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ATIVISMO E GARANTISMO NO Pouco – ou quase nada50 – versado pela

PROCESSO CIVIL: APRESENTAÇÃO doutrina do processo civil brasileiro, o debate


DO DEBATE47 ativismo judicial versus garantismo processual é
bastante intenso e conhecido por toda América
espanhola, inclusive com relevante repercussão
Glauco GUMERATO RAMOS48 na Europa (Espanha, Itália e Portugal).51-52
Em linhas gerais, é um debate em torno:
i) dos aspectos ideológicos do processo civil, ii)
“Aggiungo queste poche parole so-
dos seus sistemas de enjuizamento53 – inquisiti-
lo per sottolineare uno degli spunti
di reflessione, che il Tuo importan-
te saggio ha ridestato in me.” 50
Na literatura brasileira há um texto importante que
(GIUSEPPE TARZIA – trecho final deve ser conhecido para que se conheça um pouco
de carta enviada a Juan Montero mais do debate. BARBOSA MOREIRA, “Correntes e
Aroca, o principal porta-voz euro- contracorrentes no processo civil contemporâneo”,
peu da atual mirada que se pode em Temas de direito processual (nona série), São
dar ao processo civil da atualidade. Paulo: Ed. Saraiva, 2007, pp. 55-67. Após ter conclu-
E porque refletir é preciso!)49 ído este texto, no final do mês de outubro de 2009,
chegou-me as mãos a RePro 177, de novembro de
2009. Nela há um excelente texto do processualista
espanhol JOSÉ LUIS VÁSQUES SOTELO, “Iniciati-
COLOCAÇÃO DO PROBLEMA E vas probatorias del juez en el processo civil” (RePro
ADVERTÊNCIA 177/93). Neste texto o professor da Universidade de
Barcelona dá importante e clara notícia acerca de
alguns aspectos do debate aqui tratado, v. em especial
pp. 94-112 e respectivas notas.
51
Cf. Proceso e ideología, passim.
47 52
Artigo publicado originalmente na Revista do Mi- Importante destacar que, no Brasil, ROSEMIRO
nistério Público de Minas Gerais, vol. 18/08, 2009. PEREIRA LEAL há tempo chama a atenção para o
48
Membro dos Institutos Brasileiro (IBDP), Ibero- fato de que o devido processo legal muitas vezes é
americano (IIDP) e Pan-americano (IPDP) de Direi- aviltado diante das posturas instrumentalistas que
to Processual. Membro da Associação Brasileira de preponderam na doutrina interna. Dogmaticamente,
Direito Processual (ABDPro). Presidente para o ao meu ver, as ponderações do professor da UFMG e
Brasil do IPDP. Diretor de Relações Internacionais da PUC/MG alinham-se ao postulado garantista
da ABDPro. Professor de Direito Processual Civil da demonstrado no presente trabalho. Cf. Teoria Geral
Faculdade de Direito Padre Anchieta (FADIPA). do Processo – Primeiros estudos, Rio de Janeiro: Ed.
Advogado. Forense, 2009, 8ª edição, passim.
49 53
“Acrescento estas poucas palavras apenas para Enjuizamento, numa tradução livre da palavra
sublinhar o despontar de algumas reflexões que o Teu espanhola enjuiciamento, e não ajuizamento, que em
importante ensaio despertou em mim.” (traduzi livre- português tem significado distinto do pretendido no
mente), carta reproduzida no prólogo subscrito por texto. Ajuizamento para nós tem significado de propo-
JUAN MONTERO AROCA ao livro de coletâneas por situra da ação; enjuizamento, por sua vez, aqui é
ele coordenado, Processo civil e ideología – Un pre- utilizado em referência à dinâmica de desenvolvimen-
facio, una sentencia, dos cartas y quince ensayos, to do processo até sua conclusão. Será inquisitivo o
Valencia: Tirant Lo Blanch, 2006, p. 20. processo que se desenvolve sob a direção inflexível do

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vo ou dispositivo54 (inquisitorial system e ad- atitude das partes na relação processual, iv) da
versarial system)55 –, iii) do papel do juiz e da dimensão constitucional da jurisdição, v) do
conteúdo e do significado do devido processo
juiz. Dispositivo, quando em seu desenvolvimento há legal, vi) da garantia constitucional da ampla
destaque para a atuação e iniciativa dispositiva da
defesa e contraditório, dentre outros.
parte, ou seja, a parte arca com o ônus de sua eventu-
al falta de diligência. Na atualidade, o debate ativismo versus
54
Os sistemas inquisitivo e dispositivo também são
identificados pela doutrina como garantismo divide a doutrina do processo civil
sistema publicístico e sistema privatístico, respectiva- da América hispano-parlante e gera disputas
mente. Nesse sentido, inclusive advertindo que ne-
nhum sistema é “quimicamente puro no plano norma- e/ou polêmicas doutrinárias – às vezes até com
tivo”, JUAN MONROY GÁLVEZ, Teoria General de
Proceso, Lima: Palestra Editores, 2007, pp. 155-160. “chumbo trocado” – que acabam por apartar os
O professor da Universidad de Lima ainda elenca processualistas em verdadeiras “trincheiras ideo-
alguns princípios que fariam parte de cada um destes
sistemas. Seriam princípios procedimentais do siste- lógicas”.
ma publicístico: direção judicial do processo, impulso
oficial, imediação, concentração, boa-fé e lealdade
Aqueles que com certa regularidade fre-
processual, celeridade processual, socialização do quentam Congressos internacionais de direito
processo, integração do direito processual, vincula-
ção e elasticidade, aquisição (=os atos praticados processual nos países que nos são vizinhos na
pelas partes se incorporam ao processo e, desde en-
Latinoamérica podem certificar in loco a inten-
tão, já não beneficiarão ou prejudicarão apenas o
responsável pela produção do ato), preclusão. Seriam sidade do debate que, repito, não é tratado com o
princípios procedimentais do sistema privatístico:
iniciativa da parte, defesa privada, congruência e mesmo vigor – a mim me parece que tampouco
impugnação privada. é tratado – no universo do processo civil brasi-
55
Sobre o inquisitorial system e o adversarial system,
cf. BARBOSA MOREIRA, “O processo civil contem- leiro. Não sei se apenas pelas naturais razões
porâneo: um enfoque comparativo”, em Temas de
direito processual civil (nona séria), pp. 39-54. Ver, idiomáticas que separam os hispano-parlantes de
ainda, FERNANDO GAJARDONI, Flexibilização nós, os luso-parlantes, ou mesmo se por alguma
procedimental – Um novo enfoque para o estudo do
procedimento em matéria processual, São Paulo: razão político-científico-processual56, ou, ainda,
Editora Atlas, 2008, pp. 107-132. Importante destacar
que o adversarial system foi deixado de lado no pro- se pelo fato de que as posturas sustentadas e
cesso civil inglês após entrada em vigor das Civil defendidas pelos chamados garantistas, efeti-
Procederal Rules (=o CPC inglês) em abril de 1999,
já que “Depois das CPR, há muito menos espaço
56
para que as partes controlem o desenvolivimento do Assim me refiro às posturas que são adotadas pelo
caso. Isso porque os tribunais passaram a ter express- Instituto Iberoamericano de Derecho Procesal, que
sivos poderes e deveres sobre a gestão dos casos”, cf. inegavelmente goza de maior destaque entre seus
NEIL ANDREWS, O moderno processo civil – formas congêneres na Iberoamérica, além de exercer satisfa-
judiciais e alternantivas de resolução de conflitos na tória influência na doutrina nacional, até porque
Inglaterra (orientação e revisão da tradaução por congrega vários processualistas brasileiros que –
Teresa Arruda Alvim Wambier), São Paulo: Ed. Re- cada qual dentro de seu respectivo nível de projeção –
vista dos Tribunais, 2009, p. 48. têm dado sua colaboração à nossa ciência.

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vamente, não encontram eco na doutrina interna Iberoamericano de Derecho Procesal (IIDP,
do processo civil. Quanto a este último aspecto – www.iidp.org) e o Instituto Panamericano de
ausência de eco das posturas garantistas – afir- Derecho Procesal (IPDP,
mo, sem medo de errar, que a grande maioria www.institutoderechoprocesal.org). O primeiro,
dos processualistas do nosso país está filiada ao de maior impacto no plano nacional, atualmente
que se apregoa pela voz dos chamados ativistas, é presidido pelo processualista chileno e profes-
conforme tentarei demonstrar no decorrer do sor da Universidad de Chile, Raúl Tavolari Oli-
texto. Nós no Brasil – e obviamente aqui eu me veiros, conhecido defensor das posturas ativis-
incluo – fomos forjados a pensar e a refletir o tas, cujo nome está ligado à reforma do processo
processo civil na perspectiva da Escola proces- penal em vários países da América Latina. O
sual de São Paulo57, que muitas e boas contri- segundo, de menor impacto no Brasil, até por-
buições nos legou, mas cujos fundamentos, até que são menos os brasileiros que o integram59, é
por força da Reforma do CPC e dos notáveis presidido pelo professor da Universidad Nacio-
avanços doutrinários do processo civil brasileiro, nal de Rosario (UNR)60, e um dos principais
atualmente vêm sendo revistos e, muitos deles,
até mesmo postos em xeque.58
foram apresentadas como dogmaticamente intangí-
Essas “trincheiras ideológicas” a que me veis.
59
Os brasileiros que integram o IPDP são: Marcus
referi acima podem ser observadas quando se Vinícius Abreu Sampio (SP), Flávio Buonaduce Bor-
analisa, num ambiente macroscópico, aquilo que ges (GO), Marcos Afonso Borges (GO), Petrônio
Calmon (DF), Min. Castro Filho (DF), Carlos Alberto
é postulado pelos dois principais Institutos de Alvaro de Oliveira (RS), Luiz Manoel Gomes Jr. (SP),
José Miguel Garcia Medina (PR), Glauco Gumerato
direito processual da Iberoamérica, o Instituto Ramos (SP), Roberto Rosas (DF), Eduardo Talamini
(PR), Luiz Rodrigues Wambier (PR), Teresa Arruda
Alvim Wambier (SP). Neste ano de 2009, quando do
XXII Congresso Panamericano de Direito Processu-
57
Como dito por NICETO ALCALÁ -ZAMORRA Y al, realizado entre os dias 26-28 de agosto na cidade
CASTILLO, ao se referir ao pensamento processual de Goiânia – vale destacar: o primeiro Congresso
brasileiro após a forte influência aqui exercida por realizado pelo IPDP no Brasil –, foram aprovados
Liebman, notadamente sobre seus – então – discípulos para integrar o Instituto os nomes de Alexandre Frei-
da Faculdade de Direito do Largo São Francisco tas Câmara (RJ), Antonio Gidi (BA, atualmente radi-
(USP). Cf. ALFREDO BUZAID, Grandes processua- cado em Huston, Texas, onde é professor de direito
listas, São Paulo: Ed. Saraiva, 1982, p. 10, nota 6. processual da respectiva Universidade) e Osmar
58
Basta que se tenha em mente a reformulação do Mendes Paixão Côrtes (DF).
60
sistema de execução civil, com a opção pelo processo Importante destacar que a Universidad de La Plata
sincrético e o abandono do processo de execução – daí a conhecida Escola processual de La Plata, cujo
autônomo para a satisfação do título executivo judici- principal representante foi o recém falecido Augusto
al, para que seja possível diagnosticar que estão sen- Mario Morello –, a UNR e a Universidad Católica da
do fortemente revisitadas antigas doutrinas que nos Argentina, ambas sediadas na cidade de Rosario,

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processualistas da Argentina – e por isso mesmo imparcialidade do juiz, como os pilares de legi-
também da América espanhola –, ADOLFO timação da decisão jurisdicional a ser decretada.
ALVARADO VELLOSO.61-62 Para o ativismo, o juiz deve atuar de maneira a
Para uma primeira – e genérica – com- resolver problemas no curso do processo, e isso
preensão do que é defendido por ambas as cor- independente da diligência da parte em postular
rentes, é possível adiantar que o ativismo judici- pelas respectivas soluções, haja ou não autoriza-
al defende uma postura mais contundente da ção legislativa para a atuação do juiz. Para o
atividade judicial para resolver problemas que às garantismo, o processo é um método no qual o
vezes não contam com adequada solução legis- resultado dependerá do efetivo debate entre as
lativa. É dizer: outorga-se ao juiz um poder cria- partes e de sua diligência em melhor manejar a
tivo que em última análise valoriza o compro- respectiva atividade. Os garantistas buscam
misso constitucional da jurisdição, e isso ainda aplicar as bases dogmáticas do garantismo de
que não haja previsão legal que o autorize na Luigi Ferraijoli – originariamente voltado às
respectiva atuação. Já o garantismo processual ciências penais (direito material e processo) – ao
defende uma maior valorização da categoria direito processual civil.63-64
fundamental processo, e consequentemente da
63
cláusula constitucional do due process, de modo Nesse sentido, JORGE W. PEYRANO: “O autode-
nominado garantismo processual civil – porque, afi-
a valorizar a ampla defesa, o contraditório e a nal, qual corrente do pensamento processual não vai
defender as garantias constitucionais – se apóia em
um equivocado transplante ao processo civil do ideá-
Província de Santa Fé, detêm os principais núcleos do rio de Luigi Ferrajoli, concebido por e para o proces-
pensamento processual civil argentino. so penal” (traduzi livremente), em El cambio de pa-
61
No volume I de suas Instituições, ao fazer um ba- radigmas en materia procesal civil, Buenos Aires: La
lanço da história e evolução do direito processual na Ley, 13/8/2009, nota “9”, com possibilidade de aces-
America Latina, CÂNDIDO DINAMARCO destaca so na web em:
alguns nomes de importância no processo civil argen- www.laley.com.ar/laley/cms/files/1810//diario%2013-
tino, dentre eles está o de ADOLFO ALVARADO 8-09.pdf. Nessa mesma nota “9”, PEYRANO lembra
VELLOSO, o principal porta-voz do garantismo pro- outro estudo que liga as ideias do garantismo proces-
cessual naquele país. Cf. Insitutições de direito pro- sual ao garantismo de FERRAJOLI, do professor da
cessual civil, vol. I, São Paulo: Malheiros Editores, Universidad de Lima JUAN MONROY GALVEZ,
2001, pp. 264-265. Qué es el garantismo procesal civil?, publicado na
62
Relembro, como já adverti na nota de rodapé 1, que Revista Iberoamericana de Derecho Procesal, ano
este texto foi produzido no último trimestre de 2009 e 2006, nº 9, p. 07 e ss.
64
à época estes eram seus presidentes. Atualmente, Ver, ainda, ALVARADO VELLOSO: “A dicção
setembro de 2012, o IIDP é presidido pelo uruguaio garantista – ou seu sucedâneo: garantidor – provém
ANGÉL LANDONI SOSA e o IPDP pelo chileno do subtítulo que Luigi Ferrajoli pôs em sua magnífica
HUGO BOTTO OAKLEY. A título de curiosidade, obra Direito e razão e que quer significar que acima
registre-se que o Prof. LANDONI SOSA é genro do da lei, com minúscula, sempre está a Lei, com maiús-
lendário EDUARDO COUTURE. cula (=a Constituição). Em outras palavras: é guar-

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Mas, como dito logo no subtítulo, aqui ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO
também cabe uma advertência, e de cunho pes- DEBATE
soal.
Apesar de ser produto da – assim a Ao que tudo indica a queda da Bastilha
chamemos – Escola brasileira de direito pro- a representar o debate internacional aqui tratado
cessual, e por isso mesmo ter em minha base de foi a coletânea na qual JUAN MONTERO
formação a dogmática ativista na qual se pauta a AROCA reuniu vários textos sobre o tema, es-
doutrina interna, hoje procuro pensar e operar o critos por processualistas de vários países da
processo civil na perspectiva do garantismo. Iberoamérica e também da Itália: Proceso civil e
Penso que as reflexões em torno do direito pro- ideología – Un prefacio, una sentencia, dos
cessual civil, desde que circunscritas aos confins cartas y quince ensayos, Valencia: Tirant Lo
das diretrizes constitucionais, devem potenciali- Blanch, 2006. E por este momento ter sido a
zar ao máximo novas posturas propositivas para queda da Bastilha, é evidente que, antes disso,
a melhora da nossa ciência e de seus aspectos alguns outros antecedentes importantes podem
pragmáticos. ser aqui elencados.
Nesse panorama não me parece provei-
toso que as posturas garantistas voltadas ao 1995: O artigo de FRANCO CIPRIANI65
processo civil não sejam conhecidas, tratadas e
trabalhadas – naquilo que convier – pela compe- Um provável marco a inspirar o debate
tentíssima doutrina do direito processual civil ativismo versus garantismo no processo civil foi
brasileiro. Até porque a ciência também evolui o – hoje clássico – texto de FRANCO
com o auxílio da dialética fomentada por ideias CIPRIANI66 intitulado Nel centeario del Rego-
antagônicas. Do debate, portanto.
65
Quanto à importância do texto de CIPRIANI na
E a minha intenção com este escrito é evolução histórica em torno dos fundamentos do de-
dar maior visibilidade a este debate. bate, ver tb. OMAR A. BENABENTOS, Teoría gene-
ral unitaria del derecho procesal, Rosario: Editorial
Juris, 2001, pp. 90-96.
66
FRANCO CIPRIANI é conhecido na Itália como
importante pesquisador da história do processo civil.
A ele coube recuperar fragmentos de uma pequena
dar adequado respeito à graduação da pirâmide apostila intitulada Lezioni di diritto amministrativo,
jurídica.” (traduzi). Cf., “El garantismo procesal”, na de autoria de CHIOVENDA, referente às aulas que
coletânea Activismo y garantismo procesal, Córdoba: ministrou na Universidade de Roma nos anos de 1909
Academia Nacional de Derecho y Ciências Sociales e 1910. Cf. CÂNDIDO DINAMARCO, Instituições,
de Córdoba, 2009, p. 145. vol. I, p. 258, nota 3.

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lamento di Klein (Il processo civile tra libertà e fascismo naquele país, bem como da influência
autorità)67. Neste estudo o professor ordinário deste CPC austríaco em outros diplomas proces-

de direito processual civil da Universidade de suais que se lhe seguiram.69


Em síntese, CIPRIANI demonstra que o
Bari (Itália) fez um profundo levantamento his-
Regulamento Klein: i) encara o processo civil
tórico dos aspectos ideológicos em que se radi-
como um “mal social” a gerar influência na eco-
cou o CPC austríaco projetado por FRANZ nomia nacional; ii) tratou o processo como obje-
KLEIN. to social; iii) conferiu viés publicista ao processo
Apoiado em escritos de MENESTRINA civil, com “negação” às partes; iv) reforçou os
(Francesco Klein, 1926, I, p. 270) e poderes do juiz no processo. É dizer: “um pro-
CHIOVENDA (“L´oralitá e La prova”, 1924, cesso construído com menoscabo das partes”70,
em Saggi di diritto processuale civile – 1894- cujo respectivo Regulamento foi tachado por
1937 –, organizado por PROTO PISANI, II, parcela expressiva e respeitável da doutrina de,
Milão, 1993, p. 205), CIPRIANI afirma que o no mínimo, inconstitucional.71
Regulamento de Klein teve um longo período de
69
vacatio legis para bem preparar os juízes com Inclusive no CPC brasileiro de 1973. ALFREDO
BUZAID: “(...) ainda no derradeiro quartel do século
“mão dura”, ao mesmo tempo que pretendeu XIX, dois Códigos – o da Alemanha e o da Áustria –
“amansar” os advogados que, na Viena de 1897, que tiveram grande ascendência sobre os monumen-
tos jurídicos dos tempos atuais. Dado o rigor científi-
pretendiam se rebelar contra a entrada em vigor co dos seus conceitos e precisão técnica de sua lin-
do novo regulamento68. No desenvolvimento guagem, impuseram-se como verdadeiros modelos, a
deste importante texto sobre a história do pro- que se seguiram as elaborações legislativas dos Códi-
gos do século XX.”, em “Linhas fundamentais do
cesso civil europeu, FRANCO CIPRIANI ad- sistema do Código de Processo Civil brasileiro –
verte sobre a influência do Regulamento de Conferência proferida na Universidade de Keyo (Tó-
quio)”, Estudos e pareceres de direito processual civil
Klein na formação ideológico-política do CPC (com notas de Ada Pellegrini Grinover e Flávio Luiz
da Itália de 1940, surgido no auge do nazi- Yarshell), São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002,
p. 33. Ver, ainda, da pena do mesmo BUZAID, Expo-
sição de Motivos do Código de Processo Civil, Capi-
67
Este texto foi publicado originalmente na Itália em tulo II – Do sistema do Código de Processo Civil
1995, na Revista di Diritto Processuale, pp. 969 e ss. vigente, nº 3.
70
Há duas traduções para o espanhol, uma na Argenti- KÖNIG, La ZPO austríaca dopo La novella del
na e outra no Peru. Na argentina: ADOLFO 1983, 1988, p. 173, conforme lembra CIPRIANI, op.
ALVARADO VELLOSO, “En el centenário del Re- cit., p. 32, sempre da tradução argentina.
71
glamento de Klein (El proceso civil entre libertad u FRANCO CIPRIANI: “Assim, alguns o tacharam
autoridad)”, Revista de Derecho Procesal, Córdoba, de inconstitucional; outros – como o Reitor da Uni-
Nº 2, pp. 31 e ss, 2001. A tradução do Peru é de versidade de Viena, Schrutka – lamentaram que ´aos
EUGENIA ARIANO DEHO, tem o mesmo título e foi crescentes poderes e a nobre posição do juiz não
publicada Revista Jurídica del Peru, LI, Nº 18, pp. correspondera a um aumento proporcional das ga-
119 e ss, 2001. rantias de independência´ --; outros – como Adolf
68
Cf., na tradução argentina de ALVARADO Wach, valente defensor da concepção liberal do pro-
VELLOSO, En el centenario del Reglamento..., p. 31. cesso – lhe acusaram de estar contra a natureza dis-

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Em seu texto histórico, FRANCO “quinze mil palavras”74 da – polêmica – confe-
CIPRIANI ressalta que o CPC austríaco de rência de encerramento que o processualista
Klein ultradimensionou o caráter publicista do espanhol proferiu nas XVII Jornadas Iberoame-
processo civil, onde os juízes tiveram seus pode- ricanas de Derecho Procesal, organizada pelo
res “substancialmente aumentados e com a obri- IIDP e pela Corte Suprema da Costa Rica, em
gação de ser (também) capitães em todas as 20 de outubro de 2000 na cidade de San José.
causas”72. Ou seja, criou-se um juiz com gran- Os dirigentes do Instituto Iberoamerica-
des poderes de direção no processo. no de Derecho Procesal encarregaram
MONTERO AROCA de ditar uma conferência
2000/2001: A conferência de MONTERO sob o título “La nueva Ley de Enjuciamento
AROCA nas XVII Jornadas do Instituto Civil española, el Código Modelo (para Iberoa-
Iberoamericano de Derecho Procesal (IIDP) e mérica) y la oralidad”, já que naquele mesmo
seu posterior livro “Princípios políticos do ano de 2000 tinha sido publicada a Ley 1/2000,
novo processo civil espanhol” em 7 de janeiro, que reformulou o processo civil
espanhol. Na dita conferência, em suma,
Ex-aluno de SALVATORE SATTA na AROCA consignou sua constatação de que a
especialização da Universidade de Roma, JUAN nova LEC espanhola NÃO assumia a ideia da
MONTERO AROCA escreveu Los princípios publicização do processo civil, concepção tão
políticos de la nueva Ley de Enjuiciamento Civil em voga na doutrina do século XX, além do que
– Los poderes del juez y la oralidad73. Este livro – para o autor – a recente legislação processual
representa uma versão revista e ampliada em de seu país NÃO guardava qualquer relação
com as diretrizes que orientaram o Código Pro-
cesal Civil Modelo para Iberoamérica, cujo

positiva do processo civil; outros, ainda – como o projeto foi apresentando pelo IIDP em 1988, em
trentino Francesco Menestrina –, de ter sido concebi- Montevidéu.
do ´num momento de ingênuo otimismo´; finalmente
outros – como o então jovem Guiseppe Chiovenda –, Essa conferência de encerramento teria
e sem dissimular sua perplexidade, preferiram não se
sido o despertar de um novo enfoque ao direito
pronunciar” (traduzi livremente), op. cit., p. 33.
72
Op. cit., p. 61. processual civil, na qual foi proposto, a partir
73
Livro clássico do processo civil espanhol e publica-
do pela Editora Tirant lo Blanch: Valencia, 2001. das diretrizes políticas que segundo MONTERO
Este livro está sendo traduzido por mim ao português,
sob o título Princípios políticos do novo processo civil
espanhol – Poderes do Juiz e oralidade.

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AROCA orientaram a nova LEC espanhola, que Derecho Procesal Garantista” é um importante
o processo civil estava passando por um mo- evento no calendário científico do direito pro-
mento de mudança de paradigma, com a obser- cessual argentino. Realizado desde sua primeira
vação do esvaziamento de seu conteúdo publi- edição na cervantina cidade de Azul76, a 300
cístico. O processualista espanhol chegou mes- Km da capital Buenos Aires, este Congresso
mo a afirmar que a ele foi imputado o fato de realizou sua 10ª edição no ano de 200877, onde
“dividir a comunidade de estudiosos e políticos se deliberou que os encontros não mais serão
do processo”.75 anuais, mas sim bienais.
Em novembro de 2000, portanto alguns
Ainda em 2000: é realizado o “II Congreso dias após a conferência de MONTERO
Internacional de Derecho Procesal Garantis- AROCA ditada no Congresso do IIDP na Costa
ta” na cidade de Azul, Província de Buenos Rica, foi realizada a 2ª edição do Congresso de
Aires Direito Garantista de Azul. Nessa ocasião, devi-
do à repercussão do que dissera AROCA no
Organizado em conjunto pela Universi- congresso da Costa Rica, o texto base daquela
dad Nacional de Rosario (UNR) e pela Univer- conferência foi copiado e distribuído a todos os
sidad Nacional del Centro de la Provincia de então congressistas.
Buenos Aires, o “Congreso Internacional de

74
Cf. Los principios políticos..., em Introducción, nota
1, p. 11. me acusaram de dividir a comunidade de estudiosos e
75
Proceso e ideología..., Prólogo, p. 17. Nessa mesma políticos do processo.”
76
página 17, vale destacar o que escreveu MONTERO A cidade de Azul é a única cidade da América Lati-
AROCA: “No mesmo momento da conferência, e logo na que tem o “certificado cervantino”, conferido por
a partir daquele dia, adverti que algo raro estava a autoridades culturais da Espanha para as cidades de
acontecer ao meu redor. Já ao finalizar a intervenção outros países com expressivo acervo das várias edi-
me pareceu que parte dos membros do Instituto Ibe- ções da obra de Miguel de Cervantes. É caso de um
roamericano de Derecho Procesal não estava muito colecionador particular de Azul.
77
de acordo com o que haviam escutado, e se pode ver Nesse X Congreso de Derecho Procesal Garantista
entre eles mostras de desconformidade não habitual de Azul, em 2008, estive presente e ministrei palestra
em conferências de encerramento de congressos, sobre o tema Panorama de las tutelas de urgencia en
enquanto outra parte aplaudia com convicção pouco el proceso civil brasileño onde, após fazer uma expo-
habitual nesses atos e exteriorizava sua conformidade sição sistemática da tutela de urgência no Brasil,
de maneira mais expressiva do que de costume. Desde sustentei – como não poderia deixar de ser – a total
então ocorrem acontecimentos que podem ser qualifi- constitucionalidade delas, o que, por alguns funda-
cados de insólitos e que seguem me surpreendendo; a mentos dogmáticos que arrolarei neste texto, não é
algum deles me referirei a seguir, mas adianto que já aceito sem críticas pelos garantistas.

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Além da presença de JUAN AROCA, o primeiro de um processualista
MONTERO AROCA como conferencista no espanhol traduzido ao italiano79
evento, essa 2ª edição também contou com a
participação e conferência de FRANCO O mesmo CIPRIANI que escreveu so-
CIPRIANI. Devido ao eco de suas ideias a favor bre as diretrizes autoritárias e publicistas do
do garantismo no processo civil italiano, foi Regulamento de Klein, após tomar conhecimen-
aquele seu texto sobre o centenário do Regula- to do texto base da conferência de MONTERO
mento de Klein traduzido ao espanhol por AROCA em São José da Costa Rica, e de seu
ADOLFO ALVARADO VELLOSO78 e, no então recém-lançado livro Los princípios políti-
congresso, distribuído a todos os presentes. cos... (2001), encarregou-se de traduzi-lo – não
E foi nessa ocasião que CIPRIANI, após pessoalmente – ao italiano.80
tomar conhecimento da conferência de A este livro FRANCO CIPRIANI fez
MONTERO AROCA, viu que suas ideias liber- agregar um prefácio81 – um tanto quanto ácido,
tárias e garantistas em torno do processo civil diga-se de passagem – no qual lembra que vem
coincidiam com aquilo que o processualista sendo tachado na doutrina do processo civil de
espanhol havia falado alguns dias atrás nas XVII seu país, ao lado, dentre outros, de GIROLAMO
Jornadas do Instituto Iberoamericano de Dere- MONTELEONE, de revisionista82, devido à sua
cho Procesal. defesa em prol de um novo processo civil italia-
Alguns meses depois, já em 2001, foi no adequado à Constituição em vigor desde
publicado na Espanha o livro Los principios 1948, já que o CPC de 1940, influenciado pelo
políticos. FRANCO CIPRIANI toma conheci-
79
mento da obra e se encarrega de traduzi-la ao Nesse sentido o texto de IGNÁCIO DÍEZ-PICAZO
GIMÉNEZ, “Con motivo de la traducción al italiano
italiano. de la obra del Profesor Juan Montero Aroca sobre los
principios políticos del proceso civil español”, em
Proceso e ideología, p. 29-30.
80
2002: A tradução de FRANCO CIPRIANI – Trata-se de I principi politici del nuovo proceso
civile spagnolo, tradução italiana de Bratelli-
“I principi politici del nuovo processo civile Magrino, Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2002.
81
“El proceso civil italiano entre revisitonistas y
spagnolo” – do livro de MONTERO
negacionistas”, tradução ao castelhano de EUGENIA
ARIANO DEHO, em Proceso e ideología, p. 51-64.
82
A adjetivação de revisionista foi dada por SERGIO
CHIARLONI, La giustizia civile e i suoi paradossi, em
Storia d´Italia, Annali 14, Legge Diritto Giustizia,
78
O professor ALVARADO VELLOSO é um dos Torino, 1998, p. 410, em nota de rodapé, apud
organizadores do Congresso de Azul. CIPRIANI, op. cit., p. 55, nota 12.

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Regulamento de Klein, além de produto da era Diritto Processuale85 integralmente dedicado –
fascista de Mussolini, teria um viés antiliberal e embora assumidamente não emparelhado – ao
autoritário.83 livro de MONTERO AROCA e ao – nas pala-
CIPRIANI chama a atenção que, na Itá- vras do próprio VERDE – “polêmico” prefácio
lia, em contraposição aos revisionistas estão os de CIPRIANI.
negacionistas, como PROTO PISANI, para
quem o CPC de 1940 “se excedeu um pouco ao 2006: A coletânea organizada por
reforçar os poderes do juiz a despeito das garan- MONTERO AROCA, “Proceso e ideologia –
tias das partes”, e SERGIO CHIARLONI. Ne- Un prefacio, una sentencia, dos cartas y
gam estes, segundo FRANCO CIPRIANI, que o quince ensayos”
CPC italiano de 1940 seja autoritário e que pre-
cise ser adequado à Constituição de 1948. Após a publicação do artigo de VERDE
No prefácio à tradução italiana do livro na Itália e sua tradução ao espanhol pelo então
de MONTERO AROCA, o professor da Uni- Presidente do IIDP, ROBERTO BERIZONCE,
versidade de Bari afirma que a substancial iden- e respectiva publicação na Revista Iberoameri-
tidade entre o autoritarismo fascista e comunista cana de Derecho Procesal (vide nota 33), uma
explica o porquê de estudiosos notoriamente de série de textos versando sobre essa temática
esquerda, como PROTO PISANI e ideológica do processo civil se seguiu na Améri-
CHIARLONI, procurarem legitimar o CPC ca Latina e na Europa.
italiano de 1940.84 Assim é possível arrolar os autores, os
A apresentação da tradução italiana do títulos, a nacionalidade e as respectivas épocas
livro ocorreu no ensejo de um Seminário Inter- de publicação desses textos86, e todos na se-
nacional celebrado entre os dias 16 e 18 de maio
de 2002, em Roma, onde, dentre outros, esteve 85
“Le ideologie del processo in um recente saggio”,
presente GIOVANNI VERDE, à época Vice- Rivista diDiritto Processuali, 2002, pp. 676-687. Este
texto foi vertido ao castelhano e publicado na Revista
presidente do Consiglio Superiore della Magis- Iberoamericana de Derecho Procesal, 2003, 3, pp.
31-44, “Las ideologias del proceso em um reciente
tratura. Poucos meses após este conclave,
ensayo”. A tradução foi feita pelo então Presidente do
VERDE faz publicar um artigo na Revista di Instituto Iberoamericano de Derecho Procesal, o
processualista argentino ROBERTO BERIZONCE.
Cf., Proceso e ideología, Prólogo, p. 18.
86
Limito-me a informar apenas estes dados (autor,
83
Op. cit., p. 53. título, nacionalidade e ano da publicação), já que as
84
Op. cit. pp. 59-60. respectivas fontes e mesmo os textos na integralidade

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quência do já mencionado artigo de No interregno desta cadeia houve um
GIOVANNI VERDE: FRANCO CIPRIANI, Il incidente ocorrido na jurisprudência argentina,
processo civile tra vechie ideologie e nuovi slo- especificamente quanto a um acórdão proferido
gan, 2003, Itália; GIROLAMO pela Suprema Corte da Província de Buenos
MONTELEONE, Principi e ideologie del pro- Aires, datado em 29/out/2003.
cesso civile: impressioni de um “revisionista”, Nesse acórdão discutiu-se sobre a possi-
2003, Itália; JOAN PICÓ Y JUNOY, El dere- bilidade de ser “relativizada a coisa julgada”, já
cho procesal entre el garantismo y la eficacia: que um aspecto da sentença de primeiro grau
un debate mal planteado, 2003, Espanha; JUAN não foi objeto de recurso, no caso específico a
MONTERO AROCA, El proceso civil llamado utilização de um determinado índice de corre-
“social” como instrumento de “justicia” autori- ção. Quando da execução do julgado, o devedor
taria, 2004, Espanha; GIOVANNI VERDE, alegou que o índice que prevaleceu na sentença
Postilla, 2004, Itália; GIROLAMO era o errado e que isso traria uma grande “injus-
MONTELEONE, El actual debate sobre las tiça” na situação concreta. Houve recurso, pro-
“orientaciones publicísticas” del proceso civil vido em segundo grau. Em sede de recurso ex-
(traduzido ao espanhol por José Luis Gabriel traordinário foi pedido que fosse mantida a deci-
Rivera), 2005, Itália; JOSÉ CARLOS são de primeiro grau e que o tribunal, como não
BARBOSA MOREIRA, O neoprivatismo no houve recurso específico no momento oportuno,
processo civil, 2005, Brasil87; ADOLFO não poderia alterar o que estava definido pela
ALVARADO VELLOSO, La imparcialidad coisa julgada. Na instância extraordinária – Su-
judicial y el sistema inquisitivo de juzgamiento, prema Corte da Província – os respectivos Mi-
2005, Argentina; LUÍS CORREIA DE nistros dividiram-se quanto à solução do caso.
MENDONÇA, 80 anos de autoritarismo: uma Metade dos 8 (oito) magistrados rejeitou o re-
leitura política do processo civil português, curso extraordinário por entender que o tribunal
2006, Portugal.88 a quo teria a possibilidade de “relativizar a coi-
sa julgada”; a outra metade entendeu por aco-
encontram-se reunidos em Proceso e ideologia, pas-
lher o recurso para que fosse mantida a decisão
sim.
87
Ao leitor brasileiro interessará saber que este texto
está publicado, dentre outros lugares, nos clássicos e
imprescindíveis Temas de direito processual (nona coletânea Proceso e ideologia, e representa uma
série), pp. 87-101. resenha do livro do mesmo autor, Direito Processual
88
Este texto do processualista português foi escrito, a Civil. As origens em José Alberto dos Reis, Lisboa,
pedido de MONTERO AROCA, para inclusão na 2002.

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de primeiro grau, não impugnada à época quan- na. Representante da chamada Escola processu-
to ao capítulo que tratava do índice de correção. al de La Plata, AUGUSTO MORELLO tam-
Para dirimir a controvérsia, e dentro das respec- bém foi um dos principais defensores do ativis-
tivas regras de Organização Judiciária, foi ne- mo judicial em seu país e no plano internacional.
cessário o voto do Presidente do Tribunal de Em seu comentário91, MORELLO teceu severas
Casación Penal, FEDERICO DOMÍNGUEZ. críticas ao posicionamento externado naquele
Em seu voto de minerva – de cunho voto dirimente por FEDERICO DOMÍNGUEZ
inegavelmente garantista, na ótica do debate e aos fundamentos que alicerçaram a respectiva
ideológico neste texto tratado –, FEDERICO solução, baseada, inclusive, em citações e refe-
DOMÍNGUEZ deu provimento ao recurso ex- rências expressas à obra e ao pensamento de
traordinário por entender que a “relativização da JUAN MONTERO AROCA.
coisa julgada” era uma gravíssima afronta ao Em 05/mai/2004, na mesma LexisNexis
devido processo legal previsto na Constituição, e – Jurisprudencia Argentina, MONTERO
que ao juiz é vedado “revisar uma questão fene- AROCA “pede a palavra”92 e publica uma es-
cida pela inatividade, em tempo oportuno, de pécie de prédica em favor da postura jurispru-
uma das partes”, e segue afirmando que “Ao dencial adotada por DOMÍNGUEZ em seu voto
mudar, o órgão jurisdicional, as regras do jogo, de desempate, ao mesmo tempo em que chama
necessariamente rompe com a igualdade que a atenção para o fato de que o comentário de
deve existir entre as partes.”89 MORELLO ao acórdão exteriorizava a imposi-
Após a publicação deste acórdão – lem- ção de um único modo de pensar.93
bre-se, datado em 29/out/2003 – foi publicada
uma nota comentando-o, no periódico LexisNe- tuma que lhe prestou ROBERTO O. BERIZONCE,
“Augusto Mario Morello”, RePro 174/376.
91
xis – Juriprudencia Argentina, de 18/fev/2004. Salienta-se que AUGUSTO MORELLO não permi-
tiu que este seu comentário fosse publicado na coletâ-
Esse comentário foi assinado por AUGUSTO nea organizada pelo processualista espanhol. Cf.
MARIO MORELLO, falecido em abril deste MONTERO AROCA, Proceso e ideología, Prefácio,
p. 23-23.
ano de 200990, e sem dúvida alguma um dos 92
“La ideología de los Jueces y el caso concreto. Por
alusiones pido la palabra”, cf. em Proceso e ideolo-
principais processualistas da história da Argenti-
gía, pp 263-276.
93
MONTERO AROCA: “A nota do Dr. Morello deve
ser lida sob duas perspectivas: uma concreta, referen-
te ao voto do Dr. Dominguez, e outra geral, atinente
89
Cf. Proceso e ideologia, p. 262. aos estudiosos e a suas conferências ou publicações.
90
Sobre importância de Morello para o processo civil A cada um sem seu âmbito, o Dr. Morello os censura
de seu país e da Iberoamérica, v. a homenagem pós- basicamente da mesma forma, mas que me seja per-

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Após este texto de MONTERO dente do IIDP, como tema central das Jornadas
AROCA “pedindo a palavra”, AUGUSTO Iberoamericanas que se realizariam em 2006.
MARIO MORELLO dirige uma carta ao pro-
“Por isso me atrevo a fazer uma
fessor valenciano, datada em 04/jun/2004, com
proposta. Organizar um debate pú-
nítido propósito de – ao menos assim me pare- blico nas próximas Jornadas Ibe-
roamericanas, as de 2006, sobre
ceu de sua leitura – rumar o “barco do debate”
´Autoridade e liberdade no proces-
para águas calmas, iniciando sua breve missiva so (civil e penal)´, onde teríamos 4
conferencistas: dois (um civil e ou-
esclarecendo os motivos que o levaram a lançar
tro penal) por cada uma das posi-
a nota ao julgamento da Suprema Corte da Pro- ções. Se te parece bom, poderíamos
tentar convencer ao Presidente do
víncia de Buenos Aires:
Instituto, e que assim fique combi-
nado nas Jornadas de Caracas, em
outubro próximo, depois nós finali-
“Prezado Montero Aroca: Minha
zaríamos os detalhes. Poderíamos
nota ao acórdão da SCPBA teve
ir adiantando ao assunto em minha
um claro e único propósito: tentar
próxima vista a Argentina, no mês
que não se instale entre nós um mé-
de setembro. Com a amizade de
todo e estilo de exposição crítica
sempre.”95
excessivamente ideológica e carre-
gado de adjetivações desqualifica-
tórias em relação aqueles que pen- A partir do acórdão, da nota de
sam diferente.”94
MORELLO em LexisNexis – Jurisprudencia
Argentina, da prédica de MONTERO AROCA
Dias após, em 23/jun/2004, MONTERO
no mesmo periódico, e das cartas trocadas entre
AROCA responde a MORELLO no mesmo
ambos, o processualista espanhol teve a iniciati-
tom conciliatório, mas com tomada de posição –
va de compilar os principais textos até então
ao menos assim também me pareceu da leitura
publicados na América Latina e Europa sobre a
da respectiva carta –, e aproveita para fazer um
temática ativismo/garantismo, autorida-
apelo ao professor argentino para que o debate
de/liberdade, no processo civil. Enfim, sob um
autoridade/liberdade no processo (= ativismo X
novo e possível enfoque que pode ser dado a
garantismo) fosse sugerido por ambos, ao Presi-
nossa ciência, sempre na perspectiva de sua
melhora.

mitido ficar no lado que me afeta, que é o âmbito da


comunidade de estudiosos.” (traduzi livremente), op.
95
cit., p. 271. Cf., op. cit., p. 279-280. Em nota de rodapé,
94
Cf. op. cit., pp. 277-278. MONTERO AROCA relembra que o debate proposto

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Temos aqui a evolução histórica do de- Se o Direito operasse com o “justo”, não
bate. teria havido espaço ao regime legal escravocrata
que imperou no Brasil. Se o Direito operasse
FECHAMENTO: POR UM PROCESSO com o “justo”, não teria havido espaço ao na-
CIVIL GARANTISTA zismo. Se o Direito operasse com o “justo”, não
teria havido espaço ao AI-5. Se o Direito operas-
O ativismo judicial radicou-se na base se com o “justo”, a alíquota do imposto de renda
da retórica discursiva da dogmática processual e da pessoa física não seria no patamar assustador
da jurisprudência por ela influenciada. Decanta- de 27,5% sobre o patrimônio gerado. Se o Direi-
da em verso e prosa no processualismo iberoa- to operasse com o “justo”, bastaria ele – o Direi-
mericano em geral, temos que a pragmática do to – e só ele para contornar, resolver e redimir
ativismo fomenta posturas judiciais antidemo- todos os males sociais. Mas não é assim que
cráticas e antirrepublicanas, seja na arte do pro- acontece. Justiça não é outra coisa senão um
ceder, seja na arte do decidir. Aqui não vai sentimento, e isso a razão nos revela.
qualquer crítica ao processualista e/ou ao juiz de Muito embora sedutor, o discurso pro-
inclinação ativista. Esclareça-se o ponto! Mas cessual pautado em argumentos metajurídicos
vai aqui uma crítica contundente a toda e qual- (=”justiça”, “verdade real”, “paz social”, “pro-
quer investida daqueles que supõem ser o ambi- cesso justo” etc.) acaba por legitimar o arbítrio e
ente do processo jurisdicional um território feu- o subjetivismo da pessoa física detentora do
dal cujas regras possam ser arbitrariamente cria- poder judicial, que acaba por justificar sua to-
das pelo respectivo senhor, o juiz e/ou o tribu- mada de decisão com base no próprio sentimen-
nal. Penso que já é hora de os operadores do to subjetivo em relação ao “justo”. Toda vez que
processo, sejam os juízes, sejam os advogados e isso acontece, invariavelmente há o rompimento
principalmente os respectivos professores, cons- das garantias constitucionais negativas que im-
cientizarem-se de que conceitos como “justo” pedem que o Poder seja manejado com arbítrio
ou “justiça” não integram o Direito ou o proces- e, portanto, fora dos quadrantes democráticos e
so jurisdicional que lhe torna concreto na vida republicanos estabelecidos pela ordem constitu-
das pessoas. cional.
“Justiça”, ou o que é “justo”, identifica-
se com o subjetivismo que é próprio de cada
na carta não foi levado a cabo pelo IIDP, como ja-
mais se realizou.

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pessoa. Suas idiossincrasias, portanto. O que se permite que o detentor do poder jurisdicional
pode ser justo para você, necessariamente não o – o juiz – possa “escolher” o resultado mais
será para mim. E assim a vida segue. Por isso é “justo” que arbitrariamente lhe for ditado pelo
que por um imperativo de ordem lógica o Direi- seu sentimento pessoal de “justiça”. E com isso
to e/ou o processo jurisdicional que lhe dá vida nos esquecemos, mais uma vez, de que a nossa
não operam com o valor “justiça”, a não ser em opção por uma vida republicana impõe aos nos-
nossas especulações metajurídicas. sos juízes que decidam com base nas regras
Soa até intuitivo que o Direito tem dois constitucionais e legais às quais estão vincula-
atributos que lhe são fundamentais: i) vincular dos.
subjetivamente as relações que regula e ii) gerar Numa democracia-republicana como a
segurança jurídica a partir de sua existência. E brasileira, o equivocado ativismo judicial impli-
isso passa ao largo do sentimento de cada um de ca “escolha” por parte da autoridade judicial
nós a respeito do que vem a ser “justiça”. ativista. E “escolha”, enquanto atributo republi-
Por isso, qualquer um que desfralde a cano, é algo que faz parte da essência política
bandeira do ativismo judicial para que se alcan- que orienta as condutas do Executivo e do Le-
ce um “processo civil justo”, ainda que incons- gislativo, jamais do Judiciário. Juiz que “esco-
cientemente estará legitimando um juiz que lhe” o que é “justo” na hora de julgar não se
resolva os problemas de maneira “justa”, o que comporta como juiz, mas como um “político”, e
logicamente coincidirá com o “justo” da cabeça o juiz “político”, por definição, não é juiz. E
daquele juiz. Ou seja, consagra-se o arbítrio todas essas distorções são reflexos desencadea-
judicial e amesquinham-se regras democráticas dos pelo ativismo judicial que nos governa.
e republicanas que transbordam da nossa Cons- É por isso que a sociedade em geral, e a
tituição, como a separação dos poderes, a liber- comunidade jurídica em especial, deveria em-
dade, a segurança jurídica, o devido processo punhar a bandeira por um processo civil garan-
legal, a ampla defesa, a imparcialidade judicial tista, na esteira daquilo que é ensinado por uma
etc. corrente minoritária, é verdade, mas efetivamen-
Lamentavelmente a vida prática nos te crescente no ambiente iberoamericano, e à
mostra que operamos um processo civil perme- qual me orgulho de pertencer!
ado por um ativismo judicial próprio de um O processo civil de viés garantista se
Estado paternalista, dirigista e avassalador, onde contrapõe ao ativismo judicial exatamente para

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que as garantias a todos consagradas em nossas
Constituições sejam de fato observadas pelos
detentores do poder jurisdicional. Estes devem
proferir suas decisões com base nas regras pree-
xistentes, em especial as de nível constitucional,
e não com base no próprio arbítrio e subjetivis-
mo que acaba rompendo com os valores demo-
cráticos e republicamos que optamos por viver e
que, perigosamente, fomenta esse ativismo judi-
cial que observamos no dia a dia do Judiciário.
Mas se para as regras existem as exce-
ções, aqui dou meu testemunho de que também
não são poucos – por sorte de todos nós – os
juízes cônscios de suas limitações constitucio-
nais e por isso sabem que seu papel perante a
sociedade é no sentido de julgar e não “criar”
soluções com base no próprio arbítrio.
Ou focamos nossos esforços em prol de
um processo civil garantista, ou então prosse-
guiremos subservientes às arbitrariedades que –
sob o sacrossanto manto da toga – são cometi-
das em nome do ativismo judicial, sob o argu-
mento retórico de se alcançar um processo civil
“justo”.
Do contrário assistiremos o triunfo do
arbítrio, ainda que velado.

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