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5 - Quinta espécie – livre ou florido

Contraponto “florido”

Os exercícios da 1ª até a 4ª espécies são preparatórios para a 5ª espécie. Esta espécie é uma
síntese de todas as outras estudadas até agora. Consiste em uma linha melódica com ritmo
livre sobre o cf em semibreves, na qual são reunidos todos os valores de duração utilizados
nas espécies precedentes. Nesta espécie podemos inclusive incluir as colcheias. Estes
valores, contudo, não devem ser usados ad libitum; assim como os intervalos, os padrões
rítmicos são sujeitos a certas leis estéticas. A união da melodia e do ritmo cria uma relação
mais complexa e sutil, dificultando o estabelecimento de regras de construção. As melodias
devem fluir dentro de um amplo limite de possibilidades. Consequentemente limitaremos
nossas indicações a algumas generalizações.

5.1 Aspecto Melódico

a) Variedade

É importante criar variedade nas melodias; consequentemente os valores rítmicos devem


dar a impressão de frescor e fluência. Qualquer efeito duro e abrupto deve ser evitado. Só
uma melodia pobre teria os quatro primeiros compassos em mínimas, os próximos quatro
em semínimas e assim por diante. Tal melodia seria desajeitada e carente de continuidade.
Também seria indesejável preencher os quatro primeiros compassos com semibreves e os
próximos quatro com semínimas, porque tais contrastes não devem ser justapostos mas
devem ser introduzidos suave e progressivamente. Assim como compensamos os saltos
intervalares realizando movimentos menores em direção oposta, o ritmo também requer
compensação: após longos valores de notas são necessários valores menores. Um exemplo
clássico de grande beleza estética e equilíbrio é o início do Sanctus na Missa Papae
Marcelli de Palestrina:

Ex.1:

Após a suave introdução da síncope nos compassos 1 e 2, o movimento descendente das


duas semínimas no segundo compasso é sentido como uma natural resolução que contém,
entretanto, um poder elástico de continuação. O movimento continua no compasso 3 com
um aumento de sua energia melódica e rítmica e conduz, através de seu desenvolvimento
orgânico, ao nobre e expressivo clímax na nota sol. A melodia consiste de três curvas, cada
uma acima (ou ao redor) da outra, e a maneira pela qual os movimentos rápidos são
desenvolvidos a partir dos mais lentos tem a qualidade de um fenômeno natural, no qual se
sente a convicção de que deve ser exatamente assim mesmo, tal qual uma pedra jogada em
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um poço produz círculos concêntricos. Talvez, por isso mesmo, o design tranqüilo e natural
deste tema nos recorde uma nobre e graciosa fonte jorrando.
A síncope, desempenhando um papel decisivo na melodia acima, é sentida como um
elemento rítmico que requer uma compensação especial por causa do efeito de
estancamento que produz no movimento. Frequentemente, por esta razão, valores menores
são colocados imediatamente antes da síncope como no seguinte exemplo, com sua figura
de antecipação:

Ex.2:

Similarmente, uma das práticas favoritas consiste em colocar colcheias após a nota
sincopada como no seguinte exemplo:

Ex.3:

b) Organicidade

É importante criar melodias “orgânicas” de inquebrável continuidade. Por isto é desejável


desenvolver gradualmente movimentos rápidos à partir de mais lentos e (especialmente em
cadências) os mais lentos à partir dos mais rápidos. O ex.1 da Missa Papae Marcelli mostra
engenhosamente a transição de um movimento lento para um rápido. Contudo, devemos
observar que quase todos os temas em composições do séc. XVI são deste tipo. Um
exemplo especialmente belo de tal crescendo rítmico com um conseqüente decrescendo é
encontrado no início do moteto a quatro vozes Valde honorandus est de Palestrina;

Ex.4:

Ao primeiro olhar, podemos pensar que o compositor procedeu de forma mecânica,


colocando uma breve no primeiro compasso, semibreves no segundo e mínimas no terceiro.
Todavia, nenhum cálculo frio existe neste procedimento; tudo aqui é inspiração. Tente
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cantar esta melodia e sinta como se encaixam as palavras, soando de forma fluente e
natural! Igualmente é importante observar que o clímax é formado da mesma forma que na
melodia do ex.1 , da Missa Papae Marcelli. Aqui há, além disso, algo muito natural nesta
tendência a alcançar as notas agudas, especialmente quando elas estão em tempo ou parte
forte. Experimente colocar ritmo na seguinte escala descendente:

Ex.5

Muito mais belo é o efeito quando se demora na nota mais aguda do que quando se inicia
com valores mais rápidos e depois se chega aos mais lentos como neste exemplo:

Ex.6

Aqui o todo é sentido como se fosse desajeitado e curto de fôlego, enquanto que a forma
em Valde honorandus est tem um aspecto livre e natural. O que faz com que esta última
forma seja mais bela é que, no descenso dos compassos 4 e 5, a melodia repousa em duas
porções do compasso, visto que a primeira nota cai na terceira mínima do compasso (parte
forte) e a quinta nota cai na segunda mínima do compasso (parte fraca). O efeito se torna
muito menos pronunciado se o repouso acontece em partes similares do compasso, por
exemplo:

Ex.7:

A notável diferença no tratamento do movimento ascendente e descendente que


observamos anteriormente também pode ser encontrada no campo rítmico. Embora seja
melhor em um movimento descendente colocar valores maiores antes que os menores, é
totalmente correto em um movimento ascendente iniciar-se com valores mais rápidos. O
seguinte exemplo é muito comum:
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Ex.8:

especialmente, como vemos aqui, aonde a última nota na seqüência é suspensa; mas
também se encontra desta forma:

Ex.9:

Enquanto que a inversão desta figura:

Ex.10:

É raramente encontrada, visto que correspondente situação melódica é quase sempre


resolvida da seguinte forma, na forma de uma parábola:

Ex.11:

Aqui encontramos uma relação com a Lei da Gravidade e outras leis naturais. Se pensarmos
na nota mais grave como a superfície da Terra podemos notar que o mesmo fenômeno
ocorre com um corpo em queda livre, cuja velocidade se acelera à medida que se aproxima
do chão; por outro lado nos movemos mais rápido no início de uma subida e diminuímos a
velocidade nas proximidades do topo.

5.1.2 Tratamento das Semínimas

As seguinte observações se aplicam ao tratamento da semínimas:

a) Geralmente o movimento de semínimas começa em uma parte fraca do compasso. Esta


regra se aplica especialmente aos movimentos descendentes; nas melodias ascendentes,
onde os valores menores podem preceder os maiores, o movimento de semínimas pode ser
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iniciado em tempo forte. Em um movimento descendente de semínimas após uma mínima,


a forma mais natural é como grau conjunto, por exemplo:

Ex.12:

Podemos, contudo, usar figuras tais como:

Ex.13:

Se, por outro lado, as melodias ascendem de maneira similar, o movimento direto escalar
produz um efeito estranho:

Ex.14:

e é infreqüente encontrar tais passagens em obras do período florescente da polifonia vocal.


Isto se explica parcialmente com a idéia de que certa energia é necessária para dar impulso
a um movimento ascendente, o qual oferece certa resistência, especialmente após o acento
do tempo principal (aonde é especialmente notada). Aqui resulta melhor colocar um salto
descendente ao início. Desta forma, pela lei do equilíbrio, se move naturalmente na direção
oposta. Especialmente adequada é a seguinte forma:

Ex.15:

mas também com saltos de quarta, quinta e até oitava, esta figura é excelente, por exemplo:
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Ex.16:

b) É melhor, como regra, que o movimento de semínimas continue até um tempo forte,
portanto é melhor:

Ex.17:

do que

Ex.18:

Mesmo entre os melhores compositores do sec. XVI, encontra-se, contudo, passagens como
esta última mencionada, mas frequentemente em tais casos, a mínima em tempo fraco faz
parte de uma suspensão ou retardo após o movimento de semínimas, da seguinte forma:

Ex.19:

ou

Ex.20:

c) Embora sejam toleradas um número maior de semínimas em sucessão do que mínimas e


semibreves, existe, naturalmente, um momento em que se torna desejável outro ritmo. É
difícil aqui estabelecer um limite definido. Uma passagem como a seguinte (extraída do
Credo da Missa Sine Nomine de Palestrina) pode sugerir aproximadamente o número
máximo de semínimas sucessivas:
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Ex.21:

d) Preferencialmente, duas semínimas não devem estar isoladas no lugar de uma mínima no
tempo principal de um compasso. Para evitar que o fluxo melódico sofra um bloqueio é
necessário adicionar semínimas antes ou depois; por isso não:

Ex.22:

Mas, sim:

Ex.23:

ou:

Ex.24:

Entretanto, as duas semínimas em tempo forte podem ser utilizadas se a mínima seguinte
fizer parte de um retardo:

Ex.25:

Ou se a primeira das duas semínimas é ligada à mínima anterior:

Ex.26:
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5.1.3 Tratamento das Colcheias

Com relação às colcheias, normalmente são usadas em grupos de duas no estilo do séc.
XVI, com raras exceções. Devem ser sempre introduzidas e deixadas por grau conjunto:

Ex.27:

Um intervalo de quarta, portanto, pode ser preenchido por duas colcheias em movimento
ascendente ou descendente. A nota anterior não precisa absolutamente ser uma mínima
pontuada mas pode ser uma semínima:

Ex.28:

Bordaduras de colcheias são igualmente possíveis, mas apenas com a segunda inferior. Se a
segunda de duas colcheias vem acima da primeira, só é concebida no estilo de Palestrina
como movimento de grau conjunto na mesma direção, então:

Ex.29:

Além disso, naturalmente observamos que as colcheias só podem ocorrer em partes fracas
do compasso. Portanto nunca podem ocorrer após um valor maior do que uma mínima
pontuada. Procedimentos como os seguintes são estranhos ao estilo de Palestrina:

Ex.30:

5.1.4 Tratamento das síncopas

a) O menor valor rítmico a ser sincopado com outro de igual valor é a mínima. Portanto
uma semínima não pode ser ligada a outra, por exemplo:
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Ex.31:

(Esta indicação se aplica apenas quando a mínima é considerada a unidade de tempo do


compasso.)

b) Não é permitido ligar notas de menor valor a outras de maior valor:

Ex.32:

O oposto é permitido, mas apenas quando os valores ligados estão em relação de 2:1. Em
outra palavras, podemos usar breves, semibreves e mínimas pontuadas, mas não podemos
usar o duplo ponto, pois isto implicaria em ligar-se valores em proporções irregulares de
4:3:

Ex.33:

A regra segundo a qual valores menores não podem ser ligados a valores maiores não tem
validade quando esta ligadura vem com a última nota:

Ex.34:

No uso das mínimas pontuadas (ou ligadas à semímina) as regras da terceira espécie se
aplicam ao último terço do valor da nota. Portanto, a seguinte semínima pode ser
considerada uma dissonância de passagem ou uma bordadura dissonante, por exemplo:
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Ex.35:

Não deve porém, proceder por salto ascendente. Consequentemente, o seguinte não é
permitido:
Ex.36:

Um fragmento do moteto Ego sum panis vivus de Palestrina, exemplifica algo destas regras:

Ex.37:

5.2 Contraponto

a) As regras das espécies anteriores também se aplicam à quinta espécie no tocante ao


tratamento da dissonância. Como resultado das possibilidades adicionais surgidas nestas
espécie pelo uso de valores pontuados, alguns casos não foram cobertos pelas indicações
anteriores. Desta forma, a mínima em parte fraca que segue após uma ligadura ou após uma
semibreve pode formar uma dissonância quando esta dissonância é tratada de acordo com
as regras da segunda espécie (mas, mínimas nesta situação não podem ser dissonâncias se
precedidas por semínimas).

Ex.38:

O mesmo se aplica às semínimas após ligaduras ou mínimas pontuadas:


Além disso, é necessário observar que semínimas ligadas após mínimas em parte fraca
raramente podem ser usadas como dissonância (exceto no caso da resolução da dissonância
de retardo ornamental). Assim sendo, a seguinte forma não deve ser usada:
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Ex.39:

O correto é:

Ex.40:

Em contraste com a terceira espécie na qual se permite apenas a bordadura inferior, pode
ser usada na quinta espécie, a bordadura superior (inclusive), desde que esteja antes de uma
mínima ou semibreve. Por exemplo:

Ex.41:

5.2.1 Cambiata

Até agora foi falado da cambiata apenas em movimento de semínimas, de acordo com a
terceira espécie. Ela também aparece em algumas formas rítmicas que ocorrem com mais
frequência na composição livre:

Ex.42:

Em todos estes casos, entretanto, a nota dissonante (a segunda nota da cambiata) deve ter
apenas o valor de uma semínima. Se a terceira nota da cambiata for uma semínima, a quarta
nota deve ter o mesmo valor e em tais casos, a quinta nota deve necessariamente seguir
ascendentemente por grau conjunto. Se a terceira nota da cambiata é uma mínima
(geralmente pode ser apenas uma mínima ou semínima), a próxima nota pode ser uma
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mínima ou uma semibreve. Em tais casos, a quarta nota da cambiata prescinde do grau
conjunto, podendo ser tratada livremente como no seguinte exemplo do moteto a quatro
vozes Misit Herodes de Palestrina:

Ex.43:

5.2.2 Cadências

Formações cadenciais ocorrem nesta espécie com a dissonância de retardo ornamentada:

Ex.44:

Nestas fórmulas cadenciais, é indiferente que as colcheias sejam ou não consonâncias. Se


as colcheias estiverem dispostas melodicamente, de acordo com as regras já estabelecidas
no ítem 4, exemplos 27-30, podem dissonar livremente.

5.2.3 Antecipações

A antecipação é uma semínima em parte fraca que antecipa a próxima nota em tempo ou
parte forte. Deve ser introduzida por grau conjunto descendente. Neste caso, não importa se
causa ou não dissonância, por exemplo:

Ex.45:

Particularmente suave e orgânico é o efeito da antecipação colocada imediatamente antes


de um retardo ornamentado com colcheias, por exemplo:
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Ex.46:

Seguem-se alguns exemplos em contraponto de 5ª espécie. Estes exercícios são de grande


importância para a aquisição de uma técnica básica no contraponto de Palestrina e merecem
uma quantidade maior de atenção e dispêndio de tempo. A resolução destes problemas
envolve o domínio da relação harmoniosa entre repouso e movimento que é um dos mais
importantes aspectos desta técnica musical.

Recomendações ao aluno - 9 :

O aspecto matemático do contraponto, ou seja, a combinação de intervalos e ritmos, é


apenas seu aspecto exterior e portanto, mais fácil de ser dominado. Porém, as indicações
para composição dos exercícios devem ser guiadas pelo reconhecimento implícito dos
aspectos estilísticos através do ouvido interno e do canto. É imprescindível a audição e
análise de obras do repertório, além da reflexão detida sobre os exemplos até agora
apresentados, caso contrário os exercícios dificilmente apresentarão a fluência natural deste
estilo. Muitas vezes, exercícios corretos quanto à resolução de dissonâncias, saltos e outros
aspectos, são desinteressantes e pouco musicais por falta de convivência com o repertório.
A aquisição da competência neste estilo envolve uma boa dose de intuição e sensibilidade.
O lado esquerdo do cérebro comanda as relações matemáticas e lógicas. Desta forma, a
aquisição do conhecimento se faz em parte pela assimilação das regras e sua aplicação. O
lado direito do cérebro comanda a sensibilidade e a musicalidade. A integração do
conhecimento se dará gradualmente através da prática e do reconhecimento constante dos
aspectos estilísticos. Na verdade, as regras só serão realmente compreendidas quando o
aluno reconhecer intuitivamente o estilo. Da mesma forma, as regras foram codificadas à
partir das obras, e os compositores criaram suas obras com liberdade, guiados pela sua
intuição.

Exemplo 6:
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Exercício 6:

Faça exercícios na 5ª espécie, acima e abaixo dos cantus firmus já criados em cada modo (2
exercícios).
Indique os intervalos verticais com algarismos.

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