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1. Introdução
Os primeiros ensaios teóricos sobre o consumo foram apresentados por Karl Marx e
Thorstein Veblen. O “fetiche da mercadoria” de Marx demonstrou como o processo de
transformação do produto em mercadoria retirou de cena a relação social do trabalho,
causando alienação e opressão (CORDEIRO e GAMERO, 2007); sob essa perspectiva a mer-
cadoria é uma ilusão sobre o produto, forjada pelo capitalismo.
De acordo com Veblen, o “motivo que está na raiz da propriedade é a emulação [e que]
a posse de riqueza confere honra; é uma distinção baseada na inveja” em um contexto
de competição social que se desenvolve junto com a propriedade privada (VEBLEN,
1934: 25-26).
O consumismo, em especial nos países ricos, é alvo de críticas mais intensas e fre-
qüentes desde os anos 50. Vance Packard, jornalista e crítico social norte-americano
escreveu “The Hidden Persuaders” (1957) abordando a questão ética do uso de técnicas
de pesquisa de comportamento dos consumidores pela indústria da propaganda; em “The
Waste Makers” (1960) denunciava as diversas estratégias para incentivar o consumo de
bens na sociedade americana da década de 50, época conhecida como o auge do “ameri-
can way of life”.
Bauman (2008, p. 73) afirma que “numa sociedade de consumidores, todo mundo precisa
ser, deve ser e tem que ser um consumidor por vocação”. Na discussão mundial sobre o
desenvolvimento sustentável, abordagens contemporâneas como o “consumo verde” têm si-
do muito criticadas por não questionarem o consumismo e as estruturas de produção e
distribuição. Operando através da transferência regulatória do Estado para o merca-
do, transferido para o “poder do consumidor”, tal proposta não valoriza a redução do
consumo, a descartabilidade e a obsolescência, mas a reciclagem, as tecnologias lim-
pas, a redução de desperdício e o mercado verde, em uma lógica de repasse do custo
ambiental ao consumidor.
[…] consumo em massa, o viver numa grande cidade, a solidão na multidão, a expansão
da comunicação pela mídia, a tecnificação e a informatização do nosso cotidiano e as-
sim por diante. Na verdade, modificam-se as condições em que a criança convive com
os outros e constrói seu mundo interno e o mundo das suas relações sociais. (CASTRO,
1998: 8).
2. Metodologia
As questões versavam sobre o perfil social (sexo, idade, raça, cidade, tipo de casa,
número de cômodos, tipo de propriedade da casa e número de moradores), o perfil fi-
nanceiro (mesada, gastos adicionais, principal fonte de renda da família e renda fa-
miliar média – critérios da Secretaria de Assuntos Estratégicos[2]), os equipamen-
tos/acessórios possuídos pelo respondente, o grau de importância atribuído à posse
ou às suas características, o impacto da televisão e Internet na ocupação do tempo
livre (quantidade de horas diárias despendidas em tais opções), a importância da mar-
ca (calça, camiseta/blusa, tênis), o estilo musical e os principais temas discutidos
com os amigos. Finalmente, para identificar os valores essenciais do público-alvo e
contrastá-los com o discurso e quais elementos definem seu papel social no grupo,
foi apresentada uma lista de valores identificados como relevantes no contexto do es-
tudo, a serem analisados de acordo com a prioridade atribuída.
3. Resultados da pesquisa
O perfil social dos 30 respondentes consistiu em 37% masculino e 63% feminino, com
distribuição linear das faixas etárias, excetuando a de 13 anos, com menor represen-
tatividade; houve 70% de declaração de raça branca, 20% parda, 7% indígena e 3%
amarela; 67% residentes em São Paulo e 27% no Rio Grande do Sul e, inesperadamente,
1% nos Estados de Santa Catarina e 1% em Minas Gerais.
Nas condições de moradia, 57% residem em casa de rua definida como “normal” e 27% em
apartamento, com 63% das residências com 4 a 5 pessoas e 30% com 2 ou 3; 30% indicam
10 cômodos ou mais, 17% 6 cômodos e 27% entre 7 e 9 cômodos; 47% habitam casa
própria dos pais, 33% casa alugada e 17% própria da família (avós, tios, etc).
No perfil financeiro, a pesquisa identificou-se que 57% afirma não receber mesada,
23% recebem até R$ 80, 13% de R$ 81 a R$ 290 e 6% entre R$ 441 e R$ 1.020, sendo que
20% ignora a fonte de recursos mensais e não sabe o volume de gastos adicionais à me-
sada.
Uso
Não Uso Sem Pouca/ Muita/ Sem
Equipamento pessoal/ Indiferente
possui coletivo resposta nenhuma Indispensável resposta
quarto
Computador
de mesa 10% 53% 30% 7% 30% 23% 40% 7%
(PC)
Televisão –
abertos
Televisão –
canais 27% 53% 20% 0% 17% 27% 53% 3%
fechados
Internet
3% 77% 20% 0% 0% 0% 97% 3%
banda larga
Linha
Para o tratamento dos valores, as respostas foram agrupadas em três blocos: os dire-
tamente relacionados ao indivíduo e suas relações pessoais diretas (amor, amizade,
família, honestidade, paz e harmonia e respeito); o segundo os de natureza instrumen-
tal, para o atendimento das necessidades de natureza prática nas relações sociais (d-
inheiro, status, responsabilidade, trabalho, independência, segurança e poder) e o
terceiro os denominados “direitos difusos”, de natureza mais fluida (meio ambiente e
direitos iguais).
Os valores de natureza instrumental têm média geral de 67% como importante ou essen-
cial; no entanto, com extrema disparidade na escala valorativa, com concentração de
importância em segurança (93%), responsabilidade (87%) e trabalho (83%), muito próxi-
mos daqueles na faixa intermediária: dinheiro (77%) e independência (70%). Os demais
valores apresentam uma distribuição mais homogênea nas respostas e a valorização si-
tua-se nos extremos opostos: poder, com 34% e status com 27%, havendo, respectiva-
mente, 41% e 47% de respostas indiferentes.
A família é destaque nos resultados, com reconhecimento por 73% como sinônimo de
amor verdadeiro ou fator de proteção (27%); sendo indicado por 37% como o mais impor-
tante, em contraponto com as demais opções: um bom trabalho no futuro (20%), amigos
verdadeiros (17%), dinheiro (10%), fama ou luxo (ambos com 7%).
Para Colombo (2012: 34) “[…] independentemente de seu poder aquisitivo, o sujeito
contemporâneo é levado a sentir desejo e necessidade de possuir bens de consumo, de
ter status, de usar roupas da moda”; Castro (1998: 49) argumenta que os jovens nor-
malmente “não têm meios, no caso o poder aquisitivo, para adquirirem eles mesmas os
serviços e os bens necessitando, portanto, da aquiescência dos pais para tornar o
consumo uma realidade”.
Na amostra há uma indicação de baixa percepção sobre o valor do dinheiro pelos re-
spondentes, pois 20% indica não saber qual o valor adicional à mesada que os pais
utilizam para atendimento de suas necessidades e o mesmo percentual desconhece a
fonte de recursos familiar. Saliente-se que, quando comparada a média total das
questões relacionadas à mesada recebida e aos gastos adicionais realizados pelos
pais, 17% utiliza, para o atendimento de suas necessidades, somas superiores ao at-
ualmente definido como renda da classe média ou alta de acordo com a nova classifi-
cação nacional. Esse resultado assume importância especial quando avaliada em con-
traponto aos que afirmam não receber mesada (57%), na medida em que corresponde a
62% dos respondentes que recebem.
Segundo Lipovetsky (2007: 07), “a febre do conforto ocupou o lugar das paixões nacio-
nalistas e os lazeres substituíram a revolução” a partir da segunda metade do século
XX. Conforme coloca Yaccoub (2011: 201) “[…] não há dúvidas que há uma diferença,
sim, percebida no modo de vida ou estilo de vida de um determinado grupo que, após a
política econômica adotada nos anos 1990, pôde adquirir certos bens que antes só er-
am acessíveis aos grupos mais abastados”. A autora relata que jovens oriundos de es-
tratos sociais populares possuíam celulares e tênis da moda que foram comprados pe-
los pais através de parcelamentos, em estudo em uma comunidade em São Gonçalo/RJ,
pois “através da aquisição de determinados objetos, esses indivíduos se sentiam in-
cluídos, […], proporcionar conforto está especialmente relacionado à posse de
eletroeletrônicos” (YACCOUB, 2011: 202).
Linn (2006: 29) destaca que “a mídia tem o poder de influenciar, inclusive, valores
essenciais, como escolhas de vida, definição de felicidade e de como medir o seu
próprio valor”. A pesquisa de Zaluar (1999) relata que muitos meninos/garotos dos
morros e favelas, com armas de última geração nas mãos como símbolo de poder, comple-
tam sua imagem com um boné importado, inspirado no Movimento Negro da América do
Norte, ouvem música black ou rap americanas, roubam ou compram com recursos de fur-
to, um tênis Nike americano último tipo. O presente estudo mostrou que 67% dos ado-
lescentes valorizam as marcas americanas de tênis Nike, Vans e All Star.
Para Maslow, as necessidades humanas podem ser identificadas em cinco níveis de moti-
vação, iniciando por um caráter de manutenção da vida e terminando nos fatores de na-
tureza psicossocial: fisiológicas (alimento, água, sono, ar, abrigo dos elementos,
roupa e sexo), segurança e proteção (segurança física, ordem, rotina, familiaridade
sobre a vida e sobre o ambiente, saúde e a certeza), sociais (afeto, amor, relaciona-
mento, inclusão e aceitação nos grupos sociais), status/ego (autoafirmação, auto-a-
ceitação, sucesso e independência) e autorrealização (satisfação pessoal com a real-
ização de algo bem feito) (AGUIAR, 2001).
Da mesma forma, status e poder atualmente não se apresentam como elementos rele-
vantes para esse público nas duas pesquisas – provavelmente pela falta de percepção
da importância no contexto social adulto – havendo coerência nos resultados também
no que se refere ao grande número de horas diárias acessando a Internet.
Os adolescentes do estudo de Braz manifestam repúdio por aqueles que não apresentam
um visual compatível com o grupo, embora na presente pesquisa somente o tênis tenha
sido identificado com alta valoração, o que pode indicar uma concentração deste
grupo no item de vestuário diretamente relacionado ao campo visual imediato na maio-
ria do tempo – passam grande parte do tempo “teclando no celular”. Esse aspecto se
coaduna com a visão de Adorno de que as pessoas são fruto da indústria cultural domi-
nante, assim como comprovam a teoria de Packard de que as estratégias mercadológicas
seriam cada vez mais acirradas e direcionadas em torno do ter e não do ser, utilizan-
do valores humanos artificialmente construídos ou ampliados.
Os presentes resultados demonstram que, embora ainda considerem valores humanos e so-
ciais básicos, como amor e amizade, aparentemente há uma sólida tendência de val-
orização dos bens utilizados pelos pais como mecanismos de preenchimento do tempo do
filho, na medida em que precisam adotar mecanismos que supram sua falta durante o
período de afastamento. Esse resultado alerta para que, caso não haja consciência
dos pais de que os bens materiais não substituem sua presença na formação infanto-ju-
venil, cada vez mais se cumprirá a afirmativa de Packard sobre a criação de valores
artificiais e a de Adorno, sobre a influência cultural sobre a formação, à revelia e
aquiescência subjetiva dos pais. Esse é um fator relevante a ser pesquisado com
maior grau de detalhamento em futuros estudos, na medida em que tendem a fomentar o
comportamento alienado.
Considerações finais
No início do século XX, os pensadores da Escola de Frankfurt criticavam aspectos co-
mo “ditadura da produção” e o desencantamento do mundo, onde passam a vigorar a
fetichização dos objetos, o isolamento entre os indivíduos, o jugo da máquina sobre
o homem e o trabalho e o lazer alienado, situação ainda atual cem anos depois.
Pessoas sem condições financeiras suficientes para o supérfluo, para manter um sta-
tus social valorizado no contexto social no qual se inserem, estão cada vez mais sen-
do influenciadas por estímulos ambientais e culturais de natureza capitalista e mer-
cantilista.
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