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PRIMEIRA MEDITAÇAO 13

Das Coisas que se Podem Colocar em Dúvida

1. Há já algum tempo eu me aper- 2. Agora, pois, que meu espirito


ceo1 de que, desde meus primeiros está livre de todos os cuidados, e que
anos. recebera muitas falsas opiniões consegui um repouso assegurado ouma
enmo verdadeiras, e de que aquilo que pacífica solidão, aplicar-me-ei seria-
depois eu fundei em prinaípios tão mal mente e com liberdade em destruir em
MEDITACOES 015-;egurados não podia ser senão mui
du\·idoso e inceno; de modo que me
geral todas as minhas antigas opiniões.
Ora, não será necessário, para alcan-
era necessário tentar seriamente. uma çar esse desígnio, provar que todas elas
~ em minha vida. desfazer-me de são falsas, o que talvez nunca levasse a
todas as opiniões a que até então dera cabo; mas, uma vez que a razão já me
CONCERNENTES cr&lito. e começar ludo novamente persuade de que não devo menos
desde os fundamentos. se quisesse esta- cuidadosamente impedir-me de dar
À PRIMEIRA RLOSOFIA ~lecer algo de finne e de constante crédito às coisas que não são inteira-
NAS QUAIS A EXISTtNCIA DE DEUS EA DISTINCÃO REAL 1:12S ciências. Mas, parecendo-me i;er mente certas e indubitáveis, do que às
muito grande essa empresa. aguardei que nos parecem manifestamente ser
ENTRE A .AJ..MA EO CORPO DO HOMEM Blingir uma idade que fosse lâo madu- falsas, o menor mocivo de dúvida que
SÃO DEMONSTRADAS ni que não pudesse esperar outra após eu nelas encontrar bastará para me
da. na qual eu estivesse mais apto para levar a rejeitar todas 1 4 • E, para isso,
a«utá-la; o que me fez díferi-Ja por não é necessário que examine cada
lio longo tempo que doravante acredi- uma em particular, o que seria um tta-
tma cometer uma falta se empregasse balho infinito; mas. visto que a ruína
aínda em deliberar o tempo que me dos alicerces carrega necessariamente
;esta para agir. consigo todo o resto do edificio. dedi-
car-me-ei inicialmente aos princípios
1 •" pr1me1ra Medicação 1cm como pecullaridade
sobre os quais todas as minhas anligas
4 (l!Q de nio "' ttalM el ele "es111})efccct 1·erdade
q :;:u, ma> apélla• de me de.razcr desses antíg()S opiniões estavam apoiadas.
~· (Slrimas R~spo.<t'".) Suu comwsição é 3. Tudo o que recebi, até presente-
a o:q-,a:itc:
A) ~H·3i o ptU1dp10 da diiv1da h1perbóllca; mente, como o mais verdadeiro e segu-
.Bl §§ .H]; arg11meni.os que es\Clldcm e r;idics· ro, aprendi-o dos sentidos ou pelos
Uum a Júvlda.
{§J): argumento dos erros dos
<enudos; ' • A dúvida assim J>"Sla cm ação: a) dislinguiM~­
(§§4-9): argumento do ROnho; ii da chiv1da vulgar pelo rato de ser engendrada não
(§§9· 13}: argumm10 que estende a por experiência, mll$ por uma dtcisíiL!: bJ .será
dúvida ao valor oll)eti•o llas essên· "hiperbólica", i51D :. •iS1im!Íldca e gcncralizad.á; e)
cias maLemáticas-, em duas etapas: consisttri. pois.. cm rrntar como falso Q que C apenas
o Deu~ enganador; duvidoso, t»mO sempre enganador o que algwna
,, Gênio Mallgno. vez me enganou.
94 DESCARTES MEDITAÇÕES 95

sentidos: ora, experimentei algumas mente; que é com desígnio e propósito tamente falsa, certamente ao menos as quadrado nunca lerá mais do que qua·
vezes que esses sentidos eram engano- deliberado que estendo esta mão e que cores com que eles a compõem devem tro lados; e não parece possível que
sos, e é de prudência nunca se fiar a sinto: o que ocorre no sono não pare· ser verdadeiras. verdades tão patentes possam ser sus-
inteiramente em quem já nos enganou ce ser tão claro nem tão distinto quan- 7. E pela mesma razão. ainda que peitas de alguma falsidade ou incerte·
uma vez' 5 • to tudo isso. Mas, pensando cuidado essas coisas gerais. a saber. olhos. Zll.
4. Mas. ainda que os sentidos nos sarnente nisso, lembro-me de ter sido cabeça. mãos e outras semelhantes, 9. Todavia. há muito que tenho no
enganem às vezes, no que se refere às muitas vezes enganado, quando dor possam ser imaginárias. é preciso, meu espírito certa opinião 1 8 de que há
coisas pouco sensíveis e muito distan- mia. por semelhantes ilusões. E. deten- todavia. confessar que há coisas ainda um Deus que tudo pode e por quem fui
tes. encontramos talvez muitas outras, do-me neste pensamento. vejo tão mais simples e mais universais, que criado e produzido tal como sou. Ora.
das quais não se pode razoavelmente manifestamente que não há quaisquer são verdadeiras e existentes; de cuja quem me poderá assegurar que esse
duvidar, embora as conhecêssemos por indícios concludentes, nem marcas mistura, nem mais nem menos do que Deus não tenha feito com que não haja
intermédio deles: por exemplo, que eu assaz certas por onde se possa distin- da mistura de algumas cores verdadei- nenhuma terra, nenhum céu, nenhum
esteja aqui, senLado junto ao fogo, ves- guir nitidamente a vigília do c;ono. que ras, são formadas todas essas imagens corpo extenso, nenhuma figura, nenhu-
tido com um chambre, tendo este papel me sinto inteiramente pasmado: e meu das coisas que residem em nosso ma grandeza, nenhum lugar e que, não
entre as mãos e outras coisas desta pasmo é tal que é quase capaz de me pensamento. quer verdadeiras e reais, obstante, eu tenha os sentimentos de
natureza. E como poderia eu negar que persuadir de que estou dormindo. quer fictícias e fantásticas. Desse gêne- todas essas coisas e que ludo isso não
estas mãos e este corpo sejam meus? A 6. Suponhamos, pois, agora. que ro de coisas é a natureT.a corpórea em me pareça existir de maneira diferente
não ser, talvez, que eu me compare e estamos adormecidos e que todas essas geral. e sua extensão; juntamente com daquela que eu vejo? E. mesmo, como
esses insensatos. cujo cérebro está de particularidades, a saber, que abrimo~ a figura das coisas extensas, sua quan- julgo que algumas vezes os outros se
cal modo perturbado e ofuscado pelos os olhos, que mexemos a cabeça, que tidade, ou grandeza. e seu número; enganam até nas coisas que eles acre-
negros vapores da bile que constante- estendemos as mãos, e coisas seme- como também o lugar em que estão. o ditam saber com maior certeza, pode
mente asseguram que são reis quando lhantes, não passam de falsas ilusões• e tempo que mede sua duração e outras ocorrer que Deus tenha desejado que
são muito pobres; que estão vestidos pensemos que talvez nossas mão.$, coisas semelhantes 1 7 • eu me engane todas as vezes cm que
de ouro e de púrpura quando estão assim como todo o nosso corpo. não 8. Eis por que, talvez. daí nós não faço a adição de dois mais três. ou em
inteiramente nus; ou imaginam ser são tais como os vemos. Todavia. é concluamos mal se dissermos que a Fí- que enumero os lados de um quadrado,
cântaros ou ter um corpo de vidro. preciso ao menos confessar que as coi- sica, a Astronomia. a Medicina e todas ou em que julgo alguma coisa ainda
Mas quê? São loucos e eu não seria sas que nos são representadas duraru.c as outras ciências dependentes da mais fácil, se é que se pode imaginar
menos extravagante se me guiasse por o sono são como quadros e pintur~ consideração das coisas compostas algo mais fácil do que isso. Mas pode
seus exemplos. que não podem ser formados senão a são muito duvidosas e incertas: mas ser que Deus não tenha querido que eu
5. Todavia. devo aqui considerar semelhança de algo real e verdadeiro: e que a Aritmética. a Geometria e as ou- seja decepcionado desta maneira. pois
que sou homem 1 8 e, por conseguinte, que assim, pelo menos, essas coisas tras ciências desta natureza, que não ele é considerado soberanamente bom.
que tenho o costume de dormir e de gerais, a saber, olhos, cabeça, mãos e tratam senão de coisas muito simples e Todavia. se rerugnasse à sua bondade
representar, em meus sonhos, as mes- todo o resto do corpo, não são co1s.aJ. muito gerais. sem cuidarem muito em fazer-me de ta modo que eu me enga-
mas coisas, ou algumas vezes menos imaginánas, mas verdadeiras e ex~ttl!­ :;e elas existem ou não na natureza, nasse sempre. pareceria também ser-
verossímeis, que esses insensatos em tes. Pois, na verdade, os pintmcs. contêm alguma coisa de certo e indubi- lhe contrário permitir que eu me enga-
vigília. Quantas vezes ocorreu-me so- mesmo quando se empenham com o tável. Pois, quer eu esteja acordado, ne algumas vezes e. no entanto, não
nhar. durante a noite, que estava neste maior artificio em representar serei~ r quer esteja dormindo, dois mais três posso duvidar de que ele mo permi·
lugar. que estava vestido, que estava sátiros por formas estranhas e exuao:- formarão sempre o número cinco e o ta••.
junto ao fogo, embora estivesse inteira- dinárias, não lhes podem, todavia. mn- 10. Haverá talvez aqui pessoas que
mente nu dentro de meu lêito? Parece- buir formas e naturezas inteiramcn:e • ? O segundo qumento encontra. pois. o seu limi- preferirão negar a existência de um
te: ele niio me permite pôr cm dU•ída º' comi»
me agora que não é com olhos adorme- novas, mas apenas fazem certa mistura llClllC$ Jcminhu pcrccpçiics. a saber. u " naturezas
Deus tão poderoso a acreditar que
cidos que contemplo este papel; que e composição dos membros de dJ\"cr wnplc~~. indecomponívtll (ligura, quantidade, cs
esta cabeça que eu mexo não está dor- sos animais~ ou então. se pon.-cn~
paço. tempo), que são o obJctO da Matemática. Tais e
" f.>sa "opinião~ sustentada pelo> 1e6to1os das
clemca!O• .. cscap.am, corurariamcntc eos ob.ieio~ Segunda.• Ob)erões: Deus. dada sua nnípctênc1a.
' • Argumento do erro do Scnildo, primeiro grau da
sua imaginação for assaz extravogcmte mt5Ívcia, a todas 41 raz&1 •taturais dL duvidar " pnde nos enganar Não é o parecer de Dc.'ICartc•· o
para inventar algo de tão novo, quep- '1lbh11ha Gu~oult, apoiando -se nn icxto Ja Quinta wgano em Dws comnituiria não só um '1nal de
dúvida. t. insuficiente para nos fazer duvidar siste- Mz61taçio: u A natureza de meu cspiríto é tal que eu malignidade, mu de não-sc:r. (Col. com BurmanJ
maticamente de nossa> percepções sensívcis. mais Lenhamos visto coisa semelh:cttc, nio me poderia impedir de JUlgll las verdadeiras l&•o redunda em af"lfmar o valor tão-somente meio
' • A.qu1 começa o argumento do sonho, segundo
grau da dúvida. que irá estendê la a todo conheci-
e que assim sua obra nos reprC$Ctllr cnqllUlt<> as conubo clara e di•tirltamente" Dai a dol6g1co dessa supo•ição antinatural.
- nidadc de recorrer ao terceiro argumento que ' 1 A consideração da bondade. por si só. niío boMa
mcnio sensível. ou pelo menos a seu conteúdo. uma coisa puramente fictícia e absolu ~ã ena cem::u "natural". para invalídar uupo,ição. cr... nota precedente.
MEDITAÇÕES 91
96 DESCARTES
não está em meu poder chegar ao eu reincido insensivelmente por mim
todas as outras coisas são incertas. dosas de alguma maneira, como aca- conhecimento de qualquer verdade, ao mesmo em minhas antigas opiniões e
Mas não lhes resistamos no momento e bamos de mostr.ar, e todavia muito menos está ao meu alcance suspender evito despertar dessa sonolência, de
suponhamos, em favor delas, que tudo prováveis, de sorte que se tem muito meu juízo. Eis por que cuidarei zelosa- medo de que as vigílias laboriosas que
quanto aqw é dito de um Deus seja roais razão em .acreditar nelas do que mente de não recebei' em minha crença se sucederiam à tranqüilidade de tal
uma fábula. Todavia, de qualquer em negá-las. Eis por que penso que me nenhuma falsidade, e prepararei tão repouso, em vez de me propiciarem a1-
maneira que suponham ter eu chegado utilizarei delas mais prudentemente se, bem meu espírito a todos os ardis guma luz ou alguma clareza no conhe-
ao estado e ao ser que possuo, quer o tomando partido contrário, empregar desse grande enganador que, por pode-·· cimemo da verdade, não fossem sufi-
atribuam a algum destino ou fatali- todos os meus cuidados em enganar- roso e ardiloso que seja, nunca poderá cientes para esclarecer as trevas das
dade, quer o refiram ao acaso, quer me a mim mesmo. fingindo que todos impor-me algo. dificuldades que acabam de ser agita-
queiram que isto ocorra por uma contí- esses pensamentos são falsos e imagi- 13. Mas esse desígnio é árduo e das.
nua série e conexão das coisas, é certo nários; até que, tendo de tal modo trabalhoso22 e certa preguiça arrasta-
que, já que falhar e enganar-se é uma sopesado meus prejuízos, eles não pos- me insensivelmente para o ritmo de
21 Esta insistência na dificuldade de exercer uma

espécie de imperfeição, quanto menos sam inclinar minha opinião mais para dúvida tãQ radical não é enfática: quanw mais a <!Ú·
minha vida ordinária. E, assim como vida for vivida como radioal. mais as certezas que
poderoso for o autor a que atribuírem um lado do que para o outro, e meu um escravo que gozava de uma liber- se impuserem, em seguida.. se apresentarão como
minha origem lanto mais será provável juízo não mais seja doravante domi- dade imaginária, quando começa ~ inabaláveis. Tomar a dúvidil lcvianamento: é expor·
nado por maus usos e desviado do reto se a nada compreender da seqíiêru:ia das Medlta-
que eu seja de tal modo imperfeito que suspeitar de que sua liberdade é apenas ÇÕe$. A "Csie propósito, cí. 203. - " N""ao há erro
me engane sempre. Razões às quais caminho que pode conduzi-lo ao co- um sonho, teme ser despertado e cons- mai• grave", diz Alaio, "do que julgar que esta dú-
nada tenho a responder, mas sou obri- nhecimento da verdade. Pois estou se- pira com essas ilusões agradáveis para vida é fingida. Não há tambêm erro mais comum.
porque poucos humens jogam este jo&o seriàmen·
gado a confessar que, de todas as opi- guro de que, apesar disso, não pode ser mais longamente enganado, assim te."
niões que recebi outrora em minha haver perigo nem erro nesta via e de
crença como verdadeiras, não hã ne- que não poderia hoje aceder dema-
nhuma da qual não possa duvidar siado à minha desconfiança, posto que
atualmente, não por alguma inconside- não se trata,no momento 1de agir, mas
ração ou leviandade, mas por raz.ões somente de meditar e de conhecer.
muito fortes e maduramente considera- 12. Suporei, pois, que há não um
das: de sorte que é necessário que verdadeiro Deus, que é a soberana
interrompa e suspenda doravante meu fonte da verdade, mas certo gênio
juízo sobre tais pensamentos, e que maligno21, não menos ardiloso e enga-
não mais lhes dê crédito, como faria nador do que poderoso, que empregou
com as coisas que me parecem eviden- Loda a sua indústria em enganar-me.
temente falsas, se desejo encontrar Pensarei que o céu, o ar, a Lerra, as
algo de constante e de seguro nas cores, as üguras, os sons e todas as
ciências20 • coisas exteriores que vemos são apenas
11. Mas não basta ter feito tais ilusões e enganos de que ele se serve
considerações, é preciso amda que para surpreender minha credulidade.
cuide de lembrar-me delas; pois essas Considerar-me-ei a mim mesmo abso-
antigas e ordinárias opiniões ainda me lutamente desprovido de mão5, de
voltam amiúde ao pensamento, dan- olhos, de carne, de sangue, desprovido
do-lhes a longa e familiar tonvivência de quaisquer sentidos, mas dotado da
que tiveram comigo o direito de ocu- falsa crença de ter todas essas coisas.
par meu espírito mau grado meu e de Permmecerei obstinadamente apegado
tornarem-se quase que senhoras de a esse pensamento; e se, por esse meio,
minha crença. E.jamais perderei ocos-
tume de aquiescer a isso e de confiar 1 1
A função do Deus eoganador e do Gênio Malig-
nelas, enquanLO as considerar como no E a mesma: porém o Gênio Maligno é. um arlili-
eio psicol6gico que, impressionando maís a minha
são efetivamente, ou ~Ja, como duvi- lmagmação, levar-me-(! a tomar a d6vldll. mais a
sério e a Inscrevê-la melho! cm .minha memória ("é
• • A dúvld• é agora univcrsll!izadll. prccisu aind~ que cuide de lembrar-me dela").
100 DESCARTES

tivesse qualquer sentido ou qualquer vezes que a enuncio ou que a concebo


corpo. Hesito no entanto. pois que se em meu espirito1 7 •
sc:gue daí? Serei de t.al modo depen- 5. Mas não conheço ainda bastante
dente do corpo e dos sentidos que não claramente o que sou, eu que estou
possa existir sem eles? Mas eu me per- ceno de que sou; de sorte que dora-
suadi de que nada existia no mundo, vante é preciso que eu atente com todo
que não havia nenhum céu, nenhuma cuidado, para não tomar imprudente-
MEDIT\ÇAO SEGUND\23 terra. espíritos alguns, nem corpos mente alguma outra coisa por mim. e
Da Natureza do Espírito Humano; alguns: não me persuadi também. pôr- assim para não equivocar-me neste
tanto. de que eu não existia2 5 ? Cena-
e de como Ele é Mais Fácil de Conhecer do que o Corpo conl1ecimento que afirmo ser mais
mente não, eu existia sem dúvida. se é
certo e mais evidente do que todos os
1. A Meditação que fiz ontem en- vel, até que tenha aprendido certa- que eu me persuadi, ou, apenas. pensei que tive até agora 2 8 •
cheu-me o espírito de tantas dúvidas, mente que não há nada no mundo de alguma coisa. Mas há algum, não sei
qual, enganador mui poderoso e mui 6. Eis por que considerarei de novo
que doravante não está mais em meu ceílO.
alcance esquecê-las. E, no entanlO, não 2. Arquimedes, para tirar o globo ardiloso que emprega Ioda a sua indlis- o que acreditava ser, antes de me
empenhar nestes últimos pensamentos;
vejo de que maneira poderia resolvê- terrestre de seu lugar e tram.poná-lo tria em enganar-me sempre. Não há.
e de minhas antigas opiniões suprimi-
las; e, como se de súbito tivesse caído para outra parte, não pedia nadn mais pois. dúvida alguma de que sou. se ele
em águas muito profundas. estou de tal exceto um ponto que fosse fixo e segu- me engana; e. por mais que me engane. rei tudo o que pode ser combatido
modo surpreso que não posso nem fir- ro. Assim, Lerei o direito de conceber não poderá jamais fazer com que eu pelas razões que aleguei há pouco. de
mar meus pés no fundo, nem nadar altas esperanças, se for bastante feliz nada seja. enquanto eu pensar ser algu - sorte que permaneça apenas precisa·
para me manter à tona. Esforçar·me-ei, para encontrar somente uma coisa que ma coisa2 6 • De sorte que, após ler pen- mente o que é de todo indubitável. O
não obsrante. e seguirei novamente a seJacerta e mdubitável 2 4 • sado bastante nisto e de ter examinado que, pois, acreditava eu ser até aqui?
mesma via que trilhei ontem, afastan- 3. Suponho. porlanlo, que todas as cuidadosamente todas as coisas. cum- Sem dificuldade, pensei que era um
do-me de tudo cm que poderia imagi coisas que vejo são falsas; persuado· pre enfim concluir e ter por constante homem. Mas que é um homem? Direi
nar a menor dúvida. da mesma manei me de que jamais existiu de tudo quan- que esta proposição, eu sou. eu existo, que é wn animal racional? Certamente
ra como se eu soubesse que istó fosse to minha memória refcrta de mentiras é necessariamente verdadeira todas as não: pois seria necessário em seguida
absolutamente falso; e continuarei me representa: penso não possuir ne-
sempre nesse caminho até que tenha pesquisar o que é animal e o que é
nhum sentido; creio que o corpo. a • • Retomemo~ o racíocinio. No pcn10 ~m qut racional e assim, de uma só questão,
encontrado algo de certo, ou. pelo figura, a extensão, o movimento e o '!Slou. não p<>dcria éU ter a certeza da aistc:ncia cairiamos insensivelmente numa infini-
menos. se outra coisa não me for possí- lugar são apenas ficções de meu espíri- de "aJ1um Deus"'•' Não. nada o uig• (e um dos
princ:ipios da análise do~ p:õmctras é o de não dade de outras mais dificeis e embara-
to. O que poderá, pois, ser considerado temontar 11 uma verdade 'upcri« àquela com que çosas, e eu não quereria abusar do
'" Plano da Meditação:
AJ §§ 1 9 da nornrcrn do espírito huma verdadeiro? Talvez nenhuma outra poi.so me oontentar). lrt'i in~ar a ccne7.a de rmnha
pouco tempo e lucr que me resta
no •..• : coisa a não ser que nada há no mundo c•isténcia comCI 1ndivi.luo, •UJ•IIO coocrcto7 Não,
§§ 1-4: conquistll da primeira certtta: nada o perm11r, vl~to que pu~ em dúvida a cds· empregando-o em deslindar seme·
(~~ 1-3): procura de uma primeira
de ceno. • têncía tle tudo o que há "nb mund1,.. • M~ cuidA-
4. Mas que sei eu, se não ha nenhu- d11 I A "hesitação" aqui é ditada pelo medo de um.•
ccrtela: J ' o fim da rra.e índlc• que ela IÓ é verdadeira
(§4): "Eu ~10, eu ex faro"': ma outra coisa diferente das que acabo eonru1~: lir.I li regra dá dúvida. não tmhu motivo
§§5·9: reflexão '>Ubre esta primeira certc· de abrir CJ«:CÇSO cm (a.vor do homem CODCfCIO que cada nz que penso nela 111Ualmf!lltt. ~também uma
de julgar incertas, da qual niío se possa wu: mas, aquón deste, há algo que iráresÍlitir à tlú· l.rllll.SÍÇÜb. pois permitirá responder à pergunta que
za e conquhta da «gunda: ter a menor dúvida? Não haverá algum vida. fi doravante o Eu não será mais este Eu de ~gora haverá de colocar-t<e: qual é a natureza deste
<§ ~ j 81: quem sou eu, cu que
uwu ceno que sou1 Uma co1>a Deu~. ou alguma outra potência, que chambrc e ao pé do fogo que a Primeira Mcditaçio Eu-existente que acabo de afinnar?
pcnsnntc. Deti!rminaçiio da essên· evocava (como indica Goldschmidt. Congruso u E!u não conheço. ainda, o conteúdo desta exis-
me ponha no espírito tais pensamen- Desc!ll'!ei de Royaumont, pàg. 53). 1encla que a.cabo de 11.Cirmar. tmpon.a, pois, encon-
eia do tu,
(§9): descrição da •·coisa pensante" tos? Isso não é necessário; pois talvez 2 • Essa írast evidencia bem o papel do "Grande trá-lo oela exclusiva anãll~ do• dados do problema,
e diwnçã.o ClllJC o pmsarm:n\o seja eu capaz de produzi-los por mim Embusieiro~: ímpar a meus pc:nsament.os uma IRoi é. p0r .ierenninaçào. icvando cm con1a tudo o
prova de tal ordem que aquele que lhe resislU' seja. que é dado, mas excluindo tudo o que não o é (a
(atributo pnncipal desta substân· mesmo. Eu então, pelo menos, não quando não gara111ídu como verdadeiro (~ impos- referencia à Regra XII e aquí indispensável). Nom
eia> e SUi\ outra. faculdades: serei alguma coisa? Mas já neguei que .a ír~ "é preciso que cu atente com todo cuidado
B) §§ 10 t8: •• , e de .:umo ele é mais fácil de sível antes da prova da caistência de Ikus), pelo
conhecer do que o corpo: menos m:ebido como certo. Se não fosse ammcado, para nio tomar imprudcntemcnle alguma outra
extorquido ao Génio Maligno, o Cogito não passa- çojsa 1111r mim", que wi1 absurdo no plano dA Psi-
Con11aprova da :>egunda certez.a (o pc • • A primeira certeza adquirida não serll, poi~. a
dnço de cera> e conquista da terccir• mais alia, dcv< apenas inaugurar a cadeia das ria de uma b:ina!idadc. Sobre a. originalidade do oologia. e que se JUStifü;a apenas ao oivel de uma ÁI·
certeu. Cogito, d . o fim do opúscul1> de Pa<eal: D' l'.Esprl1 gcbra das noções. compar•vel i. "Álgebra dos
razões.
Gtomlirlqaa. compr1meotos" das Rtgu/M.
MEDITAÇÕES 101 DESCARTES
102

lhames sutilezas29 • Mas, antes, deter- qual seja tocado e do qual receba a pode ser separado de mim. Eu sou, eu existirem, Jª que me são desconhe-
me-ei em considerar aqui os pensa- impressão. Pois não acreditava de existo: isto é certo: mas por quanto cidas, não sejam efetivamente diferen-
mentos que anteriormente nasciam por modo algum que se devesse atribuir à tes de mim, que eu conheço? Nada sei
tempo? A saber, por todo o tempo em
si mesmos em meu espírito e que eram natureza corpórea vantagens como ter que eu penso3 3 ; pois poderia. talvez, a respeito; não o discuto atualmente,
inspirados apenas por minha natureza, de si o poder de mover-se. de sentir e ocorrer que, se eu deixasse de pensar. aão posso dar meu juízo senão a coisas
quando me aplicava à consideração de de pensar~ ao contrário. espantava-me deixaria ao mesmo tempo de ser ou de que me são conhecidas: reconheci que
meu ser. Considerava-me, inicial- antes ao ver que semelhantes faculda- eu era. e procuro o que sou, eu que
eicisur Nada admito agora que não
mente, como provido de rosto, mãos, des se encontravam em certos cor- seja necessariamente verdadeiro: nada reconheci ser. Ora. é muito certo que
braços e toda essa máquma composta posl 1
sou, pois, falando precisamente, senão essa noção e conhecimento de mim
de ossos e carne. tal como ela aparece 7. Mas eu, o que sou eu. agora que mesmo. assim precisamente tomada,
uma coisa que pensa, isto é, um espíri-
em um cadáver, a qual eu designava suponho3 2 que há alguém que é extre- não depende em nada das coisas cuja
pelo nome de corpo. Considerava, to, um entendimento ou uma razão,
mamente poderoso e, se ouso dizê-lo, que são termos cuja significação me existência não me é ainda conheci-
além disso, que me alimentava, que malicioso e ardiloso, que emprega era anteriorment.e3 4 desconhecida. da3 8 ; nem, por conseguinte, e com
caminhava, que sentia e que pensava e iodas as suas forças e toda a sua indús- mais razão de nenhuma daquelas que
relacionava todas essas ações à Ora, eu sou uma coisa verdadeira e
tria em enganar-me? Posso esLar certo verdadeiramente existente; mas que são fingidas e inventadas pela imagina-
alma30 ; mas não me detinha em pen- de possuir a menor de todas as coisas coisa? Já o disse: uma coisa que pensa. ção. E mesmo esses termos fingir e
sar em que consistia essa alma, ou, se Que atribuí há pouco à natureza corpó- Imaginar advertem-me de meu erro;
E que mais? Excitarei ainda minha
o fazia. imaginava que era algo extre- pois eu tingiria efetivamente se imagi-
mamente raro e sutil, como um vento, rea? Detenho-me em pensar nisto com imaginação para procurar saber se não
atenção, passo e repasso todas essas sou algo mais. Eu não sou essa reunião nasse ser alguma coisa, posto queima-
uma ílama ou um ar muito ténue, que de membros que se chama o corpo ginar nada mais é do que contemplar a
estava insinuado e disseminado nas coisas em meu espírito, e não encontro
nenhuma que possa dizer que exista humano; não sou um ar tênue e pene- figura ou a imagem de uma coisa cor-
minhas partes mais grosseiras. No que
em mim. Não é necessário que me de- trante. disseminado por todos esses poral. Ora, sei já certamente que eu
se referia ao corpo. não duvidava de sou. e que, ao mesmo tempo. pode
maneira alguma de sua natureza; pois more a enumerá-las. Passemos, pois, membros; não sou um vento, um
sopro, um vapor, nem algo que posso ocorrer que todas essas imagens e, em
pensâva conhecê-la mui distintamente aos atributos da alma e vejamos se há geral, todas as coisas que se relacio-
fingir e imaginar, posto que supus que
e, se quisesse explicá-la segundo as alguns que existam em mim. Os pri-
tudo i.sso não era nada e que, sem nam à natureza do corpo sejam apenas
noções que dela linha, tê-La-ia descritO meiros são alimentar-me e caminhar; mudar essa suposição, verifico que não sonhos ou quimeras. Em segui!J1en!O
desta maneira: por con>o entendo tudo mas, se é verdade que não possuo deixo de estar seguro de que sou algu- disso, vejo claramente que terra tao
o que pode ser limitado por alguma corpo algum, é verdade também que ma coisa 3 5 • pouca razão ao dizer: eKcitarei minha
figura; que pode ser compreendido em não posso nem caminhar nem alimen-
qualquer lugar e preencher um espaço 8. Mas também pode ocorrer que imaginação para conhecer mais distin-
tar-me. Um outro é sentir; mas não se essas mesmas coisa~. que suponho não tamente o que sou. como se dissesse:
de lal sorte que todo outro corpo dele pôde também sentir sem o corpo; além estou atualmente acordado e percebo
seja excluído; que PO<le ser sentido ou do que, pensei sentir outrora muitas
pelo tato, ou pela visão, ou pela audi- J3 Entre lodas u roculdades: 1) do corpo - 2) du algo de real e de verdadeiro; mas, visto
coisas, durante o sono. as quais reco- alma, um~ só, o p<:nsamento, resiste à exclusão. que não o percebo ainda assaz nitida-
ção, ou pelo olfato; que pode ser movi- nheci, ao despertar. não ter sentido Vemo• uqu1 a importãncL& do Gm do § 4: "Esta
do de muitas maneiras, não por si proposição eu sou. eu eJCisto - é necessaria- mente, dormiria intencionalmente a
efetivamente. Um outro é pensar: e mente verdadeira $t!mprt que eu o_pronuncio ou que fim de que meus sonhos mo represen-
mesmo, mas por algo de alheio pelo verifico aqui que o pensamento é um e" a concebo em meu e$pÍrf10 ''. E ao refletir sobre
esta inseparabilidade único dado que se enc.orura
Lassem com maior verdade e evidência.
atributo que me pertence; s6 ele não em rrunha posse - que obtenho irnediatamente a E, assim, reconheço certamente que
11 Sobre tsle método de dclermínação do pro-
bh:ma por $Cgregação, cf. o diálogo: Rechercht de naturcu "daquilo que souM Trata-se da primeira nada. de tudo o que posso com-
(a Vbi1I (Plfüdc. pfigs. 892·94). Ao interlocutor s • Este çoohecimcnto "natural" que eu tenho de verdade da cadeia de razões.
aturdido que acaba de responder: ..Diria. portanto, mim mesmo antes da prova da dúvida liCrã mtcira- • • "Anteriormente". lslà é, no plwto em que nos preender por meio da imaginação. per-
que -5o0u um homem", o canesiano replica: "Nâtl meole falso? Nio. Se a alma é concebida à maneira colocava o parágrafo precedente, eu podia proferir tence a este conhecimento que tenho de
dos escolãsticos. em uoca a distinção entre o corpo esl~ palavra>. mas sem lhes ter determinado o sen-
pusta/$ atenção ao qur pn-guntel e a resposta que
udo, ponan10 sem conhecê-lo.
mim mesmo e que é necessário lembrar
apresentais, embora vos pareça simples. lançar- e o espírito (indispensável à física) ~á ai prc~te,
vos-ia cm queS1Õcs multo árduas e muito cmbar,aço- mas a !Ítulo de opinião provavel1 sem fundamento. • • Sobre o fim desse parágrafo, cf. SOS e segs. Não
,.~ st eu qui.se~sc aJ>Cflá-las por menos que seja. . Cf, Respo:rttU, 204. . há necessidade alguma de ir procurar em owra a• O contra.dilOr que retorquisse haver talvez em
Nio entcndcsle1 bem a minha pergunta e rcspoodeis » Mudança de plano. Do pcnsamcnlO 111sp1rado parte uma resposta_ vc.to que dei a única r-e>posta mim alguma outra faculdade desconhecida situar-
a mais coisas do que vos pcrgwneí . • • Dizci-me. por "m111ha nawrcza" passamos à !Ó idéil\ d_e mim que respct1av.11 os dados do problema: -Eu 'IOIJ uma se-la n\> plano da Psicologia e não das r~ meta-
pois, o que sois propriantmlt. na medida em que mesmo compatível com a ínStauraça.o da dúvida, da cot~a que pensa". Mas "o homem nararal" smte·se físicas. Um dos prinápios da Análise e que não
dw"ldau ·: indttcrmm.a ção psicor6gica à detcrmínação mctafi· tentado a recomr à tmaginação a fün de complear tmho o díreíto de argüir propriedades .11inda desco-
mo C(. Rupo.lltU, 508. >ica. esta respo>la.. Há nisso uma inclinação que o pará nhccid.11S para combater as que se acham agora
grafo seguinte irâ de!lenraizar. estabelecidas.
MEDITAÇÕES 103
104 DESCARTES

e desviar o espírito dessa maneira de de mim mesmo? Pois é por si tão evi- que são verdadeiras e certas e que per- todas as coisas que se apresentavam ao
conceber a fim de que ele próprio dente que sou eu quem duvida, quem tencem à minha própria natureza. Mas paladar, ao olfato, ou à visão, ou ao
possa reconhecer muito distintamente entende e quem deseja que não é neces- vejo bem o que seja: meu espírito tato, ou à audição, encontram-se mu-
sua natu.reza3 7 • sário nada acrescentar aqui para expli- apraz-se em extraviar-se e não pode dadas e. no entanto, a mesma cera per-
9. Mas o que sou eu, portanto? cá-lo. E tenho também cenamente o ainda conter-se nos justos limites da manece. Talvez fosse como penso
Uma coisa que pensa. Que é uma coisa poder de imaginar; pois, ainda que verdade. Soltemos-lhe, pois, ainda uma atualmente, a saber. que a cera não era
que pensa? ~ uma coisa que duvida. possa ocorrer (como supus anterior- vez, as rédeas a fim de que. vindo, em nem essa doçura do mel, nem esse
que concebe, que afirma, que nega. que mente) que as coisas que imagino não seguida, a libertar-se delas suave e agradável odor das flores, nem essa
quer, que não quer, que imagina tam- sejam verdadeiras, este poder de imagi- oportunamente, possamos mais facil- brancura. nem essa figura, nem esse
bém e que sente3 8 • Certamente não é nar não deixa, no entanto, de existir mente dominá-lo e conduzi-lo 41 • som, mas somente um corpo que um
pouco se todas essas coisas penenccm realmente em mim e faz parte do meu 11. Comecemos pela consideração pouco antes me aparecia sob certas
à minha natureza. Mas por que não lhe pensamento. Enfim, sou o mesmo que das coisas mais comuns e que acredi- formas e que agora se faz notar sob
pertenceriam? Não sou eu próprio esse sente, isto é, que recebe e conhece as tamos compreender mais distinta- outras. Mas o que será, falando preci-
mesmo que duvida de quase ludo, que, coisas como que pelos órgãos dos sen - mente, a saber. os corpos que tocamos samente, que eu imagino quando a
no entanto, entende e concebe certas tidos, posto que, com efeito, vejo a hn, e que vemos. Não pretendo falar dos concebo dessa maneira? Considere-
coisas, que assegura e afirma que ouço o ruído, sinto o calor. Mas dir- corpos em geral. pois essas noções ge- mo-lo atentamente e, afastando todas
somente tais coisas são verdadeiras, me-ão que essas aparências são falsas rais são ordinariamente mais confusas, as coisas que não pertencem à cera,
que nega todas as demais, que quer e e que eu durmo. Que assim seja; toda- porém de quaJquer corpo em particu- vejamos o que resta. Certamente nada
deseja conhecê-las mais, que não quer via, ao menos, é muito certo que me lar. Tomemos, por exemplo, este peda- permanece senão algo de extenso, flexí-
ser enganado, que imagina muitas coi- parece que vejo, que ouço e que me ço de cera que acaba de ser tirado da vel e mutável. Ora, o que é isto: flexí-
sas, mesmo mau grado seu, e que sente aqueço; e é propriamente aquilo que colmeia: ele não perdeu ainda a doçura vel e mutável? Não estou imaginando
também muitas como que por inter- em mim se chama sentir e isto, tomado do mel que continha. retém ainda algo que esta cera, sendo redonda, é capaz
médio dos 6rgãos do corpo? Haverá assim precisamente. nada é senão pen- do odor das ílores de que foi recolhido; de se tomar quadrada e de passar do
algo em tudo isso que não seja tão ver- sar. Donde, começo a conhecer o que sua cor, sua figura, sua grandeza, são quadrado a uma figura triangular?
dadeiro quanto é certo que sou e que sou. com um pouco mais de luz e de patentes; é duro, é frio. tocamo-lo e, se Certamente não, não é isso, posto que
existo, mesmo se dormisse sempre e distinção do que anteriormente3 9 • nele batermos. produzirá algum som. a concebo capaz de receber uma infuü-
ainda quando aquele que me deu a 10. Mas não me posso impedir de Enfim, todas as coisas que podem dade de modificações similares e eu
existência se servisse de todas as suas crer que as coisas corpóreas • 0 , cujas distintamente fazer conhecer um corpo não poderia, no entanto, percorrer essa
encontram-se neste. infinidade com minha imaginação e,
forças para enganar-me? Haver~ tam- imagens se formam pelo meu pensa-
12. Mas eis que. enquanto falo, é por conseguinte, essa concepção que
bém, algum desses atributos que possa mento. e que se apresentam aos senti- tenho da cera não se realiza através da
ser distinguido de meu pensamento, ou aproximado do fogo: o que nele resta-
dos, sejam mais distintamente conheci- minha faculdade de imagina.e 42 •
que se possa dizer que existe separado va de sabor exala-se, o odor se esvai,
das do que essa não sei que parte de sua cor se modifica, sua figura se alte- 13. E, agora, que é essa extensão?
mim mesmo que não se apresenta à ra, sua grandeza aumenta, ele toma-se Não será ela igualmente desconhecida,
' 1 l!m virtude desse princípio, não me é dado abso-
lutamwtc o direito de reairrer à imaginação, pois
imaginação: embora, com efeito, seja líquido, esquenta-se, mal o podemos já que na cera que se funde ela aumen-
~tudo quanto p<>sso co111prccndcr por seu meio'' foi uma coisa bastante estranha que coisas ta e fica ainda maior quando está intei-
tocar e, embora nele batamos, nenhum
excluído pela dúvida. Por oi cu sei, .ao mesmo que considero duvidosas e distantes ramente fundida e muito mais ainda
tempo, que minha natureza é puro pensamento som produzirá. A mesma cera perma-
• •clu.sivo de lodo elemencn ccirporal. !! a segunda sejam mais claras e mais facilmente quando o calor aumenta? E eu não
nece após essa modificação? Cumpre conceberia claramente e segundo a ver-
'tCrchdc, a qual nio se deve c:Qnf1mdir com a distin- conhecidas por mim do que aquelas confessar que permanece: e ninguém o
ção real entre a alma e o corpo. estabelecida somen- dade o que é a cera. se não pensasse
11: na Meditação Sexta. Cf. 5 10 pode nega.e. O que é, pois, que se que é capaz de receber mais variedades
• • C umpre observar a diferença relativamente à u A saber, um pensamento: a) distinto do~ corpos,
defm içio do § 7: "Isto 6, um espírito, um entendi- se os houver; b) distinto da~ fac;uldade4 não propria- conhecia deste pedaço de cera com
e>cnto ou urna razão". Ai d~tcrmlnava-sc a essência mente imelectuais, como 1 imaamação. que só me tanta distinção? Certamente não pode •• Raciocmio em duas partes: 1.• o que me permite
da 111bnância ~coisa pensante"; aqui ela. é desctita pencncem porque implicam este pensamento puro. ser nada de tudo o que notei nela por reconhecer a mesma cera é sua identidade na medi-
cnesiida de ,,.u~ difercmu modo!>. Desse novo • 0 Novo asuJto do pensamen10 imagm11ivo me- da cm que 1 cera é coisa extensa: 2.0 ma• ~te con
ponto d.e vi~ta. reintegra.-sc na ucoisa penl.allte" o rt:nte à "minha natureu" e oo qual não posso ainda intermédio dos sentidos, posto que tcúdo só pode ser tdlia e não imagem da extensão
e fora excluído de soa essência. Todos esses me ~ender: estou convencido, mu oio persua- que o corpo ocupa atualmente ou daquelas (cm mi-
codoJ (imaginar, senur. querer), embora não per- dido. Daí a necessidade de uma contraprova que • • F.m outros lermos: façamos de coma que inter mero fuiito) que poderia ocupar cm S<:guidL cr.
l!!!Çtl!I i minha natureza. não podem !.cr postos em servirá para estabelecer a terceira verdade. Como rompemo> a ordem a fim de seguir o sen50 comum Quintas Rrspos1113: " As faculdades de entender e de
Qhida, na medida em que se beneficiam da =taa todas as figuras de ~6rica das Med/Jaçôes, esta cm seu próprio terreno. Sobre o fa.t0 de ser esta imaginar diferem não só segundo o rnai• e o menos.
doC011to. integra-se na ordem. transgressão apenas aparente. cf. o imporumússímo porém como duas manetras de agir totalmente
~ 5 1S das .Rt<poslas. difcrentes".
MEDITAÇÕES 105 106 DESCARTES

segundo a extensão do que jamais ima- la, senão chapéus e casacos que podem 16. Mas, enfim. que direi desse espí- nitidez não deverei eu conhecer-me" 7 ,
ginei. É preciso. pois, que eu concorde cobrir espectros ou homens ficlicios rito, isto é, de mim mesmo 4 6 '! Pois até posto que todas as razões que servem
que não poderia mesmo conceber pela que se movem apenas por molas? Mas aqui não admiti em mim nada além de para conhecer e conceber a natureza
imaginação o que é essa cera e que julgo que são homens verdadeiros e um espírito. Que declararei. digo. de da cera, ou qualquer outro corpo, pro-
somente meu entendimento é quem o assim compreendo. somente pelo poder mim. que pareço conceber com tanta vam muito mais fácil e evidentemente
concebc" 3 ; digo este pedaço de cera de julgar que reside em meu espírito. nitidez e distinção este pedaço de cera? a natureza de meu espírito? E encon-
em particular, pois para a cera em aquilo que acreditava ver com meus Não me conheço a mim mesmo não só tram-se ainda canlas outras coisas no
geral é ainda mais evidente. Ora. qual olhos. com muito mais verdade e certeza. mas próprio espírito que podem contribuir
é esta cera que não pode ser concebida JS. Um homem que procura elevar também com muito maior distinção e ao esclarecimento de sua natureza. que
senão pelo entendimento ou pelo espí- seu conhecimento para além do nitidez? Pois. se julgo que a cera é ou aquela:; que dependem do corpo (como
rito? Certamente é a mesma que vejo, comum deve envergonhar-se de apro- existe pelo rato de eu a ver, sem dúvida esta) não merecem quase ser enumera-
que toco, que imagino e a mesma que veitar ocasiões para duvidar das for- segue-se bem mais evidentemente que das.
conhecia desde o começo. Mai; o que é mas e dos lermos do falar do vulgo; eu próprio sou, ou que existo pelo fato 18. Mas, enfim, eis que insensivel-
de notar é que sua percepção, ou a prefiro passar adiante e considerar se de eu a ver. Pois pode acontecer que mente cheguei aonde queria; pois. já
ação pela qual é percebida, não é uma eu concebia oom maior evidência e aquilo que eu vejo não seja, de fato, que é coisa presentemente conhecida
visão, nem um tatear, nem uma imagi- perfeição o que era a cera, quando a cera; pode também dar-se que eu não
tenha olhos para ver coisa alguma; por mim que, propriamente falando, .só
nação, e jamais o foi, embora assim o percebi inicialmente e acreditei conhe-
cê-ta por meio dos sentidos exteriores, mas não pode ocorrer, quando vejo ou concebemos os corpos pela faculdade
parecesse anteriormente, mas somente
(coisa que não mais distingo) quando de entender em nós exislente e não pela
uma inspeção do espírito, que pode ser ou ao menos por meio do senso
imperfeita e confusa. como era antes. comum, como o chamam, isto é, por penso ver, que eu. que penso. não seja imaginação nem pelos sentidos, e que
eu clara e distinta, como é presente- meio do poder imaginativo. do que a alguma coisa. Do mesmo modo, se nào os conhecemos pelo fato de os ver
mente, conforme minha atenção se di- concebo presentemente, após haver julgo que a cera existe. pelo fato de que ou de tocá·los, mas somente por os
rija mais ou menos às coisas que exis- examinado mais exatamente o que ela a toco, seguir-se-á ainda a mesma conceber pelo pensamento, reconheço
tem nela e das quais é composta. é e de que maneira pode ser conhecida. coisa, ou seja. que eu sou; e se o julgo com evidência que nada há que me seja
14. Entretanto. eu não poderia es- Por certo, seria ridículo colocar isso porque minha imaginação disso me mais fácil de conhecer do que meu
pantar-me demasiado ao considerar o em dúvida. Pois, que havia nessa pri- persuade, ou por qualquer outra causa espírito. Ma:;, posto que é quase
quanto meu espírito tem de fraqueza e meira percepção que fosse distinto e que seja, concluirei sempre a mesma impossível desfazer-se tão prontamente
de pendor que o leva insensivelmente evidente e que não pudesse cair da coisa. E o que notei aqui a respeito da de uma antiga opinião. será bom que
ao erro. Pois, ainda que sem falar eu mesma maneira sob os sentidos do cera pode aplicar-se a todas as outras eu me detenha um pouco neste ponto, a
considere tudo isso em mim mesmo, as menor dos animais? Mas quando dis- coisas que me são exteriores e que se f.im de que. pela amplilude de minha
palavras detêm-me tod~via.. e sou tingo a cera de suas formas exteriores encontram fora de mim. meditação, eu imprima mais profunda-
quase enganado pelos termos da lin- e, como se a tivesse despido de suas 17. Ora, se a noção ou conheci- mente em minha memória este novo
guagem comum; pois nós dizemos que vestimentas, considero-a inteiramente mento da cera parece ser mais nítido e conhecimento.
vemos a mesma cera. se no-la apresen- nua 4 ~, é certo que, embora se possa mais distinto após ter sido descoberto
tam, e não que julgámos que é a ainda encontrar algum erro em meu não somente pela visão ou pelo tato, • ' ~ a terceira verdade: o espírito t mal& fácil de
mesma. pelo fato de ter a mesma cor e conhecer do que o corpo, Com ~foito. obtenho
juízo. não a posso conceber dessa mas ainda por muitas outras causas, 1mediutarnentc o conhecimento da existência e da
a mesma figura: donde desejaria quase íonna sem um espírito humano• 8 • oom quão maior evidência. distinção e natureza de meu esplriro, ao PllSSO que o meu pensa-
concluir que se conhece a cera pela mtnlO me proPQrcion11 apenas a idéia clara e dis
visão dos olhos e não pela tão-só ins- • • Pa~amo" com este parágrafo. à confirmação tinUt dos corpo& cll]a existência aindr. é problemá
• • Cl '13. onde Desce.nes se: dcícnde de rer pre- da scaunde verdade: quando percebo o pedaço de tica. Chléroult comenta: "'Quando Descanes declara
peção do espírito, se Por acaso não tendido ~abstrair o conceito da cera de seus acidcn· cera. \eja compreendendo clara e distintamente ~ua que o conhecimento da alma é o mais fácll dos
olhasse pela Janela homens que pas- tes". MO. acidente~ são coniingentcs cm relação à 11atureza, 'ICja apenas imaginando-o ou tocando-o. con.b.ccimcntos, quer dizer que é a mais lacil das
sam pela rua. à vista dos quais não substância. mu não a acidentalidade", cs~cifica 96 uma coisa é certa. no ponto cm que me encontro. verdades cicnúlicas e o primeiro do. c:onhecimcntos
Guéroult. (Descartes. 1. pág. 56.) ~ que eu penso pcrcebé-lo , Mostrando que este na ordem da ciência. Não quer dizer que a ciõocia é
deixo de dizer que vejo homens da • • T ai é o scnudo exato do "pedaço de cera": cu .. pensamento.. era indispensável ao ccnhecimenco mais. fácil do que o conhecimento vulgar. A passa-
mesma maneira que digo que vejo a na.da posso conhecer através da percepção ou da da coisa. a análbc precedente deu confümeção a gem do senso comum à ciência é. com efeito, a mais
cera; e, entretanto, que vejo destajane- ima&inação sem compreender (ou rcconhe«-r). aua- esta verdade. dificil das asccniàes''. (Op. c/I., pág. 128.)
v~ do pensamento, a cs~cia da coisa. Tenho ou
não razão de reconhecer esta c•sencia1 N""ao sct
• I Por onde nca provado nio '6 que a imaginação ainda. Pois não se trata aqui de •abcr se cu dispo-
nio pode me dar 1 conhecer a natW'Ull dos corpos qho eíetivamcntc do conhecimento da essblcla do
que ~ lhe apresentam (o que era o objetivo da corpo. mu de saber cm quai\ .:ondiÇÕQ po>llO estar
contraprova). mas ainda que o pensamento puro é o seguro de possuir 1 Idéia clara e distinta deste
unico capai; de rue-10. corpo. cr Guéroult. op. clt~ pá,s. 144-45,

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