
seu maestro Erland Nordenskiöld no Museu de Gotembur-
go – e se afastava, também, de toda noção de pureza e cultura
alta. É por isso que a categoria de “civilização” poderá ser
usada por Métraux para se referir ao mundo guarani que
até então dificilmente poderia ter sido considerado como
tal. Na mesma linha, Paul Rivet, que tinha recomendado a
Juan B. Terán, Reitor da Universidade de Tucumán, para
contratar Métraux, assinalava que

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é capital o etnógrafo, como o arqueólogo, como o historiador
da pré-história, estudar tudo o que constitui uma civilização, sem
deslegitimar nenhum elemento, por insignificante ou banal que
pareça (…) os colecionistas têm incorrido no erro de um homem
que for julgar a civilização francesa atual pelos objetos de luxo
que podem ser encontrados junto a um grupo muito reduzido
da população.14

A afinidade da vanguarda com o “baixo”, a barbárie,


os detritos, o anacronismo e seu ataque furioso às hierar-
quias consagradas no museu não impediram nem em sua
manifestação parisiense, nem nas suas expressões latino-
-americanas, incluindo o Movimento Antropofágico bra-
sileiro, as alianças estratégicas e o colaboracionismo com as
instituições de acumulação simbólica primitiva localizadas
nos centros urbanos de poder político, tanto europeus
como latino-americanos, para onde o tráfego dos vestígios
da cultura material continuou sem pausa.15 No entanto,
os objetos, ainda que descontextualizados, albergam uma
resistência e uma carga histórica inapagável. Esse resíduo
temporal e simbólico vai ser o foco de interesse de Alfred
Métraux a respeito da cultura guarani.

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A civilização material tupi-guarani
O livro de Métraux parte de dois conceitos raramen-
te justapostos. Civilização material apresenta um par
conceitual que não é idêntico: nem à “cultura material”
nem à “civilização” isoladamente. A expressão pode se
explicar, conforme observam Bossert e Villar, em relação
ao alinhamento do antropólogo suíço com o enfoque
cauteloso e ainda disposto a conviver com a incerteza da
escola escandinava de americanistas na qual o seu maestro
Erland Nordenskiöld o tinha treinado. Nordenskiöld –
cujas obras Aby Warburg conheceu e consultou16 – con-
tribuiu ainda com a revista Documents com um artigo
sobre a cultura material indígena americana, cujas ideias
têm semelhança com o método de Métraux no seu livro
La civilisation matérielle des tribus Tupi-Guarani.17 No
entanto, o artigo tinha noções difusionistas que procu-
ravam “indagar na difusão de elementos culturais para
reconstruir o mapa étnico da América do Sul”. Tratava-
-se de uma posição moderada, disposta a reconhecer
invenções independentes e próximas a certo relativismo
cultural afastado dos extremos dogmáticos dos teóricos
da Kulturkreise do “difusionismo” alemão ortodoxo. 18
Assim, Métraux propunha estudar a “civilização mate-
rial”, um conceito que não estava associado com os grupos
indígenas Tupi-Guarani, particularmente na Argentina,

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onde o mundo indígena estava desprestigiado e tinha acesso
somente a museus etnográficos sob os parâmetros racistas
da antropologia física. Apesar de algumas tentativas de
ingressar relíquias indígenas em espaços associados com
a arte, como o Museu Nacional de Belas Artes de Buenos
Aires, elas tinham sido cortês, mas firmemente derivadas
para o campo da ciência, como no caso da urna Quiroga,
uma peça de olaria calchaqui descoberta e doada pelo
arqueólogo Adán Quiroga, eventualmente invisibilizada
no Museu Etnográfico da Universidade de Buenos Aires.19
Em contraste com esse antecedente, o guarani se en-
contra solidamente integrado no mundo paraguaio, onde
é, junto com o espanhol, uma das duas línguas oficiais do
Estado, e instituições como o Museu do Barro consagram
a cultura material guarani como emblema da cultura na-
cional.20 O guarani ocupa, no entanto, um lugar menos
nítido tanto na Argentina como no Brasil e na Bolívia, onde
também habitam falantes de línguas guaranis.
O Chaco é uma zona de limites imprecisos que compre-
ende regiões da Argentina, Bolívia, Paraguai e Brasil. Seu
território tem sido habitado e atravessado pelas migrações
guaranis e tupis durante vários séculos. Vou tomar os es-
critos sobre esse grupo étnico como um campo expandido
e em movimento que, a partir de objetos de arte de natureza
híbrida, por momentos carregados de um valor religioso,

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mas também dotados de conotações estéticas – tal como
os considerou Aby Warburg no seu ensaio sobre os índios
Pueblo do Novo México, elaborado em torno de 1927,
mas só publicado 50 anos mais tarde –,21 evidenciam um
conglomerado de relações a partir do objeto de arte que
compreende crenças, mitologia, práticas comunitárias e
religiosas e patrimônio linguístico.
Como assinalou recentemente Eduardo Viveiros de
Castro, aplicar categorias como “território” ou “comunidade”
ao mundo indígena entranha problemas difíceis de serem
resolvidos, ligados à migração, ao movimento e à flutuação
contínua da mesma composição desses grupos humanos.22
Como toda comunidade, os indígenas Tupi-Guarani
não permanecem imóveis, mas mudam, se deslocam,
incorporam novos componentes, se fragmentam e alteram
continuamente seu capital simbólico. Não permanecem
idênticos a si mesmos. Não obstante, esse fenômeno foi
reconhecido muito cedo pelos etnógrafos, particularmente
por Métraux (mas também por Nordenskiöld); foi ele
quem dirigiu as pesquisas de objetos realizadas durante
sua permanência em Gotemburgo. Métraux procurava
reconstruir o itinerário da suposta irradiação a partir de
um núcleo primigênio no Amazonas para diversas regiões
da América do Sul, incluindo a fronteira com o mundo
andino, onde ele estudou os então denominados indígenas
chiriguanos, como é possível observar nos mapas de
clara inspiração difusionista incluídos em La civilisation

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matérielle des tribus Tupi-Guarani. Ali se reconhece um
êxodo de leste a oeste, desde as costas atlânticas até o
interior do continente através dos rios amazônicos ou
das selvas do Chaco, que culmina nos grupos Chiriguano
(hoje denominados Avá-Guarani) da Bolívia e do norte
da Argentina.23 O efêmero dos gentilícios, incluindo o
próprio gentilício tupi-guarani, indica não só uma condição
atravessada por saberes contemporâneos à produção de
conhecimento sobre esses grupos, mas também a maneira
como o discurso para nomeá-los se torna rapidamente
anacrônico. Assim, categorias como “tribo” – no título da
obra de Métraux –, “nação” e “raça”, para se referir aos tupi,
revelam o anacronismo do discurso científico, atravessado
por uma forte ancoragem temporal. A língua se encontra
urdida pelo tempo em que foi usada e funciona, tal como a
filologia tem sugerido, não só como meio de comunicação,
mas como arquivo e depositório arqueológico do tempo
em que operou.
A palavra tinha um valor equivalente ao de um fóssil
para os padrões epistemológicos dos anos de 1920, em que
a antropologia se consolidava como disciplina,24 mas os
discursos etnográficos, como a literatura de viagem, tinham
perdido tanto a sua ênfase assertiva como a precisão cien-
tífica, e revelavam antes atributos estéticos e ideológicos
com valor para uma Kulturwissenschaft, a ciência da cultura
pela qual advogava Warburg. Ainda que a composição do
tupi-guarani apele a fontes escritas, objetos e imagens de

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um extenso repertório e através de um amplo arco tempo-
ral, todo esse fluxo de informação, bibliografia, citações e
referências conduz a uma teoria sobre o presente: a deca-
dência e a ameaça de extinção que se cerne sobre a cultura
guarani, e que o etnógrafo procura resgatar antes que seja
tarde demais.
As duas imagens que vemos à continuação, incluídas
no Capítulo “Sepultura” de La civilisation matérielle des
tribus Tupi-Guarani,25 permitem reconhecer o modo de
trabalho de Métraux, que combina as ilustrações incluídas
no livro de Hans Staden com fotografias contemporâneas
de objetos pertencentes à coleção do Museu de Gotembur-
go para elaborar uma teoria que culmina no presente. A
bibliografia sobre sepultura inclui obras de Hans Staden,
Jean de Léry, Yves D’Évreux, Claude D’Abbeville, Gabriel
Soares de Souza, André Thévet e Martin Dobrizhoffer,
todos autores de obras dos séculos XVI ao XVIII e que
cobrem uma extensa superfície e variedade de grupos étni-
cos. Mas, junto com eles, também cita Nordenskiöld, Karl
von Steinen, Juan Bautista Ambrosetti, Antonio Tocantins
e Carl von Martius, autores mais modernos, alguns deles
ainda contemporâneos do próprio Métraux e também es-
tudiosos de culturas muito diversas. Os objetos convocam
assim um repertório heterogêneo e impuro de saberes e
escritos que combinam momentos históricos desiguais,
de filiações com escassas probabilidades de interseção.

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Imagens tomadas de A. Métraux, La civilisation matérielle des tribus
Tupi-Guarani, 1928.

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O que é que Métraux propõe ler na superfície das coisas?
Seu método recupera as múltiplas capas de tempo alojadas
nos objetos e procura desenvolvê-las para entender uma
trajetória que cruza diversos períodos e regiões através dos
quais os Guarani se deslocaram. Por se tratar de uma pes-
quisa que confia em reconstruir uma trajetória, tem neces-
sariamente que apelar a uma mobilidade conceitual capaz de
registrar a sobrevivência e, por isso mesmo, a heterocronia
das práticas simbólicas através de extensos períodos históri-
cos. Na sua análise, o antropólogo reconhece componentes
estéticos, rituais, religiosos, crenças, superstições e práticas
coletivas. Sua teoria culmina nos Chiriguano e nos Omagua,
grupos sobreviventes, contemporâneos e portadores de
práticas nas quais o etnógrafo procurava reconhecer rastros
do passado. Suas hipóteses convivem com especulações
sobre as práticas funerárias dos Tupinambá e dos Guarani
originários, às vezes superpostas ou formando parte de um
mesmo núcleo inicial a partir do qual começou a difusão
dos ritos simbólicos ainda visíveis. Isto é, o passado arcaico
e o presente contíguo se tocam para postular uma imagem
do contemporâneo. O contemporâneo precisa do arcaico
para recortar seu território.
Nos ritos funerários se reconhece um rastro dos inte-
resses de Bataille que sobrevivem, ainda que muito mais
contidos, na prosa materialista de Métraux. A festa, o

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gasto improdutivo e a produção simbólica associados à
morte permitem identificar algumas das obsessões do
diretor de Documents na escritura muito mais mesurada
de Métraux. Contudo, a espessura da coisa conserva sua
complexidade e também sua opacidade. Mesmo que a
busca por escrutar filiações entre distintos grupos se man-
tenha, só permanece como uma hipótese que, em última
instância, sugere a indistinção e inespecificidade de cada
comunidade. Ainda que os indígenas sejam classificados
em quadros de inspiração etnográfica difusionista, tanto
nos seus nomes como nos seus atributos há um status
contingente e hipotético. A espécie só serve para demostrar
afinidades, e não diferenças essenciais entre grupos étnicos
como os Chiriguano: ainda que mantenham uma filiação
linguística com o mundo guarani, têm sido influídos por
outras culturas, principalmente as andinas. A língua exibe
sua própria limitação como segurança de pertencimento
simbólico.
Se pusermos em relação essa noção com a heterocronia
warburguiana, é possível pensar nos “fósseis viventes”, seres
perfeitamente anacrônicos da sobrevivência, semelhantes
aos “elos perdidos” definidos como formas intermediárias
localizadas entre estágios antigos e estágios recentes de
variação.26 Por essa condição inclassificável, o Nachleben

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desafia as taxonomias evolucionistas e permite interpor-se
como instrumento conceitual no campo expandido.
O olhar de Métraux sobre os grupos indígenas do Chaco
não é um olhar entusiasmado nem otimista. Seu trabalho
de campo foi difícil, numa área árdua e para a qual carecia
de algumas ferramentas, assim como um conhecimento
linguístico adequado.27 Encontrou comunidades em de-
cadência, submetidas a uma rápida erosão do seu capital
cultural e tratadas com indiferença pelos Estados nacionais
que agora as incluíam, mas que não tinham interesse em
preservar ou em estudar culturas com as quais, aliás, guar-
davam fortes relações de parentesco, como tem observado
Raul Antelo nos escritos de Métraux. Porém, a comprovação
da sobrevivência, como observa Didi-Huberman sobre os
vaga-lumes, encerra o reconhecimento de uma forma de
resistência cultural que conserva ao menos alguns vestígios
do passado ainda vivos.28
Os indígenas mantêm, ainda com grande perigo de
extinção, rastros que os vinculam com seus ancestres e sua
cultura primordial, primitiva, e por isso mesmo dotada de
um valor intrínseco post e pre-media, já que não têm sido
ainda integrados ao dispositivo do mercado da arte que
tinha começado a deglutir e mercantilizar [commodify]
na Europa a cultura material primitiva não europeia. Na
imagem que vemos a seguir, uma fotografia tomada por
Métraux durante seu trabalho de campo nos anos de 1930

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no Chaco, observamos a produção de vasilhas semelhantes
às que incluiu no seu capítulo sobre a sepultura na cultura
tupi-guarani.29

Fotografia de Alfred Métraux, c. 1930, Museu Etnográfico


de Genebra, Suíça.

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Conclusão
É possível assinalar, como já observou Raul Antelo, que
os anos de Métraux na Argentina lhe permitiram desenvol-
ver uma teoria que não só compreendia os grupos indígenas,
mas também as sociedades crioulas locais. “El problema de
la civilización”, artigo publicado na revista Sur, de Buenos
Aires, em 1937,30 pode ser lido também como uma teoria
do campo expandido, um manifesto contra “a multiplicação
artificial das diferenças culturais” e um reconhecimento
da língua como um patrimônio comum, uma forma de
comunidade que revela abertura, intercâmbio, interco-
nexão, impureza e comparação, antes que segmentação,
especialização e espacialização. Tanto nas pesquisas sobre
o mundo tupi-guarani como no seu trabalho de campo com
indígenas da região do Chaco durante sua permanência
na Argentina, Métraux, interessado como muitos dos seus
colegas no problema da perda e no impacto da aculturação
sobre comunidades vulneráveis, refletiu, com efeito, sobre
um problema mais amplo: a decadência das sociedades
modernas, o avanço do nazismo na Europa, a desatenção
das elites latino-americanas para com o patrimônio cul-
tural indígena e os padrões de imitação e importação do
capital simbólico europeu entre as burguesias locais, que
em muito pouco contribuíam para reparar o déficit cultu-
ral crônico dessas sociedades, subvencionando a imitação

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ou comprando arte europeia para abastecer seus museus.
Essa indiferença pelo mundo ameríndio era reveladora
de uma civilização, a crioula, dependente, atrasada e um
pouco grotesca; se trata da mesma acusação que articulou
o Movimento Antropofágico e que emerge em numerosas
vozes latino-americanas do período.
É preciso assinalar, para finalizar, que, além da recu-
peração do trabalho de Métraux a favor das “sociedades
primordiais”, realizada por Antelo, a tarefa do etnógrafo
nunca abandonou um compromisso ao menos equívoco
com o tráfego da cultura material aos centros de acumula-
ção cultural europeus, avaliados pelo aparato colonial: os
museus que as vanguardas tinham denunciado durante sua
fase heroica, mas dos quais se converteram em cúmplices
muito pouco tempo depois. Também os museus latino-
-americanos se abasteciam de mecanismos semelhantes,
a partir de estruturas políticas onde os Estados exerciam a
ação colonial sobre seus próprios povos originários.
As mesmas imagens que abasteceram arquivos e depo-
sitórios fotográficos são resultado de uma intermediação,
não só do etnógrafo com as instituições metropolitanas e
urbanas do saber, para as quais trabalhou, negociou e re-
meteu coisas e imagens, mas também dentro do universo
crioulo latino-americano, onde o contato com os indígenas,
e mesmo a possibilidade das tomadas fotográficas eram

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difíceis de se obter. As portas da comunidade chiriguana
tinham sido abertas aos cientistas por terras-tenentes
açucareiros. O etnógrafo se hospedou, acompanhado pelo
poeta argentino Oliverio Girondo e pelo escritor francês
Drieu la Rochelle, enquanto realizava trabalho de campo,
na confortável fazenda de um engenho saltenho. Numa
carta de 1932, em plena Guerra do Chaco, entre a Bolívia e
o Paraguai, uma contenda afetou gravemente os indígenas
que atravessavam continuamente fronteiras nacionais re-
centemente estabelecidas, e sobre a qual Métraux guardou
um sugestivo silêncio: “No Chaco voltamos a nos encontrar
[Drieu la Rochelle e Métraux] com Girondo e seu irmão,
e em um dos grandes engenhos da fronteira, hospedados
por Bercetche, um dos reis do açúcar e do trigo, tivemos
momentos très parisiennes.”31
Os engenhos de açúcar atraíram uma grande quantida-
de de indígenas guaranis até as ladeiras da cordilheira dos
Andes, na província de Salta, Argentina, tanto do Chaco
argentino como da Bolívia e do Paraguai, desde fins do
século XIX. Ofereciam trabalho e empregaram milhões de
operários. Como resultado dessa migração, suas formas de
vida sofreram uma severa aculturação, e muitos indígenas
morreram, vítimas de doenças e das difíceis condições
de trabalho que imperavam no engenho.32 Essas foram
as condições de possibilidade para os etnógrafos urbanos

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europeus e latino-americanos fotografá-los, entrevistá-los
e tomar contato inicial com esses indígenas e seus objetos.
Eles iniciaram, assim, os mapas, inventários, descrições e a
coleção de cultura material tupi-guarani ainda conservada,
mesmo que com escassa informação sobre sua origem e o
modo como as coisas foram obtidas e arquivadas nos acervos
dos museus onde ainda permanecem.

Bibliografia
Pierre Lauret, Le silence des masques: le Musée du Quai Brainly comme
tombeau des peubles authochtones, Situations: Cahiers Philosophiques,
n. 108, p. 105-125, dec. 2006.

Alfred Métraux, Antropofagia y cultura, em La religion des Tupinamba et


ses rapports avec celle des autres tribus Tupi-Guarani, trad. Silvio Mattoni,
Buenos Aires, El Cuenco de Plata, 2011.

Notas
1
Aby Warburg, Images from the Region of the Pueblo Indians of North America,
tradução e ensaio de interpretação Michael Steinberg, Ithaca, University of
Cornell Press, 1995 (1. ed. alemã baseada em conferência de 1927).
2
Georges Didi-Huberman, La imagen superviviente. Historia del arte y tiempo de
los fantasmas según Aby Warburg, traducción Juan Calatrava, Madrid, Abada,
2009; José Emilio Burucúa, Historia, arte, cultura. De Aby Warburg a Carlo
Ginzburg, Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 2003; Serge Gruzinski,
La pensée métisse, Paris, Fayard, 1999.
3
Alfred Métraux, La civilisation matérielle des tribus Tupi-Guarani, Paris, Librarie
Orientaliste Paul Geuthner, 1928.

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4
Edgardo Krebs, El escritor argentino y la tradición etnográfica, Oliverio
Girondo. Exposición homenaje, 1967-2007, Buenos Aires, Museo Xul Solar,
2007, p. 34-44, Catálogo de exposição.
5
Ibidem, p. 36.
6
Métraux, La civilisation matérielle des tribus Tupi-Guarani; Idem, La religión
des Tupinamba et ses rapports avec celle des autres tribus Tupi-Guarani, Paris,
Leroux, 1928; Federico Bossert e Diego Villar, La etnología chiriguano de Alfred
Métraux, Journal de la Société des Américanistes, v. 93, n. 1, p. 127-166, 2007.
7
Denis Hollier, Le valeur d’usage de l’impossible, prefácio a Documents, Paris,
Jean Michel Place, 1991, p. VII-XXXIV. Cf., também, James Clifford, The
Predicament of Culture. Twentieth Century Ethnography, Literature and Art,
Cambridge, Harvard UP, 1988; e Hal Foster, Prosthetic Gods, Boston, October
Books, 2004.
8
Gonzalo Aguilar, Por una ciencia del vestigio errático. Ensayos sobre la antropo-
fagia de Oswald de Andrade, seguido de La única ley del mundo, de Alexandre
Nodari, Buenos Aires, Editora Grumo, 2010, p. 10.
9
Marcel Griaule, Poterie, Documents, n. 4, p. 236, 1930; Hollier, Le valeur d’usage
de l’impossible, p. x.
10
Bill Brown, Thing Theory, Critical Inquiry, v. 28, n. 1 (Things), p. 1-22, Autumn
2001.
11
Sobre o Musée du Quai Brainly, veja-se Krebs, El escritor argentino y la tradi-
ción etnográfica, e Néstor García Canclini, La sociedad sin relato. Antropología
y estética de la inminencia, Buenos Aires, Katz, 2010. O último realiza uma
crítica demolidora da instituição fundada em 2006 e tributária do espetáculo
e do formato de parque temático (que inclui plantas tropicais ad hoc e motivos
terceiro-mundistas). A coleção, agora despojada de toda referência histórica à
origem dos objetos exibidos, muitos obtidos pelas expedições nas que participa-
ram membros de Documents, como Michel Leiris na expedição Dakar-Djibouti,
através do saqueio e a obtenção em condições pouco claras de objetos rituais
transformados em “arte” (Michel Leiris, L’Afrique fantôme, Paris, Gallimard,
1988). Sobre Picasso e a arte africana, ver Foster, Prosthetic Gods.
12
Raul Antelo, Apostilla a Alfred Métraux. Antropofagia y cultura, em Alfred
Métraux, La religion des Tupinamba et ses rapports avec celle des autres tribus
Tupi-Guarani, trad. Silvio Mattoni, Buenos Aires, El Cuenco de Plata, 2011.

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Carl Einstein [1919], On Primitive Art, trad. Charles W. Haxthausen, October,
13

v. 105, p. 124, Summer 2003.


Paul Rivet, L’Étude des civilisations matérielles: ethnographie, archeologie,
14

préhistoire, Documents, n. 3, p. 133, juin 1929.


Eduardo Jardim, A brasilidade modernista: sua dimensão filosófica, Rio de
15

Janeiro, Graal, 1978; Leiris, L’Afrique fantôme.


Warburg, Images from the Region of the Pueblo Indians of North America, p. 62.
16

Erland Nordenskiöld, Le balancier a fardeaux et la balance en Amérique,


17

Documents, n. 4, p. 177-182, 1929.


Bossert e Villar, La etnología chiriguano de Alfred Métraux, p. 129; Gastón
18

Gordillo, Lugares de diablos. Tensiones del espacio y la memoria, Buenos Aires,


Prometeo, 2010.
Andrea Roca, La vida social de una urna, em La vecindad de los objetos: lo pro-
19

pio y lo ajeno en el estudio de los sistemas clasificatorios del Museo Histórico


Nacional y el Museo Etnográfico, Tese (Licenciatura), Universidad de Buenos
Aires, 2003.
Ticio Escobar, La belleza de los otros: arte indígena del Paraguay, Asunción,
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Centro de Documentación e Investigaciones de Arte Popular e Indígena del


Centro de Artes Visuales, 1993.
Warburg, Images from the Region of the Pueblo Indians of North America.
21

Eduardo Viveiros de Castro, A indianidade é um projeto do futuro, não uma


22

memória do passado, Prisma Jur., São Paulo, v. 10, n. 2, p. 257-268, jul.-dez.


2011, disponível em <http://www4.uninove.br/ojs/index.php/prisma/article/
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Gordillo, Lugares de diablos.
23

Roberto Esposito, Tercera persona. Política de la vida y filosofía de lo impersonal,


24

trad. Carlo Molinari Marotto, Buenos Aires, Amorrortu, 2009.


Métraux, La civilisation matérielle des tribus Tupi-Guarani, p. 272-273.
25

Didi-Huberman, La imagen superviviente, p. 60.


26

HETEROCRONIA E CONTEMPORANEIDADE 45

EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 45 10/03/14 11:06


Silvia Hirsch, De la autoridad etnográfica a la pasión etnográfica: una relectura
27

de Alfred Métraux, Cuadernos del INAPL, n. 18, Buenos Aires, Secretaría de


Cultura de la Nación, 1998-1999, p. 223-232; Krebs, El escritor argentino y la
tradición etnográfica.
Georges Didi-Huberman, Sobrevivência dos vaga-lumes, trad. Vera Casa Nova
28

e Márcia Arbex, revisão de Consuelo Salomé, Belo Horizonte, Editora UFMG,


2011.
Carlos Darío Albornoz, La colección Métraux, Separata do Catálogo da mos-
29

tra itinerante De Suiza a Sudamérica – Etnologías de Alfred Métraux, Museu


Etnográfico de Genebra, Genebra/Suíça, 1998.
Alfred Métraux, El problema de la civilización. La noción del cambio en el
30

dominio moral e intelectual de las sociedades, Sur, n. 30, p. 7-27, marzo 1937.
Carta de 26 de setembro de 1932 a Yvonne Oddon apud Krebs, El escritor
31

argentino y la tradición etnográfica, p. 37.


Gordillo, Lugares de diablos.
32

46 Álvaro Fernández Bravo

EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 46 10/03/14 11:06


A ESCRITA E O FORA DE SI

Ana Kiffer

Un aveugle ne mettra pas l’âme dans la glande pinéale.


L’âme se trouve où il sent, où le vivant se mobilise au
contact de monde réel. Descartes considérait comme
centre ce qui vient de la tête et en cela privilégie la vue.
Mais le rôle du centre ne peut supprimer que la sen-
sibilité est à l’oeuvre dans les organes périphériques.
L’espace n’est pas que visuel.
Bernard Andrieu

Este texto, nascido de uma série de impossíveis, buscará


ser um sistema móvel e provisório de notações em torno da
noção de escrita e suas relações com um modo discursivo
formulado sob a égide de um “fora de si”. Tentaremos es-
boçar fragmentos de leituras, sem perder de vista o contexto

47

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em que estes se inserem, e pensar, sobretudo, nas transfor-
mações sofridas por essa noção no contexto do pensamento
dos últimos 50 anos.
Roland Barthes, em texto de 1973, retoma, repensando
sua própria trajetória, a noção de escrita:

O primeiro objeto com que me deparei em um trabalho


passado foi a escrita: mas entendia então essa palavra em sentido
metafórico: para mim, era uma variedade do estilo literário, sua
versão (…) coletiva, o conjunto dos traços da linguagem por meio
dos quais um escritor assume a responsabilidade histórica de sua
forma e se vincula, com seu trabalho verbal, a certa ideologia da
linguagem.1

Ninguém melhor do que o próprio autor resumiria a


empreitada histórica do Grau zero da escrita, livro de um
jovem Roland Barthes que fez com que o debate intelectual
francês à época, centrado na figura de Jean-Paul Sartre e
sua noção de engajamento literário, rodasse, rodopiasse. A
meu ver, Barthes não abandonará essa visão metafórica da
escrita (e seria possível fazê-lo?), no entanto, e esse texto
de 1973 o demonstra, o autor vira os olhos, não por acaso
num contexto em que a corporalidade assume importantes
estratos discursivos na sociedade, para uma visão da escrita
que ele mesmo diz (cito) “volta-se para o sentido ‘manual’

48 Ana Kiffer

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da palavra”.2 Tal sentido, seria importante notar, apesar de
reinscrever a noção de escrita no interior das conhecidas
dicotomias entre o intelectual e o manual, o metafórico e
o literal, o espiritual e o corporal, deixa entrever, ao menos
para esses nossos olhos já cansados de hoje, saídas interes-
santes e não negligenciáveis. A primeira delas será aquela
que implicará escrita e gesto:

Para o padre Jacques van Ginneken, jesuíta, a primeira lin-


guagem da humanidade foi uma linguagem gestual; (…) [para
ele], a promoção da vogal na linguagem e o aparecimento da
escrita estariam situados entre a era dos gestos e a dos cliques; em
outras palavras (proposição exorbitante), a escrita seria anterior
à linguagem oral.3

Aqui, estamos menos interessados no conteúdo histórico


do discurso de Barthes e mais interessados nisso que desse
conteúdo se libera enquanto potencialidade em torno da
noção de escrita. Do gesto, por conseguinte, interessa-nos
não sua anterioridade ou posteridade, mas a possibilidade
que abre para romper a dicotomia entre o oral e o escrito.
Dito de outro modo: a potencialidade de uma escrita que já
não mais se oponha à oralidade é o que a escrita enquanto
gesto pode liberar para nós. Rancière, 20 anos depois de
Barthes, desenvolve esse mesmo tema, no já famoso livro

A ESCRITA E O FORA DE SI 49

EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 49 10/03/14 11:06


Políticas da escrita.4 Mas o próprio Barthes não deixa de tirar
algumas conclusões dessa nova potencialidade:

(…) não é necessário fazer a escrita descender da fala (se-


gundo o mito científico da “transcrição”) para nela distinguir as
duas coordenadas da linguagem: o paradigma e o sintagma. A
clivagem está alhures: (…) onde se pode opor sintagmas lineares
(escritas e falas) e sintagmas radiantes [eu diria rizomáticos]
(nas figurações murais, nas da pintura e nas dos quadrinhos).5
[Eu acrescentaria: em algumas escritas contemporâneas, como
veremos mais adiante.]

Vejam que Barthes já aqui busca observar – mesmo que


através do caráter manual da escrita – novas formas de sua
própria realização que escapariam ao funcionamento dico-
tômico do pensamento estruturalista que ainda regia sua
reflexão sobre a linguagem em 1973. Sintagmas radiantes, ou
rizomáticos, notados por Barthes na produção da escrita de
quadrinhos, nos murais ou mesmo na pintura, deixam en-
trever essa proliferação escriturária que vai fazer da própria
atividade da escrita uma passagem incessante entre regimes
heterogêneos, seja no interior das artes – imagem, desenho,
máquina, mão, letra, palavra, traço, poesia etc. – seja entre
distintas camadas de campos discursivos.

50 Ana Kiffer

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Uma segunda e última instância a destacar, no escopo
do que por ora nos interessa discutir com o texto de Barthes
parte da seguinte reflexão:

(…) em estranghelo (antiga escrita siriática), o escriba vai de


cima para baixo, mas para ler é preciso girar o manuscrito 90˚ para
a direita e ler horizontalmente: o corpo do ledor não é o corpo
do escrevedor: um vira o outro; talvez aí esteja a regra secreta de
todas as escritas: a “comunicação” [entre aspas no texto] passa
por um avesso.6

Notemos a riqueza dessa indicação: primeiro, aquilo


que a atividade da escrita exigiria do escriba em termos
corpóreos, mais ainda além, na alteração mesma da lógica
linear que caracterizaria o próprio da atividade escriturária
e leitora. Segundo, a hiância que se estabelece entre o corpo
que escreve e o corpo que lê. Terceiro, a metamorfose que
tal hiância vem exigir para sair de um corpo escriturário
e adentrar um corpo ledor. Por último, a intervenção
propriamente barthesiana sobre o conteúdo histórico da
escrita siriática, qual seja: a desconstrução em torno do mito
“comunicacional” de toda e qualquer escrita.
Interessa-nos diretamente essa metamorfose dos corpos
através das escritas. Sobre isso vimos trabalhando há muito.
A própria noção de “fora de si”, título deste trabalho e, ain-
da mais, título da pesquisa que vimos desenvolvendo nos

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últimos dez anos, está atravessada por esse “avesso”, para
usar as palavras de Barthes. Se por um lado estar “fora de si”
exprime uma exacerbação das intensidades afetivas e, por
conseguinte, corpóreas, por outro, essa mesma noção vem
evocar um certo deslocamento, mais além, uma profunda
dissociação entre um “eu mesmo” e algo fora dele.
Poder-se-ia dizer, assumindo até certo ponto a hipótese
levantada por Evelyne Grossman em L’angoisse de penser:

É possível que com Blanchot, assim como com muitos outros


escritores modernos, ler requer menos de uma captação imagi-
nária e mais da nossa capacidade de suportar os efeitos dos afetos
mais ou menos violentos, desestruturantes, que o texto exerce
sobre nós. Em outros termos, trata-se para o leitor de ser capaz
de não resistir aos efeitos transferenciais reais que exerce sobre ele
a escrita, ainda melhor, de ser capaz de certa atitude dissociativa
– qualidade requisitada, como se sabe, de todo analista como de
todo analisado.7

Evelyne Grossman vem ressaltar que a relação com a es-


crita é uma relação dissociativa. Se somarmos essa assertiva
à contribuição de Barthes, deveríamos notar que tanto autor
quanto leitor atravessam essa mutação corporal através do
processo de escrita/leitura. A paradoxal noção de “fora de
si” encontra aqui sua própria condição de possibilidade,

52 Ana Kiffer

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deixando de ser um julgamento moral ou imaginário sobre
aquele que perde a razão em estado de fúria, o “fora de si”
ganha através da escrita essa liberação – estar habitado
pelo fora, ou escrever como processo de uma experiência
do desabrigo subjetivo é o que vem nos propor muitas das
experiências artísticas modernas e contemporâneas. Não
longe dessa experiência se situa Marguerite Duras quando
descreve a invenção de seus personagens: “Então elas me
vêm de alhures (…) A pretensão é de se crer só diante da
folha enquanto tudo vos acontece de todos os lados. (…)
isso vos acontece do exterior.” Ou ainda:

É sem dúvida o estado que tento encontrar quando escrevo;


um estado de escuta extremamente intensa, mas veja, do exterior.
Quando as pessoas que escrevem dizem: quando se escreve se está
na concentração, eu diria: não, quando escrevo tenho o sentimento
de estar numa extrema desconcentração, não me possuo mais,
(…) tenho a cabeça esburacada.8

A cabeça esburacada, furada, transpassada, de Duras


não deixa de remeter para essa experiência de disjunção
do corpo, para esse estado de despossessão que faz entre-
ver uma experiência corporal distante daquela que funda e
une corpo e identidade numa só e mesma série, numa só e
mesma figura humana.9 Outras corporalidades, portanto,

A ESCRITA E O FORA DE SI 53

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é o que vem reivindicar a escrita enquanto prática ou cena
de um estar “fora de si”.
Mas, muito antes de Duras, a escrita dos Cadernos,
de Antonin Artaud, já inventava outro comportamento
para as palavras, exigindo através de um novo modo de
dizer a criação, segundo o autor, de “novos corpos de
sensibilidade”.10 Em outros trabalhos já buscamos desen-
volver a relação plástica do traço a sua figuração poética das
palavras.11 Assim como não pudemos deixar de observar a
produção incessante das figuras pontiagudas e das caixas e
cubos como mutações desse corpo que, ao se fazer em cor-
pos escritos, vem transformar-se em máquinas perfurantes
e máquinas de sopro capazes de inscrever, rasgar, cortar o
abscesso da e na linguagem. Máquinas de sopro que bus-
cavam essa sensação vibrátil na experiência da escrita e da
leitura. Procedimentos que, por conseguinte, encetavam a
criar, segundo o autor, a experiência de uma “linguagem
raio”.12 Agenciamento ou não de corpos sem órgãos, como
quis Artaud e, posteriormente, Deleuze e Guattari,13 o mais
importante nos parece ser a notação sonora, vibrátil, tátil,
que essa escrita quer assumir. Novos corpos de sensibili-
dade exigem, certamente, uma alteração na organização
dos sentidos, como vimos também insistindo. Evelyne
Grossman ressalta:

54 Ana Kiffer

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(…) para o escritor não se trata mais de anotar seus pensamen-
tos para fixá-los num caderno, mas sim de inventar um suporte
suficientemente móvel e plástico, um sutil subjétil, como ele disse,
para que as frases inscritas possam ser a todo momento retoma-
das, recolocadas em movimento, entrando num outro conjunto
de fragmentos moventes.14

A crítica nos alerta para uma importante transformação


– o caderno do autor começa a se aproximar mais das ex-
periências dos cadernos dos artistas, sem, no entanto, nisso
se transformar. Estamos ainda num regime de produção
de discurso da e através da escrita. Mas a escrita saiu de si
mesma, deixou sua identidade fixadora para transformar-
-se num procedimento algo móvel, vibrátil e, sobretudo, no
contexto de Artaud, algo que pudesse refazer seu próprio
corpo, ele mesmo também doente, desalojado e despossuído
de “si mesmo”. Evelyne vem insistindo no poder de rasgo,
na violência disruptiva dessas experiências de escrita/lei-
tura. Ou, como já havia dito Maurice Blanchot, “[o] jogo
da etimologia corrente [que] faz da escrita um movimento
de corte, um rasgo, uma crise (…) [é] simplesmente a lem-
brança da ferramenta própria para escrever que era também
própria para fazer incisões: o estilete”.15
Gostaríamos, aqui, não de discordar dessa hipótese,
mas de sobre ela inserir um deslocamento, um passo ao

A ESCRITA E O FORA DE SI 55

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lado. Tal passo poderia indicar que muitas dessas escritas
“desestruturadas” e “desestruturantes”, como quer Evelyne
Grossman, buscavam modos de se relacionar criticamente
com os projetos de reconstrução da humanidade a partir
do pós-guerra. Seria preciso dizer ainda que esse passo ao
lado só é possível porque tanto os grandes blocos teóricos
quanto os grandes movimentos estéticos sumiram da cena
contemporânea deixando não um vazio, mas a possibili-
dade mesma de um exercício crítico que se atrele menos
às grandes durações que buscavam encetar esses autores
anteriores, até agora aqui citados. Por grandes durações es-
tamos sugerindo não exatamente o seu caráter cronológico
e histórico (mesmo que também por aí se possa dizer algo
sobre isso), mas, e sobretudo, as categorias universalistas
que sustentaram o arcabouço desses discursos. Muitos
“sempre” e muitos “nunca” em torno de noções tais como
as de “linguagem”, de “escrita”, de “sujeito”, abundaram nas
teorias estruturalistas, assim como em determinadas corren-
tes psicanalíticas, e por que não dizer, no investimento ora
heroico ora suicida que os próprios artistas viveram com
suas obras, dentre eles Artaud, mas também Blanchot ou
mesmo Marguerite Duras. É por isso mesmo que podemos
dizer hoje que essa relação “intrínseca” entre a escrita e o
móvel, vibrátil, tátil não se dará “sempre” através de um
vínculo “desestruturante”, violento, dilacerante, como

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sugere Evelyne Grossman na esteira de Artaud e Blanchot.
A própria noção de estrutura – mesmo que ainda apareça
de modo viciado em nossas visões de mundo – já não dá
mais conta do que nos acontece hoje.
Se os Cadernos de Artaud, em seu próprio caráter asilar,
atuaram como testemunho e efeito da barbárie da Segunda
Guerra, e, nesse sentido, não poderiam deixar de inscrever a
escrita enquanto lembrança etimológica daquele ato/palavra
cruel – e rasgar e cortar a própria carne –, hoje dificilmente
encontraremos, digamos, esse corpo heroico e glorioso que
se ofereça enquanto testemunha de sua própria palavra.
De modo distinto, porém ainda num deslocamento em
continuidade com essa escrita enquanto crise e rasgo, é que
também vem se inscrever muitas das imagens gritadas do
cinema de Glauber Rocha. Sua crítica delirante não deixou
de observar com muita lucidez esse desabrigo que sustém,
ao mesmo tempo em que põe em suspensão, a subjetividade
do próprio artista, agora no caso o artista latino-americano
e sua submissão à outra barbárie, a dos regimes totalitários
que assolaram a década de 1960 e 1970 do lado de cá. Seu
fim profético em Lisboa,16 dizendo realizar na própria carne
a estética da fome, pobre, doente e miserável na Europa, faz
entrever de modo contundente essa escrita mais que escrita
de que falava Rancière,17 e que vimos aqui bordejando, qual
seja: um corpo se entrega para confirmar a escritura.

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Quando vemos as experiências performáticas do corpo
em movimento em algumas obras de Hélio Oiticica,18 sobre-
tudo seus Parangolés, ou na performance Corpo coletivo, de
Lygia Clark,19 revemos, quase que de modo paradigmático,
a pregnância em torno desse corpo glorioso, a que ao fim e
ao cabo se oferecem, seja enquanto dor seja enquanto êxtase,
muitas dessas manifestações dilacerantes ou “desestrutu-
rantes” da arte do pós-guerra até mais ou menos os anos
de 1960 e 1970. Aliás, dor e êxtase são pares fundamentais
a uma estética do “fora de si”. Não por acaso muitos desses
autores aqui citados flertaram com a mística medieval. Ou
dela buscaram um entendimento muito particular.
É bem verdade que esse corpo extático não é o mesmo em
Artaud, Glauber, Oiticica ou Clark. E, por favor, entendam:
não é a isso que nos referimos. No entanto, uma série os liga
sem excluir a multiplicidade de suas diferenças. Essa série,
e isso é o que vimos tentando dizer, se liberou por um lado
a escrita de seu caráter fixador, imóvel, de suas tendências
imaginárias, por outro não a liberou de sua aposta numa
“eternidade”. Em Artaud, tal manifestação é flagrante, e
a leitura de Grossman só vem confirmar esse caráter: “O
texto não tem nem começo nem fim. Dito de outro modo:
nem nascimento nem morte. ‘Eu jamais nasci’, repete ele
desde Rodez, e em consequência não pode morrer”, conclui
Evelyne Grossman.20

58 Ana Kiffer

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Gostaríamos de sugerir, a partir dessa genealogia frag-
mentada e fragmentária que fizemos até aqui, que uma
estética do “fora de si” não se caracterizaria exclusivamente
por essa exacerbação dos afetos, que faz crer que um corpo
– seja do autor, seja do leitor – se entregará como confir-
mação da letra morta ou da escrita órfã. Não esqueçamos
que o “fora de si” é antes de tudo um desalojar da alma, um
passo ao lado, um despossuir-se que reaparecerá na cena
contemporânea através de, como disse Ricardo Basbaum,
“uma falência das vozes interiores”.21 É interessante pensar
como a literatura se sustém e se suspende a partir daquilo
que foi durante séculos o seu próprio cerne e questão: a
constituição de vozes interiores.
Mas ao dizer isso não podemos negar ou esquecer que
a construção artística desses corpos gloriosos ou extáticos
abriu um lastro possível de experimentação para que no-
vos corpos sensíveis fossem criados no seio da arte e da
literatura. A primeira, sem ter mais a obrigação com a tela,
com o enquadre, com a moldura fez saltar para a vida um
sem-número de experiências. A segunda, até certo ponto
liberta das estruturas dicotômicas, assim como da lineari-
dade narrativa, fez com que tudo aquilo que parecia não se
poder ali dizer fosse percorrendo o campo de sua experi-
ência. Ainda se deveria notar que o entrelaçamento, efeito
do próprio deslocamento ou expulsão de suas identidades

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anteriores, fez com que esses dois campos – literatura e
arte – investissem em novos modos de diálogo entre si. Um
deles será através da escrita. De que maneira saltará de um
para outro lado essa prática, e qual transformação sofrerá
a escrita em cada uma dessas passagens, são perguntas
necessárias àquele que se aproxima de experiências-limite
entre esses dois campos hoje.
Sob esse aspecto gostaríamos ainda de acrescentar dois
fragmentos ou hipóteses de leitura, a partir de um projeto
de uma artista contemporânea, Tatiana Grinberg, de quem
vimos também falando e aproximando nossa pesquisa,
sobretudo no último ano e meio.
O projeto, intitulado Placebo01,22 foi exposto de abril
a junho de 2011 no Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro, com curadoria de Luis Camillo Osório. Depois de
muitas conversas, encontros e visitas ao MAM, hoje temos
em mãos o catálogo recém-lançado e composto de fotos e
desenhos do projeto, texto-plaqueta da exposição, escrito
por Camillo Osório, assim como uma longa conversa entre
a artista, Ricardo Basbaum e Cecília Cotrim. O objeto, fruto
do projeto, é um chip envolto numa capa plástica moldada
pela forma da cavidade bucal.23 Tal chip é na verdade um
captador; ele recebe o som por FM e vibra.24 Ou, como
disse Grinberg, “ele é um receptor, que transforma aquelas
ondas FM em vibração”.25 Introduzido no interior da boca,

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em contato com os ossos dos dentes deverá captar e vibrar
as ondas sonoras, fazendo com que o experimentador ouça
fragmentos de entrevistas realizadas pela artista com pessoas
que tenham passado por alguma situação de dor extrema,
cirurgia ou parto, por exemplo.
Desse projeto e da conversa da artista com Cotrim e
Basbaum, recém-lançada no catálogo da exposição, relevo
dois pontos para concluir essa outra conversa, que este texto
quis encetar. O primeiro deles diz respeito à forma como
Grinberg (entre outros, é claro) deslocará justamente esse
corpo extático ou glorioso que herdamos mais ou menos
todos das experiências artísticas da segunda metade do sé-
culo XX, a partir da relação entre a experiência do corpo e a
constituição de mundos ou “vozes interiores”. Tomemos a
instalação Entre quatro paredes,26 originalmente feita numa
ocupação/performance em um hotel do bairro da Lapa, no
Rio de Janeiro (o LoveStory), mas reinserida nesta última
exposição no Museu de Arte Moderna do Rio.
Impossível não notar a expulsão que sofre o participante
do interior da caixa de Entre quatro paredes. Sua entrada
possível mais se assemelha a uma intrusão. O interior não se
abre, não acolhe, não convida: fechado, branco, de luz fria
e com alguns espelhos refletores, ele se nos aparece através
dessas frestas / buracos pelos quais se pode “penetrar” partes
do corpo e, pela percepção que essa penetração provoca,

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experimentar deslocamentos desse centro unitário, desse
aglutinar do corpo e da experiência vivida na constituição
ou no reconhecimento de um “si mesmo”. Poder-se-ia dizer
que a experiência extática dos Parangolés, ou mesmo a dos
Núcleos, de Oiticica, também buscavam um deslocamento
ou projeção desse mundo interior para fora. Como disse o
próprio Hélio, tratava-se de uma obra de “conquista do ex-
terior”. No entanto, como vem observando Nuno Ramos,27
entre outros, essa conquista cada vez maior do exterior teria,
na obra de Hélio, acabado por criar um imenso interior.
Esse desejo cada vez maior de fazer aparecer na obra a vida,
acabou por congelar num espaço específico aquilo que seria
a abertura e o fluxo da própria relação obra/vida. Não me
interessa discutir isso aqui. Sua hipótese me parece válida
apenas para atentarmos que algo de uma outra experiência
do “fora de si” acontece nos espaços e nas relações entre
escrita e arte hoje.
Segundo depoimento de Tatiana Grinberg em entrevista
ainda inédita que eu e Renato Rezende28 realizamos com a
artista, ela disse ter tido, no decorrer da exposição Pla-
cebo01, o relato de uma menina cega que “experimentou” a
instalação Entre quatro paredes. Tal relato pode nos ajudar
a concluir essa hipótese. A menina, que sofria da privação
de um dos sentidos, disse sentir-se, ao inserir partes de seu
corpo nas frestas da caixa fechada, como uma bailarina

62 Ana Kiffer

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dançando sobre uma perna só. Alteração radical do apara-
to perceptivo, desequilíbrio do corpo, agora reequilibrado
numa linha tênue de sensações quase imperceptíveis, que
associam e desalojam a experiência subjetiva. Impedir a
constituição de uma unidade entre corpo e identidade, ex-
pulsar o eu de seu mundo interior, pode ser, como indica
Grinberg, uma nova possibilidade de experimentar o dentro
e o fora do mundo ao mesmo tempo. Nesse sentido, o efeito
imediato é não somente o apagar das fronteiras dentro e
fora, mas, e sobretudo, o deixar entrever, no flash de uma
fresta, que tais fronteiras, além de móveis, são efeitos visu-
ais, sonoros, táteis, entre muitos outros, de construções e
desconstruções permanentes e aleatórias. Ou poderíamos
dizer com Andrieu que

as diferenças entre dentro e fora, entre limpo e sujo, entre


masculino e feminino, frente e trás, natural e artificial não existem
mais no corpo híbrido: não que sejam dissolvidas numa fusão
ou confusão de gêneros, mas porque tornaram-se dispositivos
operatórios para chegar até o outro lado do corpo, nesses lugares
inéditos que se dão através da consciência experiencial e não mais
somente através das categorias de julgamento.29

É justamente aqui que interessa levantar a segunda e


última hipótese acerca desse mesmo trabalho. Parte da

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conversa entre Basbaum, Grinberg e Cotrim editada no
Catálogo. Ricardo Basbaum diz:

Uma coisa que eu tenho observado são as anotações, essas


suas anotações de trabalho. Onde está o limite entre aquilo ser
uma anotação privada, como nos cadernos de Hélio (Oiticica),
por exemplo, ou já ser feita para ser exposta (…)

Responde Grinberg: “Aqui é misturado…”


Novamente Basbaum:

Tá misturado, deu pra ver (…), mas isso tem a ver com a lógica
toda, com toda essa lógica de mundo exterior/interior, espaço
privado, espaço público, abertura – onde está esse limite?

Fala Cecília Cotrim:

Outro dia estava lendo o texto do Foucault, da heterotopia (…)


[ele] fala que essas oposições [exterior / interior, público / privado]
continuam vigorando (…), meio residuais (…) e na verdade quem
vai contar a história desse novo espaço que a gente não sabe o que
é são essas provocações da arte mesmo (…).30

Nesse sentido, parece interessar menos a pergunta sobre


onde está o limite. Aliás, poderíamos até dizer depois desse

64 Ana Kiffer

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apanhado fragmentário de experiências estéticas do “fora de
si” que esse limite é aquilo que antes de tudo não está. Nós
o convocamos constantemente, às vezes urgentemente, na
ânsia de que a falha ou algo como a existência de um “não
ser” cresça no seio do “eu mesmo”…
Dito de outro modo: a pergunta pelo limite evoca, como
disse Cotrim a partir de Foucault, essa matéria residual das
oposições que vem constituindo a forma majoritária na
cultura ocidental de acessar o mundo. Se antes apostaría-
mos que esse modo é fundante de um sujeito, que ele será
sempre o modo de ser de sua relação com a linguagem, com
o outro, com o corpo, hoje já não poderíamos nos servir de
tanta assertividade…
Esse rebaixamento no poder da assertividade talvez
nos levasse a tentar refazer a pergunta de Basbaum: estaria
essa mistura de caderno de notas público e privado não
apenas criando outro espaço – anti-residual –, mas, ainda
além, criando outra escrita que, diferente dos cadernos
de Artaud, não se quer sempiterna, mas aberta ao acon-
tecimento transitório daquele espaço exposto, tal qual um
nervo exposto, uma escrita que inscrevesse seu perecível
em cada letra? Estaríamos hoje efetivamente mais aptos a
essa entrega à letra órfã? À palavra sem pai transitando em
espaços desconhecidos, ainda inomináveis? Estaria essa
escrita articulando-se sob outra forma de vínculo não mais

A ESCRITA E O FORA DE SI 65

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dual nem hierarquizante – talvez rizomática, proliferante – e
nesse sentido abrindo passagens, frestas que já não são nem
dentro nem fora? Estaria ela rompendo a relação que a vem
cunhando como fixação de um corpo – o da letra, o do traço
– sobre outro corpo – o do papel, o da parede, o do próprio
corpo etc.? Estaríamos finalmente diante do acontecimento
da escrita como inversão daquilo que Artaud e Grossman
formularam sob a égide do “jamais nasci – nunca morrerei”?
A escrita – de modo não metafórico, como sugeriu Barthes
– nos traria finalmente alguma relação viva não só para com
a vida, mas também para com a morte?
Só mesmo uma bailarina cega travestida de equilibrista
escreveria o efêmero dessa dança/escrita com uma perna só.

Notas
1
Roland Barthes, Variações sobre a escrita, em Inéditos 1 – Teoria, São Paulo,
Martins Fontes, 2004, p. 174.
2
Ibidem.
3
Ibidem, p. 196, grifo nosso.
4
Jacques Rancière, Políticas da escrita, Rio de Janeiro, Editora 34, 1995.
5
Barthes, Variações sobre a escrita, p. 204-205.
6
Ibidem, p. 248.
7
Evelyne Grossman, L’angoisse de penser, Paris, Éditions de Minuit, 2008, p. 144.
8
Marguerite Duras e Michelle Porte, Les lieux de Marguerite Duras. Interviews,
Paris, Minuit, 2012, p. 98.

66 Ana Kiffer

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9
Sabemos como desde a teoria freudiana a unificação da imago corporal vem
correspondendo ao “fenômeno” que forjaria uma primeira “identidade” ou
“eu” na primeira infância. No entanto, a relação do corpo enquanto unidade
ou unificação é muito anterior, e já pode ser observada nas definições do “belo”
que habitam a Grécia Antiga. Também se deveria notar como toda e qualquer
saída dessa unidade corporal foi pressentida em muitos períodos como algo
ameaçador. Muitos relatos medievais alertam para os perigos da “deformação”
do corpo, frequentemente representados por meio de duas cabeças, quatro
braços ou mesmo de gêmeos siameses, o que afrontava a unidade corporal e o
ideal de perfeição cunhado pela Antiguidade.
10
Hoje temos algumas publicações na França que buscaram não negligenciar o
traço plástico e escrito dos Cadernos de Artaud. Dentre as quais destacamos:
Antonin Artaud, 50 dessins pour assassiner la magie, edição e organização de
Evelyne Grossman, Paris, Gallimard, 2004.
11
Ver, por exemplo, Ana Kiffer, Limites da escrita ou como fazer da escrita uma
plástica poética, Alea, v. 10, n. 2, p. 212-227, jul./dez. 2008.
12
Antonin Artaud, Œuvres sur papier, Musée Cantini, 17 juin-17 sept. 1985.
13
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mille plateaux. 2. Capitalisme et schizophrénie,
Paris, Minuit, 1980.
14
Evelyne Grossman, Préface, em Antonin Artaud, Œuvres, Paris, Gallimard,
2004, p. 14.
15
Maurice Blanchot, L’entretien infini, Paris, Gallimard, 1969, p. 39.
16
Desenvolvemos essa hipótese no texto intitulado “Fome e revolução: Josué de
Castro e Glauber Rocha”, em Izabel Margato e Renato Cordeiro Gomes (org.),
Literatura e revolução, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2011, p. 87-101.
17
Rancière, Políticas da escrita.
18
Imagens disponíveis em <http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enci-
clopedia_ic/index.cfm?fuseaction=artistas_biografia&cd_verbete=2020>.
19
Imagens disponíveis em <http://www.lygiaclark.org.br/defaultpt.asp>.
20
Grossman, Préface.
21
Ricardo Basbaum, Vivência crítica participante, Arquivo PDF, 2011, p. 39.

A ESCRITA E O FORA DE SI 67

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Ver blog da artista no link <http://tatianagrinberg.blogspot.com.br>.
22

Para que o leitor possa acessar as imagens deste projeto, assim como os textos
23

que o compõem, na íntegra, indicamos uma consulta ao blog da artista no link


já citado.
Tatiana Grinberg, Placebo01, Rio de Janeiro, Automática, 2011, p. 48, Catálogo
24

da exposição, 9 abr.-5 jun. 2011, curadoria Luis Camillo Osório, Museu de Arte
Moderna, Rio de Janeiro.
Ibidem.
25

Imagem disponível em <http://tatianagrinberg.blogspot.com.br>.


26

Consultar texto de Nuno Ramos intitulado “A espera de um sol interno (Hélio


27

Oiticica)”, em Ensaio geral: projetos, roteiros, ensaios, memória, São Paulo,


Globo, 2007, p. 119-144.
Ana Kiffer, Christophe Bident e Renato Rezende (org.), Experiência e arte
28

contemporânea, Rio de Janeiro, Editora Circuito, no prelo.


Bernard Andrieu, À l’extrémité de son corps, l’extrême?, em L’art dans tous ses
29

extremes, Paris, Klincksieck, 2012, p. 42, tradução nossa.


Grinberg, Placebo01, p. 44.
30

68 Ana Kiffer

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POESIA, CRÍTICA, ENDEREÇAMENTO

Celia Pedrosa

Na poesia brasileira produzida a partir dos anos de 1990,


tem sido bastante apontado o hibridismo de verso e prosa
e, nele, em especial, o papel importante dos procedimentos
de narrativização. Esses aspectos, vinculados a um reinvesti-
mento na relação entre linguagem e experiência, ganham em
interesse e complexidade quando passam a ser articulados a
outra característica discursiva – o endereçamento.

Este, na verdade, pode ser considerado, já desde a tradição sáfi-


ca, próprio do lirismo, obrigando-nos a repensar sua convencional
compreensão solipsista. Pois nele assim se reconfigura um aspecto
básico analisado por Émile Benveniste no uso oral dos pronomes:
o eu só é empregado quando numa situação comunicativa com
um tu ou você com os quais estabelece uma relação contraditória
de oposição e reversibilidade.

69

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Na poesia moderna, constitutivamente lírica – e antilí-
rica –, essa contradição vai ser radicalizada em poemas que
tanto tematizam o endereçamento quanto o performam
para destinatários muitas vezes nomeados, mas insistente-
mente indeterminados, que chegam a poder se confundir,
seja com o próprio sujeito da enunciação, seja com um
leitor desconhecido.
Daí decorre uma distensão identitária do eu e, analoga-
mente, da destinação de seu discurso, que pode ser asso-
ciada tanto às problematizações da subjetividade, quanto
às transformações na relação entre literatura e público,
ambas características da modernidade. O investimento na
primeira pessoa endereçada pode ser compreendido então
como modo paradoxal de a poesia solicitar e colocar em
crise a lógica da copresença e da identidade que preside a
comunicação linguística; e também a transitividade do eu ao
outro, do individual ao coletivo, do singular ao comum, bem
como o sentido de cada uma dessas instâncias e categorias.
É justamente esse paradoxo que nos interessa ressaltar
na poesia brasileira das últimas décadas e em certa recepção
crítica que esta vem provocando. Pois é pela via do ende-
reçamento que, desde os anos de 1980, detectamos nela
um potencial de produtividade que permite desentranhar
também importantes indicações para reavaliar a poesia
anterior, já canonicamente moderna.

70 Celia Pedrosa

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O endereçamento foi de fato considerado peça-chave da
poesia de Ana Cristina César, publicada a partir de 1979,
e transformada, sob perspectivas diversas, e mesmo anta-
gônicas, em principal via de acesso e compreensão de sua
geração. Podemos tomar aqui como exemplares a esse res-
peito os ensaios de Flora Süssekind e Florencia Garramuño,
que a focalizam a partir da noção de “arte da conversação”,
valorizando nela o efeito de prosaicização de poemas es-
critos e endereçados como cartas ou anotações em diário.
No entanto, as ensaístas não se detêm no vínculo entre
essa marca discursiva e a relação com o destinatário e leitor,
preferindo enfatizar de outros modos seus efeitos sobre a
performatização pluralizada da subjetividade lírica. Flora
aborda a inscrição profanadora da poesia de Ana Cristina
na tradição literária moderna, que sustentaria a teatraliza-
ção ficcionalizante da subjetividade e assim a distinguiria
do expressivismo espontaneísta praticado por seus com-
panheiros. E a partir de suas leituras/traduções de poetas
como, por exemplo, Marianne Moore, apenas sugere o
interesse das imagens que funcionariam como “mediadoras
possíveis de uma concepção de leitura”, oscilando entre a
de uma girafa solitária e a de minúsculos ratos castanhos,
associáveis respectivamente a textos alcançáveis apenas por
leitores poucos e especiais ou muitos e comuns.

POESIA, CRÍTICA, ENDEREÇAMENTO 71

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Já Florencia, sob um viés mais pós-moderno, valoriza,
nessa subjetividade fragmentada, não a encenação antiex-
pressiva, mascarada, mas, ao contrário, a força pulsional
que, ao contrário, a aproximaria da proposta marginal
de poesia como “ritual orgiástico de comunhão erótica e
ideológica com a plebe”, conforme definição do poeta e
crítico Italo Moriconi. Embora não discuta esse efeito de
endereçamento, o fato de associá-lo a um exercício sofisti-
cado de escrita indica a necessidade de problematizar tanto
a identificação de erotismo à oralidade espontaneísta quanto
a comunhão que ela propiciaria.
Ana Cristina, como se sabe, também aborda esses
equívocos. E, se por um lado se preocupa em questionar
a ideia de “pura literatura”, cifrada, enigmática, por outro
ironiza a “lei do grupo”, marginal, que associaria o prosaico
e o vital apenas a poemas curtos e despretensiosos, fáceis;
assim como desconfia também da “lei” política com que
Jorge Amado, por exemplo, legitimara sua escrita por uma
incontestável destinação dita nacional-popular.
Em sua poesia, o endereçamento carrega outra demanda,
ressaltada na leitura que, ainda em 1985, no ensaio “Singular
e anônimo”, o crítico Silviano Santiago propôs, antecipando
questões que hoje se impõem como incontornáveis, como
abordaremos adiante. Desde então ele já deixa de lado a
oposição entre lirismo e antilirismo que por muito tempo

72 Celia Pedrosa

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ainda vai engessar nossa crítica de poesia, assim como
aquelas entre experiência e experimentalismo, entre fácil e
difícil, a ela associada. Considerando que toda “linguagem
poética existe em estado de contínua travessia para o
Outro”,1 enxerga tal travessia nos poemas de Ana como
um gesto simultâneo de ternura e desafio, na contramão,
dirigido a um interlocutor ora nomeado/identificado, ora
indeterminado.
Ressaltando que a própria poeta associa essa diferença
respectivamente a formas fechadas ou abertas de recepção,
Silviano vai tomar então a relação entre poesia e endereça-
mento como um exercício de cidadania. Por essa via, rein-
veste no valor ético-político da tensão entre autoria e leitura,
tal como mobilizada pela teoria literária pós-estruturalista
– valor que acabou por se esvaziar em nome da tendência à
canonização de outras formas idealizadas de subjetividade
autoral, de autonomia ou de heteronomia formal.
Tal valor ético-político vai ser rediscutido, a propósito
ainda de Ana Cristina César, pelo poeta e crítico Marcos
Siscar, embora, curiosamente, ele não explicite sua
interlocução com esse precursor, em ensaio publicado três
décadas depois. Assim, a ternura difícil, na contramão,
enfatizada por Silviano, vai ser por ele também focalizada
e considerada uma estratégia simultânea de sedução e
irritação de interlocutores/ leitores.

POESIA, CRÍTICA, ENDEREÇAMENTO 73

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A partir daí, circunscrevendo histórica e teoricamente
indicações que o texto de Silviano apresenta ainda de modo
genérico, Siscar aponta nessa estratégia uma contrariedade
que, ultrapassando os limites da poesia de Ana, marcaria
em grande parte o uso da primeira pessoa e do que ele no-
meia discurso do coração, desde o romantismo. Ao invés
de recusar esse dado, como grande parte de nossa crítica
moderna – dogmaticamente antirromântica, antilírica –, ele
o acolhe como herança, enfatiza seu potencial de profana-
ção, e pergunta-se sobre seu valor na contemporaneidade.
A esse respeito, considera que hoje, dado o interesse
desmesurado pela vida íntima nos mais diferentes campos,
continua sendo importante evitar os perigos do biografismo.
Mas também que, por outro lado, talvez não haja muito
sentido em insistir na definição do poeta apenas como
produtor, não mimético, fingidor – definição que não deixa
de prendê-lo de outro modo a “fluxos já programados de
circulação e leitura”. Por isso, vai reinvestir na relação entre
poesia e experiência da intimidade:

Trata-se, no fundo, de outro tipo de experiência da ética, em


que a técnica não é um mero abridor de lata da subjetividade esco-
lhida a dedo, mas, em sua produtividade característica, um modo
de apontar para os vazios da interioridade em que nos situamos:
um modo tão contundente que transforma esses vazios em espaço
de convivência, de destinação, de herança.2

74 Celia Pedrosa

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Ressalte-se que a ideia de drama não está ligada aí à de
encenação ou mascaramento do subjetivo, mas, ao contrá-
rio, ao modo como pode se performar poeticamente uma
interioridade que, justo em sua instável fragilidade, isto é,
em sua crise, revela força e se torna motivo de convivên-
cia. Algo semelhante pode ser observado em sua própria
poesia, publicada a partir de 1991, na qual são igualmente
fundamentais os temas e estratégias de interiorização e
endereçamento, vinculados ao reinvestimento, então ainda
raro e/ou desprestigiado, no eu, por ele sempre articulado ao
uso recorrente da segunda e da terceira pessoas do discurso.
Interior via satélite,3 título de sua última coletânea de
poemas, concentra uma série de indicações a esse propósito.
Aí, de fato, já aparece um interior substantivado, presente
em todos os seus três livros, neles remetendo sempre a um
espaço tanto psíquico quanto físico – o que, desde logo, já
desconstrói limites entre o dentro e o fora, encenando o
que se poderia chamar de uma geografia e uma geologia
do íntimo. Nelas se manifesta uma transitividade dupla,
de mão e contra-mão, horizontal e vertical: o interior se
desloca e endereça para um espaço e um tempo de recepção
indeterminados, mas, reciprocamente, é também algo que
só se alcança a partir desse exterior.
No poema “Ficção de início”, que abre o livro, esse
movimento é apresentado de modo reflexivo: “começar de

POESIA, CRÍTICA, ENDEREÇAMENTO 75

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dentro. do interior de onde as coisas começam. onde ter-
minam sua elipse vertiginosa. o interior é o fim da partida.
é o começo da volta. sair como quem volta. voltar como
quem sai.”4 Em “Interior sem mapa”, o mesmo movimen-
to se mostra desdobrado por diferentes trilhas e camadas,
espaços, discursos, tempos:

descartes colonizou o interior. marx abriu o fosso. freud


achou os ossos. cabral rodeou o poço do interior. pessoa queria
multiplicar. whitman desbravar. drummond perdoar. o interior/
do interior. as paixões da alma a gaveta dos armários a língua dos
anjos os pátios de sevilha a hegemonia as veredas do grande eu.
que sei./ que sei senão andar correr discorrer. vou e quero voltar.
desejo o interior. /do interior caminhos. no corguinho trilhas de
fazenda. em uru a lua. lagoa negra. ribeirão dos fugidos. de um
lado a outro a cor do rio relâmpagos no laranjal (...)5

No ir e vir constante em que o dentro e o fora têm sub-


vertidas suas fronteiras e antagonismos, imagens visuais
se mesclam a fragmentos de memória poética, filosófica,
geográfica, geológica, biográfica. Assim se produz um
jogo de aproximação e distanciamento que desestabiliza
a experiência perceptiva do olhar, a evidência plástica da
imagem, o valor referencial de antropônimos e topônimos.
Esse jogo tem seu alcance ampliado pela presença constante

76 Celia Pedrosa

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de imagens como a do satélite, que colocam a interioridade,
em todos os seus desdobramentos, também em relação com
o científico e seus efeitos na tecnologia do movimento e da
informação.
Do mesmo livro, o poema “Telescopia I” considera: “a
arte cativa pela proximidade ou pela distância. iminência ou
adiamento. ut pictura poesis.” E o poema “Azul por inteiro”
retoma provocantemente esse e outros temas clássicos:

enquanto Apollo 12 fotografa a terra azul por inteiro. o mel/


começa a empedrar na garrafa de aguardente) em 2000 teria/ 36
anos. saberia derreter o mel fabricar sintaxes medir as esferas/ do
globo terrestre. como um antitelêmaco nas espumas abraçado/
com o pai reencontrado e suas palavras aladas. moralidades/ de
ciência patafísica de peripécias pícaras para um novo milênio/
tardio. você é meu satélite pai que gira (vou dar-lhe túmulo/ e
para dar-lhe túmulo vou levá-lo pelo braço ao espaço./ como um
astronauta. vou deixá-lo distanciar-se vou vê-lo/ afastar-se. seus
olhos vermelhos pelo que poderia ter sido./ afastar-se no vazio
indefinidamente. e diante de mim o globo/ terrestre mensurável
e trágica a terra. azul por inteiro.6

Em outro poema, agora sem título, Siscar atribui esse


jogo à imagem visual do rio – biográfico, geográfico, lite-
rário – já antes associada à do interior cheio de veredas do
sertão e do eu, como vimos acima:

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do alto a terra é uma colcha de retalhos costurada pelos rios/
é um poema de joão cabral querendo ser pura superfície/ um
conjunto de linhas de formas de tons de consistências/ uma geo-
metria com finas margens dissimétricas/ uma trama singular de
anatomias inconfessadas de estuários arredios (…) 7

Já no livro Metade da arte, um poema sem título iden-


tifica esse jogo, por meio da mesma imagem do rio, ao
movimento de fluxo e contrafluxo do verso:

(…) naquele tempo em que açudes e poços/ e todo líquido


inerte confirmavam a regra do rio/ no tempo em que as enchentes
davam margens/ e regime ao rio (…)/ o que pode conter uma
barragem senão a força/ do hábito adverso as correntes represadas/
desafiam esta margem terceira nenhuma/ margem impede que o
rio se revolva sobre si/ como um verso.8

Nesses fluxo e contrafluxo do verso, como do poema,


entretecem-se também dicções diversas – o lírico e o anti-
lírico, o expressivo, o narrativo e o descritivo, o discursivo e
o antidiscursivo – num hibridismo valorizado na produção
poética a partir dos anos de 1980 como índice de libertação
de uma compreensão formalista, autonomizante do moder-
no. Nesse hibridismo, vem se ressaltando, como indicamos
de início, a importância de procedimentos de prosaicização

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do poético, associados à sua reaproximação do sujeito e da
experiência.
Na poesia de Siscar, no entanto, o valor desse retorno,
assim como da ideia mesma de retorno, mostra-se bem mais
complexo. Isso se evidencia no modo como com ele se reafir-
ma o poético, desde o uso de sua célula básica tradicional, o
verso, até a disposição predominantemente vertical que esse
uso dá aos poemas, em que o enjambement funciona como
dispositivo fundamental de corte/construção e simultânea
intensificação emotiva.
No poema “Rascunho para um retrato de criança”, por
exemplo, ele é associado claramente a uma corporeidade
visual e tátil construtiva e afetiva:

(…) o poema ainda não estava ali (ou melhor) faltava-lhe a


cesura/ a repetição esfregando a face áspera/ a telescopia de um
rosto encardido/ o enjambement inserindo o silêncio e (depois
de perdido para sempre o mot juste) o des/ ajuste (quem sabe).9

Já em “Poema só para poetas”, que brinca com essa con-


cepção “elitista” e discriminatória de poesia, lemos:

(…) poesia para quem conhece o peso da palavra./ a dor dos


dias sem palavras. das palavras sem silêncio. a alegria do silêncio
cheio de palavras. da superfície sem palavras de dor ou silêncio.

POESIA, CRÍTICA, ENDEREÇAMENTO 79

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para quem já se recusou já se armou como um carrapicho já cedeu.
a cara como/ um convexo poroso encharcado na chuva. para quem
já fez carícias/ com indiferença com susto com indignação. não
importa onde/ a fisgada nas vísceras lhe corte o verso. ou que o
curso da prosa o esconda sob água turva10

Na tensão entre curso, corte e retorno, ressalta a diferen-


ça em face do prosaico horizontalizante da poesia epistolar
de Ana Cristina César, tal como caracterizado por
Florencia Garramuño e por ela associado à expansividade
do poético. A partir da poesia de Siscar, somos convidados
a pensar num modo de expansividade que, à semelhança do
que ocorre com o interior psíquico, geográfico, geológico,
parece constituir-se por um movimento ao mesmo tempo
centrífugo e centrípeto, entre o horizontal e o vertical, entre
o impulso de escapar e o de retornar.
Podemos esclarecer melhor esse procedimento à luz
da própria prática crítica do poeta, na qual, justamente, a
compreensão vanguardista da crise do verso mallarmaica
como fim do verso é deslocada em nome de uma tradução e
uma reflexão que identificam na proposta do poeta francês
uma crise de verso, assim definida:

Ou seja, a crise do verso não designa uma interrupção ou co-


lapso histórico do verso; antes, uma irritação do verso, dentro do
verso, e a propósito dele. Uma crise de verso, como se pode notar

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nas referências dadas pelo ensaio, que generaliza a ideia de verso,
é a situação na qual ele se manifesta irritado, enervado, em estado
crítico (…) Não há retorno ao verso. O verso (do latim versus,
retorno) já significa o retorno, já mobiliza o retorno: repetição
da linha e deslocamento da linha. Do mesmo modo, não há nada
além do verso em poesia.

Pode-se então vincular, mais uma vez, subjetividade, ver-


so e poesia, na medida em que neles se manifesta igualmente
a experiência da crise como constitutiva de sua forma. Nessa
experiência, o corte, a lacuna, a suspensão e o adiamento, a
hesitação, a ambiguidade e a incompletude, são dispositivos
por meio dos quais se forja uma singularidade subjetiva,
poética, em busca de caminhos de ser e estar em comum que
fogem a definições culturais, sociais e políticas apriorísticas.
Podemos perceber essa relação entre singularidade e
comunidade em crise também no modo como a interlo-
cução e o endereçamento se infiltram insistentemente na
voz lírica, como no corpo do verso e do poema de Siscar,
contaminando sua discursividade e seu uso anômalo do
prosaico. Destaque-se antes de mais nada que, em seus
poemas, o interlocutor nunca é nomeado. Retomando a
análise feita por Silviano Santiago desse dado da poesia de
Ana Cristina, percebemos que a não nomeação pode estar,
sim, ligada, em ambos, a uma experiência produtivamente

POESIA, CRÍTICA, ENDEREÇAMENTO 81

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indeterminada de recepção. Mas percebemos também uma
significativa diferença quanto a isso: enquanto Ana Cristina
substitui o nome próprio por vocativos vagos e irônicos,
como o já famoso “My dear” – muito próximo ainda do
irmão hipócrita baudelairiano –, Siscar utiliza, sem ironia,
aqueles referidos a relações afetivas familiares, como pai,
filho, avós, amada.
No caso do filho, por exemplo, o poema “Ao filho” diz:

o acontecimento não é o que acontece/ mas o que vem acon-


tecendo e talvez/ um dia se possa dizer que terá acontecido/ (…)
talvez você nasça você vem nascendo/ você é meu pai meu filho
não há/ dia em que não se morra ou não se nasça11

Em “Pai pescador”, lembra:

você gastou tudo como a vida. Não acumulou./senão a arte a


alegria de tirar os peixes/do rio ou de deixá-los no rio (…) só não
gastou a última. a herança de sangue segredada em meu ouvido.
aquela que o ajudo a deixar-me (suono suo amico. /sou mais velho
que você mil anos mais velho/que você) pela qual subscrevo toda
noite/ em seu nome a vida entregue a terceiros (…)12

Nesses poemas, o uso da partícula se e a referência clara


a terceiros que compartilham do diálogo entre o eu poético

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e o pai produzem o deslizamento pronominal entre a pri-
meira, a segunda e também a terceira pessoa – deslizamento
que marca fortemente os poemas do autor e será também
bastante presente na poesia da geração posterior. Por meio
dele, as relações afetivas familiares podem se reafirmar,
sim, mas em uma condição de acontecimento – de forma
em crise – sempre por recomeçar, sempre por se reinvestir
de um novo valor e alcance.
Tome-se, como exemplo, o poema “Não o vejo”, em
Metade da arte:

fechando o portão de arrabalde/ afiando a faca de cortar a


carne/ saindo às pressas da confeitaria/ dizendo a missa da ritual
igualdade/ não é você nem eu mas como/ não trazê-lo para nossa
companhia/ deixá-lo falar fazê-lo ensinar-nos/ a fazer companhia/
a nossa alegria e a dele (são como/ dois velhos preceitos ensinando/
uma filosofia que não pretendiam)13

Aí a terceira pessoa, para além da narratividade pro-


saicizante, mobiliza o jogo entre distância e proximidade,
fundindo referências espaciais e temporais no interior
mesmo do presente da enunciação dialógica, invocando e
desestabilizando tanto o eu e o você quanto um nós do qual
a terceira pessoa indeterminada se torna parte fundamental.

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O mesmo ocorre no poema “Veraneio sentimental”,
do citado livro, em que a cena afetiva íntima se constitui
por meio de uma recuperação do dizer/não dizer prosaico,
coloquial, que, mesclado a citações poéticas como a do
“cão sem plumas” cabralino, ao mesmo tempo se inscreve
profundamente no processo poético de fragmentação do
endereçamento e do verso:

se falo da morte você rola na areia/ meu bem que lindo (quem
disse/ isso?) um cão cheio de plumas/ casarios azulejos amor de
puxar/ uma trégua em tempo de paz/ e se discordo você não diz
não/ me dá na boca o beijo sujo de batom14

Já em “Caro leitor”, esse procedimento confunde explici-


tamente no corpo do poema o interlocutor aí concretizado
e o leitor/destinatário suposto e indeterminado da escritura.
Esta indeterminação, de que seria índice convencional o
uso do masculino, vai ser mesclada, por sua vez, no jogo de
fluxo e corte criado pelo uso de parênteses, com a ambígua
definição de um interlocutor afetivo, em segunda pessoa e
de gênero feminino, remetendo a uma cena do cotidiano
amoroso doméstico:

a sinceridade é difícil entre nós/ eu de intenções tão carente


e você/ você com suas broas de palavras/cuidando do pão que o

84 Celia Pedrosa

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diabo amassou/ sobre tudo o que não foi dito tudo/ o que ficou
esperando um lugar/ entre valas de desejos e porfins/ (…) (sentei-
-me na sala clara escancarado/o sol entre nós ajuíza a parlamen-
tação/ nunca mais você me disse tão clara/ doem os olhos abrir
janelas de manhã)15

Como apontou Émile Benveniste, a interlocução entre


primeira e segunda pessoas supõe, sim, uma relação de
alteridade, que, no entanto, como se evidencia na comuni-
cação oral, acaba por sustentar uma lógica da copresença e
da identidade do sujeito consigo mesmo. Sua desestabiliza-
ção seria provocada, no discurso poético, justamente pela
introdução da terceira pessoa – ou não pessoa, segundo o
linguista – que remete a um interlocutor de posição equiva-
lente à do leitor. Pois, ao ouvir/ler o poema, ele o situa num
espaço e num tempo outros em relação a uma identidade
originária, fechada, desapropriando e usando o eu e o tu de
modo também imprevisto e não determinado a priori por
um contexto específico.
A propósito dessa desestabilização da relação de alterida-
de entre o eu e seu interlocutor, Joëlle de Sermet, no ensaio
de Benveniste referido anteriormente, explicita o valor da
terceira pessoa, que pode inclusive atingir a segunda, como
no poema de Siscar:

POESIA, CRÍTICA, ENDEREÇAMENTO 85

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O que, para mim, seria absolutamente autobiográfico no
lirismo é o colocar em evidência da ficção que representa o
sistema linguístico de uma enunciação fundada sobre a utopia
da copresença. O poema lírico endereçado nos fala do erro de
endereçamento fundamental sobre o qual ele repousa.
Nesse sentido, o leitor-alocutor é testemunha, não de um
endereçamento orientado, mas de uma flutuação estrutural do
endereçamento, a partir do qual se preenche os brancos com
elementos circunstanciais oriundos de sua própria experiência.
Aí onde o diálogo tem que se preocupar com o ou a destinatária
explícita, o leitor reata obliquamente com uma instância poliva-
lente anônima, um “terceiro incluído”.16

Como se depreende dessa passagem, o deslizamento


pronominal aponta para uma importante questão teórica,
relativa aos limites do valor ético-político de alteridade em
face do anonimato. Embora este último já apareça, como
ressaltamos, no ensaio precursor de Silviano Santiago, as-
sociado ao endereçamento, ainda está aí confundido com o
de alteridade, dominante até hoje na crítica contemporânea,
inclusive a de Marcos Siscar, cuja poesia mesma, no entanto,
nos encaminhou aqui a sua problematização.
É bem recente a emergência dessa questão, que vem
sendo discutida por filósofos como Giorgio Agamben e
Roberto Esposito, entre outros. No que diz respeito espe-
cificamente à poesia, ela redimensiona a compreensão da

86 Celia Pedrosa

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intimidade endereçada e de sua relação com a segunda e a
terceira pessoas, nelas valorizando a tensão entre singular e
universal, própria à poesia moderna, de modo que a ideia de
universalidade dá lugar à reprodutibilidade potencialmente
profanadora de sua leitura, de seu uso aberto ao anônimo.
Na poesia de Siscar, esse potencial indica diferentes
sentidos e efeitos da prática da poesia em sua circunstancia-
lidade. Desde logo, as referências constantes às tecnologias
de reprodução e transmissão da informação, como a do
satélite, comentado anteriormente, implicam o acolhimento
de características da atualidade. O mesmo valor pode ser
atribuído ao uso do coloquial e do prosaico, associados a
uma expansividade e a um hibridismo que fariam a poesia
sair de seu isolamento e se inscrever, des-hierarquizada, na
vida cultural. Por outro lado, a memória biográfica e lite-
rária implicam também sua inscrição em tempos e espaços
distintos, distantes. Articulados, esses diferentes contextos,
no entanto, se desestabilizam mutuamente, apontando para
o valor da poesia como circunstância:

Em outras palavras, se é verdade que a poesia se apresenta


frequentemente no contrafluxo ou na contramão, também é rele-
vante notar que o faz colocando-se em situação instável, incômoda:
nostálgica ou combatente, revoltosa; fragmentária ou inconclusiva;
irônica, mas também desejosa. (…)

POESIA, CRÍTICA, ENDEREÇAMENTO 87

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No fundo, o que há de mais fundamental na ideia de circuns-
tância, para a poesia, não é algo que se apresente como dado estável
do ponto de vista histórico, linguístico etc. Não é um ponto fixo
no tabuleiro de forças já dadas. Por isso (complicação necessária
para não reduzir muito o que entendemos como poesia), a tensão
desconfortável ou atrativa da poesia está relacionada com seu ter
lugar, com o modo pelo qual ela tem lugar. (…)
A poesia para mim tem (ou tem tido) lugar. É (ou tem sido)
meu modo de descobrir, de experimentar ou de suportar a tensão
do acontecimento, de defrontar o que escapa a qualquer política
e, ao mesmo tempo, de afrontar as políticas ou os discursos do
“fato”. Outra maneira de dizer que a poesia, para mim, é (ou tem
sido) o irresistível.17

Nessa colocação, feita em depoimento sobre o tema


“poesia e resistência”, o ter lugar da poesia se arma no duplo
movimento de mão e contramão, provocação e sedução,
pelo qual, independentemente de qualquer política pré-
-definida de sublimação ou dessublimação, de resistência ao
sublime ou ao prosaico, ela se lança em busca de seu outro,
anônimo, desconhecido:

Desse modo, falar é sempre arriscar-se na contramão, no


sentido de colocar-se diretamente na direção ou na destinação de
um outro. E o risco do poema é o risco imprevisível e concreto

88 Celia Pedrosa

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desse choque, da decepção, em que o fechamento do desastre, seu
violento acontecimento, tem, no entanto, a chance de aproximar-se
de uma possível alegria, da abertura de uma brecha.18

Repetição e profanação, sedução e provocação, encon-


tro e choque, a poesia como acontecimento, circunstância
da crise que – aquém de qualquer euforia, ou de qualquer
ceticismo – pode, assim, se tornar móvel de uma “inespe-
rada fraternidade”,19 de uma “curiosa alegria”,20 tramadas,
inclusive, no silêncio21 e na negação.22

Notas
1
Silviano Santiago, Singular e anônimo, em Nas malhas das letras, São Paulo,
Companhia das Letras, 1989.
2
Marcos Siscar, Ana Cristina César, Rio de Janeiro, Eduerj, 2011, p. 48, Coleção
Ciranda da Poesia.
3
Marcos Siscar, Interior via satélite, São Paulo, Ateliê Editorial, 2010.
4
Ibidem, p. 17.
5
Ibidem, p. 18.
6
Ibidem, p. 19.
7
Ibidem, p. 24.
8
Marcos Siscar, Metade da arte, Rio de Janeiro, 7Letras, 1991, p. 162.
9
Siscar, Interior via satélite, p. 71.
10
Ibidem, p. 58.
11
Siscar, Metade da arte, p. 17.

POESIA, CRÍTICA, ENDEREÇAMENTO 89

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Siscar, Interior via satélite, p. 53.
12

Siscar, Metade da arte, p. 43.


13

Ibidem, p. 52.
14

Ibidem, p. 67.
15

Joëlle de Sermet, L’adresse lyrique, em Dominique Rabaté (ed.), Figures du sujet


16

lyrique, Paris, Presses Universitaires de France, 1996, tradução Ana Kiffer.


Depoimento sobre “poesia e resistência”, concedido ao Grupo de pesquisa Lyra-
17

Compoetics e publicado em seu site www.lyracompoetics.org.


Siscar, Ana Cristina César, p. 46.
18

Siscar, Metade da arte, p. 88.


19

Siscar, Interior via satélite, p. 95.


20

Ibidem, p. 58.
21

Siscar, Metade da arte, p. 8.


22

90 Celia Pedrosa

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FORMAS DA IMPERTINÊNCIA

Florencia Garramuño

Todo poeta é imigrante.


Carlito Azevedo

Gostaria de começar pela surpresa e pelo atordoamen-


to que produz Fruto estranho, de Nuno Ramos. É desse
atordoamento – e acho que essa palavra, pelo que tem de
abalo e perturbação dos sentidos, é a melhor para relatar a
comoção no que vou escrever aqui – que tiro a inspiração
para pensar numa grande quantidade de movimentos e
gestos da estética contemporânea que exploram formas
diversas do não pertencimento. Muito embora eu analise
neste artigo só umas poucas obras para elaborar essa noção
de não pertencimento, a ideia deve ser pensada para além

91

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dessas obras em particular, como uma condição da estética
contemporânea que se materializa em textos, instalações,
composições musicais, vídeos, documentários, filmes e
muitos outros formatos. Queria, também, que se entendesse
“forma” não como forma estética – os limites ou feições
específicos de uma obra – porque é precisamente essa ca-
tegoria o que essas formas colocam em questionamento. A
noção de formas do não pertencimento – e até da não per-
tinência – quer apontar mais para um modo ou dispositivo
que evidencia uma condição da estética contemporânea na
qual forma e especificidade parecem ser conceitos que não
permitem dar conta daquilo que nela está acontecendo.
Começo, então, por Fruto estranho. A instalação é uma
dos três trabalhos apresentados por Nuno Ramos no MAM
do Rio de Janeiro de setembro a novembro de 2010. É abso-
lutamente impossível não ver a obra, que atinge seis metros
de altura e ocupa toda a área. Porém, localizada no espaço
monumental, ela não cabe – não entra, não pertence, não
se hospeda – nas salas de exibição, e até parece só poder se
abrigar naquele lugar que o Museu não destina às exibições
ou obras. Dando as costas para as salas, ela se instala no
segundo andar, de modo que é possível subir a escadaria e
ir diretamente para os locais de exibição sem olhar para as
imensas árvores e para os aviões incrustados nelas, que se
exibem no espaço monumental.

92 Florencia Garramuño

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É verdade que esse espaço, já em 2010, tinha sido uti-
lizado muitas vezes como “sala de exibição”. Para lembrar
talvez uma das mais famosas: os Parangolés de Hélio
Oiticica foram “dançados” lá pelos passistas da Mangueira
na ocasião da já famosa e celebérrima exposição Opinião 65,
na qual as autoridades do MAM acabaram pedindo para os
passistas irem dançar fora do Museu por medo de que a ba-
gunça acabasse estragando as obras exibidas no interior das
salas.1 Se aquele caso evidenciou uma tensão por momentos
violenta entre o Museu e esse tipo de obras-não-obras que
Oiticica começava a propor na década de 1960, o certo é que,
muito embora essa tensão tenha se debilitado um pouco no
presente, alguma coisa ainda resta daquele estresse entre
museu ou sala de exibição e esses acontecimentos em que
grande parte da arte contemporânea tem se convertido. E
é isso o que Fruto estranho é – como, aliás, muitas práticas
contemporâneas, incluída a literatura: um espaço-tempo
sensorial, que já pela própria utilização de suportes e meios
diferentes ecoa contrário a uma ideia de especificidade
formal e, inclusive, estética.
É por isso que o que me interessa não é descrever a ins-
talação como um todo, mas discutir o evento e pensar nas
consequências que Fruto estranho traz para o pensamento
sobre a arte no seio da cultura contemporânea.

FORMAS DA impeRtinÊNCIA 93

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A primeira questão diz respeito ao poderoso e ao mesmo
tempo estranho efeito político da instalação e, em geral, da
arte de Nuno Ramos. Basta lembrar a polêmica criada na
última Bienal de São Paulo com Bandeira branca, a obra
que incorporou urubus e fez com que um amplo grupo de
pessoas pertencentes a organizações de defesa dos animais
se manifestassem contra a instalação e chegassem a levantar
uma ação judicial contra Nuno Ramos e as autoridades
da Bienal. No caso de Fruto estranho, a convivência
áspera entre matérias e ordens diversas (árvores, aviões,
contrabaixos, música, vídeo), o efeito de catástrofe que a
disposição dessas matérias no espaço evidencia e a inclusão,
como ambientação sonora, da canção Strange fruit, de Abel
Meropool, sobre os linchamentos dos afro-americanos
no Sul dos Estados Unidos, cantada pela desgarrada voz
de Billie Holliday, parece usar essa convivência ríspida de
diferenças como modo de evidenciar uma transformação
da questão política da arte: o político estaria nela não
na mensagem – por momentos indecifrável –, nem na
transformação do meio específico – como queriam Adorno
e Benjamin –, mas num pôr em questão a própria ideia de
especificidade artística que inclusive puxa a noção do não
pertencimento para outros âmbitos e para além da estética.
O segundo efeito que me interessa sublinhar aqui é a
proposta da obra como percurso. Porém, esse percurso não

94 Florencia Garramuño

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tem um roteiro pautado por limites, como nos penetráveis
de Hélio Oiticica ou Cildo Meireles, mas é a proposta de
itinerários múltiplos, sem limites nem trajetória fixa, sem
fronteiras, sem indicações, num atordoamento em que o
itinerário se transforma na busca de um modo de habitar
um espaço atravessado por diferenças e heterogeneidades
dramáticas, sem apaziguamento.2 Esse atordoamento pro-
duzido pela operação de fazer com que a instalação seja uma
habitação de diferenças pode ser considerado o afeto e o
efeito principal da instalação: um modo de levar a estética
para um pensamento sobre aquilo que se sente com os senti-
dos (vista, tato, olfato) mais do que um pensamento sobre a
forma; como se, ao ficarmos só falando da não especificidade
do meio, ficássemos só descrevendo a obra – a forma – e
perdendo alguma coisa importante da disposição da matéria
no espaço que não tem a ver com a forma estética, mas com
os efeitos e afetos que essa disposição produz.
Por último, acho que a heterogeneidade ou a exploração
de formas diversas da diferença na obra não diz respeito só
aos sentidos por meio dos quais se trabalha nela (audição,
visão, tato). Ela está presente também na utilização de
ordens diferentes: natureza, cultura, raça, nação, o típico,
a região, o indivíduo. O trabalho com a natureza aparece
na instalação representada pelas árvores, mas também pela

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perturbadora cena do filme A fonte da donzela, de Bergman,
que se apresenta numa tela pequena num loop à beira das
árvores da instalação: eis então que natureza entra também,
ela mesma, num loop com a tecnologia e o cinema. A cena
do filme em preto e branco mostra uma árvore jovem, única,
numa planície. Um homem (Max von Sidow), munido de
uma serra com a qual poderia cortar de vez a árvore, duvida
uns instantes. Decide depois atacá-la num corpo a corpo
em que a árvore resiste durante vários segundos, com uma
flexibilidade intensa, e só uma vez derrubada é atacada com
a serra, enquanto a voz de Billie Holliday cantando Strange
fruit soa num pequeno aparelho de som.
Troncos e aviões, filme e tela, som e sentido formam um
espaço-tempo no qual as diferenças materiais convivem – às
vezes aliviadas, como no tronco e no avião, pelo sabão, mas
outras vezes ressaltadas pelo espaço vazio entre uma matéria
e outra – explorando formas diversas de não pertencimento.
Em Fruto estranho, o artista une e confronta as ideias de
natureza e tecnologia, vida e morte, sujeira e pureza. Soda
cáustica pinga de duas ampolas acopladas às asas de cada
um dos aviões, caindo em dois contrabaixos abertos e re-
pletos de banha, que permanecerá sempre quente, ideia que
surgiu, segundo Nuno Ramos, ao ler um conto de Pushkin
sobre uma árvore que pinga veneno. E aqui é que entra a
literatura nesta discussão.

96 Florencia Garramuño

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E a literatura entra também porque Nuno Ramos, além
de tê-la usado em muitas de suas obras e instalações, tam-
bém tem publicado livros. Desde Cujo e O pão do corvo,
passando por Ensaio geral, até o recentemente premiado Ó,
os livros de Nuno figuram de um modo muito desconfor-
tável em quaisquer dos gêneros tradicionais da literatura.
No começo, sobretudo para falar do primeiro livro de Nuno
Ramos, se apelou à ideia (sempre corriqueira, lembremos)
de que se trataria de uma “prosa poética” (como para Água
viva, de Clarice Lispector, por exemplo, ou todos aqueles
livros de Clarice que, muito inteligentemente, Silviano San-
tiago tem chamado de “textos curtos”).3 Mas ainda para além
dos gêneros possíveis, na sua heterogeneidade fundamental
(explorada em textos autobiográficos, outros que parecem,
ou são, ou poderiam ser comentários de suas obras plásticas,
outros, de ensaios e outros, de contos), os últimos textos de
Nuno Ramos apontam para outras formas de não pertenci-
mento ainda dentro de um mesmo “suporte” ou linguagem:
a literatura. Portanto, essa exploração pode até ser interior
e anterior a um único meio específico, entre aspas.4
Na exploração dos limites entre forma e matéria, o
trabalho do Nuno traz uma convivência de diferenças que
faz com que nada pertença nem permaneça fixo num local,
explorando assim os limites da forma, desabando os limites
possíveis para um fora da obra que está sempre no dentro

FORMAS DA impeRtinÊNCIA 97

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que é, por incorporar o dar corpo ao fora, sempre o contrário
de uma intimidade, de uma hospitalidade.5
Tem se discutido muito a respeito das artes visuais
contemporâneas, a utilização que nelas se faz de meios e
suportes diferentes no campo expandido da arte no presen-
te, ou na condição pós-medial (todos conceitos de Rosalind
Krauss, já suficientemente debatidos e questionados).6 Não
vou aqui fazer esse percurso, sobretudo porque acho que
debatê-lo como alguma coisa isolada das artes visuais ou
plásticas não estaria dando conta de alguma coisa anterior
a isso, que seria o que possibilita ou propicia essa convi-
vência de matérias e suportes diferentes, mas principal-
mente porque acho que isso mesmo pode acontecer – e
está acontecendo – até num “meio” próprio – a palavra
ou a linguagem – como se dá, aliás, nos textos escritos de
Nuno Ramos. Acho mais instigante, por isso, pensar nessa
noção de não pertencimento como um “tropismo” da es-
tética contemporânea que poderia até ajudar a explicar ou
entender muitos textos literários recentes que lidam com
a mesma ideia de não pertencimento que podemos ver na
cópula entre matérias diferentes nas obras de Nuno Ramos.7
Se a própria figura de Nuno Ramos, ao trabalhar tanto
com palavras como com materiais plásticos e visuais, con-
densa essa tensão, o certo é que, mesmo em escritores que
só escrevem, podemos ver uma exploração semelhante das

98 Florencia Garramuño

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fronteiras da literatura. Numerosas práticas estéticas con-
temporâneas produzidas no Brasil e na Argentina nos últi-
mos anos exploram uma estendida porosidade de fronteiras
entre territórios, regiões, campos e disciplinas na produção
de diversos modos do não pertencimento. A articulação de
textos com correios eletrônicos, blogs, fotografias, desenhos,
discursos antropológicos, imagens, vídeos, documentários,
autobiografias interrompidas e fragmentárias – entre muitas
outras variáveis – cifra nessa heterogeneidade uma vontade
de imbricar as práticas literárias e artísticas na convivência
com a experiência contemporânea. Para essas práticas uma
leitura estritamente disciplinada ou disciplinária parece
captar pouco do evento ou acontecimento, já que a crise
da especificidade artística coloca em questão toda defini-
ção exclusivamente formalista da estética. A partir de que
limite ou marco deveríamos ler, por exemplo, o último
livro-desenho publicado pela Laura Erber, Bénédicte vê o
mar – publicado, aliás, em suporte diferente ao do livro
impresso? De que modo entender as frases-imagens de Eles
eram muitos cavalos? Qual significado dar às fotografias
incorporadas nos textos de Bernardo Carvalho?
Gostaria de comentar só um caso dessa exploração do
não pertencimento na literatura, analisando um fragmento
de um poema de Carlito Azevedo, “Margens”. O poema foi
publicado há alguns anos na revista Margens, mas aparece

FORMAS DA impeRtinÊNCIA 99

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agora no último livro do poeta, Monodrama,8 que incorpora
uma grande diversidade de linguagens líricas e prosaicas,
políticas e subjetivas, pessoais e públicas, que exploram a
paisagem da violência e miséria contemporâneas, nos mais
diversos espaços do mundo: Berkeley, Rússia, Aterro do
Flamengo no Rio de Janeiro, Viena. “Margens” pode ser
lido como um resumo do livro Monodrama, já que aqui,
num único texto, aparecem todas essas heterogeneidades
que o livro vai desdobrar em poemas diferentes, com títulos
diversos. Trata-se de um texto construído por percursos e
itinerários pela cidade – o que Flora Süssekind chamou de
“poemas-percurso” – que possibilitam uma decomposição
da imagem poética em disposições claramente narrativas,
acentuadas pela ondulação de um limiar entre o privado
e o público que apaga a distinção entre poesia intimista e
subjetiva ou poesia social e objetivista.9
No fragmento que quero discutir aqui, o poema – divi-
dido em capítulos ou partes – coloca um trecho em prosa,
tirado de um artigo sobre a obra da artista Rachel Whiteread,
em espanhol. A figuração de uma saída da margem e do
poema é evidente na disposição tipográfica do fragmento.
Confrontado aos outros fragmentos ou estrofes em verso,
o poema exibe uma heterogeneidade que, por operações
diversas, podemos ver no livro todo: nele convivem, num

100 Florencia Garramuño

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mesmo texto, a escritura de relações pessoais – relações
amorosas ou filiais – com toda uma exploração da paisagem
social e política contemporânea – centrada nas figuras do
imigrante, o terrorista, o heroinômano – que faz do livro
uma intervenção muito produtiva na distinção entre o pú-
blico e o privado, demonstrando que, como queria Derrida,
nada do que é próprio define nenhum desses domínios ou
escrituras diversas.
Além desse fragmento em prosa, o livro de Carlito
contém outros poemas em prosa – como o intitulado “H”,
sobre a convivência com a doença de sua mãe – e outros
com versos mais breves.
Posso pensar também em outros livros brasileiros e
argentinos que exploram o limite entre prosa, narrativi-
dade e verso. El eco de mi madre, de Tamara Kamenszain
(publicado em 2010) começa logo após uma epígrafe sec-
cionada de “Los heraldos negros”, de César Vallejo – “yo
no sé, yo no sé…” –, com um primeiro verso contundente:
“No puedo narrar”, diz Kamenszain, dando início assim a
um poema que voltará sobre a questão do narrar, do dizer,
do contar – da prosa, em síntese – em vários momentos.10
“El libro cortado” intitula precisamente uma das seções
do livro, que se inicia com a dedicatória “In memoriam/

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Oscar Bernardo Kamenszain (1950-1953)”, sobre a morte
do irmão quando criança:

(…) Ser todo es ser nada me digo ahora


que los nombres de mi familia avanzan en las dedicatorias
mientras retroceden adentro del libro cortado
y algo me va quedando claro: no puedo narrar
nunca pude me solté rápido de la mano de ella
y entre dos muertes el pretérito ahora me sostiene
es un puente que no se le ve quedó detenido
debajo camina la narradora que no fui arriba
pasan de largo las historias escapándose
quién puede retenerlas si la memoria de mi madre ya no
[las teje
yo no sé… yo no sé dijo ella de entrada cuando murió
[mi hermano
yo no sé… yo no sé la fue empujando hacia adelante
[el eco obstinado
punto por punto cada punto suspensivo soltaba un
[indicio más
¿las fotos? ¿la ropa? ¿los juguetes? ¿la partida de nacimiento?
Nada por aquí nada por allá nada por aquí nada por allá.
Hasta que vino otra defunción y presentó su propia partida.11

Finalmente, o livro acaba com os seguintes versos:

102 Florencia Garramuño

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Diga lo que diga
en presente me siento libre
y hasta me parece que a lo mejor
…quién te dice…
mañana empiezo una novela.12

A continuidade da prosa para o verso nos últimos livros


de Carlito Azevedo e Tamara Kamenszain desenham outras
formas do não pertencimento. Ao fazer da escritura uma
linha contínua que no entanto se interrompe pelo corte
arbitrário e sempre surpreendente do verso, e em outros
casos evita o corte do verso, mas integra na linha contínua
do discurso uma série de cortes e interrupções, ambos os
livros exibem o que poderíamos chamar, em vez de poema
em prosa, de poemas com passos de prosa. Teríamos então
dois modos diversos de se operar essa continuidade entre
prosa e poesia, mas nos dois livros uma mesma tentativa
de realizar o que Giorgio Agamben chamou de “o passo
de prosa da poesia”.13 Esses modos trazem à superfície
o substrato de prosa de todo poema, numa expansão da
linha de “versura” que constitui o poema. Sem instituir
uma diferenciação do verso, esse passo de prosa – esse não
pertencimento da escrita nem à prosa nem à poesia – traz
nos dois livros uma exploração inovadora da afetividade,
que é também uma expansão da poesia. Não é à toa que os

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dois livros incluem e trabalham sobre a morte das mães
dos dois poetas.
Enquanto a forma em estações, a série, e o poema
em prosa no livro de Carlito Azevedo são maneiras de
incorporar uma emotividade e afetividade subjetiva que,
no entanto, se contrasta e convive com todo um mundo
público no qual essa afetividade se desenvolve, no livro de
Tamara Kamenszain a incorporação de versos e citas de
outros escritos e poetas coloca a experiência mais íntima
e subjetiva em uma coleção que descentra o sujeito – sem
abandoná-lo – e faz o político (ou público) dessa relação.
Os textos, nesse sentido, parecem evidenciar aquela ideia
que postulara Adriana Cavarero: “(…) o ser narrável é uma
figura de singularidade, não de excepcionalidade.”14
Interessa-me especialmente o modo como esse questio-
namento do específico – aqui, da prosa ou do poema; do
público ou do privado – redefine os modos de se ponderar
o potencial político da arte contemporânea.
Depois de percorrer os anéis em espiral que, com frases
de Água viva, de Clarice Lispector, a artista norte-americana
Roni Horn desenhou em azulejos de borracha, Hélène
Cixous – que tem escrito alguns dos textos mais instigantes
sobre a obra da escritora brasileira – analisa outra zona da
mostra de Horn: fora da sala de exibição, nos corredores

104 Florencia Garramuño

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da galeria que anos antes foi um banco, Horn pendurou,
não sobre as paredes, mas nas escadas e descansos, seri-
grafias em preto e branco com as mesmas frases. Levando
para a vertical, nos corredores, aquilo que antes estava na
horizontal na sala de exibição, Cixous diz da instalação: “O
que é figurado: todas as maneiras possíveis de fugir de um
quadro, de um encerramento, de um ficar em casa, numa
gaiola, numa instituição, numa fronteira, num todo. A, em
francês, désappartenance.” Disbelonging, traduz Beverley
Bie Brahic para o inglês.15 “Não pertencimento”, diríamos
em português. Acho que essa expressão pode servir para
pensar grande parte das práticas artísticas contemporâneas
que exploram formas diversas de se sair e fugir dos limites e
fronteiras. Gostaria de traduzir o termo por impertinência,
porque essa exploração de formas do não pertencimento
tem alguma coisa de ofensivo, irreverente e inoportuno
(mais uma vez, lembremos o escândalo da Bienal com
Bandeira branca, de Nuno Ramos).
O desenquadramento e a exploração dos limites e
fronteiras na criação de espaços insuspeitados que muitas
práticas estéticas contemporâneas estão nos oferecendo
permitem descrever uma transformação da estética con-
temporânea que, em algumas práticas latino-americanas,
adquire particular pregnância.

FORMAS DA impeRtinÊNCIA 105

EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 105 10/03/14 11:06


Até que ponto essas transgressões e expansividades dos
meios, campos e regiões propõem formas diferentes de ha-
bitar o mundo? De que modo essa porosidade de fronteiras
e campos discursivos propicia modos do não pertencimento
que oferecem imagens de comunidades expandidas onde o
comum não é o que se comparte mas o em-comum?16 Em
que medida noções fundamentais da estética, sustentadas
na figura da representação, têm sido substituídas na arte
contemporânea por operações que têm mais a ver com a
produção de afetos e efeitos? De que modo esse pôr em
questão do não pertencimento redefine os modos de se
compreender o latino-americano?17
Sair da forma para pensar nesses afetos e efeitos pode
ser um modo menos disciplinado, mais impertinente, mas
também talvez mais produtivo para pensarmos nas transfor-
mações de uma noção de estética na cultura contemporânea.

Notas
1
O contraste entre as obras de Hélio Oiticica e as de Nuno Ramos no interior
da instituição, que é o museu, fala de uma transformação que pode ser lida, em
termos históricos, entre o momento da saída da arte para o mundo representado
por Oiticica – lembremos seu apotegma: “Museu é o mundo.” – e o movimento
que, no interior da arte, procura criar espaços políticos, que representa a arte de
Nuno Ramos. (Hélio Oiticica, Anotações sobre o Parangolé, Aspiro ao grande
labirinto, Rio de Janeiro, Rocco, 1986, p. 79.) Rodrigo Naves tem apontado a
contradição entre violência e afeto que pode se ler nas experiências de Hélio
Oiticica, sublinhando o tributo que as obras deste tiveram que pagar por um
tipo de convivência importante no Brasil. Segundo Naves, a falta de instituições

106 Florencia Garramuño

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civis representativas faz com que “a face coletiva de nossa existência guard[e]
traços das relações familiares e afetivas. E essa característica irá marcar suas
obras com a dificuldade de promover experiências que se afastem do campo
da intimidade e do afeto.” (Rodrigo Naves, Entre violência e afeto, O vento e o
moinho, São Paulo, Companhia das Letras, 2007, p. 87.) Nada dessa intimidade,
exposta agora como núcleo de um desamparo onipresente, resta nas obras de
Nuno Ramos.
2
Note-se a seguinte reflexão de Nuno Ramos sobre os labirintos de Hélio Oiticica:
“Pois trata-se, afinal, de um interior excessivamente reiterado, que sempre ergue
uma dobra a mais, sempre cai para dentro de si, adiando assim indefinidamente
sua fronteira exterior. É próprio do labirinto essa interioridade que se volta
contra aquele que está nela, numa identidade repetitiva e afinal claustrofóbica
que o vento da vida comum já não alcança.” Nuno Ramos, À espera de um sol
interno, em Ensaio geral, São Paulo, Globo, 2007, p. 124.
3
Silviano Santiago, Bestiário, Cadernos de Literatura Brasileira: Clarice Lispector,
São Paulo, Instituto Moreira Salles, 2004.
4
Na orelha de Ó, José Paulo Pasta aponta a respeito do livro: “(...) não são contos,
não são crônicas, não são poemas etc.” Nuno Ramos, Ó, São Paulo, Iluminuras,
2010.
5
Segundo Rodrigo Naves, “há em boa parte dos trabalhos de Nuno Ramos um
esforço para reunir coisas e matérias cuja convivência se mostra estranha e
áspera (…) diferentemente das colagens pop, não procuram expor o nonsense da
sociedade de consumo, em que a abundância e dilapidação trocam de posição
ininterruptamente. Interessa-lhe antes encontrar uma forma de aproximar
elementos inesperados, de maneira a acentuar sua irredutibilidade. (…) São
precários demais para vestir a fantasia de forma.” Rodrigo Naves, Nuno Ramos:
uma espécie de origem, O vento e o moinho, São Paulo, Companhia das Letras,
2007, p. 321-322.
6
Rosalind Krauss, A Voyage on the North Sea: Art in the Age of the Post-Medium
Condition, London, Thames & Hudson, 2000.
7
Brian Holmes, L’extradisciplinaire. Pour une nouvelle critique institutionnelle,
em Laurence Bossé e Hans Ulrich Obrist (editores e curadores), Traversées,
Catálogo del Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris, 2001.
8
Carlito Azevedo, Monodrama, Rio de Janeiro, 7Letras, 2009.

FORMAS DA impeRtinÊNCIA 107

EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 107 10/03/14 11:06


9
Flora Süssekind, A poesia andando, em A voz e a série, Rio de Janeiro, 7Letras
Belo Horizonte, Editora UFMG, 1998.
10
Tamara Kamenszain, El eco de mi madre, Buenos Aires, Bajo la Luna, 2010,
p. 20.
11
“(…) Ser tudo é ser nada digo a mim mesma agora/ que os nomes da minha
família avançam nas dedicatórias/ enquanto retrocedem dentro do livro cor-
tado/ e uma coisa vai ficando clara: não posso narrar/ nunca pude me soltei
rápido da mão dela/ e entre duas mortes o pretérito agora me sustenta/ é uma
ponte que não se vê ficou detida/ debaixo caminha a narradora que não fui em
cima/ passam batidas as histórias fugindo/ quem pode retê-las se a memória
da minha mãe já não as tece/ eu não sei... eu não sei disse ela de saída quando
meu irmão morreu/ eu não sei... eu não sei foi sendo empurrada pelo eco em-
perrado/ ponto por ponto cada reticência soltava mais um indício/ as fotos? a
roupa? os brinquedos? a certidão de nascimento?/ Nada por aqui nada por ali
nada por aqui nada por ali./ Até que veio outro óbito e apresentou sua própria
partida.” Idem, O gueto, em O eco de mi madre, p. 49. (Trad. Paloma Vidal, Rio
de Janeiro, 7Letras, no prelo)
12
“Diga o que disser/ no presente me sinto livre/ e acho até que de repente/ …
quem sabe…/ amanhã começarei um romance.” Ibidem, p. 50. (Trad. Paloma
Vidal, Rio de Janeiro, 7Letras, no prelo)
13
Giorgio Agamben, Idea de la prosa, Barcelona, Península, 1989, p. 22.
14
Adriana Cavarero, Relating Narrative: Storytelling and Selfhood, London,
Routledge, 2000, p. 70, tradução nossa.
15
Roni Horn, Rings of Lispector (Água viva), com um texto de Hélène Cixous,
trad. Beverley Bie Brahic, London, Hauser & Wirth, Göttingen, Steidl, 2005,
p. 62.
16
Jean Luc Nancy, The Inoperative Community, Minneapolis, University of
Minnesota Press, 1990.
17
Cf. Beth Hinderliter et al. (ed.), Communities of Sense, Durham, Duke University
Press, 2009.

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VIDA E MORTE DA IMAGEM

Karl Erik Schøllhammer

Comecemos lembrando do conto de Balzac, A obra


prima ignorada, em que o velho pintor Frenhofer procura
na arte a realização demiúrgica da mulher ideal e, depois de
uma série complexa de acontecimentos, finalmente revela
o resultado do que pensa ser uma obra bem-sucedida dessa
ambição para os amigos pintores Porbus e Poussin. Lá onde
o velho mestre vê a vida brotar da arte e o corpo feminino
palpitar sensivelmente, os outros pintores apenas enxergam
“cores confusamente espalhadas umas sobre as outras, con-
tidas por uma multidão de linhas bizarras que formam uma
muralha de pintura”.1 Para muitos leitores, Balzac deixa aqui
uma alegoria premonitória e profética da arte modernista
e sua experimentação abstrata. Outros identificam aquilo
que Hegel previu como o fim da arte na aparição sensível
do espírito ao se despir e se liberar da materialidade artística

109

EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 109 10/03/14 11:06


já perceptível na diluição figurativa da pintura romântica.
Entretanto, não é apenas o reconhecimento desse fracasso
da metafísica de Frenhofer que caracteriza a narrativa, senão
seu sucesso parcial e fragmentário evidenciado num canti-
nho do quadro em que os dois pintores finalmente percebem

um pedaço de pé que se projetava para fora daquele caos de


cores, tons e matizes indecisos, uma espécie de neblina sem forma.
Mas era um pé delicioso, um pé vivo. Ficaram petrificados de
admiração diante daquele fragmento que escapara de uma incrível,
lenta e progressiva destruição.2

“Há uma mulher aí embaixo”, exclamou finalmente Por-


bus. Assim, o conto deixa uma dúvida final e indecidível. O
destino da arte é fracassar; sua criação sempre é impossível,
ou pelo menos incompleta, apesar de criar o momento de
realização e sucesso nessa transição entre vida e morte.
Qual é a atualidade dessa narrativa hoje, na contempo-
raneidade tão afastada da metafísica romântica em relação
às imagens? Talvez seja que ainda atribuímos poderes à
imagem que parecem independentes da intenção de seus
produtores e dos conteúdos explícitos de suas mensagens.
Algumas imagens ganham uma certa vida própria e se
tornam reais de uma maneira não previsível e acabam se
sobrepondo aos projetos discursivos que normalmente as
determinam.

110 Karl Erik Schøllhammer

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Mesmo que não acreditemos no poder alquímico de criar
vida com imagens, continuamos lidando com elas como se
representassem um desejo, um pensamento ou uma vontade
própria. Falando das imagens hoje, precisamos reconhecer
seus poderes de intervir na realidade e de produzir efeitos
e afetos que agem sobre seus espectadores e que devem ser
considerados, respeitados e às vezes controlados. Um dos
estudiosos da imagem hoje, o pesquisador Thomas Mitchell,
questiona, por exemplo:

Por que as pessoas têm atitudes tão estranhas em relação às


imagens, aos objetos e à mídia? Por que agem como se as imagens
estivessem vivas, como se as obras tivessem uma consciência
própria, como se as imagens tivessem o poder de influenciar seres
humanos, exigindo algo de nós, nos convencendo, nos seduzindo
e nos levando a desviar do caminho?3

Em outras palavras, percebe-se nas imagens uma enig-


mática vida própria e, ao mesmo tempo, o efeito avesso se
expressa na proximidade que é intuída com frequência entre
o fazer da imagem e a morte, na medida em que materialize
a ausência do objeto, do ser amado ou do tempo que já não
é mais. Roland Barthes chamou esse aspecto – o isso foi
– de numen da fotografia, isto é, seu poder ativo e mágico.

vida e morte da imagem 111

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Trata-se de um gesto com a potência de trazer o passado ao
presente, ao mesmo tempo que relegue o presente à história.
No início do famoso livro A câmera clara, Barthes fala
desse sentido dos “jovens fotógrafos que se movimentam
pelo mundo dedicando-se à captura da atualidade” sem
saber “que são agentes da morte”.4 A invenção da fotogra-
fia, ele continua, deve ser vista no contexto da “crise da
morte”, diagnosticada em meados do século XIX e, numa
perspectiva mais ampla, Barthes entende que a função an-
tropológica da imagem fotográfica é ocupar o lugar da morte
na sociedade moderna. A morte assim se torna o Eidos da
fotografia, sua essência: “(…) [n]essa imagem que produz
a Morte ao querer preservar a vida.”5
O paradoxo que existe, no cerne da imagem, entre o
presente e o passado, entre o vivo e a morte, se agrava ainda
mais na fotografia, segundo Barthes, e principalmente na
fotografia de algo ou de alguém morto. Uma fotografia de
um cadáver, por exemplo, tende a se tornar espantosamente
horrível exatamente porque acentua a indecidibilidade que
surge na imagem viva de uma coisa morta. Nessa ambigui-
dade, a fotografia nos remete à questão romântica do duplo,
sempre visto em relação ao lado inumano e mecânico do
homem, algo que evoca o monstruoso entre o não vivo e o
não morto. Na análise freudiana do conto O homem de areia,
de Hoffmann, por exemplo, o efeito sinistro do estranho
inquietante (das Unheimliche) era ligado explicitamente à

112 Karl Erik Schøllhammer

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dúvida em relação à Olimpia, vizinha e paixão do persona-
gem principal, Nathaniel. Da perfeição exagerada e beleza
impecável surgia a inquietação: ela era mulher com olhos
inexpressivos ou uma boneca com a vivacidade expressiva
de uma mulher? Algo aparentemente animado pode não
estar vivo, e um objeto sem vida pode resultar animado, e
é nessa relação que as imagens de certa maneira transitam.
É o mesmo efeito do estranho que Barthes vai rastrear na
análise da fotografia e descrever como o resultado de “uma
confusão perversa entre dois conceitos: o Real e o Vivo”.6
A fotografia atesta que o objeto foi real, e “induz sub-
-repticiamente a acreditar que ele está vivo, por causa desse
logro que nos faz atribuir ao Real um valor absolutamente
superior, como que eterno; mas ao deportar esse Real para
o passado (isso foi), ela sugere que está morto.”7
Desse modo, a imagem viva se torna paradoxalmente
o cadáver figurativo do que já foi vivo, não importa seu
objeto, numa relação que equivale àquela entre a fotografia
e seu referente:

Diríamos que a fotografia sempre traz consigo seu referente,


ambos atingidos pela mesma imobilidade amorosa ou fúnebre,
no âmago do mundo em movimento: estão colados um ao outro,
membro por membro, como o condenado acorrentado a um
cadáver em certos suplícios.8

vida e morte da imagem 113

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Esse paradoxo entre a vida e a morte vai guiar a leitura
de Barthes não só em relação a essa ontologia da fotografia,
mas a seguir na interrogação desdobrada sobre a experiência
afetiva diante dela. Ao tratar da fotografia, Barthes procura
definir uma fenomenologia própria, não cínica, compro-
metida com o afeto:

O afeto era o que não queria reduzir; sendo irredutível, ele


era, exatamente por isso, aquilo que eu queria, devia reduzir a
Foto; mas seria possível reter uma intencionalidade afetiva, um
intento do objeto que fosse imediatamente penetrado de desejo,
de repulsa, de nostalgia, de euforia?9

Reaparece a ideia de uma intencionalidade afetiva da


imagem, e é essa intencionalidade que em seguida será
traduzida nos dois temas bem conhecidos do trabalho de
Barthes: Studium e Punctum. É bem sabido que o Studium,
segundo Barthes, pertence ao domínio do testemunho his-
tórico e político e que é aquilo que desperta um interesse
nas fotografias, pela participação que oferecem nas figuras,
nas caras, nos gestos, nos cenários e nas ações. Desse modo,
o Studium permite participar na intencionalidade do fotó-
grafo, enquanto o Punctum descreve a agência que parte
da própria imagem, uma dimensão háptica, afetiva, talvez

114 Karl Erik Schøllhammer

EXPANSOES CONTEMPORANEAS_MIOLO DEZ 2013.indd 114 10/03/14 11:06


algo que possa ser entendido como a “intencionalidade”,
o “desejo” da fotografia, nos termos de Mitchell. Barthes
relaciona o Punctum ao acaso na fotografia, não apenas
ao aspecto contingente de sua realização, mas àquilo que
intervém sobre o espectador como destino e que “me punge
(mas também me mortifica, me fere)”.10 Podemos gostar da
fotografia em termos de Studium, mas amamos a foto por
causa do Punctum, continua Barthes. Assim, o Punctum
caracteriza um afeto da fotografia, uma potência de se fazer
presente para o espectador. Entretanto, a presença da coisa
“jamais é metafórica”, diz Barthes, ou seja, a presença jamais
é figurativa e indireta: “(…) quanto aos seres animados”,
continua Barthes, “o mesmo ocorre com sua vida, salvo
quando se fotografam cadáveres; e ainda: se a fotografia se
torna então horrível, é porque ela certifica, se assim pode-
mos dizer, que o cadáver está vivo, enquanto cadáver: é a
imagem viva de uma coisa morta.”11
Na antropologia da imagem, explora-se a relação fun-
damental entre esta e o corpo, o que abre caminho para
aprofundar a complexidade da noção de imagem. Ou, como
diz Maurice Blanchot: “A imagem, à primeira vista, não
se assemelha ao cadáver, mas poderia muito bem ser que
a estranheza cadavérica fosse também a da imagem.”12 Aí
talvez se explique a fascinação continuada na arte contem-
porânea de retratar a morte na imagem, como por exemplo,

vida e morte da imagem 115

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em artistas como Andrés Serrano, Joel-Peter Witkin, Araya
Rasdjarmrearnsook e Suzanne Opton, à procura desse par-
ticular efeito ligado à natureza própria da imagem.
Antes de seguir a discussão dos conceitos de Barthes
retomo a ideia inicial da “imagem viva” a partir da pergunta
formulada recentemente por Thomas Mitchell: “O que quer
a imagem?” O que ela deseja? Mitchell apontou assim para
uma ontologia da imagem que ultrapassa a interrogação
comum do que a imagem significa e o que ela faz, qual é o
poder que ela tem de nos afetar emocionalmente e conduzir
nosso comportamento. Mas podemos realmente considerar
viva a imagem? Organicamente e não apenas socialmente
viva? Depositária de um desejo próprio? É claro que Mitchell
usa o conceito da imagem como organismo no sentido me-
tafórico. Trata-se de uma analogia com limites, entretanto
considera a “metáfora inevitável e necessária” para poder
entender uma espécie de espírito ou potência que a ima-
gem13 possui e que nos obriga a nos relacionarmos com ela
como se fosse viva! A vida da imagem em outras palavras
é, para Mitchell, uma espécie de espiritualidade mágica,
uma potência homeopática de criar realidades espectrais e
tomar corpos diferentes, como se intui na distinção entre
Imagem e Pictura (Image and Picture), em que a Picture
é a mídia material que permite à Imagem encorpar-se.14
Proponho não só entender essa duplicidade como uma

116 Karl Erik Schøllhammer

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simples questão de adaptação em que a mesma imagem
se incorpora em materialidades e mídias diferentes, mas,
com Marie-José Mondzain, entender que a imagem é dife-
rente da simples visibilidade, o que ela chama de imagética
(imagerie). A teórica francesa define a imagem em singular
como “aquilo que se inscreve na visibilidade sem ser visí-
vel”.15 Neste sentido, a imagem é ligada ao desejo de ver,
enquanto a visibilidade é a ocultação do objeto do desejo.
“Sem desejo de ver não há imagem, mesmo se o objeto
desse desejo não for senão o próprio olhar.”16 Mondzain
retoma, nessa definição, a distinção de Lacan entre “ver” e
“olhar”, em que o olhar é entendido como a capacidade que
a imagem tem de interpelar o espectador, dividido entre o
ver e o não ver. Quando afasta o olho do motivo figurativo
– os dois Embaixadores no quadro de Holbein –, um objeto
misterioso representado em anamorfose de uma perspectiva
periférica e abismal é “reconhecido” sensivelmente como a
morte própria. Não é hora de aprofundar na complexidade
da conferência de Lacan;17 apenas indicar que a psicanálise,
aqui, interpreta a invisibilidade da imagem, pela via da fe-
nomenologia de Merleau-Ponty, como a chamada sensível
que sustenta, orienta e desvia a visão na dobra em que o
espectador vê o sempre já visto. O olhar parece partir do
quadro, atraindo afetivamente a visão, interrompendo sua
estabilidade figurativa.

vida e morte da imagem 117

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Num debate recente entre Mitchell e Jacques Rancière,18
Mitchell propõe um cenário elucidativo para analisar o
início e o fim da imagem e o processo evolutivo entre os
extremos. O início seria as imagens de cenas de caça de
bisonte nas paredes das grutas de Lascaux, e o fim, a cena
do filme Jurassic Park: o parque dos dinossauros, em que um
dinossauro fica preso na sala de cinema onde está sendo pro-
jetado o filme sobre a tecnologia de manipulação do DNA
que possibilita o renascimento dos animais paleolíticos. O
cenário é alegórico para a “virada pictórica”, mas salienta
agora a importância concedida por Mitchell às imagens
animais, que o motiva a falar de uma “virada bio-pictórica”
em direção a imagens que se confundem com os seres vivos:

Assim, o futuro da imagem é sempre agora, na forma mais


antiga e mais nova da imagem, seja nas aparições maravilhosas de
Lascaux, seja na realização tecnológica contemporânea do sonho
ancestral de produzir não apenas uma imagem animada similar de
uma coisa viva, senão uma imagem que é tanto uma cópia, uma
reprodução e, em si, uma coisa viva.19

A realização desse sonho ancestral no século XX é o clo-


ne, que não é apenas a versão literal de uma imagem viva,
mas sua realização científica, pelo menos no nível animal.20
O que caracteriza a consciência moderna da imagem é que,

118 Karl Erik Schøllhammer

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mesmo mantendo o ceticismo racional a respeito da ima-
gem, aceitamos a manutenção desse preconceito animista,
vitalista e, em suma, mágico da imagem. Essa dupla cons-
ciência é o que caracteriza a proposta de Mitchell. Mesmo
reconhecendo que não acredita realmente no desejo das
imagens, não acredita que as imagens querem algo, insiste
em falar das imagens e comportar-se em relação a elas
como se de fato acreditasse nesse poder. As duas imagens
concretas que Mitchell escolhe como exemplos principais
são as imagens das torres gêmeas em chamas, por um lado,
e a imagem do clone de cordeiro, Dolly. No primeiro caso
percebe-se o poder da imagem na ação iconoclasta, pois as
torres eram alvos significativos unicamente como ícones do
poder ocidental globalizado. Eram símbolos, mais do que
alvos militares, e sua destruição foi a encenação do mesmo
espetáculo midiático já visto tantas vezes em versões cine-
matográficas. É assim que pode ser considerada uma ima-
gem viva, uma imagem que ganhou uma vida independente
e autônoma, uma imagem que se tornou uma realidade
política. No caso do cordeiro clonado, Dolly, trata-se de
um organismo que também é uma imagem exata, um duplo
genético de seus pais. É a partir de imagens como essas que
Mitchell observa que não se trata apenas de isolar algumas
imagens que parecem se tornar vivas. São as coisas vivas em
si que já são imagens de uma maneira ou de outra.

vida e morte da imagem 119

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Na crítica desse vitalismo formulada por Jacques
Rancière – num ensaio sob o título: Querem as imagens
realmente viver?21 – o filósofo francês diferencia a ideia
da imagem viva de Mitchell da maneira que Gilles Deleuze
define as imagens como “formas de vida”. Rancière critica
Mitchell por entender a vida das imagens em forma de
vida individual, enquanto as formas de vida de Deleuze
são formas não orgânicas no escopo geral do que chama de
“uma história natural das imagens”. Diferente de Thomas
Mitchell, para quem a vida das imagens, em oposição à
abstração dos computadores e da comunicação digital, é
uma vida orgânica, uma vida simbolizada na imagem de
um organismo.22 Em Deleuze a naturalização da imagem
caracteriza-se pela abolição da oposição entre o mundo
físico do movimento e o mundo psicológico da imagem.
Como observado pelo próprio Rancière em outro livro,23
as imagens para Deleuze não são a duplicação das coisas.
“São as coisas em si, o conjunto do que aparece, quer
dizer, o conjunto do que é. Assim, a definição da ima-
gem por Deleuze é, seguindo Bergson: ‘O caminho pelo
qual se passam em todos os sentidos as modificações que
se propagam na imensidão do universo.’”24 Nesse sentido,
as imagens são as coisas do mundo, e a “classificação dos
signos torna-se uma teoria dos elementos, das combinações
dos seres (étants)”.25

120 Karl Erik Schøllhammer

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O próprio Rancière envereda pela questão num ensaio
importante intitulado “A imagem pensiva”, do livro O
espectador emancipado,26 em que vai qualificar o termo
“pensivo” ou “pensativo”, adotado do trabalho crítico de
Roland Barthes a partir de uma discussão do livro A câmera
clara deste último. Quando falamos de um indivíduo pen-
sivo, conforme observa Rancière, queremos dizer alguém
cheio de pensamento, apesar de não necessariamente estar
pensando. Há uma certa passividade no pensivo. Mais
complicado resulta falar de uma imagem pensiva, pois uma
imagem não pensa, entretanto pode conter “pensamentos
não pensados” que não são necessariamente resultado de
uma intenção do autor da imagem, mas que têm um efeito
sobre a pessoa que olha para ela sem necessária referên-
cia a um objeto designado. Para Rancière o conceito de
“pensivo” se torna funcional na desconstrução que faz da
relação entre os conceitos de Studium e Punctum do livro de
Barthes. Realiza uma crítica dura à dicotomia barthesiana
entre um efeito significativo criado pela composição de
códigos culturais por um lado, e o afeto capaz de suspender
a doxa cultural e o conhecimento em geral em função de
uma presença de morte, por outro. Numa leitura perspicaz,
mostra como Barthes em nenhum momento de sua leitura
dos detalhes de Punctum abre mão do conhecimento e da
leitura interpretativa em nome de um afeto puro. Alega,

vida e morte da imagem 121

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assim, que a leitura de Barthes erra o alvo quando fala de
uma suspensão da capacidade hermenêutica como sua
condição de possibilidade. Pois, para Rancière, o que define
realmente o Punctum é ser um afeto resultante da proxi-
midade da morte. É a presença da morte que se sobrepõe
aos outros afetos, por exemplo na fotografia, tirada por
Lewis Hyne, do menino com Colar Danton, que refere-se
implicitamente à decapitação. Se o Studium remete ao “re-
gime representativo”, segundo os conceitos de Rancière, o
Punctum retoma em sua referência à morte o “regime ético
da imagem”, uma vez que a imagem pela relação à morte
torna-se uma Imago, isto é, uma efígie e máscara mortuária.
Desse modo, o Punctum, que para Barthes se identificava
com uma estética negativa de vanguarda, é para Rancière
associado ao regime ético, por sua íntima conexão com a
presença da morte, e não, como interpretado normalmente,
ligado a uma expressão do estético moderno. O Punctum é
o afeto provocado pelo corpo (morto) do outro e remete ao
regime ético da imagem em que esta é ligada ao objeto de
sua referência por um laço ontológico. O que na recepção
de Barthes dos dois conceitos de Studium e Punctum é visto
como uma dicotomia entre o representativo (clássico) e o
estético (vanguarda), na leitura de Rancière se reposicio-
na na relação entre o regime ético (platônico) e o regime
representativo (aristotélico) que aponta a seguir para uma

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terceira posição – o regime estético propriamente dito –
evocada dialeticamente pelo jogo indecidível entre os dois.
Essa alternativa de leitura sugerida por Rancière se apropria
de outro conceito de Barthes: o pensivo, desenvolvido por
Barthes pela primeira vez no livro S/Z e descrito aqui como
ambiguidade polissêmica, uma sobra indecifrável de sentido
sempre presente na escrita clássica. Na interpretação de
Rancière, o pensivo expressa o moderno “regime estético”
e muda de natureza ao provocar a suspensão da atividade
interpretativa diante de certas imagens e frisar a ambivalên-
cia da imagem e sua indecidibilidade entre ativa e passiva. O
pensivo não “é a abolição da imagem”, diz Rancière, “pela
presença direta, mas sua emancipação da lógica unificante
da ação; não é a ruptura na relação entre o inteligível e o
sensível, mas um novo estatuto da figura”.27 O pensivo é,
assim, a resistência à interpretação que se remete ao regi-
me estético e principalmente evoca uma nova função da
figura. Em seu sentido tradicional, a figura é, na metáfora
por exemplo, a combinação de dois sentidos (o literal e o
metafórico) e uma operação de deslocamento que substitui
uma expressão por outra. Aqui, entretanto, a figura não é
uma simples substituição; opera num entrelaçamento entre
dois regimes de expressão diferentes, o representativo e o
ético, sem estabelecer nenhuma relação clara entre os dois e
sem homogeneizá-los. O pensivo não se reduz, na leitura de

vida e morte da imagem 123

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Rancière, à aura (Punctum) da aparição única, nem é nossa
ignorância a respeito da intenção do autor ou a resistência
da imagem à nossa interpretação.28 O que se interrompe no
pensivo é a relação hierarquizada entre narrativa e descri-
ção. A lógica da visualidade, ligada à expressão, não aparece
para oferecer um suplemento à ação; chega para suspender
a ação numa nova tensão entre descrição e narração, entre
pintura e literatura. “O processo de impersonalização pode
ser formulado aqui”, continua Rancière, “como uma sus-
pensão da ação literária por uma passividade pictórica”.29
Sem alongar ainda mais essa questão complexa formulada
por Rancière, é possível aqui concluir que a figura no pen-
sivo não só negocia a relação entre o literal e o figurativo,
mas opera, entre diferentes regimes de expressão, o repre-
sentativo e o ético. É nessa tensão no seio da relação entre
narrativa e descrição que a figura abre para um trabalho
investigativo da relação entre diferentes artes e entre di-
ferentes mídias. Se a imagem na literatura moderna era
entendida como um suplemento à história, assim como a
descrição era da narrativa, no pensivo se desata o nó do
enredo e suspende-se e desdobra-se esse enredo [ou o nó
desse enredo] para fora da obra. Nesse sentido, Rancière
aponta para uma característica atualíssima na literatura
e nas artes contemporâneas ligada ao campo estendido
em que imagens produzidas em uma arte sobrevivem e

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se atualizam em outra(s) arte(s) com uma potência, uma
vitalidade, que permanece o cerne da questão, sempre
ligada à compreensão da imagem enquanto semelhança.30
Desse modo, abre-se finalmente a dicotomia inicial
entre vida e morte na imagem com uma terceira posição,
uma indecidibilidade impessoal entre presença/ausência,
expressão/conteúdo, mas também entre presente e passado,
tocando aqui numa outra problemática ligada à tempora-
lidade da imagem que historiciza a ideia de sua “vida” e o
aproxima ao conceito de sobrevivência de Aby Warburg,
que se reformula nos escritos de Giorgio Agamben e
Didi-Huberman. A distinção de J.-M. Mondzain entre vi-
sibilidade (imagética, ou imagens em plural) e imagem em
singular é retomada por Didi-Huberman em sua discussão
da diferença entre o horizonte totalitário da cultura do espe-
táculo banhado na luce dos estados definitivos, assim como
formulado por Guy Debord, e a intermitência passageira
da imagem enquanto lucciola. Talvez se justifique entender
esses lampejos intermitentes das menores imagens transi-
tórias como uma espécie de indecidibilidade pensiva entre
aparecer e ocultar, entre chispas de sentido e apagamentos
de significantes frágeis.
Didi-Huberman insiste nessa reformulação de uma
posição de vaga-lume resistente para o pensamento crí-
tico contemporâneo, fundada na ideia da sobrevivência
da imagem como aparição única, preciosa e resistente ao

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domínio da cultura espetacular. O objetivo parece ser o de
mostrar como a imagem, a verdadeira lucciola contemporâ-
nea, pode em suas intermitências passageiras oferecer uma
alternativa ao horizonte da luce dos estados definitivos de
tempos paralisados. “Dar exclusiva atenção ao horizonte”,
observa o autor, “é tornar-se incapaz de olhar a menor
imagem”. Aquela “imagem-vaga-lume” cujo lampejo ines-
perado pode ser o primeiro “operador político de protesto,
de crise, de crítica ou de emancipação”.31 Contra o horizonte
da destruição da experiência, enunciado por Agamben,
Didi-Huberman defende, assim, um núcleo indestrutível da
experiência histórica que Benjamin já percebia como uma
nova beleza profética naquilo que desaparece.
Nessa relação de vida e sobrevida, ou sobrevivência, da
imagem, dois conceitos fundamentais de Aby Warburg se
entrelaçam: a ideia de sobrevivência (Nachleben) de tópicos
e imagens do passado por meio de uma relação sensível,
empática ou patética (Pathosformel). Já na introdução da
tese de Warburg, ele explica:

tentou-se confrontar as conhecidas pinturas mitológicas de


Sandro Botticelli, O nascimento de Vênus e A Primavera, com as
correspondentes ideias da literatura poética e das teorias estéticas
da época, para assim esclarecer o que da Antiguidade “interessava”
aos artistas do século XV.32

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A complexidade dessa relação é marcada aqui apenas
com as aspas, pois certamente não se tratava de uma influ-
ência consciente entre artistas, nem de uma continuidade
de linguagens formais representativas. Em trabalhos pos-
teriores, fica patente que Warburg entende esta relação no
nível de uma psicologia coletiva e profunda que permita
que forças afetivas do passado irrompam sintomaticamen-
te nos temas e nas figuras tópicas das imagens escolhidas
conscientemente.
No livro sobre Botticelli, Warburg mostrou, através de
leituras paralelas e comparativas dos poetas Poliziano e
Ovídio falando de O nascimento, como a serenidade clássica
da Antiguidade idealizada pela Renascença italiana veio em-
butida de forças primitivas e pagãs que só se expressam nos
cabelos flutuantes e nos adereços e roupas em movimento.
Era a importância desses movimentos nos acessórios e seu
papel na Renascença que interessava a Warburg, e em tais
movimentos identificava expressões de uma potência pro-
vavelmente inspirada no aspecto dionisíaco de Nietzsche
em contraste com a contenção apolínia. Outra questão
levantada por O nascimento era a relevância da figura fe-
minina solitária que recebe Vênus na beira do mar e que
Warburg interpretou como a deusa da primavera ou aquela
figura que os renascentistas chamavam de “Nympha”. Essa
figura feminina idealizada fascinou o historiador durante a

vida e morte da imagem 127

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vida inteira e expressava paixão e movimento comparável
à violência do Laocoonte e dos métopas do Partenon. O
interesse de Warburg por esses mecanismos psicológicos
profundos que percebeu por trás da religião e da arte no
desenvolvimento humano foi confundido, com frequência,
com irracionalismo de inspiração junguiana, mas ganha,
na perspectiva dos estudos contemporâneos de uma teoria
dos afetos, uma nova relevância. O que em Warburg talvez
tenha sido elemento de uma teoria de evolucionismo psico-
lógico inspirado, entre outros, no estudo de Darwin – The
Expression of Emotion in Animals and Men – contribui
agora para uma teoria da capacidade expressionista da
imagem (Ausdruchkunde) como parte de uma psicologia
social ou cultural mais ampla. Eis a abordagem de Georges
Didi-Huberman que detecta nas obras de Warburg uma
“arqueologia do Pathos” e sua potência numa memória
coletiva expressa na arte. O papel das imagens, no entanto,
é complexo. Operam dialeticamente não só como expressão
de uma força latente senão como catalizadoras dessa força
em sua operação na memória histórica. Imagens que não
pertencem propriamente ao passado podem, nesse sen-
tido, atualizar e reviver o passado de modo anacrônico e
descontínuo. Eis o papel específico das fórmulas patéticas
(Pathosformeln), que para Warburg condensavam figuras
e gestos, conteúdos e expressões, carregando emoções e

128 Karl Erik Schøllhammer

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afetos primitivos que pudessem irromper na continuidade
histórica ao manifestar simultaneamente algo original e a
retomada e repetição do passado.
É assim que Giorgio Agamben entende o Pathosformeln,
as fórmulas patéticas. São cristais de memória histórica que
trazem do passado algo que só sob o encontro com algum
estímulo do presente se revela parte espectral da história.
Esse argumento aprofunda a ideia de “sobrevivência”
(Nachleben) de Warburg, que assim aponta para uma
complexa visão diacrônica da história, em diálogo com
as teses da história de Walter Benjamin e também com o
conceito de a posteriori (Nachträglichkeit) de Freud. Aquilo
que de maneira redutora foi lido por alguns historiados de
arte como a sobrevivência contínua de uma essência vital
de sensibilidade primitiva da Antiguidade, em imagens e
outras expressões artísticas, culturais e religiosas, através da
história, resulta ser uma compreensão das imagens como
portadoras dialéticas tanto do passado quanto do presente
e que assim revelam efetivamente a ilusão da continuidade
histórica. As imagens são vivas, observa Agamben, mas,
feitas de tempo e história, sua vida é sempre já Nachleben,
sobrevivência, uma vida sempre já prestes a assumir uma
forma espectral.
Para Didi-Huberman,33 por sua vez, a contribuição de
Warburg é criar na história da arte uma teoria própria

vida e morte da imagem 129

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da evolução, uma teoria própria do tempo. A história da
arte precisa abandonar a cronologia habitual, e para Didi-
-Huberman o conceito de sobrevivência de Warburg sig-
nificou um tempo histórico mais complexo, reconhecendo
temporalidades específicas do mundo da cultura. E. H.
Gombrich acusou Warburg de evolucionismo darwinista,
mas a sobrevivência não significa que a história da arte se
desenvolve por seleção natural através de uma eliminação
sucessiva dos estilos mais fracos. Pelo contrário, as formas
sobreviventes não superam a morte de seus competidores.
Elas sobrevivem à morte própria, desaparecendo num
momento dado da história e reaparecendo em outro muito
distante, quando não mais esperadas e rompendo, assim,
com qualquer ilusão de desenvolvimento e progresso.
Voltando ao conto de Balzac, voltamos à ambiguidade
diante do quadro de onde supostamente a mulher perfeita,
La belle noiseuse, emergiria e se desprenderia da tela, mas na
qual os dois pintores apenas enxergam um caos de linhas e
cores, se não fosse por um pé deliciosamente perfeito que lá
está, nascendo como a Vênus da espuma cósmica ou sucum-
bindo soterrada pelas imagens como vítima de um desastre
natural. Michel Serres lê o conto como uma espécie de
alegoria sobre o tumulto caótico da vida, ou melhor, como
o que chama de uma iknografia, uma espécie de origem
da iconografia: “O que é a iknografia?”, pergunta Michel

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Serres. “É a totalidade de, a unidade de, perfis e horizontes
possíveis. A iknografia é o possível, o reconhecível ou o
representável, é o poço dos fenômenos. É a série completa
das metamorfoses do deus marítimo Proteu, é o Proteu
em si.”34 Segundo Serres, Balzac fala exatamente desse caos
do ser, essa infinita multiplicidade de formas por trás dos
fenômenos que é o sentido profundo do geométrico. Mas,
como Leibniz bem percebeu, o geométrico é inacessível
para o homem, que sempre depende de um cenário e de
uma perspectiva; só Deus enxerga a totalidade das formas.
Para o homem resta a impressão, na areia, de um pé – em
grego Ichnos –, uma imagem, uma semelhança, de algo que
ainda está por nascer.

Notas
1
Teixeira Coelho, A obra prima ignorada: entre a vida e a arte, São Paulo,
Comunique, 2003, p. 53.
2
Ibidem, p. 52.
3
W. J. T. Mitchell, What Do Pictures Want? The Lives and Loves of Images,
Chicago, Chicago UP, 2005, p. 7.
4
Roland Barthes, A câmera clara, trad. Júlio Castañon Guimarães, Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 1980, p. 137.
5
Ibidem, p. 138.
6
Ibidem, p. 118.
7
Ibidem.
8
Ibidem, p. 15.

vida e morte da imagem 131

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9
Ibidem, p. 38.
10
Ibidem, p. 46.
11
Ibidem, p. 118.
12
Maurice Blanchot, O espaço literário, Rio de Janeiro, Rocco, 1987, p. 257.
13
A imagem para Mitchell é uma relação de semelhança ou de forma analógica
que se torna viva numa pictura. É uma aparência espectral, fantasmagórica
e virtual que remete ao ícone da semiótica de Peirce; uma possibilidade de
semelhança que traz o referente para dentro da semiose. A performatividade
ontológica da imagem será talvez essa, no vitalismo peculiar de Mitchell, seu
afeto originário e primeiro.
14
Essa definição geral da Imagem é próxima à definição de ícone do semiótico
Charles Sanders Peirce: um signo com a qualidade de ser uma possibilidade
de semelhança. “Um Ícone (…) é estritamente uma possibilidade, e assim
a possibilidade de ser representado como possibilidade é a possibilidade da
possibilidade envolvida. Unicamente nessa espécie de Representamen, então,
o Interpretante pode ser o Objeto.” (Charles Sanders Peirce (ed.), A Syllabus
of Certain Topics of Logic, em The Essential Peirce. Selected Philosophical
Writings, Indiana, Indiana University, Peirce Edition Project, 1903, p. 277,
v. 2.)
15
Marie-José Mondzain, A imagem pode matar?, Lisboa, Nova Vega, 2009, p. 31.
16
Ibidem.
17
Jacques Lacan, O seminário de Jacques Lacan. Livro XI: Os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise, Ed. Zahar, Rio de Janeiro, 1988.
18
Jacques Rancière, Do Pictures Really Want to Live?, Culture, Theory & Critique,
v. 50, n. 2-3, p. 139, 2009.
19
W. J. T. Mitchell, The Future of the Image: Rancière᾿s Road Not Taken, Culture,
Theory & Critique, v. 50, n. 2-3, p. 137, 2009.
20
O clone humano, conhecemos só da ficção científica, mas Mitchell propõe que
seja talvez o homem sem rosto contemporâneo, o homem encapuzado de Abu
Graib. “[E]ssa figura encapuzada tornou-se o ícone contemporâneo da falta
de ‘rostidade’ que Rancière associa à imagem obtusa contemporânea.” (Jacques
Rancière, Do Pictures Really Want to Live?)

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Ibidem, p. 123-132.
21

Rancière acrescenta: “Assim podemos descrever a virada pictórica como um


22

retorno do reprimido. Mas o que retorna aqui não é a vida como codificada no
DNA, nem é a forma de vida pré-individual de Deleuze. É uma vida orgânica e
individual. Há, entretanto, duas maneiras de entender essa individualidade. Por
um lado pode ser pensada como um corpo orgânico estruturado pela lógica
da falta. Por outro, pode ser pensada como aquela de um vírus proliferando.”
(Ibidem, p. 126.)
Jacques Rancière, La fable cinématographique, Éditions du Seuil, Paris, 2001,
23

p. 148.
Ibidem.
24

Ibidem.
25

Jacques Rancière, O espectador emancipado, Rio de Janeiro, Martins Fontes,


26

2012.
Ibidem, p. 121.
27

Ibidem, p. 122.
28

Ibidem.
29

Blanchot, por exemplo, acrescenta: “Será que a própria linguagem não se torna
30

inteiramente, na literatura, imagem; não uma linguagem que conteria imagens


ou que colocaria a realidade em figuras, mas que seria sua própria imagem,
imagem de linguagem – e não uma linguagem figurada –, ou ainda, linguagem
imaginária, linguagem que ninguém fala, ou seja, que se fala a partir de sua
própria ausência, assim como a imagem aparece sobre a ausência da coisa?”
(Maurice Blanchot, O espaço literário, p. 31-32, nota).
Georges Didi-Huberman, Sobrevivência dos vaga-lumes, trad. Vera Casa Nova
31

e Márcia Arbex, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2011, p. 117-118.


Aby Warburg, O nascimento de Vénus e A primavera de Sandro Botticelli,
32

Ymago, Lisboa, 2012, p. 7.


Georges Didi-Huberman, Sobrevivência dos vaga-lumes.
33

Michel Serres, Genèse, Paris, Bernard Grasset, 1982, p. 34.


34

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FORMAS MUTANTES

Wander Melo Miranda

Literaturas pós-autônomas
Com a publicação de “Literaturas postautónomas”,1
Josefina Ludmer dá forma mais contundente ao debate
sobre o fim do que entendemos por literatura. A partir de
textos de Daniel Link, Fabián Casas, Bruno Morales e outros
escritores argentinos atuais, afirma de início:

Essas escrituras não admitem leituras literárias; isto quer di-


zer que não se sabe ou não importa se são ou não são literatura.
E tampouco se sabe ou não importa se são realidade ou ficção.
Instalam-se localmente em uma realidade cotidiana para “fabricar
um presente”, e esse é precisamente seu sentido.2

135

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Assinala que apesar de se apresentarem como literatura,
não podem mais ser lidas por meio de categorias literárias –
“autor, obra, estilo, écriture, texto e sentido” –, submetidas
que são a uma operação de esvaziamento em que cada uma
dessas categorias resta sem densidade, sem paradoxo, sem
indecibilidade, “sem metáfora”. São e não são literatura; são
ao mesmo tempo ficção e realidade. Produzem novas condi-
ções de produção e circulação que modificam modos de ler.
As escrituras ou literaturas pós-autônomas se fundam
em dois postulados do mundo atual: 1) “todo o cultural
(e literário) é econômico e todo econômico é cultural (e
literário)”; fazendo eco aqui a formulações de Fredric
Jameson, que no livro Pós-modernismo – A lógica cultural
do capitalismo tardio,3 aponta para o fato de que a dissolução
de uma esfera autônoma para a produção estética deve ser
imaginada em termos de uma larga expansão da cultura
por todo o terreno social e que o desmoronamento geral
das divisões entre as disciplinas deixa as análises estéticas
numa grande incerteza, como se a produção e o consumo
da arte em nossos dias tivesse sofrido uma mutação funda-
mental, que torna irrelevantes os paradigmas anteriores; 2)
a realidade (pensada nos meios que a constituem) é ficção
e a ficção é realidade. Atuam nas fronteiras da “literatura”,
mas também da “ficção”, ficando dentro-fora de ambas. Re-
formulam a categoria de realidade: não se pode lê-las como

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mero “realismo” em relações referenciais ou verossimilhan-
tes. Tomam a forma do testemunho, da autobiografia, da
reportagem jornalística, do diário íntimo, da etnografia.
Saem da literatura e entram na realidade do cotidiano (e o
cotidiano é a TV, são os meios de comunicação, os blogs,
os e-mails, é a internet etc.). Fabricam o presente com a
realidade cotidiana, e essa é uma de suas políticas. A re-
alidade cotidiana não é a realidade histórica verossímil e
referencial do pensamento realista e sua história política
e social. Mas sim uma realidade construída pelos meios,
pelas tecnologias e pelas ciências. Uma realidade que não
quer ser representada, pois já é pura representação: tecido
de imagens e palavras em diferentes velocidades, graus e
densidades, interiores-exteriores a um sujeito, que inclui o
acontecimento, mas também o virtual, o potencial, o mági-
co, o fantasmático. Na “realidade cotidiana” não se opõem
“sujeito” e “realidade histórica”, “literatura” e “história”,
“ficção” e “realidade”.
Nos clássicos latino-americanos dos séculos XIX e XX, a
realidade era a “realidade histórica”, a ficção se definia por
uma relação específica entre a “história” e a “literatura”,
cada uma em sua esfera bem delimitada, o que não ocorre
hoje. Tome-se o exemplo de Cem anos de solidão, de García
Márquez; Eu, o supremo, de Roa Bastos; História de Mayta,
de Vargas Llosa: há fronteiras nítidas entre o histórico como

FORMAS MUTANTES 137

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“real” e o literário como “fábula”, mito, símbolo, alegoria,
subjetividade, densidade verbal.
As literaturas pós-autônomas, a partir de alguma ilha
urbana latino-americana, dramatizam o processo da litera-
tura autônoma aberto por Kant e a modernidade. Declaram
o fim da era em que a literatura teve uma “lógica” interna
e um poder crucial: o poder de definir-se e ser regida pelas
próprias leis, com instituições próprias (crítica, ensino,
academia), que debatiam sua função, seu valor, seu sentido.
Debatiam também a relação da literatura com outras esfe-
ras, a política, a economia, a realidade histórica. Perde-se
a autonomia (seu poder de autorreferenciar-se) com o fim
das esferas (Deleuze).
Isso leva, claro, ao fim dos embates e das divisões e opo-
sições tradicionais entre formas nacionais e cosmopolitas,
formas do realismo e da vanguarda, da literatura pura e da
literatura engajada, da literatura rural e da literatura urbana.
E da diferenciação entre realidade (histórica) e ficção. A
literatura pós-autônoma oscila entre os dois termos.
É o fim também das identidades literárias que eram iden-
tidades políticas, porque não mais se dramatiza a luta pelo
poder literário e pela definição do poder da literatura (em
razão do fim da literatura concebida como esfera autônoma
ou como campo, para usar o termo de Bordieu). Daí a perda
da especificidade é a perda do poder crítico, emancipador

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e mesmo subversivo que a autonomia atribuiu à literatura
como política própria.
A literatura pós-autônoma exibe ou não as marcas de
pertencimento à literatura e aos tópicos de autorreferencia-
lidade: as relações especulares, o livro no livro, o narrador
como escritor e leitor, as duplicações internas, as citações,
os isomorfismos. À sua maneira, coloca o problema do va-
lor literário: “Eu gosto e não me importa se é boa ou ruim
enquanto literatura.” Depende de como se lê e de onde se
lê a literatura hoje. Ou se lê seu processo de transformação
das esferas (perda da autonomia literária) ou se continua
sustentando uma literatura no interior da literatura. Ou se
vê a mudança da literatura e aparece outra nova episteme;
ou não se vê e se nega e continua a existir literatura e não
literatura, literatura boa e literatura ruim.
As literaturas pós-autônomas do presente atravessariam
a fronteira da literatura e entrariam num meio real-virtual
sem exterioridade, a imaginação pública: “em tudo que se
produz e circula e nos penetra e é social e privado e público
e ‘real’.”
Postulam, enfim, um território, a imaginação pública ou
fábrica do presente, onde Ludmer situa sua leitura e onde
ela mesma se situa. Nesse lugar não há realidade oposta à
ficção, não há autor e tampouco demasiado sentido.

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Para pensar a provocação de Josefina Ludmer, faço algu-
mas considerações a respeito de um trabalho mais extenso
sobre Mario Bellatin (1960), escritor mexicano criado no
Peru, um dos mais instigantes criadores da atualidade.

Formas mutantes: Mario Bellatin e a literatura

(…) las obras y los autores se encuentran situados cada


uno en espacios diferentes: alternos y contemporá-
neos, pero defasados de una unión tal como podrían
percibir los demás.
Mario Bellatin, Disecado

A citação refere-se ao Congreso de Dobles de la Escritura


Mexicana, que teve lugar em Paris, de 29 de setembro a 1 de
novembro de 2003, projeto de Mario Bellatin. Nele, quatro
escritores, Margo Glantz, Salvador Elizondo, Sergio Pitol
e José Agustín, comparecem por meio de duplos que leem
para o público – decepcionado com a ausência física dos
autores – trechos da obra de cada um, escolhidos de um
menu previamente estabelecido e ensaiado. A performance,
retratada em livro bilíngue (espanhol/francês)4 por ocasião
do evento, reaparece em Disecado, livro-síntese, álbum de
citações e memorabilia do trabalho do escritor.

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Em Disecado,5 o autor/narrador dialoga consigo e com
seus desdobramentos: ¿Mi Yo?, que depois se transforma
numa letra árabe e depois em Mario Bellatin. O diálogo es-
pectral, ausente o corpo físico do outro/mesmo interlocutor,
conjuga uma série de duplos e dimensões alternativas ou
“realidades paralelas”6 onde cada um se projeta. A abstração
do lugar – ou sua redução a espaços de clausura: manicômio,
hospital, quarto fechado – concorre para o apagamento do
referente: o texto se abisma em espelho e o sujeito-escritor
desvanece, torna-se o fantasma de si mesmo pela reaparição
obsessiva da “função” – chamemos dessa forma – Mario
Bellatin. A busca do vazio parece ter sido atingida: “Se
encontró inmerso de manera repentina em una suerte de
vacío, donde nada que proviniera del exterior era capaz de
producirle el menor efecto.”7
O efeito de vazio requer a dissecação de textos anteriores
até sua mutação numa forma híbrida à maneira de uma ins-
talação, como no caso da montagem teatral de Perros héroes.8
Nesse livro, um homem inválido tem sob sua guarda trinta
pastores belgas malinois, prontos a atacar até a morte a um
pequeno sinal de seu dono. Na montagem, os animais são
“reemplazados, cada determinado tiempo por ejemplares
disecados, por perros de madera, o se dejaba, sin más, du-
rante largos periodos, el espacio vacío”.9 Essas intersecções
se multiplicam em Disecado: o interlocutor Mario Bellatin

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encontra-se morto, contaminado pela doença de um de seus
personagens, o narrador-travesti que transforma em “Mo-
ridero” seu salão de beleza, para acolher doentes terminais
de AIDS.10 A ficção invade a ficção.
Essa forma de composição envolve diferentes tipos de
interação de um texto-fragmento com os demais, em re-
missão constante, como se todos os livros fossem escritos
ao mesmo tempo. Daí a sensação desconfortante de déjà vu
e novidade frente à vertigem da repetição de certas obses-
sões que o escritor faz questão de apresentar sob ângulos
diversos e com intensidades variadas: a mutilação do avô,
a prótese do braço, a exposição pública dos testículos do
adolescente pela mãe, a asma, a onipresença dos cães. Seus
textos instituem uma lógica serial em que unicidade e repro-
dutibilidade criam um universo meio alucinado, que elide
as fronteiras entre sujeito e objeto e se abre ao inacabado
de uma estrutura sempre prestes a desmontar, análoga ao
edifício em ruínas de El gran vidrio.11
Como na festa que dá título ao volume,12 a celebração
da escritura que perpassa os textos de Bellatin retoma uma
perda que está na origem de escrever “sólo por el gusto de
ver aparecer una palabra detrás de la outra”.13 Uma imagem
perdida da infância persiste: a ausência do primeiro livro,
El libro fantasma, sequestrado pela avó e que “¿Mi Yo? lleva
siempre consigo – lo transporta mentalmente –, cuya falta

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de cuerpo quizá fue la que lo llevó a escribir un texto detrás
de outro utilizando siempre el imaginário de una criatura
de diez años de edad”.14
O corpo mutilado do texto – sua forma mutante – deve
muito a essa desconexão temporal entre o pensamento e
a palavra, que se traduz em imagens vizinhas a uma “otra
realidad”15 ou numa escritura que se propõe escrever “sin
utilizar los métodos clásicos de escritura, como por ejemplo,
las palabras”.16 Escrever sem escrever é, então, operar no
limite de toda significação. Leiamos a abertura de Disecado:

(…) durante ciertas noches de otoño, sobre todo aquellas en


las que el asma o, más bien, los efectos secundarios producidos
por los medicamentos para atenuarla me dejan en un estado que
no podría calificar como de dormido o despierto, pasan por mi
cabeza una serie de escenas y pensamientos que la mayoría de las
veces llegan a límites difíciles de describir.17

A apropriação da cena inaugural da Recherche, descarna-


da de afeto e esvaziada do desejo da mãe pelo filho presente
no texto de Proust, instaura um regime de leitura avesso ao
horizonte de expectativa da memória como narrativa de
identificação do sujeito. Desfaz, assim, qualquer possibilida-
de de expressão autobiográfica ou até mesmo autoficcional

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determinante da leitura, embora sejam facilmente reco-
nhecíveis aspectos da vida do sujeito na escritura.18 O texto
parece propor outra via de aproximação, em que a memória
é “o órgão de modelização do real, que pode transformar o
real em possível e o possível em real”.19
Repetir um texto em Disecado – a exemplo de Perros
héroes ou Salón de belleza – é torná-lo de novo possível
numa nova ordem discursiva que reforça os traços da an-
terior pela sua duplicação. O duplo é aqui um operador da
dissecação – decompor os elementos da estrutura do corpo
morto do texto para torná-lo outro. O efeito de estranha-
mento resultante da operação concorre para, mais do que
elucidar, acentuar “una verdad terrible (...) por detrás de las
palabras”,20 a que ao leitor resta apenas pressentir – como
os cães surpreendidos pelo narrador “en medio de la noche
mirando abstraídos y atentos hacia un punto indetermina-
do”21 ou “captando un más allá al que ninguno de nosotros
puede acceder”.22
A busca dessa forma de percepção inacessível ao humano
eleva a um grau máximo de potência o trabalho de mon-
tagem textual, que se realiza por meio de cortes e recortes
no contínuo do relato, de migrações e sobrevivência das
“figuras” em que os eventos narrados se transformam. A
montagem assinala, de modo perturbador, zonas de contato
apenas pressentidas entre humano e inumano, real e ficção,

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corpo e linguagem, próximas às “revelaciones de orden mís-
tico”23 – em que o sentido é suspenso por um instante quase
imperceptível –, mas esvaziadas de qualquer transcendência
que não seja a página tornada em branco do texto24 – “una
hoja flotando en el vacío”.25
O texto parece, assim, mimetizar a topologia das redes
atuais de comunicação, geração, tradução e distribuição de
imagens, que são constantemente transformadas, reescritas,
reeditadas e reprogramadas.26 O original de Salón de belle-
za, por exemplo, é contaminado pela sua reprodução em
Disecado, onde adquire outra perspectiva significante em
seu estatuto de cópia: torna-se um novo original num novo
contexto; El baño de Frida Khalo reaparece por meio do
deslocamento de Bellatin na figura da pintora. Cada cópia
é por si mesma um flanêur, experimentando o tempo do
aqui e agora na sua repetição iterativa em que o texto perde
e recupera sua aura.27 Propriedade privada simbólica do
escritor, o livro se transforma numa plataforma de discussão
pública para uma comunidade de leitores. O retorno do que
não cessa de se repetir – uma das marcas do contemporâneo
para Giorgio Agamben28 – nunca funda uma origem, pois é
um retorno que é adiamento, retenção, e não nostalgia,29 no
dizer de Suzana Scramin. Como compreensão da natureza
espectral do sujeito, leva ao extremo o mascaramento que

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sempre acompanhou toda identidade pessoal, e resolve-se
numa “singularidade qualquer”.30
Pode-se ler nessa direção, o fato de a assinatura Mario
Bellatin ser sempre esvaziada, ao mesmo tempo em que
reafirma, em sua reaparição frequente no espaço textual,
não uma persona ou um alter ego do autor, mas o traço do
processo de articulação entre deslocamento e relocação,
desterritorialização e reterritorialização, desauratização e
auratização.31 Nesse sentido pode ser lido o projeto “Los
cien mil libros de Bellatin”, que consiste na publicação de
100 títulos do escritor, numa tiragem de 1000 exemplares
de cada título, com tratamento gráfico especial, tendo na
contracapa de cada livro a impressão digital do escritor.
O primeiro texto editado – Shiki Nagaoka: una nariz de
ficción – é a biografia de um escritor inexistente: o projeto
afirma sua autoria pela negação.
O uso de imagens visuais em Jacobo el mutante (2006),
Demerol. Sin fecha de caducidad/El baño de Frida Kahlo
(2008) e Biografía ilustrada de Mishima (2009) reconfigura
a logística da duplicação em Bellatin. À maneira da cópia
digital, inaugura um novo ordenamento topológico do espa-
ço, no qual mover-se não tem mais o sentido de abandonar
um lugar. Transporte e duplicação superpõem-se: dados são
transportados sem que se distanciem de seu lugar original;

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dois “originais” e dois “lugares” podem multiplicar-se em
escala imprevista.
A progressão sem centro também provoca mudanças
na concepção do tempo, uma vez que sua expansão não
apresenta nunca um produto acabado, mas apenas uma
versão. A reprodução se instala no interior do código, no
interior mesmo da escritura, para redefini-la segundo uma
lógica da repetição e desdobrar, assim, o potencial utópico
da cópia idêntica. Há um lugar “u-tópico”, sem localização,
que escapa às regras estabelecidas.
Essa situação instável torna-se uma instância política
em que o político é um ato que reordena o espaço ao tornar
visível uma distribuição específica, uma ordem enquanto tal,
retirando-lhe toda “naturalidade”. Nesse ambiente textual-
-digital, a forma do sujeito não preexiste ao meio, é pro-
gramada dentro dele. Trata-se, ao contrário da duplicação
especular do retrato tradicional, de condensar o rastro do
sujeito, sua aparição a partir de dados que permitem calcular
seus movimentos32 no espaço do “como se” da ficção.
A técnica da sujeição ou a tecnologia da subjetivação
colhe e recolhe dados por meio dos quais calcula de antemão
a margem de flutuação do rastro que o inscreve na rede
textual que dá unidade à obra, mesmo fragmentando-a.
A transformação em sujeito ficcional implica uma forma
de subjetivação e com ela a sujeição a um determinado

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formato visível, de certo modo controlável: o rastro como
signo presente de uma coisa ausente – a perna mutilada da
companheira de fisioterapia do narrador, em Los fantasmas
del masajista (2009), a de Frida Kahlo, em Demerol, sin
fecha de caducidad (2008), ou a do escritor-personagem de
Flores (2001).
A ordenação desses rastros supõe uma lógica temporal
própria, na qual cesuras e fraturas no contínuo do relato
instauram uma duração que os torna contemporâneos. Os
fatos narrados podem assim transitar de um texto a outro
como se fossem reproduções infinitas de uma mesma ma-
triz, que usa o tempo à maneira dos antigos sumérios, diz
o prólogo de Flores, para “la construcción de complicadas
estructuras narrativas basándose sólo en la suma de deter-
minados objetos que juntos conforman un todo”.33 Não
mais um passado perdido – a que as referências constantes
à infância poderiam remeter –, mas um aqui e agora tão
pontual que implode todas as dimensões temporais no ins-
tante congelado e paradoxalmente transitório da instalação
e da performance textuais.
Talvez por tudo isso a obra de Mario Bellatin seja tão
perturbadora – não há antes e depois, fora e dentro. Tem-
poralidades diversas convergem para um mais além do
leitor, que se situa como “una persona que [mira] desde
fuera hacia fuera”,34 num espaço liminar que impulsiona

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a leitura a abrir-se ao mundo, revelando possibilidades até
então ignoradas de lhe dar forma. Desde Duchamp, a arte
especifica-se por insistir em formular a questão de se é pos-
sível ou desejável dar uma forma ao mundo numa espécie de
encontro sem encontro, ou seja, “um encontro entre aquele
que é chamado artista e algo que ele escolhe, num instante
determinado, interpretando-o como uma forma (...) para a
qual não se dispõe de nenhuma forma preventiva”.35
Destituído de qualquer esquematismo mental ou de
uma mensagem precedente (que autorizaria, entre outras,
uma leitura alegórica), o leitor defronta-se com um gesto
escritural, entendido como “o acompanhamento de uma
intenção a respeito da qual resta, no entanto, estranho”.36

Me tocó, en el espacio contiguo al mío, el caso de una mujer


a la que apenas unos días atrás le habian cercenado una pierna.
Sin embargo, a pesar de la intervención, se quejaba de un dolor
profundo en el miembro inexistente. Parecía incapaz de soportar
el sufrimiento que se producía en un espacio que era ahora ajeno a
su cuerpo, en el lugar vacío que había dejado la pierna mutilada.37

Nesse gesto escritural parece assentar uma modalidade


textual em que a identidade do escritor Mario Bellatin
transforma-se na imagem do escritor contemporâneo e lhe
dá a materialidade paradoxal de uma palavra vazia. Dessa

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forma, a obra de Bellatin, entendida como obra-instalação,
dá à comunidade de leitores/visitantes a possibilidade de
constituir seu papel e definir as regras a que sua comunidade
deve se submeter.38 Nessa comunidade contemporânea, em
que, vale insistir, imagens e cópias circulam de um meio a
outro, como as multidões de participantes de uma instala-
ção, nos inserimos como novos flanêurs diante da aura do
aqui e agora.

Notas
1
Josefina Ludmer, Literaturas postautónomas, Ciberletras. Revista de Crítica
Literaria y de Cultura, n. 17, Jul. 2007.
2
Ludmer, Literaturas postautónomas, p. 1.
3
Fredric Jameson, Pós-modernismo – A lógica cultural do capitalismo tardio,
São Paulo, Ática, 1996 (Original inglês de 1991).
4
Mario Bellatin (org.), Escritores duplicados/Doublés d’écrivains, Paris, Instituto
de México à Paris, 2003.
5
Mario Bellatin, Disecado, México, Sexto Piso, 2011.
6
Ibidem, p. 21.
7
Ibidem, p. 37.
8
Mario Bellatin, Perros héroes. Tratado sobre el futuro de América Latina visto
a través de un hombre inmóvil y su treinta Pastor Belga Malinois, México,
Alfaguara, 2003.
9
Ibidem, p. 27.
10
Ver Mario Bellatin, Salón de belleza, Lima, Jaime Campodónico Editor, 1994,
e Idem, Perros héroes.
11
Mario Bellatin, El gran vidrio, Barcelona, Anagrama, 2007.

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El gran vidrio, informa-nos a quarta capa do livro, “é uma festa que se realiza
12

anualmente nas ruínas dos edifícios destruídos da cidade do México, onde vi-
vem centenas de famílias organizadas em brigadas que impedem sua expulsão”.
Mario Bellatin, El gran vidrio.
Ibidem, p. 37.
13

Ibidem, p. 41.
14

Ibidem, p. 11.
15

Ibidem, p. 19.
16

Bellatin, Disecado, p. 11.


17

Em La escuela del dolor humano de Sechuán, lê-se: “Vivimos en un pequeño


18

y húmedo departamento que acrecienta un asma que sólo es calmada con


una serie de medicamentos que, si bien relajan los bronquios, me llevan a un
embrutecimiento en el que no tengo la certeza de encontrarme dormido o
despierto.” Mario Bellatin, La escuela del dolor humano de Sechuán, Buenos
Aires, Interzona, 2005, p. 19.
Giorgio Agamben apud Georges Didi-Huberman, Costruire la durata, em
19

Federico Ferrari (org.), Del contemporaneo, Milano, Bruno Mondadori, 2007,


p. 50.
Bellatin, Disecado, p. 56.
20

Ibidem, p. 11.
21

Ibidem, p. 47-48.
22

Ibidem, p. 38.
23

A página em branco é “tematizada” em La escuela del dolor humano de Sechuán,


24

desde a epígrafe que se refere a Melville.


Ibidem, p. 58.
25

Cf. Boris Groys, Politics of Installation, em Going Public, Berlin, New York,
26

Sternberg Press, 2010, p. 66.


Ibidem, p. 67.
27

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Giorgio Agamben, O que é o contemporâneo e outros ensaios, Chapecó, Argos,
28

2009.
Cf. Susana Scramin, Apresentação, em Agamben, O que é o contemporâneo e
29

outros ensaios.
Ibidem, p. 21.
30

Agamben, O que é o contemporâneo e outros ensaios, p. 64-65.


31

Veja-se a respeito Mercedes Bunz, La utopía de la copia, Buenos Aires, Interzona,


32

2007.
Mario Bellatin, Flores, Barcelona, Anagrama, 2004, p. 9.
33

Idem, La escuela del dolor humano de Sechuán, p. 55.


34

Jean-Luc Nancy, L’arte, oggi, em Federico Ferrari (org.), Del contemporaneo,


35

p. 8. Por isso, talvez, a Escuela Dinámica de Escritores, coordenada por Mario


Bellatin, parta do pressuposto de que não se pode ensinar a escrever. Veja-se:
Mario Bellatin (coord.), El arte de enseñar a escribir, 2. ed., México, Fondo de
Cultura Económica, 2010. No prólogo do livro (p. 13), Bellatin escreve: “Se trata
más bien, creo yo, de una grande instalación, que empezó y sigue fluyendo en
el tiempo y en el espacio. Las fronteras, quiero creerlo, quedan abolidas.”
Nancy, L’arte, oggi, p. 14.
36

Mario Bellatin, Los fantasmas del masajista, Buenos Aires, Eterna Cadencia,
37

2009, p. 13.
Groys, Politics of Installation, p. 60.
38

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SOBRE OS AUTORES

Álvaro Fernández Bravo é diretor da New York University


Buenos Aires, pesquisador do CONICET (Consejo Nacional
de Investigaciones Científicas y Técnicas) e pesquisador afi-
liado da Universidade de San Andrés, Argentina. Doutor em
Línguas Românicas na Universidade de Princeton (EUA). Fez
pós-doutorado na UFMG. Publicou, entre outros, os livros Epi-
sodios en la formación de las redes culturales en América Latina
(2009) e Reality Effects. Essays on New Argentine and Brazilian
Cinema (2013).

Ana Kiffer é professora do Programa de Pós-Graduação em


Literatura, Cultura e Contemporaneidade do Departamento
de Letras da PUC-Rio. Diretora de Programa no Collège
International de Philosophie, em Paris. Bolsista de Produtividade
CNPq e Jovem Cientista do Estado (Faperj). Publicou na
Espanha o livro Antonin Artaud – uma poética do pensamento
(2003) e no Brasil, Anacronismos (2012) e Experiência e arte
contemporânea (2013), assim como diversos artigos sobre a
questão do corpo, da fome e, mais recentemente, das relações
entre corpo, experiência e arte contemporânea.

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Celia Pedrosa é pesquisadora I do CNPq e professora de
Teoria da Literatura e Literatura Comparada no Programa
de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade
Federal Fluminense, no Rio de Janeiro, onde coordena os gru-
pos de pesquisa “Poesia e contemporaneidade” e “Pensamento
teórico-crítico sobre o contemporâneo”. Publicou, entre outros,
os livros Ensaios sobre poesia e contemporaneidade (2011) e
Antonio Candido: a palavra empenhada (1995) e organizou a
coletânea de ensaios Poesia hoje (7Letras, 2000). Coorganizou,
com a professora Maria Lúcia Camargo, a coletânea Poéticas
do olhar e outras leituras de poesia (2006) e, com a professora
Ida Alves, Subjetividades em devir: estudos de poesia moderna e
contemporânea (2008).

Florencia Garramuño é doutora em Línguas e Literaturas


Românicas pela Universidade de Princeton e pós-doutora em
Cultura Contemporânea pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro. É diretora do Programa em Cultura Brasileira da
Universidade de San Andrés e professora associada na mesma
universidade. Publicou, entre outros, os livros Modernidades
primitivas. Tango, samba e nação (Editora UFMG, 2009) e A
experiência opaca: literatura e desencanto (2012).

Karl Erik Schøllhammer é professor associado e diretor do


Departamento de Letras da PUC-Rio. Pesquisador do CNPq, foi
“Cientista do Nosso Estado” pela Faperj (2007-2009). É autor,
coautor e editor de vários livros, entre eles, Henrik Ibsen no Brasil
(2008), Literatura e crítica (2009), Literatura e realidade(s) (2010),

154 Expansões contemporâneas

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Atrocity Exhibition (2011) e Memórias do presente (2012). De
autoria integral, os títulos mais recentes são: Além do visível: o
olhar da literatura (2007), Ficção brasileira contemporânea (2009,
2011) e Cena do crime (prelo, 2013).

Wander Melo Miranda é professor titular de Teoria da Lite-


ratura da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas
Gerais. Autor de Nações literárias (2010) e coorganizador de
Cyro e Drummond: correspondência entre Cyro dos Anjos e Carlos
Drummond de Andrade (2012), entre outras obras.

SOBRE OS AUTORES 155

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