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A Questão da Verdade em Heidegger e Deleuze

A verdade, meu amor, mora num poço


Noel Rosa

Este texto busca compreender o conceito de verdade em dois autores que produziram suas
obras no século XX. O primeiro, Gilles Deleuze, começou a publicar na segunda metade do
século passado; o segundo, Martin Heidegger, despontou nos anos vinte, mas continuou
produzindo até 1970, pouco tempo antes de seu encantamento em 1976.
Ambos os autores têm o intuito de superar o conceito de verdade estabelecido pela
tradição metafísica, entretanto, enquanto Deleuze se volta para Nietzsche em sua crítica da
verdade e consequente afirmação da potência do falso, Heidegger retrocede ainda mais,
voltando até os gregos antigos e ao conceito de Alethéia, entendendo a verdade enquanto
desvelamento, pois, para o filósofo alemão, Nietzsche, ao conceber a verdade como valor,
ainda é presa de certo humanismo e, consequentemente, da metafísica.
Não é nossa intenção aqui apontar quem está certo ou errado. O que pretendemos
é demonstrar como a questão da verdade é tratada em ambos os filósofos e, a partir daí,
apontar possíveis aproximações ou distanciamentos.

1.Verdadeiro, falso e construção de sentido em Nietzsche e Deleuze

A busca da verdade sempre foi preocupação para muitos pensadores ao longo da


história da filosofia. Para Gilles Deleuze não. Mais importante que a busca da verdade,
seria a construção de sentido, principalmente porque o conceito de verdade sempre esteve
ligado à representação e à imagem dogmática do pensamento. Deleuze relaciona aquilo que
chama de imagem dogmática do pensamento a diversos filósofos, de Platão a Hegel,
passando por Descartes e Kant. No terceiro capítulo de Diferença e repetição, o filósofo
francês, em oito postulados, elenca, analisa e constrói uma crítica contundente aos
fundamentos da imagem dogmática. De maneira resumida, a filosofia assim concebida
teria três teses essenciais: 1º – O filósofo, enquanto pensador, quer e ama o verdadeiro. O
pensamento, por seu turno, contém o verdadeiro que se desvela por meio do exercício
natural e cooperativo das faculdades, supõe-se assim uma natureza reta do pensamento e o
bom-senso universalmente partilhado. Pensar seria, aqui, o encontro com a verdade que se
entrega ao pensador por meio de um método eficiente. 2º – O corpo, as paixões e os
sentidos nos desviam do verdadeiro, são obstáculos ao pensamento. Induzem aquele que
quer pensar ao erro, ao falso. 3º – É preciso um método para pensarmos bem e
verdadeiramente. Deleuze encontra e expõe inúmeras falhas na filosofia assim concebida.
Para o filósofo da diferença, e aqui há um nítido diálogo com Heidegger, talvez nem sequer
tenhamos pensado ainda. A imagem dogmática concebe o pensamento a partir da
reminiscência e da recognição. Para Deleuze, pensar é parir o novo, o irreconhecível, o
extemporâneo; tem a ver com produção de sentido e não com verdade. Em seu livro sobre
Nietzsche, Deleuze escreve:
“Não há verdade que antes de ser uma verdade, não seja a efetuação de um sentido ou a
realização de um valor. A verdade como conceito é totalmente indeterminada. Tudo
depende do valor e do sentido do que pensamos. Temos sempre as verdades que
merecemos em função do sentido daquilo que concebemos, do valor daquilo em que
acreditamos.”[1]
A verdade é, portanto, uma construção de sentido. Seguindo os passos de
Nietzsche, Deleuze percebe que muitas forças operam sobre a verdade. Ela é a realização de
um valor e existem valores nobres e vis, valores do senhor e do escravo, valores de bom
gosto e de mau gosto. A imagem dogmática supõe que a verdade seja algo bom, um
universal abstrato ligado à ideia do Bem, mas não existiriam verdades que são da baixeza?
Verdades coniventes com os poderes instituídos? Para a filosofia da representação, que é o
mesmo que a imagem dogmática, “a verdade aparece como uma criatura bonachona e
amiga das comodidades, que dá sem cessar a todos os poderes estabelecidos segurança de
que jamais causará a alguém o menor embaraço.” [2] Segundo Deleuze, foi Nietzsche quem,
ao atribuir a seu conceito de vontade de potência o papel de condutor da crítica, substituiu
a forma do verdadeiro pela potência do falso. Vejamos de que modo Nietzsche faz uso do
martelo para destruir o conceito de verdade estabelecido pela imagem dogmática do
pensamento.
A crítica nietzschiana da verdade tem quatro pilares discerníveis. Primeiro, crítica à crença
num mundo verdadeiro suprassensorial. Nietzsche afirma no Crepúsculo dos ídolos que
para o cristianismo, o mundo verdadeiro não seria este mundo, telúrico, imanente, natural.
O mundo verdadeiro seria o transcendental, o ideal, o moral, em suma, o verdadeiro seria o
falso e vice-versa. Inversão de valores. É a moral do escravo quem coloca a verdade no além
é não na Terra. Sê fiel à Terra, incita-nos Nietzsche. Ainda no Crepúsculo dos ídolos, no
capítulo De Como o “Mundo Verdadeiro” Tornou-se uma Fábula, o criador de
Zaratustra apresenta como etapas da história de um erro as concepções platônica, cristã,
kantiana e positivista de “mundo verdadeiro”. Nietzsche defende a eliminação tanto desta
ideia transcendente de mundo verdadeiro, como da ideia de mundo aparente. É uma
proposta radical. Para Nietzsche, o platonismo é a doutrina que dividiu o mundo em dois: o
mundo sensível e o mundo suprassensível. Já sabemos a que extremos o cristianismo levou
esta doutrina, levou-a ao nojo da imanência, ao nojo deste mundo, ao nojo da Terra.
Nietzsche nos propõe pensarmos além de noções como verdade e aparência: “O mundo
verdadeiro – nós o abolimos: que mundo restou? O aparente, talvez?... Qual o quê! Junto
com o mundo verdadeiro abolimos também o aparente.
(Meio-dia; momento em que a sombra é mais curta; fim do mais longo dos erros; ponto
alto da humanidade; INCIPIT ZARATUSTRA).”[3] Conclui no final do segundo capítulo
de Crepúsculo dos ídolos.
Segundo, crítica da ideia de um homem verídico. Que quer o homem verídico? Ele
quer a verdade a qualquer custo, para ele nada é mais necessário que a verdade. O
verdadeiro é melhor que o falso e para este homem o mundo verdadeiro é um além-mundo.
O falso seria este mundo. Transvaloração dos valores à moda platônica e cristã.
O homem verídico supõe um mundo verdadeiro que se encontra além deste mundo, mas
tal desejo por um além-mundo esconde e, ao mesmo tempo pressupõe, um ressentimento,
um ressentimento contra este mundo e contra os que nele exercem sua soberania. A moral
do escravo, neste caso do homem verídico, diz: somos escravos neste mundo, mas, no
outro, seremos os senhores, e veremos estes que nos fazem escravos sofrerem infinitas
tormentas. O homem verídico é, enfim, um ressentido. “O mundo verdadeiro supõe um
homem verídico,[...] mas tal homem tem estranhos móveis, como se ele escondesse em si
outro homem, uma vingança: Otelo quer a verdade, mas por ciúmes, ou pior, por vingar-se
de ser negro.”[4] Ao homem verídico, Nietzsche opõe o homem em concordância com a
vontade de potência. Se seguíssemos este raciocínio ao extremo, mesmo conceitos como
verdadeiro ou falso não teriam qualquer importância, pois o que importa é a vida, a
vontade de potência, e ela, a vontade de potência, não se pergunta sobre a verdade. “Não
existe valor superior à vida, a vida não tem de ser julgada, nem justificada, ela é inocente,
tem a inocência do devir, para além do bem e do mal.” [5]
Terceiro, crítica à relação entre verdade, moral e julgamento. A verdade seria
sempre uma verdade moral. Deleuze diz claramente, no capítulo sobre as potências do
falso, do livro Cinema2 - A imagem-tempo: “O homem verídico só quer finalmente julgar a
vida, ele exige um valor superior, o Bem, em nome do qual poderá julgar: tem sede de
julgar, vê na vida um mal, um erro a ser expiado: origem moral da noção de verdade.” [6] O
homem que quer o verdadeiro, nega a inocência e a leveza. O que ele quer é acusar e julgar
a vida.
E, por último, mas não menos importante, a crítica da verdade tem como
contrapartida uma apologia da arte, posto que a arte está em consonância com a força vital,
com a vontade de potência. Na arte, a vontade de enganar tem a boa consciência ao seu
lado. Ela, a arte, opera uma transvaloração dos valores vigentes, que são valores do escravo.
A vontade de verdade nega o mundo sensível, nega a vida em prol de uma determinada
verdade metafísica. A arte assume-se enquanto criação, nada tem a ver com verdade. Em
outras palavras, Deleuze usa Nietzsche para afirmar que pensamento é criação e não
vontade de verdade. Assim como a natureza, a arte, mesmo quando é cruel, é inocente,
mente sorrindo como uma criança. A arte se cria em consonância com o devir e “Se o devir
é a potência do falso, o bom, o generoso, o nobre, é o que eleva o falso à enésima potência,
ou a vontade de potência até o devir artista.” [7]

2.Heidegger e a questão da verdade

Diferentemente de Deleuze, para quem a verdade, em consonância com Nietzsche,


é a realização de um valor, em Heidegger a verdade está ligada ao conceito grego
de Alethéia, trata-se de um desvelamento do ser, sempre ligado à liberdade e que, quando
oculto, impele o homem à errância. Para Heidegger, Nietzsche, e neste caso a afirmativa
também é válida para Deleuze, ainda se mantém preso ao humanismo, uma vez que a
verdade, ao se tornar valor, fica à mercê do homem, submetida às forças humanas. Tanto
faz se tais forças são oriundas de senhores ou de escravos. De qualquer maneira, elas
continuam sendo provenientes do humano. O ser humano permanece, sob este ponto de
vista, sujeito no processo de instauração da verdade. Para Heidegger, a verdade não é a
verdade do homem, mas a verdade do ser.
A reflexão heideggeriana busca um retorno aos gregos, investigando a verdade
enquantoAlethéia. A questão da verdade é instaurada assim no âmbito de uma
hermenêutica ontológica que busca investigar as palavras geradoras dos pensadores
originários da Grécia pré-socrática. A intenção do filósofo alemão é restabelecer o sentido
que a palavra Alétheia, por exemplo, tinha para um grego da Grécia antiga, não deixando
que o vocábulo se contamine pelos séculos da tradição metafísica ocidental: é o passo para
traz rumo ao originário.
Segundo Heidegger, na conferência Sobre a Essência da Verdade, a tradição
metafísica ocidental define a essência da verdade enquanto concordância. Deste modo, a
verdade é a adequação da coisa com o conhecimento Veritas est adaequatio rei et
intellectus; contudo a verdade aqui considerada pode também referir-se à adequação do
conhecimento com a coisa:Veritas est adaequatio intellectus ad rem. Estas duas
concepções da essência da verdade significam a conformidade com alguma coisa. No
entanto, a segunda concepção não resulta simplesmente de uma inversão da primeira. Pelo
contrário, intellectus e res são pensados de modo inteiramente distintos. Para que
percebamos tal diferença é necessário conduzir a expressão corrente do conceito de
verdade à sua origem, a saber, a idade média. A veritas, interpretada comoadaequatio rei
ad intellectum decorre da fé cristã e da ideia teológica segundo as quais as coisas em sua
essência e existência, isto é, enquanto ens creatum, correspondem à ideia previamente
concebida pelo espírito divino. Deste modo, elas concordam com a ideia e com ela se
conformam, sendo, neste sentido, verdadeiras. O intelecto humano também é um ens
creatum, uma vez que é também faculdade concedida por Deus e, assim como os demais
entes, deve adequar-se à ideia. Assim, o intelecto só é conforme com a ideia porque realiza
a adequação do que pensa com a coisa, tendo de ser conforme à ideia. “A possibilidade da
verdade do conhecimento se funda, se todo ente é criado, sobre o fato de a coisa e a
proposição serem igualmente conformes com a ideia e serem, por isso, coordenado um ao
outro a partir do plano de criação.”[8] Veritas significa, deste modo, concordância entre
os entes que, por sua vez, fundam-se na ideia de concordância entre as criaturas e o
criador.
Na modernidade, com o progressivo afastamento do homem do conceito de Deus,
tal ordem ainda é mantida, mas em vez de remeter a Deus, o que possibilita a ordenação de
todos os objetos pelo espírito é a razão universal (mathesis universalis) que se dá a si
mesma sua lei e postula, deste modo, a inteligibilidade das articulações de seu processo.
Assim, a verdade da coisa significa a adequação da coisa ao seu conceito essencial, tal como
o espírito, ou melhor, a razão, o concebe. De certo modo, pode parecer que esta concepção
de essência da verdade seja independente da interpretação relativa à essência do ser de
todo ente. No entanto, tal concepção inclui necessariamente uma interpretação do homem
como sujeito que é portador e realizador dointellectus. Assim, a fórmula da essência da
verdade (veritas est adaequatio intellectus et rei) adquire, para cada um, validade. Neste
caso, a não-verdade seria a não conformidade da proposição com a coisa. Como se
apontássemos para uma cadeira é disséssemos: é um automóvel! Ceci nést pasune pipe!

René Magritte

Para Heidegger, a essência da verdade historicamente constituída é concordância. O


pensador alemão distingue duas maneiras de compreender a verdade assim pensada: a
medieval, centrada na ideia de Deus e a moderna, na qual a mathesis universalis possibilita
a ordenação de todos os objetos por meio da lógica, estabelecendo o ser humano como
sujeito. Heidegger refuta as duas visões e, dando um passo para trás até os pré-socráticos,
busca entrelaçar a verdade ao desvelamento e ao conceito de liberdade. Para as concepções
medieval e moderna de verdade, o erro seria a não concordância entre a proposição e o
objeto. Para Heidegger, o erro seria o esquecimento do ser e, por conseguinte, toda a
concepção metafísica da verdade, o que torna o homem um exilado sobre a Terra,
condenado a errar sobre a superfície do planeta, ao mesmo tempo em que se imagina
senhor dos entes e se torna mais uma ferramenta da técnica. A seguir, buscaremos
compreender um pouco mais detalhadamente o conceito de verdade enquanto liberdade e
o erro não como não-conformidade, mas como errância.

2.1.Liberdade e Verdade

Segundo Heidegger, a essência da verdade é liberdade. Liberdade aqui, entretanto


não tem qualquer conexão com o humanismo, no sentido de colocar o ser humano no
centro, como se os demais entes fossem apenas objetos a serem dissecados, calculados,
submetidos a uma autopsia. O homem não é o senhor do ente, o homem é o pastor do ser.
A liberdade aqui é a liberdade de deixar os entes serem, deixar que eles brilhem, mostrem-
se como são de fato no seio do aberto. A liberdade não é liberdade apenas do homem de
manusear os entes como bem entender, mas a liberdade de deixar que cada ente seja o que
é. “A liberdade se revela então como o que deixa-ser o ente.” [9]
É necessário esclarecer que o verbo deixar para Heidegger, entretanto, não tem o
sentido de renúncia, ou de negação, como quando dizemos, por exemplo: “Ah! Deixa isso
pra lá!”. O verbo deixar aqui não exprime uma indiferença ou mesmo uma omissão, é bem
o contrário disso. Deixar-ser significa o entregar-se ao ente. Todavia, este entregar-se ao
ente, jamais pode ser compreendido no âmbito de um projeto, de uma ocupação, de uma
preocupação com cada ente que se encontra ou que se procurou. Deixar-ser o ente nos
impele a uma entrega, entrega ao aberto e à sua abertura, na qual todo ente entra e
permanece, e que cada ente traz, por assim dizer, consigo. Heidegger nos conclama a um
viver poético, a um habitar que se instala na poesia, como no verso de
Holderlin:Poeticamente o homem habita esta terra. Ou como no poema de Adélia Prado,
no qual o ente trem de ferro se mostra em toda sua inteireza:
“Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,
mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,
atravessou minha vida,
virou só sentimento.”[10]
A verdade heideggeriana não é científica, mas poética. Assim compreendida a
verdade é desvelamento, em grego alethéia. Segundo Heidegger:
“Se traduzimos a palavra alethéia por “desvelamento”, em lugar de “verdade”, esta
tradução não é somente mais “literal”, mas ela compreende a indicação de repensar mais
originalmente a noção corrente de verdade como conformidade da enunciação, no sentido,
ainda incompreendido, do caráter de ser desvelado e do desvelamento do ente. O entregar-
se ao caráter de ser desvelado não quer dizer aquilo que é e como é, de tal maneira que a
adequação apresentativa dele receba a medida. Semelhante deixar-ser significa que nós nos
expomos ao ente enquanto tal e que transferimos para o aberto todo o nosso
comportamento. O deixar-ser, isto é, a liberdade é, em si mesmo, exposição do ente, isto é,
ek-sistente. A essência da liberdade, entrevista à luz da essência da verdade, aparece como
ex-posição ao ente enquanto ele tem o caráter de desvelado.” [11]
Como vimos, para Heidegger, a verdade é liberdade, não é, entretanto, o arbítrio
humano que dispõe da liberdade. A verdade não é a verdade do homem, mas do ser. O
homem não possui a liberdade como uma propriedade. É bem o contrário, a liberdade, o
ser-aí, ek-sistente e desvelador, possui o homem, e isto tão originariamente que somente
ela, a liberdade, permite ao ser humano inaugurar a relação com o ente em sua totalidade e
enquanto tal. No exato instante em que o primeiro pensador é tocado pelo desvelamento do
ente e se pergunta assustado: que é o ente? Neste instante, e apenas a partir deste instante,
o homem ek-sistente é historial.
Se a verdade é desvelamento, este se compreende a partir do velamento da não-
verdade, mas o contrário também pode acontecer, pois a liberdade é a essência da verdade.
Assim, o ser tem também a liberdade de se dissimular, de provocar o ek-sistente se
mostrando no aberto de modo distinto. A partir da dissimulação, o homem historial pode
também, deixando que o ente seja, não deixá-lo ser naquilo que ele é e assim como é. O
ente é então encoberto. Para Heidegger, o errar do homem na dissimulação do ser constitui
a errância, conceito que veremos a seguir.

2.2.Errância

A errância é o vagar do homem na ocultação do ser. Ela não é como o erro que a
tradição metafísica ocidental consolidou e que consiste na não conformidade do juízo e na
falsidade do conhecimento. Para Heidegger, este é apenas um modo, e ainda assim o mais
superficial, de errar. A errância tem origens mais profundas, ela não é subjetiva, mas
historial. Principia quando o homem resolve ignorar o mistério e decide que a totalidade do
ente é um objeto a ser conhecido e desvendado por meio do cálculo. Não há traição maior
que o esquecimento do mistério! O que se nos oculta neste momento é, justamente, o ente
em sua totalidade. Entretanto, se a verdade enquanto alethéia, ou seja desvelamento, é um
aparecer emergente que saiu do mistério, então o encobrimento também pertence à
essência da verdade historial do ser. A não-verdade original, isto é, o velamento do ente em
sua totalidade, é mais antigo do que toda a revelação de qualquer um dos entes. O que
preserva o deixar-ser nesta relação com a dissimulação é o mistério (Geheimnis), o
velamento do ente como tal é o que possibilita a relação de dissimulação com o deixar-ser
(Seinlassen). Nem mesmo o posicionamento do homem como sujeito é um erro do homem
enquanto sujeito, mas uma dissimulação do ser. Segundo Heidegger, “o desvelamento do
ente enquanto tal é, ao mesmo tempo e em si mesmo, a dissimulação do ente em sua
totalidade. É nesta simultaneidade do desvelamento e da dissimulação que se afirma a
errância. A dissimulação do que está velado e a errância pertencem à essência originária da
verdade.”[12]
Em Ser e Tempo, a existência do erro é justificada por Heidegger através da
relação ek-sistente-insistente que constitui o Dasein. O homem in-siste ek-sistindo,
entregue à frenética agitação cotidiana, correndo de um lado para outro, fugindo do
mistério e encobrindo o fato de que é finito – isto é o errar. O homem erra, move-se no
centro da errância. Ele não cai na errância num dado momento, mas erra sobre a Terra. “A
errância em cujo seio o homem se movimenta não é algo semelhante a um abismo ao longo
do qual o homem caminha e no qual cai de vez em quando. Pelocontrário, a errância
participa da constituição íntima do ser-aí à qual o homem historial está abandonado. A
errância é o espaço de jogo deste vaivém no qual a ek-sistência insistente se movimenta
constantemente, se esquece e se engana novamente.” [13]
O Dasein possui uma estrutura essencialmente ambígua, ele é ao mesmo tempo
ek-sistência e in-sistência. Esta essência dupla do Dasein explica a errância como o
caminho pelo qual a humanidade deve caminhar.
Entretanto, o homem não sucumbe no desgarramento e na errância se for capaz de
provar a errância enquanto tal e não fechar os olhos para o mistério. O mergulho na
agitação cotidiana é útil ao homem, protege-o, funciona feito um narcótico, arranca de seus
olhos o espanto e impede que o homem sinta aqui o frio de lá. O homem se entrega de bom
grado à errância para não encarar sua própria finitude, mas se “salva” no momento em que
ou forçado por um tumor, ou arrastado por alguma tragédia, ou, uns poucos, por terem
sempre os olhos inundados de interrogações coloca a pergunta essencial: que é o ente
enquanto tal em sua totalidade? Esta é uma pergunta que o cálculo não responde e a
ciência contemporânea sequer coloca, mas que habita o homem em seus abismos mais
profundos.
É o próprio abismo tornado pergunta.

Considerações finais

Vimos como tanto Heidegger quanto Deleuze tecem uma crítica contundente à
Metafísica e àquilo que Deleuze chama de imagem dogmática do pensamento e Heidegger
de imagem de mundo; para o alemão, algo característico da modernidade. Deleuze, em
consonância com Nietzsche, entende a verdade como valor, muda conforme a perspectiva e
opõe à vontade de verdade a potência do falso, cujo domínio é a criação artística. Para
Heidegger a verdade é a verdade do ser[14]. A interpretação heideggeriana sobre o ser
encontra-se no encalço da interpretação grega da verdade como Aléthea. A questão é
problematizada por Heidegger no âmbito do que poderíamos chamar de hermenêutica
ontológica, a qual investiga as palavras originárias do pensamento grego, buscando
desvelar o sentido mais profundo que elas possam ter em relação à interpretação do ser. A
reflexão hedeggeriana, assim como também acontece em Deleuze, buscará, naquilo que
alguns comentadores chamam de Heidegger segundo, uma aproximação com a obra de
Arte. Entretanto, enquanto Deleuze concebe a Arte como a mais alta potência do falso, em
Heidegger, a obra de arte é o pôr-se em obra da verdade, mas isto já é assunto para outro
estudo.

Bibliografia

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. São
Paulo: Graal, 1988.
_______________. Nietzsche e a filosofia, Trad. Ruth Joffily e Edmundo Fernandes
Dias. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.
_______________. Cinema II – A imagem tempo, Trad. Eloisa de Araujo Ribeiro. São
Paulo: Editora Brasiliense, 2013.
_______________. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1992.
DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire. Diálogos. Trad. Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo:
Escuta, 1998.
DELEUZE, Gilles e GUATARRI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Trad. Rafael
Godinho. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003.
_______________. O que é filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz.
São Paulo: Editora 34, 2010.
________________. Crítica e Clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34,
1997.
HEIDEGGER, Martin. Introdução à Metafísica. Rio de janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.
________________. Ser e Tempo (Parte I). Petrópolis: Vozes, 1988.
________________. Sobre a Essência da verdade (Coleção Os Pensadores –
Heidegger) São Paulo: Abril Cultural,1979.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Crepúsculo dos ídolos – Como filosofar com o
martelo. São Paulo: Golden Books, 2009.
[1] DELEUZE, 1976, p. 49
[2] Idem, Ibidem, p. 49
[3] NIETZSCHE, 2009, p. 48
[4] DELEUZE, 2013, p. 168
[5] Idem, Ibidem, p. 168
[6] Idem, Ibidem, p. 168
[7] Idem, Ibidem, p. 173
[8] HEIDEGGER, 1979, p.134
[9] Idem, Ibidem, p. 138
[10] Em http://www.jornaldepoesia.jor.br/ad01.html, acessado em 20 de setembro de
2014.
[11] HEIDEGGER, 1979, p.138
[12] Idem, Ibidem, p.143
[13] Idem, Ibidem, p.143
[14] O grande problema é que não sabemos que é o ser, ser não se define. Assim em
determinados momentos, ele pode carregar, ou dissimular, uma cruz suástica no ombro,
cabelo que a vaca lambeu e bigodinho fino.

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