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TORTURA E MAUS TRATOS: ANÁLISE DOS TIPOS PENAIS

PRÓPRIOS PRATICADOS POR AGENTES DO ESTADO NO SISTEMA

PENITENCIÁRIO

ANDERSON PEREIRA SANCHEZ

INTRODUÇÃO

Ao lado da corrupção, os crimes de tortura e maus-tratos praticados por agentes do


Estado contra presos dentro do sistema penitenciário é um dos temas mais propagados pela
mídia. O trabalho da imprensa com base nas fontes de informação engajadas na defesa dos
Direitos Humanos, mais especificamente na invocação dos direitos dos presos, usa os tipos
penais da tortura e dos maus-tratos como similares. No entanto, a semelhança prejudica uma
luta mais eficaz para a diminuição da violência e agressões desnecessárias cometidas por
agentes do Estado e que acontecem com certa freqüência nas cadeias do País, uma vez que o
foco é desvirtuado para questões superficiais, como fatos isolados, e a discussão acerca dos
fundamentos que sustentam essa prática é desconsiderada, pelo menos na grande mídia.
Contudo, o objetivo da pesquisa não é discutir o trabalho dos jornalistas ou de organizações
da sociedade civil e até governamentais e sim esclarecer o que são os fatos típicos tortura e
maus-tratos. Um estudo desses tipos penais irá responder se existe diferença – e, em caso
positivo, quais são as divergências especificamente – entre o crime de tortura e maus-tratos
praticados por agentes do Estado dentro do sistema penitenciário.
A obrigatoriedade do Estado e seus agentes respeitarem os Direitos Humanos é uma
tendência mundial, com raras exceções para países que estão sob regimes ditatoriais e ainda
resistem à Democracia. A Constituição Federal do Brasil é um paradigma do respeito aos
direitos do indivíduo. Contudo, já é ponto pacífico que uma das áreas mais vulneráveis ao
desrespeito aos Direitos Humanos é o sistema penitenciário e o Brasil confirma tal afirmativa.
As organizações da sociedade civil que defendem os direitos dos presos tratam do assunto
9

como se ambos os crimes próprios de agentes penitenciários fossem um só, embora existam
fatos típicos diferentes descritos na legislação penal brasileira. É nesse ponto, que o
desconhecimento – resultado de uma qualificação profissional deficiente, somado à falta de
políticas voltadas para capacitação do servidor – possibilita que esses delitos sejam
recorrentes.
O efeito é devastador tanto para os agentes quanto para os presos, como também para
a própria sociedade. Os servidores, quando descobertos na prática desses delitos, são punidos
e sofrem uma reviravolta na vida, quase insuportável para quem antes estava do lado da lei e
se torna um infrator dela. Eles são privados da liberdade e correm o risco da perda da função
pública.
Os presos sofrem física e mentalmente, uma vez que os maus-tratos vão além do
contato físico entre o agente do Estado e o custodiado, pois a negligente Administração
Pública deixa os apenados sem as assistências básicas determinadas por lei, como também os
colocam em cadeias superlotadas que aviltam qualquer ser humano. Depois, a fim de manter a
ordem, usa-se a prerrogativa da autoridade para intervir, nem sempre conforme a legislação
ordena, e cometem-se abusos dignos da Antigüidade ou das ações nazistas. Por fim, a própria
sociedade sofre as conseqüências de ver presos não recuperados retornarem ao convívio social
e praticarem novos crimes.
Faz-se mister dizer que o índice de reincidência, que fica em torno de 80% no Brasil, é
resultado de outras variáveis que vão além da prática de tortura e maus-tratos nas prisões.
Contudo, esse fator não pode ser descartado como um dos maiores causadores da revolta do
preso, uma vez que culmina em rebeliões e fugas violentas e também no não retorno ao
sistema carcerário de grande parte dos presos que consegue o benefício da liberdade
condicional ou da progressão para o regime aberto ou semi-aberto.
Por essas e outras razões, este trabalho monográfico espera contribuir para o
conhecimento jurídico dos “reais operadores” da Execução Penal acerca da prática dos crimes
de tortura e maus-tratos praticados por agentes do Estado no sistema penitenciário. Esses
operadores são primeiramente representados pelos próprios inspetores de segurança
penitenciária, que são os agentes destes tipos delituosos. Eles poderão ser os principais
agentes de uma mudança cultural deste tipo de tratamento desumano praticado dentro do
sistema penitenciário, desde que sejam capacitados e incentivados para isso.
10

CAPÍTULO 1 – HISTÓRIA DA TORTURA E DOS MAUS-TRATOS

Antes de entrar na discussão propriamente jurídica, é necessário contextualizar a


prática da tortura e dos maus-tratos, hoje considerados como crimes, no decorrer da história.
A tendência recente da abolição dessas práticas contra pessoas custodiadas pelo Estado, que
teve início no século das luzes e ganhou força após as duas grandes guerras do século
passado, tem sido incentivada pelas diversas autoridades, como também por formadores de
opinião nos mais variados países pelo mundo.
Assim, uma visualização das práticas de tortura e dos maus-tratos por todo o mundo
vai colaborar com o estudo detalhado acerca desses delitos cometidos aqui no Brasil, e mais
especificamente no Estado do Rio de Janeiro, que protagonizou casos paradigmáticos nos
últimos anos.

1.1 ANTIGUIDADE: OS TIPOS DE TORTURA E AS PENAS

Punições existem desde que o homem começou a se organizar em grupos com o


intuito de disciplinar os infratores das normas na vida coletiva, mas não se tinha idéia de
prisões no Período Primitivo. A palavra “pena”, que tem origem no grego penos, sinônimo de
castigo, dor e suplício, sugere que o criminoso deve sofrer para pagar sua “dívida” com a
11

sociedade1. Na Idade Média, essa lógica é bem aplicada com penas como a marca a ferro
quente, chicoteamento, esquartejamento, enforcamento e a guilhotina2. A punição nos tempos
mais remotos consistia na reparação de danos e os instrumentos usados eram o pagamento
pecuniário ou através da simples vingança3. No entanto, a famosa Lei de Talião4 não significa
vingança proporcional ao crime e sim pena igual à ofensa. A referida legislação não tinha
como propósito vingar o mal, mas cumprir com exatidão a justiça; não devia ser vingança
pessoal, mas justiça pública; e exceto em caso de assassinato, a lei possibilitava ao ofensor
indenizar com pagamento monetário5.
Não existia pena de privação de liberdade ligada à sanção penal. O encarceramento
consistia em aguardar o julgamento. Os locais usados para tal fim eram os calabouços, torres,
conventos desabitados, castelos e palácios em ruínas6. Existiam também as masmorras e os
cárceres canônicos onde os homens eram colocados para ser redimidos e outros ficavam
voluntariamente para alcançar santidade7. Entre os séculos IV e VI, a Igreja Apostólica
Católica Romana, impôs um sistema disciplinar para governar seu povo. Entres os fiéis existia
uma grande quantidade de bárbaros e foi introduzida uma série de punições rígidas para atos
imorais para torná-los civilizados e instruídos na vida cristã. Havia flagelações, peregrinações,
confissões públicas, jejuns e orações como penitências para ofensas menores que poderiam
chegar até a excomunhão no caso de uma falta grave. Os sacerdotes tinham livros com
penitências para cada um dos mais variados pecados, que uma vez cumpridos, serviam como
prova de arrependimento. Com o passar do tempo, a disciplina se desenvolveu até se tornar
em um verdadeiro sistema8.
De acordo com o promotor de justiça e professor de Direito Penal, Marcos Ramayana,
antes mesmo de ser considerado um delito, a tortura espelhava uma forma institucionalizada
de produção de provas. Nos séculos XII e XIII, o sistema de provas irracionais consistia em

1
FERREIRA, Edson Raimundo. Prisões, presos, agentes de segurança penitenciária, direitos humanos. S/L:
Edições Loyola, S/D. p. 20.
2
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. História da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1975. p. 14-16.
3
FERREIRA, op. cit., p. 20.
4
MONTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo: Martin Claret, 2003. p. 105. A lei das Doze Tábuas
“condenava à pena de talião (apenas) quando não podia apaziguar o queixoso; era, permitido, depois da
condenação, pagar as perdas e danos, convertendo a pena corporal em pecuniária”.
5
HOOF, Paul. O Pentateuco. Flórida, EUA: Vida, 1995. p. 182.
6
FERREIRA, op. cit.. p. 19.
7
MARTINS, Lígia Márcia. Psicologia em estabelecimentos penais. São Paulo: Edipro, 1997. p. 24. Esses eram
conhecidos como os penitenciais. Existiam também os que eram enviados por um juiz ou tribunal eclesiástico
para fazer penitências e não reincidirem, destes foram inspirados os penitenciários. FERREIRA, op.cit., p. 51. A
penitência consistia no encarceramento na cela, originando a chamada prisão celular. Estudiosos cristãos criam
o Código de Direito Canônico (síntese da moral cristã e do direito romano) e depois do fim do Império Romano
do Ocidente, o Império Bizantino sob Justiniano cria o Corpus Júris Civilis (atualização do direito romano).
8
NICHOLS, Robert Hastings. História da Igreja Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 1997. p. 52 e 115.
12

os julgadores invocar deuses para fazer justiça. Eles podiam adotar a vontade sobrenatural
para os julgamentos9.
As idéias iluministas e uma conjuntura político-sócio-econômica impõem uma
mudança no sistema punitivo e as transformações sociais alteram a organização do crime e a
forma de repressão dos delitos. A criminalidade de massa se transforma em criminalidade de
bordas e margens e que exigem punição mais branda. O criminoso sanguinário torna-se
fraudulento em conseqüência do desenvolvimento da produção, do aumento das riquezas, de
uma valorização jurídica e moral das propriedades. O aumento geral da riqueza e o grande
crescimento demográfico transferem o alvo principal dos direitos para os bens. A reforma
punitiva tem como objetivo não igualar, mas aumentar seus efeitos de maneira a diminuir
custos político-econômicos e melhor distribuir em toda parte a punição. Segundo o filósofo
Michel Foucault, esta mudança pode ser classificada como uma “nova economia do poder de
castigar” que insere na sociedade o poder de punir10. As prisões surgem para controlar os
crimes no novo contexto oriundo das transformações sociais11. Paralelamente, os ideais do
Iluminismo de “Liberdade, Fraternidade, Igualdade” tornam o aparelho punitivo mais
humano.
A pena de privação de liberdade originalmente é composta da função técnica de
correção. A pena de prisão foi considerada um avanço na história das punições. Existiam
também os que eram enviados por um juiz ou tribunal eclesiástico para fazer penitências e não
reincidirem, destes foram inspirados os penitenciários. A penitência consistia no
encarceramento na cela, originando a chamada prisão celular. Mais adiante, o sistema
pensilvânico ou de Filadélfia, também conhecido como celular, surgiu em 1790, na Walnut
Street Jail, prisão situada na Rua Walnut, conhecida pela incidência de criminosos. O preso
era recolhido à cela e isolado dos demais presidiários não podia trabalhar ou receber visitas. A
leitura da Bíblia era uma forma de estimulá-lo ao arrependimento. O regime celular depois
passou para a Eastern Penitenciary que teve como destaque a arquitetura desenvolvida por
Edward Haviland. O sistema foi bastante criticado por impossibilitar a ressocialização do
apenado por causa do completo isolamento12.
Então surge o sistema auburniano ou silent system em 1818, na penitenciária
construída na cidade de Auburn, em Nova York. O regime permitia o trabalho dos presos na

9
RAMAYANA, Marcos. Abuso de autoridade e tortura: leis 4.898 e 9.455 comentadas. Rio de Janeiro:
Destaque, 2003. p. 129.
10
FOUCAULT, op. cit., pp. 68-70.
11
FERREIRA, op. cit., p. 20.
12
PIMENTEL, Manoel Pedro. O crime e a pena na atualidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983. In:
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006. p. 530.
13

própria cela e, posteriormente, em grupos. Era imposto o silêncio absoluto e o condenado era
isolado apenas no período noturno. O sistema também foi criticado por impedir a
comunicação dos presos, que logo criaram códigos com as mãos e sinais com batidas nas
paredes ou canos de água13.

No início do século XIX, surge o sistema progressivo na Inglaterra e que foi também
adotado logo após na Irlanda. O diretor de um presídio do condado de Narwich, na ilha de
Norfolk na Austrália, Alexander Maconochie, capitão da Marinha Real, impressionado com o
tratamento desumano dos presos degredados para a Austrália criou um sistema que tinha três
estágios. O primeiro ficou conhecido como período de prova, onde o preso ficava isolado
como no sistema pensilvânico. O preso depois conseguia a permissão para o trabalho comum,
mas com silêncio absoluto e isolamento noturno igual ao sistema auburniano. Por fim, era
concedido o livramento condicional do apenado14. O sistema progressivo irlandês acrescentou
mais um estágio entre o segundo e o terceiro de Maconochie. A prisão intermédia
(penitenciária industrial ou agrícola) consistia na vida em comum entre os presos durante o
dia e a noite para demonstrar os resultados dos regimes anteriores e preparação para o
próximo passo: a vida em sociedade de forma condicional15.
As condições de processamento das penas são humanizadas tendo um passo
importante a partir do século XIX16. A prisão se torna a principal forma de punição para
indivíduos e se espalha pelo mundo. O Brasil importa da Europa modelos prontos de prisões.
A Justiça passa a exercer o papel de controle. No Império, Dom Pedro II estimula a vinda de
europeus no período anterior à libertação dos escravos em uma tentativa de
embranquecimento da população. “Negros e trabalhadores pobres passam a constituir os
grupos mais perigosos, sendo alvo das prisões e sem os mesmos direitos dos recém-
chegados”17. A pena de morte é abolida em 1890 com o surgimento do regime penitenciário
na República e a prisão tem como finalidade ressocializar e reeducar o detento18.
Contudo, na Primeira Guerra Mundial, prisioneiros políticos sofrem ainda atrocidades
com contornos epidêmicos. Métodos da Antiguidade foram reaplicados pelo poder totalitário.
A tortura é praticada com diversos fins, sendo as finalidades principais a punitiva e a

13
Ibid., p. 531.
14
Ibid., p. 531.
15
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006. p. 532.
16
MARTINS, op. cit. pp. 26-27.
17
FERREIRA, op. cit., p. 21.
18
FERREIRA, op. cit., p. 20.
14

probatória. A finalidade probatória ou processual tem como intento obter a confissão do


acusado. A punitiva ou penal será estudada no decorrer deste trabalho. Entretanto, segundo o
biblioteconomista e técnico em documentação Glauco Mattoso, existem mais duas finalidades
que são desconsideradas por outros autores: a intimidação ou o terror, que teria uma
motivação condicionada a outros objetivos e o sadismo ou tortura sexual que também seria
desprezada por se tratar de algo sistemático e utilitário19.
As principais escolas de tortura do século passado foram a soviética, a francesa, a
americana, a inglesa e a alemã. Esta última ganhou enorme destaque sob o nazismo, período
em que atrocidades cometidas contra pessoas custodiadas pelo Estado aterrorizaram e
estarreceram milhões de pessoas em todo mundo durante a Segunda Grande Guerra, graças à
Gestapo e aos campos de concentração, onde muitos prisioneiros de guerra foram
exterminados ou foram usados como cobaias para “experiências científicas”20.
Embora este período histórico tenha sido o ponto zero para o engajamento da
sociedade civil contra a prática desumana da tortura e dos maus-tratos, esta tendência já havia
começado no “Tempo das Luzes”. Durante algum tempo, a França e o Brasil importaram as
técnicas alemãs. A primeira contra os colonizados argelinos e o segundo no Estado Novo.
Apesar de serem as maiores vítimas na Última Grande Guerra, os judeus também
praticaram a tortura em outros tempos. O sistema torcionário hebreu era essencialmente
punitivo. Basta ler o livro mais lido de todos os tempos para se convencer dessa afirmação. A
Bíblia mostra as penas de morte por “apedrejamento” ou “lapidação”, “cremação”, punições
como flagelações por chicotadas, etc. As leis rabínicas também previam o estrangulamento e a
decapitação21.

1.2 SEGUNDA GUERRA MUNDIAL: TORTURA EM NOME DA CIÊNCIA

Nos tempos modernos, Adolf Hitler é o maior referencial das atrocidades cometidas
contra prisioneiros. A “biopolítica” alemã – que via o líder como o médico que trataria o

19
MATTOSO, Glauco. O que é tortura. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 31. O autor conseguiu realizar uma
pesquisa variada, porém bem detalhada sobre a matéria. Também como muito bom humor, transmite
informações relevantes sobre um tema penoso sem se deixar contaminar pela dramaticidade do assunto.
Mattoso, que trabalha numa enciclopédia sobre tortura, conseguiu num pequeno livro contextualizar O que é
tortura com um apanhado histórico, geográfico, artístico e filosófico, porém de forma resumida.
20
MATTOSO, op. cit., pp. 50-51.
21
Ibid., p. 38.
15

paciente, o povo alemão, da doença que era representada pelo judeu22 – causou traumas que
provocariam no mundo um desejo de evitar que tal cenário voltasse a acontecer. Como alude
o historiador e jornalista John Cornwell, “os judeus eram não só uma invasão parasítica do
corpo hospedeiro da germanidade, mas também responsáveis, dizia-se, por epidemias no
Leste, que de fato exigiam isolamento e quarentena”. Ainda segundo o autor de Os cientistas
de Hitler: ciência, guerra e o pacto com o demônio, tal afirmação era um eufemismo
degenerado para os guetos e os campos23. Já Paul Johnson, outro jornalista e historiador,
afirma que integrantes do Partido Nacional Socialistas dos Trabalhadores (Nazi) fizeram do
anti-semitismo o centro e o fim do programa24.
A biopolítica de Hitler suspendeu seletivamente o império da lei e manchou quase
todas as áreas da ciência, da tecnologia, da medicina e da indústria com brutalidade, trabalho
escravo, experiências com seres humanos sem consentimento, tortura e assassinato brutal25.
Alternativas foram criadas para evitar o envolvimento pessoal entre os assassinos e
assassinados. O uso de dinamites foi desastroso e a utilização de câmaras de gás móveis
instaladas em caminhões foi introduzida. Além dessas operações móveis de extermínio,
acrescentaram-se centros fixos.
Segundo Paul Johnson, o termo “campo de extermínio” é enganoso para designar cada
um dos seis centros que foram construídos em Chelmno e Auschwitz, territórios poloneses
incorporados à Alemanha, e Treblinka, Sobibor, Majdanek e Belzec na própria Polônia. O
historiador explica que existiram 1.634 campos de concentração e seus satélites e mais de 900
campos de trabalho. Todos eles eram campos de extermínio porque um imenso número de
judeus morria por falta de comida, excesso de trabalho, fuzilamento por transgressões banais
ou sem motivo algum, sendo que nos seis principais centros os assassinatos ocorriam em
escala industrial26.
O Holocausto, conforme ficou conhecido o massacre de judeus na Segunda Guerra
Mundial, trouxe uma unanimidade na sociedade internacional: a necessidade do julgamento e
a condenação dos culpados por tais atrocidades. A biopolítica de Hitler e seguidores foram
para o banco dos réus a partir do dia 20 de novembro de 1945, em Nuremberg. Dos 22
acusados, apenas três foram absolvidos quando foi lida a sentença no dia 1º de outubro de
1946. Doze dos réus foram condenados à morte, três à prisão perpétua e quatro a penas

22
CORNWELL, John. Os cientistas de Hitler. Ciência, Guerra e o pacto com o demônio. Rio de Janeiro: Imago,
2003. p. 34.
23
Ibid., p. 34.
24
JOHNSON, Paul. História dos Judeus. Rio de Janeiro: Imago, 1995. p. 494.
25
CORNWELL, op. cit., p. 23.
26
JOHNSON, op. cit., p. 520.
16

privativas de liberdade. Houve mais 12 julgamentos importantes de criminosos de posição


elevada na hierarquia de Hitler e 177 outros nazistas também foram condenados: doze deles
receberam a pena capital, 25 à perpétua e o restante foi sentenciado a passar um longo período
na cadeia. Vários outros julgamentos se seguiram e entre 1945 e 1951, foram condenados
5.025 nazistas, sendo 806 à pena de morte. Contudo, apenas 486 efetivamente receberam a
pena capital.
A Comissão das Nações Unidas para Crimes de Guerra preparou uma lista de 35.529
nomes que incluíam até japoneses na prática de barbaridades contra os judeus. Nos três
primeiros anos após o fim da guerra, mais julgamentos aconteceram em oito países Aliados e
em outras nações que estiveram envolvidos no conflito mundial. Foram mais de 150.000
acusados e mais de 100.000 condenados27.

1.3 CONTRIBUIÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS: DIREITOS HUMANOS

A Organização das Nações Unidas (ONU) nasceu oficialmente em 24 de outubro de


1945, quando a Carta foi ratificada pelos 51 países membros com o objetivo de unir todas as
nações em prol da paz e do desenvolvimento, com base nos princípios de justiça, dignidade
humana e bem-estar de todos28. Apesar do fracasso da Sociedade das Nações, antecessora da
ONU, que reuniu até 57 Países Membros após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) com o
fim de manter a paz mundial, em plena devastação da Segunda Grande Guerra, Estados
Unidos, União Soviética, Reino Unido e China, sob forte pressão da imprensa e do público,
elaboraram, em 1944, o projeto de uma organização em Dubarton Oaks, em Washington, com
base nos ideais da Sociedade das Nações29.
O primeiro ponto da Carta das Nações Unidas é sobre o “flagelo da guerra” e o
segundo acerca dos “direitos fundamentais do homem”. Segundo a ONU, a violação de
direitos humanos é a causa de conflitos. O primeiro grande esforço do programa de direitos
humanos da ONU foi a redação da Declaração Universal dos Direitos Humanos30. Elaborada
em 1948, as normas visam defender o cidadão da violência e, embora não tenham caráter

27
JOHNSON, op. cit., pp. 540 e 541.
28
ONU. Material educativo sobre as Nações Unidas para professores. Reino Unido: Pearson Publishing, 1996.
p. 12.
29
Ibid., p. 13.
30
ANISTA INTERNACIONAL. Combatendo a tortura: manual de ação. Londres, Reino Unido: Amnesty
International Publications, 2003. p. 6.
17

legislativo, funcionam como uma norma de conduta. Com o passar dos anos, várias
organizações intergovernamentais regionais como a União Africana, o Conselho da Europa e
a Organização dos Estados Americanos adotaram os princípios normativos da Declaração31.
Vários países signatários dos pactos assinados com base na Declaração já incorporaram os
seus princípios na legislação nacional32. O Brasil é um desses países.
O artigo 5 da Declaração Universal dos Direitos Humanos diz que “ninguém deve ser
submetido a tortura ou a outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”. O consenso
de que todos tinham o direito de não serem torturados ou submetidos a tratamentos cruéis ou
degradantes entre os Estados foi estendido em 1966. O primeiro acordo entre nações após a
Declaração foi o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos que destacou, no artigo
4, que tal direito jamais poderia ser reduzido, mesmo “em situações excepcionais que
ameacem a vida da nação”33.
Neste contexto, a Lei de Execuções Penais surge em vários países depois da 2ª Guerra
Mundial. A ONU elabora as Regras Mínimas para Tratamento ao Recluso, salientando o
caráter social do serviço penitenciário, determinando que sejam seguras, disciplinadas, mas
principalmente humanizadas34. A barbárie nazista reforça uma tendência que já surgira no
final do século XVIII. Um dos primeiros homens35 a expor suas idéias humanistas no Direito
Penal é Cesare Beccaría. A sua obra Dos delitos e das penas36 é um clássico na luta pelos
direitos humanos na Execução Penal e no que diz respeito à individualização das penas.

31
Ibid., p. 6.
32
ONU, op. cit., p. 15.
33
ANISTIA INTERNACIONAL, op. cit., p. 5.
34
FERREIRA, op. cit., p. 21.
35
Secretaria de Estado de Administração Penitenciária. Rio de Janeiro. 04 abr. 2005. Disponível em
http://www.seap.rj.gov.br/. Acesso em: 04 abr. 2005.
36
BECCARÍA, Cesare Bonesana. Dos delitos e das penas. Rio de Janeiro: Editora Rio, 2002.
18

CAPÍTULO 2 – TORTURA NOS REGIMES DE EXCEÇÃO

O Brasil também teve o seu período traumático. A História do Brasil está repleta de
golpes militares, desde o Império à República. A história nacional mostra que a atitude das
Forças Armadas de se intrometer na política nacional ocorre desde a implementação da
República37.
O último Regime Militar foi traumático para a sociedade brasileira. Arbitrariedades e
o desrespeito à tendência mundial da aplicação dos Direitos Humanos foram intensificados
nas décadas de 60 e 70 no País. A censura e crimes covardes foram intensificados e serviram
de base para uma mudança do quadro político nacional.
Neste período, a tortura foi empregada como método de obtenção de confissão ou
delações. Os três principais centros de tortura no Brasil, que utilizou vários métodos foram o
Departamento de Operações e Informações –– Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-
CODI) do Exército, o Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (CISA) e o Centro
de Informações da Marinha (CENIMAR). No então Estado da Guanabara, Rio de Janeiro,
vários torturadores da Polícia do Exército simulavam aulas práticas. Os “professores”
projetavam, na sala de aula, slides sobre diferentes tipos de tortura e alguns presos
participavam como cobaias. Segundo Paulo Juricic, dessa modalidade, mais de cem sargentos
tomavam parte, tendo como professor um oficial da Polícia do Exército, o Tenente Airton38.
Mas não parou por aí. A aprendizagem dos métodos de tortura ampliou-se, tornando-se
internacional. Oficiais foram à cidade de Fort Benning, mais precisamente na fronteira dos

37
SANCHEZ, Anderson Pereira. Rebelião na Casa de Custódia em Benfica: Análise da apuração jornalística.
Monografia para conclusão do curso de Comunicação Social da Universidade Estácio de Sá. Junho de 2005. p.
8.
38
JURICIC, Paulo. Crime de Tortura. Editora Juarez de Oliveira. In: RAMAYANA, Marcos. Abuso de
autoridade e tortura: leis 4.898 e 9.455 comentadas. Rio de Janeiro: Destaque, 2003. p. 130.
19

Estados da Geórgia e do Alabama, nos Estados Unidos, tomar lições de tortura na School of
the Americas.
Segundo reportagem da revista Isto É, o Brasil ainda mantém o intercâmbio com a
Escola e continua enviando militares para o Instituto do Hemisfério Ocidental para
Cooperação em Segurança, nome atual da que foi conhecida como “Escola de Assassinos”.
Ainda segundo a matéria, o Pentágono divulgou, em 1996, que a Instituição elaborou
um manual de tortura que orientava como tratar prisioneiros das formas mais violentas
possíveis. O jornal The New York Times chegou a publicar um editorial histórico sob o título
“Escola de ditadores”39.

2.1 A LEI DE SEGURANÇA NACIONAL COMO FONTE DE OPRESSÃO NA


DITADURA MILITAR

No último período ditatorial vivido pela nação brasileira, quando um golpe militar
colocou o chefe da Revolução, o General Humberto de Alencar Castelo Branco, na
presidência da República do Brasil40, a Lei de Segurança Nacional (LSN), cuja função é
proteger a soberania da Nação, pois tornou-se instrumento poderoso para a manutenção do
poder político41. A escolha do presidente passou a ser considerada questão de segurança
nacional a partir de 196442 e por força do Ato Institucional Nº 1, do dia 9 de abril, concedeu-
se todos os poderes ao Alto Comando Militar que determinaria quem vai seria o presidente da
República Federativa do Brasil43.

O Ato Institucional Nº 5, editado em 13 de dezembro de 1968, permitiu-se ao Governo


confiscar bens em caso de enriquecimento ilícito e suspender a concessão de Hábeas Corpus
no caso de infração da Lei de Segurança Nacional44. O golpe militar deu início ao período de
exceção que legislou com a Constituição de 1967 e por emendas constitucionais, atos

39
FILHO, Francisco Alves. O Brasil na academia da repressão. Isto É Online. Disponível em
http://www.terra.com.br/istoe/edicoes/2003/artigo75439-1.htm. Acesso em: 24 mar. 2008
40
FERREIRA, Olavo. História do Brasil. Ática: São Paulo, 1981. pp. 318; 340-346.
41
SANCHEZ, op. cit., p. 10.
42
ALENCAR, Chico; CARPI, Ribeiro; VENICIO, Marcus. História da Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro:
Ao Livro Técnico, 1996. p. 397.
43
FERREIRA, op. cit., pp. 347.
44
ALENCAR, op. cit., p. 398.
20

institucionais, atos complementares, leis complementares e outros atos legislativos que


regularam a matéria sobre segurança nacional45.
Após anos de perseguições, prisões arbitrárias e tortura, um corpo enforcado, com um
cinto em volta do pescoço, foi encontrado nas dependências do 2º Exército em São Paulo. No
dia seguinte, 26 de outubro de 1975, o comando do Departamento de Operações de
Informações e Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) divulgou uma nota oficial
e informou que o jornalista Vladimir Herzog cometeu suicídio. A versão oficial gerou
desconfiança em toda a sociedade46. Vladimir Herzog tinha 38 anos, era casado, pai de dois
filhos e dirigia o jornalismo da TV Cultura de São Paulo. Soube-se depois que o DOI-CODI,
órgão de repressão da Ditadura Militar, monitorava os passos do jornalista há vários dias47.

2.2 REDEMOCRATIZAÇÃO: CONSTITUIÇÃO CIDADÃ

Uma missa ecumênica em homenagem a Vladimir Hezog foi realizada oito dias depois
de sua morte e contou com a adesão em massa da população. Mais de oito mil pessoas
participaram do evento organizado pelo bispo Dom Paulo Evaristo Arns, pelo reverendo
James Wright e pelo rabino Henri Sobel, todos chefes respectivos de suas congregações
religiosas em São Paulo. O assassinato de Vladimir Herzog foi o fato que detonou o processo
de abertura política no País. O caso do jornalista Herzog foi marcante, mas foi apenas um
dentre as milhares de prisões provocadas por um governo autoritário e repressor das idéias e
dos direitos individuais48.
A imprensa, em conjunto com atos públicos e manifestos da população, intensificou a
luta em favor da redemocratização na política nacional em 1978. O general João Batista
Figueiredo, ex-chefe do SNI, eleito neste ano, possibilitou a extinção dos atos institucionais e
a Lei da Anistia foi decretada no ano seguinte49. A Lei Nº 6.683 concedia anistia a todos

45
ALENCAR, Ana Valderez Ayres Neves de. Segurança Nacional. Lei nº 6.620/78 – antecedentes, anotações,
histórico. Brasília, Senado Federal, 1980. p. 68.
46
“Três anos depois, no dia 27 de outubro de 1978, o processo movido pela família do jornalista, trouxe à tona a
verdade sobre a morte de Vladimir Herzog. A União foi responsabilizada pelas torturas e pela morte do
jornalista, naquele que foi o primeiro processo vitorioso movido por familiares de uma vítima do regime militar
contra o Estado”. (Saiba mais sobre o jornalista Vladimir Herzog. In: Agência Brasil. Disponível em
http://www.radiobras.gov.br. Acesso em: 28 out. 2004).
47
Observatório da Imprensa, 2004. TV Educativa em 26 de outubro de 2004.
48
SANCHEZ, op. cit., p. 8.
49
ALENCAR, op. cit., p. 404.
21

aqueles que haviam cometido crimes políticos no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de


agosto de 1979. O projeto do governo excluía os condenados por crime de terrorismo, assalto,
seqüestro e atentado pessoal. A lei foi votada no Congresso no dia 22 de abril e ratificada pelo
presidente no dia 28. Duas mil e duzentas pessoas foram imediatamente beneficiadas, entre
elas Fernando Gabeira, Leonel Brizola e Luís Carlos Prestes50.
O processo de redemocratização por meio da eleição de um civil no início dos anos 80
foi inevitável. E depois de uma eleição indireta, o Estado Democrático e de Direito surgiu
com a intenção de possibilitar igualdade entre as pessoas num país mais justo e de acordo com
a tendência universal de respeito aos Direitos Humanos.
A redemocratização avançava lentamente. Em 1983, o deputado Dante de Oliveira
apresenta uma proposta de Emenda Constitucional ao Congresso Nacional que restabeleceria
as eleições diretas para presidente da República. Depois da derrota das “Diretas Já!”, os
políticos da oposição se organizaram para eleger Tancredo Neves. A eleição, mesmo que
indireta, gerou grande expectativa ao povo brasileiro, pois a promessa da volta da democracia
estarva sendo depositada na eleição do primeiro presidente civil depois da implantação da
Ditadura Militar. No dia 15 de janeiro de 1985, a Aliança Democrática venceu a disputa.
Apesar da fatalidade com o presidente eleito, que não pôde assumir a presidência da república
no dia 15 de março, pois na véspera da posse, Tancredo foi internado e depois de sete
operações veio a falecer no dia 21 de abril por causa de uma infecção generalizada, o vice-
presidente eleito, José Sarney, assumiu a presidência e encaminhou a volta da democracia
através de uma nova Constituição Federal51.
A saída dos militares da frente e dos bastidores da política possibilitou à sociedade
brasileira repensar52 a organização do Estado brasileiro. As eleições para a Assembléia
Legislativa que iria redigir a nova Constituição aconteceram em 15 de novembro de 1986. A
Assembléia Constituinte começou os trabalhos em 1º de fevereiro de 1987 e em outubro de
1988 a Constituição Federal era promulgada53.
A oitava constituição brasileira foi essencial para o processo de democratização no
País. Os direitos políticos baseados na soberania popular consistiam no princípio
constitucional de que todo poder emana do povo e é exercido através de representantes eleitos

50
MEMÓRIA GLOBO. Jornal Nacional: a notícia faz história. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2004. pp. 99-100.
51
Ibid., p. 172.
52
“O fim do regime militar havia tornado necessários o reordenamento jurídico do país e a feitura de uma nova
constituição. A carta em vigor, de 1967, acrescida do emendão de 1969 e outras alterações impostas pela
ditadura, era a forma acabada do ‘entulho autoritário’. Havia um consenso de que este velho ordenamento
jurídico-político-insitucional precisava ser removido” (ALENCAR, op. cit., p. 431).
53
Ibid., p. 433.
22

diretamente. Os princípios fundamentais como o Estado Democrático de Direito também


permitiam ao povo participar politicamente da formação do Governo e limitar juridicamente o
poder do próprio Governo, tendo este que cumprir as leis a que todos se subordinam54. A
Carta Magna foi chamada pelo presidente do congresso, o deputado Ulisses Guimarães55, de
“Constituição Cidadã”56.
A redemocratização brasileira provocou uma Carta Constitucional voltada para os
Direitos Humanos. O inciso III do art. 5º fez referência ao crime de tortura. Na verdade, foi
uma transcrição do art. 7º do Pacto dos Direitos Civis e Políticos da ONU, aprovado em 1966,
o qual influenciou a legislação brasileira, mas só passou a fazer parte do ordenamento jurídico
brasileiro quando promulgado, em abril de 199257.
É importante lembrar, que apesar da influência global, o Direito Internacional não
prevalece acima da legislação nacional, mas a emenda nº 45/2004, que acrescentou o §3º ao
art. 5º, pelo qual “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem
aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos
dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”58. A tendência
mundial acaba por influenciar os legisladores brasileiros e o Estado Constitucional de Direito,
que tem na Carta Magna o principal orientador à manutenção da sociedade ao eleger valores
indispensáveis como também empreender uma concepção garantista ao Direito Penal59,
acatou a emenda.

2.3 MODELO GARANTISTA DO DIREITO PENAL TAMBÉM PARA PRESOS

O Direito Penal, classificado como objetivo por Rogério Greco, é o conjunto de


normas editadas pelo Estado que define crimes e contravenções. Segundo este conceito, o
Estado impõe ou proíbe determinadas condutas sob iminência de sanção ou medida de

54
COTRIM, Gilberto. História do Brasil para uma geração consciente. São Paulo, Editora Saraiva, 1991. pp.
207; 210.
55
O deputado Ulisses Guimarães, presidente do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB),
também foi chamado de o “Senhor Diretas” por sua efetiva participação para a aprovação da emenda
constitucional Dante de Oliveira (Ibidem: 426).
56
ALENCAR, op. cit., p. 433.
57
JUSTIÇA GLOBAL. Direitos Humanos no Brasil 2003. Relatório Anual do Centro de Justiça Global. Rio de
Janeiro: Justiça Global, 2004. p. 36.
58
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006. p. 91.
59
Ibid., p. 7.
23

segurança60. Ele tem por finalidade proteger os bens mais importantes e necessários à
sobrevivência da sociedade61, e os valores defendidos pela Constituição como a liberdade, a
igualdade e a justiça devem servir de norte para a seleção de bens tidos como fundamentais62.
O princípio da legalidade é o fundamento de todo o Direito Penal. Rogério Greco usa
os ensinamentos de Norberto Bobbio para esclarecer a hierarquia das normas que devem
servir de guia para aplicação correta do Direito. De acordo com Bobbio, as normas de um
ordenamento não estão num mesmo plano. Existe uma norma suprema, que não depende de
nenhuma outra norma superior63. É nesta hierarquia existente no Estado Constitucional de
Direito que Luigi Ferrajoli busca os fundamentos do modelo garantista. Neste rumo, a
Constituição garante uma série de direitos fundamentais que não podem ser suprimidos por
normas infraconstitucionais. Segundo este modelo, a Constituição protege o cidadão da
“arrogância e prepotência do Estado”64.
Greco também cita Salo de Carvalho para reforçar a importância da teoria do
garantismo penal num Estado Constitucional de Direito. Para Carvalho, o garantismo penal
estabelece “critérios de racionalidade e civilidade à intervenção penal, deslegitimando
qualquer modelo de controle social maniqueísta que coloca a ‘defesa social’ acima dos
direitos e garantias individuais”65.
A teoria de Ferrajoli é composta por dez axiomas. A primeira máxima diz que a
aplicação da pena só será possível quando houver a prática de determinada infração penal –
nulla poena sine crimine –, que deverá estar prevista na lei expressamente – nullum crimen
sine lege. A lei penal, por sua vez, só poderá impor ou proibir comportamentos sob ameaça de
sanção se houver necessidade de tutelar bens tidos como fundamentais ao convívio em
sociedade – nulla lex (poenalis) sine necessitate. As condutas tipificadas devem ultrapassar a
pessoa do agente, ou seja, não deve se restringir à esfera da intimidade ou ao particular modo
de ser – nulla necessitas sine injuria –, que devem ser exteriorizados mediante uma ação –
nulla injuria sine actione – e que seja culpável – nulla actio sine culpa. Os outros axiomas
são referentes a um sistema nitidamente acusatório, que exige a presença de um juiz imparcial
e competente para julgar a causa – nulla culpa sine judicio –, e que não se confunda com o

60
Ibid.. p. 9.
61
GRECO, op. cit., p. 4.
62
Ibid., p. 7.
63
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: Editora UnB, 1982. In: GRECO, Rogério.
Curso de Direito Penal: Parte Geral. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006. p. 11.
64
GRECO, op. cit., p. 12.
65
CARVALHO, Salo de; CARVALHO, Amilton Bueno de. Aplicação da pena e garantismo. Rio de Janeiro:
Lúmen Juris, 2001. In: GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Impetus,
2006. p. 13.
24

órgão de acusação – nullum judicium sine accusatione. Este órgão tem o ônus probatório –
nulla accusatio sine probatione –, devendo ser-lhe assegurada a ampla defesa, com todos
recursos inerentes – nulla probatio sine defensione66.
E para obedecer essa concepção garantiste deve-se interpretar a lei sempre buscando o
efetivo alcance da norma. Para isso, o juiz de primeiro grau e, em última instância, os
ministros dos tribunais deverão procurar aquilo que ela tem a dizer com a maior precisão
possível67. Existem várias formas de interpretação e, segundo Greco68, numa primeira
abordagem ela pode ser subdividida em objetiva (voluntas legis) e subjetiva (voluntas
legislatoris). A primeira busca a vontade da lei e a segunda a vontade do legislador. A
interpretação ainda pode ser também orientada pelo órgão (sujeito) de que procede, pelos
meios que são utilizados para alcançá-la e pelos resultados obtidos.
Quanto ao sujeito, a interpretação pode ser autêntica, doutrinária ou judicial
(vinculante ou não-vinculante). A interpretação autêntica é realizada pelo próprio texto legal.
Para evitar qualquer dúvida, o próprio texto esclarece aquele assunto conforme uma
interpretação conveniente. Este tipo de interpretação pode ser contextual, que é realizado no
mesmo momento em que é editada a lei. A interpretação autêntica também pode ser posterior.
Isto quer dizer que é realizada por uma lei depois da edição de uma legislação anterior. A
interpretação ainda referente ao sujeito pode ser doutrinária quando realizada pelos estudiosos
do Direito ou judicial quando realizada pelos aplicadores do Direito, os juízes de primeiro
grau ou ministros dos tribunais. Esta interpretação também é chamada de jurisprudencial e só
pode ser considerada quando está num processo judicial, isto é, quando a lei é aplicada num
caso concreto. As súmulas traduzem as reiteradas decisões de um tribunal sobre determinado
assunto e depois da aprovação da emenda constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, que
acrescentou o art. 103-A e §§ a interpretação jurisprudencial subdivide-se em vinculante e
não-vinculante. Somente o Supremo Tribunal Federal é que poderá editar súmulas com efeito
vinculante para orientar as atuações dos juízes de primeira instância e os demais tribunais. E
para isso, dois terços dos ministros, ou seja, oito deles terão que aprová-la.
Quanto aos meios empregados para interpretação da lei existem quatro. O primeiro é o
literal ou gramatical, no qual o exegeta procura saber o real significado das palavras. A
segunda interpretação é a teleológica ou lógica. O intérprete deve procurar a finalidade da lei
ao indagar a intenção objetiva da referida legislação. A interpretação sistêmica ou sistemática

66
GRECO, op. cit., p. 14.
67
Ibid., p. 37.
68
Ibid., pp. 38-47.
25

é a terceira e o exegeta analisa a lei no sistema no qual ele está contido. Por último, a
interpretação histórica que o intérprete deve recuar ao período em que a lei foi editada para
buscar os fundamentos originais da referida legislação.
Por fim, a interpretação pelo viés do resultado. As interpretações podem ser
declaratória, extensiva ou restritiva. A primeira é quando o analista não amplia e nem
restringe o alcance da lei e apenas declara a vontade dela com o conteúdo real contida na
legislação. A interpretação restritiva é quando o intérprete restringe o alcance da lei já que o
legislador disse mais do que efetivamente a legislação pretendia dizer. A interpretação
extensiva é o inverso da anterior. O exegeta necessita alargar o alcance da lei para saber a
exata amplitude da lei para qual ela foi criada.
Na mesma linha, existe a interpretação analógica. O legislador por não prever todas as
situações que poderiam ocorrer na vida em sociedade permite, em algumas partes do Código
Penal, a ampliação do alcance da norma penal. O Código atende o princípio da legalidade e
regula todas as situações para posteriormente permitir outras ocorrências que lhe sejam
semelhantes.
Rogério Greco dá um exemplo que interessa esta monografia. No caso do art. 121, §
2°, III, do Código Penal diz que o homicídio é qualificado se “é cometido com emprego de
veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa
resultar perigo comum”. A última parte do texto “ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que
possa resultar perigo comum” é uma forma genérica que acompanha a primeira parte
essencialmente casuística e desta forma amplia com a interpretação extensiva para haver
alcance das hipóteses não previstas no Código repressivo brasileiro.
Para finalizar as interpretações da lei quando aplicadas em casos concretos, a
interpretação conforme a Constituição é aquela em que o exegeta buscar a validade das
normas mediante confronto com a Constituição e de acordo com uma concepção garantista.
As normas infraconstitucionais devem ser analisadas e interpretadas sempre de acordo com os
princípios informadores da Carta Magna. Em hipótese alguma pode confrontá-los. Neste caso,
a validade de tal lei pode ser questionada e anulada por meio do controle direto de
constitucionalidade que é exercido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo controle difuso
que é atribuído a todos os juízes individuais (monocráticos) ou que atuam coletivamente
(colegiados). A interpretação conforme a Constituição obedece a uma concepção penal
garantista que procura aferir as validades das normas após confrontá-las com a Carta Magna.
Essa verificação é feita por todos os juízes e é conhecido por controle difuso e pelo Supremo
26

Tribunal Federal, que exerce o chamado controle direto de constitucionalidade69. Segundo


Manoel Messias Peixinho, além do reconhecimento da supremacia da Constituição sobre todo
o ordenamento jurídico, a interpretação conforme a Lei Máxima do País também serve como
“uma vigilância da constitucionalidade das leis”70.
Os princípios basilares para uma interpretação correta do Direito Penal estão contidos
na Constituição Federal de forma direta ou indireta. Eles também são organizados e
detalhados por Rogério Greco71. Entre eles existe, o princípio da intervenção mínima, ou
ultima ratio, onde o Direito Penal deve se preocupar apenas com os bens mais importantes e
necessários à vida em sociedade. Tal princípio obedece a um critério político e que varia de
acordo com a época. É com este critério que ocorre a chamada descriminalização como
ocorreu com o crime de adultério através da Lei n° 11.106/ 2005. Outro princípio é o da
lesividade serve para diferenciar o direito e a moral. “Muitas condutas que agridem o senso
comum da sociedade, desde que não lesivas a terceiros, não poderão ser proibidas ou impostas
pelo Direito Penal”72. O princípio da adequação social mostra que a existência de usinas
atômicas, embora sejam perigosas, são consideradas adequadas socialmente e por isso não
devem sofre a interferência do Direito Penal. Existe também o controverso princípio da
insignificância por causa do critério essencialmente subjetivo e que não será detalhado aqui.
Fica apenas o registro de que o bem juridicamente protegido pelo Direito Penal deve ser
relevante e afastando os considerados inexpressivos. Por outro lado, existe a corrente de que
qualquer bem merece a proteção do Direito Penal desde que haja previsão legal e, portanto,
não cabendo o julgamento do seu real valor. Para este caso o princípio da legalidade desfaz
qualquer dúvida já que está intimamente ligado ao Estado de Direito, que para ser verdadeiro
deve retirar o poder absoluto das mãos do soberano e subordinar todos perante a lei. Aqui a lei
é a única fonte do Direito Penal e o que não estiver expressamente proibido é lícito conforme
ensina Greco73. Outros princípios também devem ser considerados para a correta
interpretação na esfera do Direito Penal como o princípio da proporcionalidade, da
responsabilidade pessoal, da culpabilidade, da extra-atividade da lei penal, da territorialidade
e da extraterritorialidade. Contudo, pela amplitude de tais critérios não serão estudados aqui.

69
GRECO, op. cit., p. 47.
70
PEIXINHO, Manoel Messias. A interpretação da constituição e os princípios fundamentais. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2003. In: GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Impetus,
2006. p. 11.
71
Greco, op. cit., pp. 53-133.
72
Ibid., p. 59.
73
Greco, op. cit., p. 99.
27

Já os princípios da individualização da pena e da limitação das penas interessam a este


trabalho e deve ser analisado mais cuidadosamente. O primeiro deve basear a aplicação da
pena de maneira individual após a constatação de que a ação ou omissão praticada pelo sujeito
do fato é típica, ilícita e culpável. O critério trifásico do art. 68 do CP deve ser obedecido e
que são as circunstâncias judiciais; atenuantes e agravantes; e de diminuição e aumento de
pena. A individualização também ocorre na fase da execução da pena conforme o art. 5º da
Lei nº 7.210/84 (LEP) ao determinar que “condenados serão classificados, segundo os seus
antecedentes e personalidade, para orientar a individualização da execução penal”. As penas
também serão limitadas e não haverá penas de morte, com exceção em caso de guerra
declarada; de caráter perpétuo; de trabalhos forçados; de banimento; ou cruéis conforme
estipula o inciso XLVII do art. 5º da Carta Máxima. Esta proibição atende um dos
fundamentos do Estado Democrático de Direito que é a dignidade da pessoa humana contido
no inciso III do art. 1º da Constituição Federal.
28

CAPÍTULO 3 – NORMAS DO SISTEMA PENITENCIÁRIO

Antes da análise dos crimes de maus-tratos e tortura, deve-se compreender as


legislações específicas no âmbito onde se cometem tais delitos. Apesar da tendência mundial,
que ganhou força após a Segunda Grande Guerra, de um maior controle do que ocorre dentro
das prisões, o Brasil só se adequou com um diploma que regulasse o sistema penitenciário em
1984. As iniciativas não foram poucas. O Rio de Janeiro só regulamentou as práticas do
serviço penitenciário dois anos depois.
Embora tenham sido elaboradas e passassem a vigorar antes da promulgação da
Constituição Cidadã de 1988, tanto a Lei de Execução quanto o Regulamento do Sistema
Penal do Estado do Rio de Janeiro tiveram como base a Declaração Universal dos Direitos do
Homem. O Princípio da Dignidade Humana tanto como o conceito de ressocialização do
condenado pela Justiça são evidentes em ambos os documentos. Um mecanismo bem
articulado entre sanções e recompensa, e direitos e deveres dos sentenciados trabalham para
evitar os abusos cometidos por agentes do Estado e possibilitam à recuperação do preso.
A pena compõe-se de dois aspectos. O retributivo ou de castigo pelo mal cometido e o
da prevenção geral e especial que visa no primeiro caso ao desestímulo de todos da prática do
delito e no último, à recuperação do apenado, buscando fazer com que este não volte a
cometer crime74. O novo modo de executar a pena orientada para a reeducação e
ressocialização do condenado pela Justiça se dirige ao encontro do respeito aos direitos
individuais e passa a ter a humanidade como paradigma. A Lei nº 7.210, de 11 de julho de
1984, Lei de Execução Penal (LEP), apresenta no art. 1º o objetivo da Execução Penal
brasileira, que “tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e
proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. Já
o art. 10 diz que o Estado deve assistir ao interno com a finalidade de “prevenir o crime e
orientar o retorno à convivência em sociedade”. A LEP foi elaborada num período de
redemocratização, o que favoreceu questões como o tratamento e a reinserção dos condenados

74
FÜHRER, Maximilianus Cláudio Américo; FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. Resumo de direito
penal (parte geral). São Paulo: Malheiros, 1994. p. 90.
29

por meio da descrição das chamadas “assistências” e o respeito à integridade física e moral
dos presos, conforme emana o art. 40.
Embora, muito do que está escrito nos referidos documentos ainda não tenham sido
posto em prática. Contudo, todos reconhecem o avanço da Lei de Execução Penal no que
concerne o respeito aos presos como seres humanos, conforme orienta os Direitos Humanos e
também a vitória de uma legislação própria para o setor, após quase um século de tentativas
frustradas para organizar a vida na prisão.

3.1 LEI DE EXECUÇÃO PENAL: VITÓRIA APÓS VÁRIAS TENTATIVAS

A primeira tentativa para normatizar o sistema penitenciário foi o Código


Penitenciário da República em 1933. O documento foi elaborado por Cândido Mendes,
Lemos de Brito e Heitor Carrilho e foi publicado no Diário Oficial do Poder Legislativo
somente em 25 de fevereiro de 1937. Foi abandonado por divergir do Código Penal de 1940.
A necessidade de normas de Execução Penal no ordenamento jurídico brasileiro era uma
exigência. Um projeto de 1951, do deputado Carvalho Neto, resultou na aprovação da Lei
3.274, de 2 de outubro de 1957, que estabelecia normas gerais sobre o regime penitenciário.
No entanto, a legislação não continha sanções para o descumprimento dos princípios e regras
previstas e, por esta razão, se tornou letra morta no ordenamento jurídico. Um anteprojeto de
Código Penitenciário foi apresentado por uma comissão de juristas presidida pelo vice-
presidente Oscar Penteado Stevenson ao ministro da Justiça em 1957, mas por vários motivos
foi abandonada. Roberto Lyra redigiu um anteprojeto de Código de Execuções Penais em
1963, porém o trabalho foi em vão por causa do movimento político do ano seguinte. Em
1970, um novo anteprojeto de Código de Execuções Penais foi elaborado por Benjamin
Moraes Filho e submetido a uma comissão revisora. Foi encaminhado ao ministro da Justiça,
mas também não foi aproveitado. Somente em 1981, uma comissão instituída pelo ministro da
Justiça e formada por professores como Francisco Assis de Toledo, Miguel Reale Junior e
Sérgio Marcos de Moraes Pitombo apresentou o anteprojeto da nova Lei de Execução Penal.
O trabalho foi publicado pela Portaria nº 429, de 22 de julho de 1981, para receber sugestões e
ser entregue à comissão revisora. O presidente da República João Figueiredo encaminhou o
projeto ao Congresso Nacional, sob a mensagem nº 242 em 29 de junho de 1983. A Lei de
30

Execução Penal foi aprovada com o nº 7.210 em 11 de julho de 1984 e publicada dois dias
depois75.
O ordenamento das normas para a Execução Penal serviu para garantir a legalidade
dentro do sistema penitenciário e evitar abusos cometidos por agentes do Estado. A doutrina
penitenciária moderna defende que o preso continua titular de todos os direitos mesmo depois
da condenação. Eles sofrem a imposição de uma pena privativa de liberdade e são atingidos
somente pelo internamento prisional. Segundo Mirabete, com a condenação, surge uma
relação especial de sujeição que traduz em complexa relação jurídica entre o Estado e o
condenado:

(...) ao lado dos direitos daquele que constituem os deveres do preso, encontram-se
os direitos destes, a serem respeitados pela Administração. Por estar privado de
liberdade, o preso encontra-se em uma situação especial que condiciona uma
limitação dos direitos previstos na Constituição Federal e nas leis, mas isso não que
dizer que perde, além da liberdade, sua condição de pessoa humana e titularidade
dos direitos não atingidos pela condenação76.

Desta forma, a Administração deve cumprir com as obrigações inerentes à execução


da pena com o fim de cumprir o que dela é exigido por lei para tornar eficaz o cumprimento
da pena pelo condenado e a possível recuperação de delinqüente a quem submete à privação
de liberdade.

3.2 DIREITOS DOS PRESOS

O capítulo III da Lei de Execução Penal trata especificamente dos deveres, direitos e
da disciplina. A seção II trata dos direitos e o art. 40 impõe às autoridades “o respeito à
integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios” conforme preceitua a Lei
Maior do País no art. 5º, XLIX. O jurista Heleno Fragoso ratifica que os direitos dos presos
não são regras programáticas e sim direitos positivados por preceitos e sanções77. Os direitos
fundamentais do homem como a vida, saúde, integridade corporal e dignidade humana ficam
protegidos. Mirabete considera que esses direitos são os mais importantes porque servem de

75
MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal. 11ª Ed. São Paulo: Atlas, 2003. pp. 23 e 24.
76
Ibid., p. 118.
77
FRAGOSO, Heleno. Lições de direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. In: MIRABETE, Julio
Fabbrini. Execução Penal. 11ª Ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 118.
31

suporte aos demais. E baseado neste artigo, o mesmo autor, assevera que “estão proibidos os
maus-tratos e castigos que, por sua crueldade ou conteúdo desumano, degradantes, vexatório e
humilhante, atentam contra a dignidade da pessoa, sua vida, sua integridade física e moral”78.
Rogério Greco79 também assevera que o preso conserva todos os direitos não atingidos
pela perda de liberdade e as autoridades devem respeitar a integridade física e moral dele (art.
38 do CP). Segundo o jurista, a pena é um mal necessário, mas o Estado deve preservar as
condições mínimas de dignidade da pessoa humana quando aplicar o seu ius puniendi.

O erro cometido pelo cidadão ao praticar um delito não permite que o Estado
cometa outro, muito mais grave, de tratá-lo como um animal. Se uma das funções
da pena é a ressocialização do condenado, certamente num regime cruel e
desumano isso não acontecerá. As leis surgem e desaparecem com a mesma
facilidade. Direitos são outorgados, mas não são cumpridos. O Estado faz de conta
que cumpre a lei, mas o preso que sofre as conseqüências pela má administração,
pela corrupção dos poderes públicos, pela ignorância da sociedade, sente-se cada
vez mais revoltado, e a única coisa que pode pensar dentro daquele ambiente
imundo, fétido, promíscuo, enfim, desumano, é em fugir e voltar a delinqüir, já que
a sociedade jamais o receberá com o fim de ajudá-lo80.

A Lei de Execução Penal brasileira segundo Greco, apesar de alguns dizerem que foi
feita para o Primeiro Mundo e por isso não ter condições de ser aplicada no Brasil, um país
ainda em desenvolvimento, não tem pleno funcionamento por casa de uma administração
corrupta e sem vontade política.

3.3 DEVERES DOS PRESOS

Por outro lado, os presos também têm deveres. Explorando os ensinamentos de


Mirabete novamente, a situação de uma pessoa presa não é mero resultado do acaso. Para o
doutrinador, o princípio que inspira a execução das penas e medidas de segurança de privação
de liberdade é de que o interno é sujeito de direitos e não está excluído da sociedade. As
relações jurídicas devem ser impostas obedecendo às limitações determinadas pela sentença
condenatória. Mas em contraposição às obrigações e limitações da Administração, Mirabete
assevera, que a Lei deve estabelecer os deveres mínimos primários a serem obedecidos pelos

78
MIRABETE, op. cit., p. 119.
79
Greco, op. cit., p. 553.
80
Ibid., p. 554.
32

presidiários81. O Estado tem o jus executionis, que é o direito de executar a pena, e isso
significa que o preso tem o dever de se submeter a ela82. O jurista exemplifica essa relação
com uma lição bastante controversa na doutrina. Segundo algumas correntes, o preso teria o
“direito” ou “dever” de fugir porque seria apropriado registrar na lei que o preso nesta
situação estaria desobedecendo a um dever para com a Administração. Mirabete enfatiza que
a evasão é uma infração de duas ordens, penal e penitenciária, e tem conseqüências em ambas
as áreas do ordenamento jurídico. No penal, a responsabilidade pelo delito previsto no art. 352
do Código Penal, e no penitenciário, pela ocorrência de falta disciplinar grave no art. 50 da
LEP. A evasão é ilícito penal apenas quando o preso usa de violência. A fuga do preso é um
fato antijurídico por ser uma violação do dever expresso no art. 38 da Lei de Execução Penal.
Ainda baseado nos ensinamentos de Mirabete, a principal obrigação legal inerente ao estado
do condenado à pena privativa de liberdade é a de se submeter o preso a ela e não furtar-se
desse dever pela fuga:

Torna-se indiscutível, pois, a obrigação fundamental de cumprir com o dever de se


submeter à pena, ou mesmo à prisão preventiva por força do art. 39, parágrafo
único, para consecução a Administração há de contar com os pertinentes meios
coercitivos e disciplinares, sempre combinado justamente um critério de rigor, na
defesa da ordem dos estabelecimentos penais, requerido pelas próprias
necessidades do internamento, e da demanda social de paz, com o humanismo que
inspira toda a reforma penitenciária83.

Portanto, o preso deve se submeter as normas penitenciárias mesmo que certas ações
não constituam ilícitos penais como também ocorre no caso do uso de aparelhos de telefonia
celular dentro do cárcere.

3.4 DISCIPLINA DOS PRESOS E SANÇÕES PENAIS

Após verificar que a relação jurídica entre o condenado e o Estado é complexa e


implica que ambos possuem direitos e deveres. É necessário mostrar que o Sistema
Penitenciário deve conter um código de medidas para a manutenção da ordem e a disciplina
na esfera prisional. A disciplina, de acordo com a Lei de Execução Penal, é a colaboração

81
MIRABETE, op. cit., p. 113.
82
Ibid., p. 114.
83
Ibid., p. 113.
33

com a ordem, na obediência à determinações das autoridades e seus agentes no desempenho


do trabalho (art. 44, caput). Mirabete explica que a disciplina exige um processo de
individualização e por isso deve-se procurar um jogo de equilíbrio entre punições e
recompensas para viabilizar o processo de readaptação social. A vivência da disciplina
fornece bons hábitos e contribui para a educação ou a reeducação, ou então para a não-
degeneração, não-degradação e para o futuro ajustamento ou reajustamento familiar,
comunitário e social84. Por outro lado, as gratificações estimulam o preso a manter ou
melhorar o comportamento na prisão. De acordo com Mirabete, este equilíbrio entre sanções e
recompensas submete a disciplina a tratamento científico ou humanizado85.
Com a promulgação da Lei de Execução Penal e conseqüente vigência da Constituição
Cidadã, o arbítrio existente na aplicação da disciplina nas prisões brasileiras foi abolido. O
princípio da legalidade e anterioridade estabelecido no art. 5º, inciso XXXIX, da Carta Magna
e do art. 45, caput, da LEP, garante que não pode haver falta nem sanção disciplinar sem
expressa e anterior previsão legal ou regulamentar conforme exige o item nº 30.1 das Regras
Mínimas para Tratamento para Tratamento ao Recluso das Nações Unidas86.
O Poder Disciplinar cabe às autoridades administrativas conforme as disposições
regulamentares. A Administração é quem estabelece os regulamentos e impõem sanções e
concedem recompensas aos presos. O juiz da Execução, conforme leciona Mirabete, interfere
apenas em caso de descumprimento das normas estabelecidas pela lei ou pelo próprio
regulamento. As sanções disciplinares são aplicadas pelo diretor da unidade prisional ou pelo
juiz da Vara de Execuções Penais em caso de inclusão no Regime Disciplinar Diferenciado
(art.54, caput da LEP)87.
No Rio de Janeiro, o Decreto 8.897, de 31 de março de 1986, estabelece o
Regulamento do Sistema Penal do Estado (RPERJ). O Capítulo IV trata dos direitos e da
disciplina. O art. 55 ordena os “direitos fundamentais e indisponíveis do condenado” e o
primeiro item “ver respeitada sua condição de ser humano” é a base para o resto. Além dos
direitos elencados na Seção II deste capítulo como ter audiência com o diretor do
estabelecimento e portar o valor de até dez por cento do salário mínimo no interior do
estabelecimento, a Seção III com cinco subseções regula a disciplina nas prisões fluminenses.

84
MIOTTO, Armida Bergamini. Curso de ciência penitenciária. São Paulo: Saraiva, 1975. v.2. In:
MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal. 11ª Ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 133.
85
MIRABETE, op. cit., p. 134.
86
Ibid., p. 134.
87
MIRABETE, op. cit., p. 137.
34

As faltas disciplinares no sistema penitenciário devem estar previstas em lei ou no


regulamento e a sanção só pode ser aplicada se estiver também anteriormente expressa. Cabe
aos Estados prever as faltas leves e médias (art. 49, caput). As graves ficam por conta da Lei
de Execução Penal (art. 50). Mirabete explica que o legislador federal ordena as faltas
disciplinares graves que podem, além das sanções previstas, terem outras conseqüências
graves como a conversão e regressão de regime, perda de autorização de saída e do tempo
remido. Desta forma, impede-se que nos regulamentos locais se imponha uma “disciplina que
vá exercer constrições ou sujeições que aviltem, em vez de disciplinar”88.

3.4.1 Procedimento Disciplinar e Acordo Extra Normativos

O procedimento disciplinar que termina na punição começa na prática da infração


evidentemente. A partir de então, o preso é conduzido à presença do chefe de turma pelo
inspetor penitenciário responsável pela galeria, pavilhão ou cela em que está o sentenciado
que cometeu a falta. O chefe de turma pode determinar o isolamento preventivo por um prazo
máximo de dez dias. A ocorrência deve ser registrada em livro próprio, chamado Livro de
Parte Disciplinar, para logo em seguida ser feita a comunicação ao chefe de segurança, que
por sua vez, dará conhecimento ao diretor da unidade. O diretor mantém ou revoga as
medidas iniciais e dá ciência à CTC. O procedimento disciplinar é normatizado pelos artigos
74 a 91 do RPERJ.
Cada unidade do sistema penitenciário tem uma Comissão Técnica de Classificação
(CTC), que é composta por um psiquiatra, um psicólogo, um assistente social e dois chefes de
serviço do próprio estabelecimento, designado pelo diretor. De acordo com o art. 3° do
RPERJ, o diretor da unidade é o presidente da CTC e é quem aplica as sanções. A Comissão
terá três dias úteis para apurar o fato ao ouvir o indiciado e o condutor, quando necessário. O
inquérito disciplinar, então, é entregue ao diretor da unidade com o parecer da CTC. O diretor
convoca o Conselho Disciplinar e julga o processo. O punido pode solicitar reconsideração
em quinze dias, desde que o parecer da CTC ou a decisão do Conselho não tenha sido
unânime ou a sanção do diretor tenha sido contrária ao parecer da CTC. Embora tal sistema

88
Ibid., p. 140.
35

tenha como objetivo disciplinar o presidiário por meio de procedimentos sem violência, quase
sempre ele não é aplicado.
O procedimento é conhecido vulgarmente como “usar a caneta”. Eles dizem que “a
principal arma do guarda na cadeia é a caneta” e não um revólver ou um “porrete”.
Teoricamente, seria sim, se o sistema funcionasse, mas os inspetores dizem que em alguns
casos, o diretor com intuito de “deixar a cadeia tranqüila”, faz acordos extras normativos e
não pune o presidiário indisciplinado. Desta maneira, é melhor “cobrar”, agredir, o preso do
que “escrever”, registrar a indisciplina do custodiado em livro. Segundo eles, corre-se o risco
de perder a “moral” na cadeia e passar a ser considerado um “guarda comédia”, ou seja,
aquele quem os presos não respeitam as ordens e desacatam na frente de outros condenados e
funcionários.
Os presos que exercem a liderança e possuem poder financeiro não entram em
confusão. Na maioria dos casos, eles dão ordens aos “presos caídos”. Outros que não têm
tanto poder dentro da facção criminosa e que estão perto de alcançar o tempo para pedir um
benefício, também costumam evitar se envolver em problemas dentro das prisões. Alguns
chegam a pedir transferência para o setor dos evangélicos para não ficarem vulneráveis à
prática de infrações disciplinares nas cadeias. E alguns que são apanhados em atos
indisciplinares, mesmo sabendo que estão perto de obter um benefício, mas são obrigados por
outros condenados a praticar o delito, chegam a pedir para serem agredidos por causa do
medo da caneta, ou seja, em troca do registro de ocorrência que pode resultar na perda de
algum benefício.
A realidade no cotidiano do sistema penitenciário é que existem exageros por parte de
alguns servidores em quase todas as unidades prisionais. Por outro lado, também há preso que
mesmo punido administrativamente continua a cometer faltas disciplinares por desconsiderar
a punição administrativa. Um caso ilustra bem a desconsideração da punição administrativa.
Um presidiário foi encaminhado para o setor de isolamento após ser pego no pátio de visitas
praticando sexo com a companheira em baixo do cobertor no dia 14 de fevereiro de 2007 em
Bangu II. Ele tinha colocado um latão de lixo na frente do inspetor penitenciário que vigia o
horário de visitas. O servidor se deslocou até o obstáculo e retirou o latão. A partir desse
momento o condenado se levantou e começou a ameaçar o guarda. O condenado dizia que
estava disposto a “morrer na cadeia”. O inspetor registrou o fato no Livro de Parte Disciplinar
e encaminhou o preso para o setor de castigo. No dia seguinte, o preso indisciplinado
conseguiu abrir o cadeado da cela em que estava isolado e foi pego solto por outro inspetor
penitenciário no corredor do setor de isolamento. Novamente, ele voltou a ameaçar o segundo
36

inspetor, que novamente o escreveu. Mas nem sempre, a prática era seguida pelos inspetores
de turma.
Quatro dias depois, outro caso semelhante ocorreu em Bangu II. Outro preso foi
surpreendido por uma vistoria e inspetores de segurança descobriram vários estoques (facas
artesanais) com ele. O condenado disse que era para os “inimigos da cadeia” e pediu para não
ser escrito no Livro de Parte Disciplinar. Segundo ele, a parte disciplinar poderia prejudicá-lo
porque estava “vencendo a liberdade”, ou seja, estava prestes a obter um benefício. Diante da
negativa, ele ameaçou ao servidor que iria contar uma mentira para depreciar o inspetor.
– Vou colocá-lo na bola. Vou dizer que o senhor está colocando arma pra dentro –
disparou o presidiário.
Os presidiários, garantidos pela defesa incondicional de entidades que defendem o
direito dos presos, também chegam a simular agressões com o objetivo de intimidar os
inspetores de segurança agir com mais rigor. Um período fértil de tal comportamento e que,
com certeza, desencadeou a série de 27 rebeliões em 2002 foi a transferência da gestão do
sistema penitenciário para uma nova secretaria criada pelo então governador Anthony
Garotinho, que saiu do cargo, em março de 2002, para se candidatar à Presidência da
República. O antigo Departamento do Sistema Penitenciário (Desipe) ficou subordinado à
Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos que tinha à frente, o jurista e radical
defensor dos Direitos Humanos, João Luiz Duboc Pinaud. Após várias concessões dadas aos
presos do Rio, o controle dentro das penitenciárias foi perdido.
A indisciplina dentro das prisões tornou o ambiente de trabalho dos servidores tenso.
A “filosofia de cadeia” diz que eles tinham que esperar “tempos bons”, ou seja, voltar a ter
liberdade para impor a disciplina por meio da violência. Os presos, sabendo que o “tempo era
bom” para eles, desrespeitavam aos servidores e chegavam a se ferir para acusarem os
servidores de agressão. O objetivo era fazer o Exame de Corpo de Delito no IML com
intenção de incriminar o servidor no delito de abuso de autoridade e tortura. O procedimento é
abrir um inquérito administrativo, podendo terminar com a demissão do inspetor de segurança
penitenciária.
– Eu vou fazer tu perdê o emprego – ameaçou um deles, enquanto batia com a cabeça
nas grades da sala de inspetoria em Bangu 2.
A indisciplina de um interno é uma constante dentro de um presídio. Acostumados à
desordem e a impunidade nas ruas, a disciplina precisa ser aplicada dentro da prisão e uma
das funções do sistema penitenciário é essa. Não há recuperação sem o condenado
37

compreender por meio da disciplina em uma prisão que há limites que não se devem
ultrapassar.
É fato que dentro da cadeia essas encenações foram constantes no período que o
jurista Pinaud esteve dirigindo o sistema penitenciário fluminense. Mas também é
inquestionável que o uso da força sempre estrapola o limite tolerável e, por motivos banais,
certas indisciplinas provocam exageros com sessões de espancamento e humilhação.
Inspetores de segurança penitenciária mais exaltados criam uma forma de rivalidade que
alimenta o ciclo de covardias praticados por agentes do Estado e criminosos dentro e fora das
unidades prisionais. Uns torturam, agridem e tratam mal os custodiados, outros planejam,
ordenam emboscadas e assassinam servidores públicos.
O RPERJ (Regulamento do Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro), que
trata das atribuições do cargo de inspetor de segurança e administração penitenciária, é claro,
no capítulo do Código de Ética, quando diz que o servidor deve “preservar a ordem, repelindo
a violência” e “jamais revelar tibieza ante o perigo e o abuso” (art. 18, incisos II e IV). Já o
capítulo das Transgressões Disciplinares também não deixa dúvidas quando determina que o
inspetor penitenciário pratique falta disciplinar ao violar o Código de Ética (art. 22, inciso
XXXIII) e “maltratar preso ou internado, sob sua guarda, ou usar de violência desnecessária
no exercício da função” (art. 22, inciso XIV), ou seja, a violência moderada é permitida. É
baseado nesta parte da lei que os abusos são cometidos. A ONG Justiça Global acusa a
“conivência velada do Estado” na prática da tortura89. O Estado faz vista grossa desde que o
controle seja exercido sem exageros diante da necessidade de “manter a ordem” dentro de
uma unidade prisional. Quando o limite é extrapolado, esse mesmo Estado se exime e pune o
servidor com o discurso de ser um caso isolado.

3.4.2 Capacitação do Disciplinador

A capacitação deste profissional é indispensável. Uma semana após o crime bárbaro


contra o garoto João Hélio Fernandes, que comoveu o País inteiro por ter sido arrastado por
marginais por cerca de sete quilômetros no carro que fora roubado da própria mãe da vítima,
trouxe uma indignação na população e até nos próprios criminosos devido à covardia e ao

89
JUSTIÇA GLOBAL, op. cit., p. 32.
38

grande desprezo pela vida humana. Os algozes de João Hélio, segundo jornais populares
como o Meia Hora estavam condenados à morte, pelos presos do Complexo Penitenciário do
Gericinó. Mas essa afirmação não era unânime. O preso Adalberto Rodrigues dos Santos
Filho, conhecido como Beto Boca de Ovo, pensava diferente e expôs a própria opinião na fila
de espera para atendimento da psicóloga em Bangu II. Ele conversava com outros presos no
corredor e falou na frente de um inspetor penitenciário:
– A vagabunda da mãe deles é que deu mole. Foi burra porra, deveria tirar o moleque
e não tirou, então foda-se! – esbravejou o condenado Adalberto, que foi preso no dia 9 de
março de 2001 e cumpre pena de 40 anos de prisão por tráfico de drogas e homicídio.
Imediatamente o servidor se sentiu desrespeitado e advertiu o interno para que ele se
controlasse. A resposta foi ainda mais agressiva ao dizer que tinha o “direito de dizer o que
quisesse”. Então, ele foi conduzido ao setor de isolamento e teve o nome escrito no Livro de
Parte Disciplinar.
Diante de uma ocorrência como essa, é óbvio que não há um ser humano que não se
coloque no lugar dos pais de João Hélio. Os inspetores penitenciários que têm a função social
de cuidar de pessoas que cometem esse tipo de crime deveriam ter um aparato especial por
parte do Estado. É urgente a recapacitação constante por meio de cursos de atualização acerca
da finalidade da Lei de Execução Penal e respeito ao direito dos presos para buscar a
ressocialização daqueles apenados que desejam se recuperar e, então, desconstruir uma
cultura secular de agressões desnecessárias ou de influência do desejo popular de apenas
castigar os criminosos.
A Organização Não-Governamental Justiça Global, no relatório anual sobre Direitos
Humanos no Brasil em 2003, apresentou uma síntese de que a prática da tortura no País
ultrapassa os limites reducionistas dos que enxergam no agente público o início e o fim do
problema. No entanto, afirma que existe um espírito autoritário enraizado na sociedade e, por
reflexo, nas forças policiais90. Um acompanhamento psicológico ininterrupto para cada
inspetor que trabalha direto com o preso é imprescindível. Esses homens têm uma função
ambígua que é punir e recuperar ao mesmo tempo um ser condenado pela Justiça e
discriminado pela sociedade.
Apesar de a própria sociedade ser a favor da tortura, ela pode ser um dia vítima de tal
prática criminosa. Geralmente, o alvo da tortura é uma pessoa com o perfil de desprestígio
social dos que são considerados inimigos em potencial91. A tortura é interpretada como um

90
JUSTIÇA GLOBAL, op. cit., p. 31.
91
Ibid., p. 35.
39

método semi-oficial de “prestação de contas” à sociedade e de controle social”92 e um


funcionário público que pratique ou tolere a tortura está violando as leis as quais ele mesmo
se responsabiliza por manter93. O preso que roubou, estuprou ou matou e ainda continua a
desrespeitar leis e pessoas dentro de uma instituição que é sustentada pelos impostos pagos
pelo povo para discipliná-los não é tolerado para a maioria dos homens que trabalham no
sistema penitenciário. Esse mesmo servidor também enfrenta o estresse no plantão de serviço
e na hora de descanso porque deve continuar em alerta no período de folga. Ele deve evitar ir
a certos lugares e corre o risco de ser assassinado na porta de casa e perto de familiares. Tudo
isso é doentio para o homem ou mulher que, na maioria dos casos, nunca teve uma
experiência na área de segurança, mas fez um concurso público para garantir estabilidade no
emprego.
Apenas dois meses e meio de aulas na Escola de Gestão Penitenciária não é suficiente
para desconstruir conceitos que foram impregnados em anos de vida e relacionamento social,
apesar de o inspetor penitenciário e diretor do Centro de Estudos e Pesquisa da Secretaria de
Estado de Administração Penitenciária, Ricardo Luiz Moura de Almeida, afirmar que o tempo
é suficiente, e que a falta de acompanhamento depois que o novo servidor começa a trabalhar
seja o principal problema. Esse ser humano é incubido de vigiar, disciplinar e ressocializar um
criminoso quando o Estado com todo o seu aparato e recursos não conseguiu anteriormente
por ter serviços públicos como a Educação, Saúde e Trabalho falidos.
O sistema penitenciário também encontra grandes dificuldades financeiras para
fornecer tudo o que é de direito dos presos. Começando pelos próprios servidores que
deveriam ter melhores condições de trabalho como melhores salários e benefícios. A categoria
dos inspetores penitenciários do Rio de Janeiro, em pleno ano de 2008, ainda não tem um
Plano de Carreiras e Salários. O servidor que tem 25 anos de sistema penitenciário recebe
quase o mesmo salário de um inspetor concursado recém-chegado. A diferença são os triênios
que chega a pouco mais R$ 100.
O desestímulo para exercer a função e até continuar nela provoca a evasão de muitos
inspetores para outros setores e a falta de compromisso com o cargo. A recapacitação
constante e tratamento psicológico também são indispensáveis para proporcionar melhor
qualidade de vida aos servidores para executar uma função que já se torna uma das mais
importantes para os anos futuros. O índice de crescimento populacional carcerário assusta aos

92
Ibid., p. 34.
93
ANISTIA INTERNACIONAL, op. cit., p. 5.
40

teóricos e se não mudarmos o foco e começar com a valorização dos reais executores da pena,
um futuro ainda pior está por chegar.

3.4.3 As Sanções Aplicadas Aos Presos

Um dos principais papéis da CTC é apurar e emitir parecer sobre infrações


disciplinares dos apenados. A Comissão opina sobre pedidos de conversão, progressão e
regressão dos regimes, como também dar parecer sobre as condições pessoais do condenado
por crime doloso cometido com violência ou grave ameaça, que pede o livramento
condicional. O diretor da unidade preenche o boletim penitenciário do preso com base na
CTC e o classifica nos índices excepcional, excelente, ótimo, bom, neutro e negativo. O
apenado, por sua vez, precisa permanecer por seis meses em um conceito antes de pleitear o
próximo índice na escala. Em caso de sanção disciplinar, o preso só pode sair do conceito
negativo após seis meses da aplicação da última punição.
O período de seis meses é curto e muitos presos consideram a punição branda ao ter a
possibilidade de voltar ao conceito neutro e obter os benefícios legais como progressão de
regime ou livramento condicional em apenas seis meses. O preso, além de ser rebaixado na
classificação, também pode ter suspensão ou restrição de direitos e ser isolado na própria cela
ou em local reservado para tal fim nas unidades. Os últimos tipos de sanções são aplicáveis
nas faltas graves e médias. Nas graves, o prazo do isolamento é de 15 a 30 dias. Nas médias,
de um a 15 dias. Aplica-se a advertência verbal ou a repreensão nas faltas leves.
O art. 53 da LEP especifica quais são as sanções. A advertência verbal e a repreensão
cabem nas hipóteses das faltas médias e leves e a suspensão ou restrição de direitos aplica-se
no caso de faltas graves. A advertência verbal e a repreensão são sanções que não se
diferenciam e consiste apenas na admoestação feita ao preso que cometeu uma falta
disciplinar. A advertência é oral e a repreensão é feita por meio escrito. Ambas devem constar
do prontuário do condenado para a avaliação do comportamento do interno futuramente.
Contudo, esta quase não existe. Dependendo da falta cometida pelo condenado, a advertência
verbal e a repreensão não são registradas no prontuário do condenado.
Na prática, o relacionamento entre inspetores de segurança penitenciária com os
presos no Rio de Janeiro só são direcionadas para registro quando o condenado comete uma
falta leve. É raro o relato de repreensão e quase sempre a advertência verbal funciona como
41

um cartão amarelo num jogo de futebol. E o preso é avisado que a próxima falta dele
cominará no isolamento ou em outra forma de punição às vezes não contidas nas normas
penitenciárias. Esse código entre as personagens desse ambiente social é bem conhecido e às
vezes nem a palavra é necessária para cumprir a função de advertência. Basta uma expressão
da fisionomia ou a mudança no tom de voz para que o servidor responsável pela disciplina na
cadeia possa fazer com que o preso compreenda ter sido advertido por conduta reprovada pela
administração penitenciária.
Um exemplo que ilustra tal entrosamento neste âmbito peculiar ocorreu na
Penitenciária Alfredo Tranjan, mais conhecida como Bangu II, no Rio de Janeiro. Alguns
presos usam o termo “vagabundo” para chamar uns aos outros. Apesar de ser um elogio para
eles que querem continuar na vida marginal, em certa ocasião um preso se ofendeu quando o
inspetor penitenciário negou sua liberação da galeria em que “morava” para ir ao local do
atendimento técnico, onde estão as salas da assistência social, da psicologia, da jurídica e da
enfermaria. Neste local, o preso só pode ter acesso com uma autorização em forma de senha,
que é dada pelo profissional da área. Ele faz uma requisição para o comparecimento do
condenado e nessa ocasião, o referido apenado não tinha a imprescindível senha. Em algumas
situações semelhantes, mesmo sem a senha, o inspetor de segurança permite a ida do
presidiário quando avalia ser realmente necessário o atendimento. Geralmente o preso tenta
convencê-lo contando uma história triste ou provando verdadeiramente ser necessária a
liberação. No entanto, em boa parte dos casos, o preso quer sair da galeria para passear na
“pista” – corredor que dá acesso às outras galerias – e conversar com outros apenados que
estão alocados em outras galerias da cadeia.
O fato foi que o preso da Galeria 5 insistiu para ser liberado e solicitou ao inspetor
penitenciário responsável pelo setor para que pudesse ir ao setor de atendimento técnico por
três vezes. Na última tentativa, recebeu uma resposta negativa novamente por parte do
funcionário. Contudo, na última vez o servidor perdeu a paciência com o preso:
– Seu vagabundo! Você não vai! – respondeu irritado.
– Meu chefe não sou vagabundo não, sou bandido, valeu?! – retrucou encabulado o
preso persistente.
A entonação do termo “vagabundo” soou para o preso como um xingamento ou
humilhação. O tom de voz do servidor comunicou a irritação com os pedidos insistentes e
demonstrou que não iria mais aturar as solicitações daquele preso. O inspetor ofendeu o preso
com um termo do qual o próprio apenado se orgulhava. O preso ao decodificar a intenção do
inspetor penitenciário foi capaz de compreender que a mensagem envolvia não só o conteúdo
42

semântico, a palavra “vagabundo”, mas também uma expressão facial e uma entonação de voz
que o fez concluir não haver qualquer possibilidade de alcançar seu objetivo. O sucesso da
comunicação só ocorreu graças ao repertório compartilhado por ambos. Em certas ocasiões, a
postura, o comportamento mais rígido do inspetor penitenciário se faz necessário para a
eficácia da transmissão da mensagem e imposição da disciplina em relação ao preso.
Já a sanção do inciso III é a suspensão de certos direitos dos presos contido no art. 41,
incisos V, X e XV. Pode-se restringir a proporcionalidade na distribuição do tempo para o
trabalho, o descanso e a recreação. Sendo esta última a mais aplicada porque não pode ser
subtraído o tempo de descanso do preso para não colocar a saúde dele em risco e o trabalho
não pode ser superior a oito horas. O preso também pode ter suspensa ou restringida a visita
do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados. Este tipo de sanção
é o mais temido pelos presos. A outra punição por falta disciplinar é a suspensão ou restrição
do contato do apenado com o mundo exterior por meio de correspondência, leitura e outros
meios de informação94. Já a sanção mais severa é a do isolamento do condenado, que pode ser
aplicada na cela do próprio preso indisciplinado e por trazer implicitamente todas as outras
punições, deve ser aplicada somente em caso de falta grave. O isolamento pode significar
relativa incomunicabilidade do preso, exceto no que diz respeito às exceções legais como
contatos com o advogado e diretor do presídio95. Tanto o isolamento como a suspensão ou
restrição de direitos não podem ser superior a 30 dias e a primeira sanção deve ser
comunicada ao juízo da execução.
Nestes casos mais graves os presos chegam a submeter algum tipo de “negociação”
para não serem punidos. Eles afirmam que tal atitude não voltará a acontecer e até se
submetem a sofrerem algum tipo de castigo físico como palmadas e até uma surra para não
sofrerem qualquer tipo de punição que possa privá-los da visita de familiares ou íntima como
também do “banho-de-sol”.
O inciso V do art. 52 da LEP, inserido pela Lei nº 10.792/2003, inclui o Regime
Disciplinar Diferenciado como mais uma forma de sanção disciplinar. Esse novo tipo de
punição não pode ser aplicado a qualquer das faltas graves previstas no art. 50. O art 52,
caput, limita à hipótese a falta mais grave consistente na prática de crime doloso que ocasione
subversão da ordem ou disciplina interna96.

94
MIRABETE, op. cit. p. 153.
95
Ibid., 154.
96
MIRABETE, op. cit. p. 154.
43

O doutrinador Julio Mirabete enfatiza a importância de um adequado catálogo de


medidas para manter a ordem e a disciplina no âmbito penitenciário e “mesmo assegurar a
regular execução das penas não privativas de liberdade a fim de que se possa desenvolver o
processo destinado à reinserção ou adaptação social do condenado”97. Então, para evitar o
arbítrio dos agentes do Estado e a aplicação de penas que atinjam a integridade física ou
moral do condenado, a Lei de Execução Penal limita as sanções aplicáveis aos presos e que só
podem ser aplicadas se estiver anteriormente estabelecida em legislação ou regulamento.
Desta forma, garante-se a segurança e ordem carcerária como também cria a possibilidade de
reinserção do preso por meio da disciplina98.

97
Ibid., p. 153.
98
Ibid., p. 153
44

CAPÍTULO 4 – OS TIPOS PENAIS TORTURA E MAUS-TRATOS

Todo o contexto histórico é relevante para entender como o crime de tortura e maus-
tratos é lesivo aos direitos do homem e à eficácia do sistema penitenciário, mas o enfoque se
concentrará na parte jurídica. A análise específica desses tipos penais terá como base
doutrinadores de renome do Direito Penal brasileiro e será relevante para esclarecer as
similitudes e diferenças entre esses delitos específicos de agentes do Estado que trabalham no
sistema penitenciário.
A monografia quer produzir conhecimento acerca do tema para diminuir o
obscurantismo que existe entre os profissionais de segurança penitenciária. Alguns casos
foram notórios e paradigmáticos como o do chinês naturalizado brasileiro Cham Kim Chang,
que foi espancado após ser preso no aeroporto internacional Antonio Carlos Jobim quando
tentava embarcar para os Estados Unidos com US$ 30.550 mil não declarados à Receita
Federal no dia 25 de agosto de 2003. Ele foi preso por policiais federais e encaminhado ao
presídio Ary Franco, em Água Santa, sob a acusação de evasão de divisas. O preso provisório
foi encontrado desacordado dois dias depois, quando seria solto99. No mesmo dia, Chang foi
internado no Hospital Salgado Filho, no Méier, em coma. No dia 4 de setembro, o chinês
morreu em decorrência de uma hemorragia cerebral provocada por um traumatismo craniano.
Seis inspetores penitenciários tiveram a prisão temporária decretada pela juíza Débora
Sarmento100. Além do diretor e dos seis inspetores, mais quatro presos considerados “de
confiança” foram acusados pelo crime de tortura e homicídio do comerciante chinês. Nove
deles foram condenados101. Os inspetores penitenciários sofreram uma virada de 180 graus na
vida. Um dia, eram agentes da lei; no outro, infratores dela.
Para começar, é obrigatório mostrar que algumas instituições da sociedade
simplificam os termos tortura e maus-tratos. A Anistia Internacional, no manual de ação
contra a tortura, é enfática em misturar o significado de maus-tratos com tortura. Na primeira

99
Entenda o caso do comerciante chinês morto no Rio. Folha Online. 06/08/2004.
100
FORTUNA, Roberta & BRAGA, Élcio. Agentes suspeitos na cadeia. O Dia. 07/09/2003.
101
Cem anos de prisão para réus. Extra. 16/08/2004.
45

nota explicativa, já no prefácio, a Organização esclarece: “O termo ‘tortura e maus-tratos’ é


usado neste manual com o significado de ‘tortura e outros tratamentos ou penas cruéis
desumanos ou degradantes’. Para facilitar a descrição, o termo ‘tortura’ freqüentemente é
usado significando ‘tortura ou maus-tratos’.”102

4.1 DEFINIÇÃO DOS TIPOS PENAIS

A Constituição Cidadã de 1988 reforça a tendência de direitos e garantias do indivíduo


no art. 5º. O inciso XLIX, como também no inciso III, são claros ao ordenar que “ninguém
será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. No entanto, apesar do
Código Penal de 1940 tipificar o crime de maus-tratos contra presos, só em 1997 que uma lei
específica sobre tortura passou a vigorar. A Lei 9.455 foi resultado da repercussão das
arbitrariedades praticadas por policiais militares na Favela Naval de Diadema, em São Paulo.
O Projeto de Lei que dormia no Senado foi colocado em pauta novamente em março e
aprovado no dia 7 de abril103.
A definição legal, segundo a “Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou
penas cruéis, desumanas ou degradantes”, aprovada em 1985, no art. 1º, diz que o termo
tortura designa qualquer ato pelo qual:

(...) dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais são infligidos


intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa,
informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa
tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa
ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer
natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário
público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou
com seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores
ou sofrimentos que sejam conseqüência unicamente de sanções legítimas, ou que
sejam inerentes a tais sanções ou elas decorram...104

As críticas à Lei 9.455 são inúmeras. A ONG Justiça Global diz que a Lei não é
decente por causa das várias falhas e brechas legais contidas na legislação especial. A
principal crítica, embora seja considerada um avanço para outros segmentos da sociedade,
trata do crime de tortura não ser considerado um delito próprio, ou seja, praticado por agente

102
ANISTA INTERNACIONAL, op. cit., p. 2.
103
FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 122.
104
RAMAYANA, op. cit., pp. 131 e 132.
46

público apenas. Segundo a Justiça Global, “tal opção acaba por desvirtuar o objetivo da lei, na
medida em que desvia o foco de atenção do Estado para o cidadão comum”105.
Alguns estudos foram realizados desde a promulgação da Lei 9.455 em 1997. O
Conselho Nacional de Procuradores constatou, em 2001, que nos 240 processos instaurados
por crimes de tortura, cerca de 80% dos réus eram policiais civis e militares106. O mesmo
trabalho também constatou que os Ministérios Públicos estaduais apresentaram 524 denúncias
de casos referentes à tortura. Somente 15 chegaram a ser julgadas, ou seja, 4,3% do total. E
desses, apenas nove (1,7%) resultaram em condenação107. Segundo um levantamento
realizado pelo Núcleo de Estudos da Violência baseado em processo do Tribunal de Justiça
paulista, coordenado pela socióloga Maria Gorete Marques, a maior parte dos agentes
públicos denunciados pelo Ministério Público pelo crime de tortura não são condenados.
Como o tipo penal não é próprio, a maioria dos condenados são agentes privados (66%),
apesar de 68% dos acusados serem agentes públicos. Dos policiais, guardas e agentes
penitenciários processados, 76,6% são absolvidos e 23,3% condenados. Por outro lado, 70%
dos agentes privados são considerados culpados e 30% inocentes108.
Para começar o trabalho de análise dos tipos penais da tortura e dos maus-tratos, deve-
se compreender que o delito de tortura não é um crime próprio e um dos aspectos relevantes
para o uso correto da Lei 9.455/97 é que a legislação nacional, conforme assegura Marcos
Ramayana, contém “dispositivo de maior alcance do que o pactuado na Convenção contra
tortura”109. Segundo Julio Fabbrini Mirabete, o crime comum pode ser praticado por qualquer
pessoa e quando a conduta exige a prática por pessoa com certas qualidades, denomina-se
crime próprio ou especial. Essa especificidade pode ter origem na “posição jurídica
(funcionário, cônjuge, proprietário etc.) ou posição de fato (homem, gestante etc.)”110.
É importante frisar, novamente, que o objeto de estudo da presente monografia é sobre
o crime de tortura e maus-tratos praticado por servidores públicos dentro do sistema
penitenciário. Portanto, somente o inciso II da Lei 9.455/97 trata do tema. Neste inciso
específico, o crime é próprio. No entanto, compreender o que é tipo penal passa a ser
essencial para analisar os delitos objetos desse trabalho. Mesmo porque, de forma superficial,
defensores dos direitos dos presos costumam generalizar e abarcar os crimes de tortura e
maus-tratos como se fosse um mesmo delito.

105
JUSTIÇA GLOBAL, op. cit., p. 37.
106
Ibid., p. 32.
107
Ibid., p. 38.
108
SANTINI, Daniel. Tortura Impune. Folha Universal. 24 fev. 2008. p. 14.
109
RAMAYANA, op. cit., p. 132.
110
MIRABETE, op. cit., p. 47.
47

Como visto acima, a Organização Não-Governamental Anistia Internacional descreve


o termo “tortura e maus-tratos” com o significado de “tortura e outros tratamentos ou penas
cruéis, desumanas ou degradantes” e a simplificação é ainda maior porque eles afirmam que o
termo “tortura” é usado freqüentemente significando “tortura ou maus-tratos”. Na forma de
um relatório informativo que tem como objetivo denunciar violações contra os Direitos
Humanos, tal reducionismo é compreensível. No entanto, no escopo jurídico, tal atitude seria,
no mínimo, irresponsável por correr-se o risco de um julgamento parcial e injusto de uma
pessoa que possa ter praticado o crime de maus-tratos e ser condenado pela prática de tortura.
Os tipos penais em estudo nesta monografia são semelhantes apenas por serem crimes
próprios ou especiais e por terem circunstâncias qualificadoras e causas de aumento de pena
como será detalhado mais à frente. Portanto, devem-se analisar tais delitos conforme
determina o estudo dos tipos. A partir disso pode-se apresentar semelhanças e diferenças entre
os crimes de tortura e maus-tratos.
Mirabete ensina que “o tipo é a descrição do comportamento ilícito e compreende as
características ou elementos objetivos (tipo objetivo) e subjetivos (tipo subjetivo) do fato
punível”111. Ainda segundo o autor, o elemento subjetivo do tipo “compreende o dolo e os
elementos subjetivos do injusto ou a culpa em sentido estrito”112. Refere-se ao atuar do
agente, sua intenção, o fim por ele desejado com a conduta criminosa. São os crimes que
exigem um especial fim de agir, conhecido na doutrina como dolo específico113. Os elementos
objetivos têm a finalidade de descrever a “ação, o objeto da ação e, em sendo o caso, o
resultado, as circunstâncias externas do fato e a pessoa do autor”, de acordo com Jescheck114.
Esses elementos objetivos, segundo Rogério Greco, ainda são subdivididos em aqueles que
têm a finalidade de traduzir o tipo penal com simplicidade e ser percebido pelo intérprete
(descritivo) e aqueles que são criados e traduzidos por uma norma, que dependem de uma
valoração pelo intérprete para uma efetiva compreensão (normativo)115.
Segundo José Cirilo de Vargas, o jurista tem de pensar e de se orientar por meio dos
tipos penais. “O ponto de partida deve ser sempre um tipo ‘legal’ porque somente a lei escrita
(emanação do Parlamento) é fonte do tipo. Sobretudo do chamado tipo incriminador, que

111
MIRABETE, op. cit., p. 43.
112
Ibid., p. 44.
113
Ibid., p. 45.
114
JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal – Parte General. Barcelona: Bosch, 1981. v. I. In:
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006. p. 180.
115
GRECO, op. cit., p. 181.
48

descreve a conduta considerada proibida”116. E para finalizar, Greco é claro ao afirmar que a
teoria do garantismo penal, sob o princípio nullum crimen sine lege, impõe ao legislador a
valer-se de uma lei para impor ou proibir condutas sob ameaças de sanção. O doutrinador
afirma que “quando a lei em sentido estrito descreve a conduta (comissiva ou omissiva) com o
fim de proteger determinados bens cuja tutela mostrou-se insuficiente pelos demais ramos do
direito, surge o chamado tipo penal”117. Diante do esclarecimento do que é um tipo penal,
pode-se detalhar a análise dos crimes estudados por esta monografia.

4.2 OS TIPOS PENAIS NO SISTEMA PENITENCIÁRIO

O inciso II da Lei 9.455 diz que também constitui crime de tortura “submeter alguém,
sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso
sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter
preventivo”. O bem jurídico protegido é a dignidade da pessoa humana118 e o §1º ratifica a
proteção também da pessoa presa ao determinar que “na mesma pena incorre quem submete
pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio
da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal”. Já o art. 136 do
Decreto nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, o Código Penal, descreve o delito de maus-tratos
da seguinte maneira:

expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância,
para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de
alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou
inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina.

É o último delito previsto no Capítulo III, que versa sobre crimes contra a integridade
física ou psíquica do ser humano. O bem jurídico protegido é a “incolumidade da pessoa
humana”, como leciona Julio Fabbrini Mirabete119.

116
VARGAS, José Cirilo. Introdução ao estudo dos crimes em espécie. Belo Horizonte: Del Rey, 1993. In:
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 20ª Ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 43.
117
GRECO, op. cit., p. 163.
118
RAMAYANA, op. cit., p. 132.
119
MIRABETE, op. cit., p. 141.
49

4.3 SUJEITOS ATIVOS E PASSIVOS NOS CRIMES DE TORTURA E MAUS-TRATOS

O tipo penal da tortura é crime comum. O jurista Marcos Ramayana cita Alberto Silva
Franco para classificar que o bem jurídico tutelado é bifronte porque garante os direitos de
cidadania e reprime os abusos praticados por qualquer pessoa. No entanto, o nosso objeto de
análise é o inciso II que pode ser aplicado na prática deste crime dentro do sistema
penitenciário e, portanto, é um crime especial. O delito de maus-tratos também é um crime
próprio porque exige a relação jurídica entre os sujeitos ativo (autor) e passivo (vítima). No
estudo presente esta relação é preenchida pelo servidor penitenciário e o preso.
O inciso II também dá margem de interpretação para que a vinculação jurídica seja
feita no campo público ou privado conforme ensina Victor Eduardo Rios Gonçalves120. O
doutrinador Alberto Silva Franco explica que o conceito de “guarda” é flexível e não está
fechada apenas às hipóteses em que a vítima, “em razão da lei ou de ato judicial, tenha sido
entregue ao sujeito ativo para efeito de ser protegido ou amparado, incluindo, também, as
hipóteses que essa ‘guarda’ provenha de qualquer situação fática devidamente
demonstrada”121. O jurista também explica que a idéia de “poder” compreende uma relação de
sujeição do sujeito passivo com quem pratica a tortura. Já o conceito de “autoridade” pode ser
encontrado legalmente na Lei 4.898/65.
O art. 5º da Lei de Abuso de Autoridade define como autoridade “quem exerce cargo,
emprego ou função pública, de natureza civil, ou militar, ainda que transitoriamente ou sem
remuneração”. O tipo configura a tortura-castigo aplicada por pessoas que abusam das normas
morais e legais quando possuem a guarda, o poder ou autoridade sobre outras pessoas.
Ramayana enumera os sujeitos ativos deste tipo penal próprio: pai, mãe, tutor, curador,
policial civil, militar, federal rodoviário, militar em geral, patrão, guarda penitenciário etc. Os
sujeitos passivos são filhos, tutelados, curatelados, idosos, presos cautelarmente ou por
sentença penal transitada em julgado, conscritos etc122.
O tipo penal maus-tratos também usa os conceitos de “autoridade e guarda ou
vigilância”. Sendo que esta tipificação, além da relação jurídica entre os sujeitos ativos e
passivos, exige que a dependência deve relacionar-se com “educação, ensino, tratamento ou
custódia”, ao contrário do inciso II do art. 1º que não demanda finalidade especial para a

120
GONÇALVES, Victor Rios Gonçalves. Crimes Hediondos, Tóxicos, Terrorismo e Tortura. Saraiva. In:
RAMAYANA, op. cit., p. 142.
121
FRANCO, op. cit., p. 129.
122
RAMAYANA, op. cit., p. 142.
50

prática do crime. Nelson Hungria discorre sobre as finalidades expressas no art. 136 do
Código Penal.

Educação compreende toda a atividade docente destinada a aperfeiçoar, sob o


aspecto intelectual, moral, técnico ou profissional, a capacidade individual. Ensino
é tomado, aqui, em sentido menos amplo que o de educação: é a ministração de
conhecimentos que devem formar o fundo comum de cultura (ensino primário,
ensino propedêutico). Tratamento abrange não ao o emprego de meios e cuidados
no sentido da cura de moléstias, como o fato continuado de prover a subsistência de
uma pessoa. Finalmente, custódia deve ser entendida em sentido estrito: refere-se à
detencão de uma pessoa para fim autorizado em lei123.

O §1º do inciso II do art. 1º da Lei 9,455/97 especifica ainda mais a prática da tortura
por inspetores penitenciários ao restringir que na mesma pena incorre quem submete pessoa
presa a sofrimento mental ou físico. Marcos Ramayana disserta que o legislador quis evitar
uma forma própria de tortura. Segundo ele, praticada por pessoas que exercem funções
especiais como o carcereiro, guarda penitenciário e outras pessoas que podem ou não ser
servidores público como médicos, enfermeiros, atendentes, psicólogos, psiquiatras, assistentes
sociais, etc124.
Embora o crime de tortura seja um delito comum, neste caso específico, o inspetor de
segurança penitenciária é o sujeito ativo e o preso é a vítima, o que torna este tipo de tortura
um crime especial.

4.4 IMPLICAÇÕES PENAIS PARA AGENTES PÚBLICOS QUE PRATICAM A


TORTURA E OS MAUS-TRATOS

A pena para o crime de tortura é de reclusão de dois a oito anos. A pena do tipo maus-
tratos é de detenção, de 2 (dois) meses a 1 (um) ano, ou multa. Ou seja, a diferença entre os
crimes de tortura e maus-tratos está no preceito secundário. O tempo da pena e o tipo da pena
privativa de liberdade. O art. 33 do Código Penal diferencia as modalidades de penas
privativas de liberdade. A pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semi-
aberto ou aberto. Já a de detenção, em regime semi-aberto ou aberto, salvo necessidade de
transferência a regime fechado. O §1º do mesmo artigo também diferencia os regimes de

123
HUNGRIA, Nelson, FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao código penal. 5 ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1979. v. 5. In: MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 20ª Ed. São Paulo: Atlas, 2003. p.
142.
124
RAMAYANA, op. cit., p. 147.
51

cumprimento de pena. O regime fechado deve ser executado em unidades penais de segurança
máxima ou média. O semi-aberto em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar.
O regime semi-aberto deve ser cumprido em casa de albergado ou estabelecimento adequado.
Todos os dois são crimes que podem ser qualificados pelo resultado. De acordo com
Mirabete, “são crimes qualificados pelo resultado aqueles em que a lei, ao tipo básico,
fundamental, acrescenta elementos que constituem um evento mais grave que o previsto no
tipo simples, cominando ao fato pena mais severa”125. O professor Rogério Greco detalha
mais:

(...) ocorre o crime qualificado pelo resultado quando o agente atua com dolo na
conduta e dolo quando o resultado qualificador, ou dolo na conduta e culpa no que
diz respeito ao resultado qualificador. Daí dizer-se que todo crime preterdoloso é
um crime qualificado pelo resultado, mas nem todo crime qualificado pelo
resultado é um preterdoloso. Há, portanto, dolo e dolo, ou dolo e culpa126.

Ambos os crimes estudados passam a ser qualificados quando resultam lesão corporal
grave ou morte. O jurista Marcos Ramayana acrescenta que “a figura qualificada é aplicável
diante do desdobramento causal e naturalístico da ação ou inação anterior. A agravação pelo
resultado (art. 19 do Código Penal) é incidente na culpa conseqüente”127. Ele explica que o
resultado mais grave é punido a título de culpa desde que haja previsão e extensível aos co-
autores. Se o dolo do agente causar lesão grave ou gravíssima (art. 129, §§ 1º e 2º, do CP) ou
morte (art. 121 do CP) haverá incidência de dois crimes diversos em concurso material e
exclusão da forma qualificada do §2º da Lei 9.455/97128.
Em comparação com os maus-tratos, a pena para o crime de tortura sempre é maior.
Os dois primeiros parágrafos do art. 136 descrevem os tipos do crime de maus-tratos
qualificado. O primeiro ocorre quando resulta lesão corporal de natureza grave e o segundo
quando da prática decorre morte. Nestes dois casos, a pena é de reclusão. Na lesão grave, de
um a quatro anos. Em caso de morte, de quatro a 12 anos. No crime de tortura existem dois
tipos de qualificação para a prática. O §3° estabelece que o crime seja qualificado quando da
tortura resulta lesão corporal grave ou gravíssima e a pena é de reclusão de quatro a dez anos;
ou se resulta morte, quando a pena é de oito a dezesseis anos.
Os dois crimes também possuem circunstâncias especiais de aumento de pena, quando
a sinalização é feita em fração. O jurista Alberto Silva Franco diz que “as causas de aumento

125
MIRABETE, op. cit., p. 47.
126
GRECO, op. cit., p. 314.
127
RAMAYANA, op. cit., p. 150.
128
RAMAYANA, op. cit., p. 150.
52

de pena, via de regra, distinguem-se das qualificadoras pelo fato de não possuírem um
preceito sancionatório autônomo”. No entanto, o doutrinador ressalta que têm o mesmo
efeito129. O art. 136 do Código Penal, que descreve o tipo maus-tratos, no §3° estabelece o
aumento de pena em um terço. O §4° do art. 1° da Lei 9.455/97 também estabelece causas
especiais para aumentar a pena, que pode ser de um sexto até um terço. No caso do delito de
maus-tratos, existe causa de aumento de pena somente para quem comete o crime contra
menores de 14 anos. O inciso II da Lei de Tortura também há previsão quando o crime é
cometido contra gestante, portador de deficiência, maior de 60 anos e criança ou adolescente.
Quando a vítima é criança (com idade até 12 anos) ou adolescente (até 18 anos)130, os
maus-tratos podem configurar o crime de tortura, antes previsto no art. 233 da Lei nº.
8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) e agora revogado pelo art. 4° da Lei de
Tortura e definido no art. 1º, §4°, II, da Lei nº. 9.455/97, desde que presentes os elementos do
tipo penal. Conforme Mirabete, “o crime autônomo só se configura se a tortura for infligida
como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo”131. No mesmo
parágrafo existem mais dois incisos que descrevem causas de aumento de pena, que podem
ser quando o crime de tortura é cometido mediante seqüestro (inciso III) e quando é praticado
por agente público (inciso I). Este último é o que interessa quando se trata dos delitos
cometidos por servidores do sistema penitenciário.
O conceito de agente público para implicações penais está descrito no art. 137 do
Código Penal. Segundo o documento repressivo, “considera-se funcionário público, para os
efeitos penais, quem embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou
função pública”. A doutrina instrui que a expressão “funcionário público” do CP está
dissonante da Constituição Federal e o conceito mais correto seria “servidor público”.
José dos Santos Carvalho Filho leciona que servidores públicos são “os agentes que,
exercendo com caráter de permanência uma função pública em decorrência de relação de
trabalho, integram o quadro funcional das pessoas federativas, das autarquias e das fundações
públicas de natureza autárquica”132.
Alberto Silva Franco aponta que a figura típica da tortura, quando o sujeito ativo é o
agente público, absorve as figuras delitivas do art. 322 do Código Penal, do inciso III, do
parágrafo único do art. 350 de mesmo documento e as alíneas i do art. 3° e b do art. 4° da Lei

129
FRANCO, op. cit., p. 136.
130
BRASIL. Lei 8.069, 13 de julho de 1990, art. 2º. Estatuto da Criança e do Adolescente.
131
MIRABETE, op. cit., p. 145.
132
FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999. In:
RAMAYANA, op. cit., p. 150.
53

de Abuso de Autoridade (Lei 4.898/65)133. O primeiro está descrito que é crime “praticar
violência, no exercício de função ou a pretexto de exercê-la”. O segundo que pratica delito
quem “submete pessoa que está sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento
não autorizado em lei”. Já o último que “constitui abuso de autoridade qualquer atentado (...)
à incolumidade física do indivíduo” e quem “submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a
vexame ou a constrangimento não autorizado em lei”. É importante destacar que para essa
causa especial de aumento de pena deve existir relação de causalidade entre a ação e omissão
penalmente relevante e o serviço público. Conforme mostra o professor Marcos Ramayana,
“exige-se especial conexão entre a qualidade de servidor público e o crime efetivamente
praticado. Na verdade, a lei procura punir uma forma de traição ou desmerecimento
funcional”134.
O §5° continua a tratar do tema quando o sujeito ativo do crime de tortura é agente
público. Neste caso, a legislação repreende que “a condenação acarretará a perda do cargo,
função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena
aplicada”.135. Conforme ensina Marcos Ramayana, não existem os limites impostos nas letras
a e b do inciso I do art. 92 do Código Penal, ao descrever que os efeitos da condenação
também são:

I – a perda do cargo, função pública ou mandado eletivo:


a) quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um
ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a
administração pública;
b) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a quatro anos
nos demais casos

A doutrina mostra que o juiz deve declarar expressamente na parte decisória da


sentença a perda do cargo, função ou emprego público no caso da tortura136 como exige o
mesmo artigo do CP que vimos acima. O parágrafo único enfatiza que “os efeitos de que trata
este artigo não são automáticos, devendo ser motivadamente declarados na sentença”.
Portanto, não são penas acessórias. De acordo com Marcos Ramayana, a lei protege pessoas
atingidas ilicitamente por ações ou omissões dolosas de natureza funcional, como também
penaliza servidores públicos que “desmerecem ou violam os mais comenzinhos princípios dos
deveres regulamentados estatutariamente”137.

133
FRANCO, op. cit., p. 135.
134
RAMAYANA, op. cit., p. 152.
135
Ibid., p. 155.
136
Ibid., p. 152.
137
Ibid., p. 155.
54

4.5 EQUIPARAÇÃO AOS CRIMES HEDIONDOS

Diferença considerável com o delito de maus-tratos é que o crime de tortura é


equiparado, ou seja, está no mesmo nível dos crimes considerados hediondos. A Lei Maior do
País, no art. 5º, inciso XLIII, garante essa afirmação:

(...) a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a


prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os
definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os
executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.

Após essa referência pela primeira vez aos crimes hediondos em 1988, uma legislação
ordinária deveria defini-los138. Somente em 1990 foi promulgada a Lei 8.072 (Lei de Crimes
Hediondos). A legislação foi considerada inconstitucional por alguns estudiosos e alguns
dispositivos foram revogados por causa da Lei de Tortura que passou a vigorar em 1997.
Antes de finalizar a análise dos tipos penais de maus-tratos e tortura com §§ 6º e 7º da
Lei 9.455/97, deve-se entender o que são os crimes hediondos. O termo hediondo tem origem
no espanhol e significa “repelente, repulsivo, horrendo” conforme consta do Dicionário
Aurélio. Já o Caldas Aulete esclarece que a palavra significa aquele “que manifesta extrema
abjeção ou depravação nos seus atos, que inspira pelos seus vícios ou crimes repulsa e
horror”139. A Lei de Crimes Hediondos veio de encontro ao desejo popular de endurecimento
das punições após uma onda de violência que assolou o País no fim dos anos 80. A Lei 8.072
aumentou as penas dos crimes de seqüestro (de 6 a 15 anos para 8 a 15 anos), estupro (de 3 a
8 anos para 6 a 10 anos) e de atentado violento ao pudor (de 2 a 7 anos para 6 a 10 anos). No
caso de seqüestro de menores de idade, a pena subiu de 8 a 20 anos para de 12 a 20 anos. O
homicídio qualificado passou a ser considerado crime hediondo em setembro de 1994, com a
emenda que ficou conhecida como Glória Perez. A filha da autora de novelas, Daniela Perez,
foi assassinada no Rio em dezembro de 1992 pelo ator Guilherme de Pádua e sua então
mulher, Paula Thomaz. Glória recolheu 1,3 milhão de assinaturas por todo o País e levou ao
Congresso o projeto de lei com a proposta de mudança140.
A promulgação da Lei de Tortura em 1997 fez surgir dúvidas acerca de dispositivos da
Lei 8.072/90. Os §§ 6º e 7º determinavam que “o crime de tortura é inafiançável e insuscetível
de graça ou anistia” e que o condenado pelo crime de tortura, com exceção daquele que se
138
MONTEIRO, Antonio Lopes. Crimes Hediondos: texto, comentários e aspectos polêmicos. 2 ed., São Paulo:
Saraiva, 1992. p. 18.
139
Ibid., p. 17.
140
GRIPP, Alan. Hediondo, mas com benefício. O Globo. 24/02/2006.
55

omite conforme descreve o § 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado entraram
em conflito com o art. 2º, inciso II e § 2º Lei de Crimes Hediondos que proibiam a fiança e a
liberdade provisória. A pena deveria ser cumprida em regime integralmente fechado.
O doutrinador Alexandre de Moraes, conforme cita Marcos Ramayana, afirma que a
Lei de Tortura revogou a proibição da concessão de liberdade provisória já que a legislação
mais recente não faz menção a tal impedimento e uma lei posterior revoga a anterior quando
regula matéria de que tratava a lei anterior141. O professor Alberto Silva Franco também
defende a inconstitucionalidade porque “a Carta Magna apenas diz que os crimes hediondos e
assemelhados são inafiançáveis, não autorizando o legislador da Lei de Crimes Hediondos
ampliar interpretação in malam partem para serem insuscetíveis de liberdade provisória” e
ainda salienta, que por ser mais benéfica, a Lei de Tortura revoga a de Crimes Hediondos na
possibilidade de concessão da liberdade provisória e não impede este benefício com ou sem
fiança142.
Já o conflito do § 7º da Lei 9455/97 com a Lei de Crimes Hediondos que trata do
regime inicialmente fechado foi alvo de várias posições no sentido que a última lei teria
revogado a anterior. Segundo Rogério Greco, a partir de então seria obrigatório o regime
inicial fechado, mas haveria a possibilidade da progressão da pena. A base para tal afirmação
está no texto legal que determinava que o regime ao ser inicialmente fechado dava a entender
que a intenção do legislador era permitir a progressão. O professor também apresenta outra
corrente que defendia ser possível a progressão somente para os crimes de tortura e não para
os demais delitos expressos na Lei 8.072/90143. Segundo Alberto Silva Franco, a linguagem
adotada denunciava o propósito de aplicar o regime progressivo com sua três etapas. O regime
fechado, o semi-aberto e o aberto. Para Franco, “o legislador infraconstitucional ajustou o seu
procedimento às normas constitucionais que abonam o princípio da individualização da pena
(art. 5, XLVI)”144. A questão, porém, foi resolvida no dia 23 de fevereiro de 2006 após uma
votação apertada no Supremo Tribunal Federal. Seis ministros votaram a favor e cinco contra
a inconstitucionalidade do artigo e deu a vitória ao pastor evangélico Oséas Campos,
condenado por molestar quatro crianças em Campos do Jordão, São Paulo145. A maior corte
do País decidiu que os §§ 1º e 2º, da Lei de Crimes Hediondos (8072/90) era inconstitucional.
Exatamente um ano depois da decisão do STF e motivado pelo crime bárbaro do menino João

141
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 3 ed. São Paulo: Atlas. In: RAMAYANA, Marcos. Abuso
de autoridade e tortura: leis 4.898 e 9.455 comentadas. Rio de Janeiro: Destaque, 2003. p. 156.
142
RAMAYANA, op. cit., p. 156 e 157.
143
GRECO, op. cit., p. 541.
144
FRANCO, op. cit., p. 139.
145
GRIPP, Alan. Hediondo, mas com benefício. O Globo. 24/02/2006.
56

Hélio no Rio de Janeiro, é que o Congresso Nacional decidiu fazer uma nova lei para
dificultar a progressão de pena para os crimes hediondos.
Os deputados e senadores aprovaram o Projeto de Lei 6793/06, do Poder Executivo, que
disciplina o direito à progressão de regime do condenado por crime hediondo e assemelhados
após mais de um ano da decisão do STF146. Pelo texto aprovado, o condenado por esse tipo de
crime terá de cumprir 2/5, da pena no regime fechado para poder pedir a progressão de pena
para o regime semi-aberto. Se ele for reincidente, deverá cumprir 3/5 da pena. Tornando o
benefício mais difícil já que para poder requerer a progressão, além dos critérios subjetivos
como o comportamento na prisão, ele teria que cumprir 1/6 da pena conforme o art. 112 da
Lei de Execução Penal (7.210/84) que foi alterado pela Lei 10.792/03. A Lei 11.464/2007 foi
sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e publicada na edição extra do Diário
Oficial da União do dia 29 de março147. A votação às pressas do projeto de lei para responder
ao clamor da população provocou uma falha na legislação que tinha como objetivo maior
rigidez. O texto restituiu legalmente ao acusado desse tipo de crime o direito de esperar o
julgamento em liberdade148.

4.6 ELEMENTOS DOS TIPOS PENAIS TORTURA E MAUS-TRATOS

Outra diferença para Ana Paula Nogueira Franco está nos elementos do tipo. No delito
de maus-tratos, a ação do agente expõe a vítima ao perigo e, portanto, o elemento subjetivo é
o dolo de perigo. O resultado se dá com a exposição ao dano149. Julio Fabbrini Mirabete
reforça a linha de reciocínio ao afirmar que a conduta típica é expor ao perigo a vida ou a
saúde do sujeito passivo que tem uma relação jurídica com o autor da ação150. O crime de
maus-tratos é exclusivamente doloso e o crime exige a vontade do agente de praticar qualquer
um dos atos descritos no tipo. Faz-se necessário o animus corrigendi ou disciplinandi, mas

146
Câmara dificulta progressão de pena para crime hediondo. Agência Câmara. 14/02/2007.
147
PIMENTEL, Carolina. Lula sanciona leis mais duras para crime hediondo e uso de celular em presídio.
Agência Brasil. 30/03/2007.
148
PENTEADO, Gilmar. Nova Lei de Crime Hediondo permite liberdade provisória. Folha de São Paulo.
09/04/2007.
149
FRANCO, Ana Paula Nogueira. Distinção entre maus-tratos e o art. 1º, n. II da Lei 9.455/97 da Lei de
Tortura, boletim do Instituo Brasileiro de Ciências Criminais, n. 62, jan. 1998. In: FRANCO, Alberto Silva.
Crimes Hediondos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 135.
150
MIRABETE, op. cit., p. 142.
57

não se exige a intenção lesiva e sim apenas a consciência de está colocando em risco a saúde
física ou psicológica da vítima151.
Já o inciso II do art. 1º da Lei de Tortura diz que o resultado se dá com o efetivo dano
que é o “intenso sofrimento” físico ou mental da vítima. O crime, então, é material. Nesta
última situação, o agente age com dolo de dano. A distinção entre os tipos penais de tortura e
maus-tratos deve ser verificada de acordo com o ânimo em que atuou o autor do delito,
segundo Alberto Silva Franco. Se a intenção do agente era corrigir, mesmo com uso de meio
abusivo ou até mesmo cruel, sua conduta ajusta-se à figura dos maus-tratos. Se atuou com o
fim de “provocar na vítima sofrimento físico ou mental, movido por sentimento subalterno ou
até mesmo vil, configura-se o delito de tortura”152. O mesmo autor cita Ana Paula Nogueira
Franco, que também ressalta que no crime de maus-tratos o agente abusa do seu ius corigendi
para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia. Já na tortura, a conduta ocorre com o
fim de castigo pessoal ou medida de caráter preventivo153.
Silva Franco ensina que a locução “pessoa presa” deve ser interpretada de forma
abrangente. Para ele, “pessoa presa” é aquela que está em prisão temporária ou em qualquer
outra forma de prisão temporária, como também em decorrência de sentença condenatória
transitada em julgado ou ainda sob recurso154. O preso em qualquer situação em que se
encontra não pode ser submetido a sofrimento físico ou psíquico.
O conceito de sofrimento físico ou mental não está claro na legislação contra a tortura.
Um dos argumentos levantados por Silva Franco é que a perícia médico-legal possa detectar o
sofrimento físico de alguém. No entanto, sabe-se que os agentes que praticam tais atos agem
com cuidado para não deixar vestígios no corpo da vítima e vários sofrimentos físicos podem
ser infringidos contra presos dessa maneira155. Neste aspecto, o crime deve ser classificado
como transeunte ou não transeunte quando a prática deixar ou não vestígios. Nestes casos,
ensina Ramayana, a palavra da vítima pode ser valorada pelo intérprete156. Fatos presenciados
pelo autor da monografia constatam o perigo dessa valoração por que algumas vezes os presos
se auto-agridem para imputar ao servidor penitenciário a prática do crime de tortura como já
foi visto.

151
Julgados do Tribunal de Alçada Criminal do Rio Grande do Sul (75-76). In: MIRABETE, Julio Fabbrini.
Manual de Direito Penal. 20ª Ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 144.
152
FRANCO, op. cit.,. p. 135.
153
FRANCO, op. cit,. In: FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2005. p. 135.
154
FRANCO, op. cit,. p. 130.
155
FRANCO, op. cit,. p. 130.
156
RAMAYANA, op. cit., p. 134.
58

Se a constatação da prática da tortura na esfera física é frágil, a obtenção da prova na


imposição de “sofrimento mental” contra uma pessoa é ainda mais delicada. Alberto Silva
Franco faz uma crítica contundente à subjetividade deste conceito no tipo penal tortura:

O sofrimento mental, dimensionado em termos não concretos, mostra-se de


extrema variabilidade, podendo ser diverso conforme a maior ou menor
sensibilidade ou capacidade reativa de cada pessoa. Uma ação criminosa é, no
entanto, um acontecimento empírico que deve ser taxativamente descrito e não um
acontecimento cujo preenchimento decorra de uma avaliação pessoal do juiz. A
locução “sofrimento mental” constitui, portanto, uma cláusula típica de caráter tão
genérico que põe em risco o princípio da legalidade157.

O sofrimento físico está ligado ao conceito de dor e tormento conforme esclarece


Nilton João de Macedo Machado. Já o sofrimento mental relaciona-se com a angústia, o
temor, a violação moral ou psicológica. Além da amplitude do conceito sofrimento mental, a
lei exige que o sofrimento seja “intenso”. Segundo Machado, “se não estiverem presentes
quaisquer destes elementos a conduta será atípica pelo menos em relação à Lei 9.455/97”158.
Também a experiência do autor do trabalho no sistema penitenciário pode garantir que alguns
presos não “sofrem intensamente” com os socos, tapas, chineladas e outras agressões físicas
dos servidores porque em certas situações chegam a pedir tal “castigo” após cometerem
alguma falta disciplinar na unidade. Tudo para que não respondam procedimento disciplinar
ou não sejam isolados do coletivo preventivamente e corra o risco de perder alguns benefícios
como as visitas de familiares e o “banho de sol” como já foi visto acima. Na verdade, é o
preso que fica grato por não ficar na cadeia por mais tempo, mas é a sociedade que paga com
o precoce retorno dele às ruas. Por outro lado, alguns inspetores dizem que seis meses a mais
ou a menos não vai fazer diferença para quem deveria ficar 10, 20 anos ou até a vida toda
preso.

157
FRANCO, op. cit., p. 130.
158
MACHADO, Nilton João de Macedo. Tortura e Maus-tratos contra criança e adolescente. Distinções, Revista
do ESMESC, ano 6, vol. 9. In: FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2005. p. 135.
59

CONCLUSÃO

É óbvio que não precisa ser um jurista renomado para saber a diferença entre o tipo
penal tortura e os maus-tratos. Contudo, essa monografia serviu para detalhar tais diferenças e
tornar mais claro dentro do contexto do sistema prisional a importância da diminuição de tais
práticas criminosas praticadas por agentes públicos. A análise dos tipos apresentou a
necessidade de que a vítima, no caso o preso, tenha sofrimento mental e este deve ser intenso
como um dos elementos do tipo para que a prática da tortura possa se configurar. Juristas
usados na monografia confirmam a fragilidade de tal elemento por sua amplitude e
subjetividade que pode colocar em risco até o princípio da legalidade por ser tão genérico. O
sofrimento físico também pode passar despercebido porque os autores da tortura usam
técnicas para que vestígios no corpo do condenado sejam escamoteados e não se tornem
elementos probatórios para comprovação do delito. O crime exige que o resultado seja de
efetivo dano, ou seja, é material. A finalidade do tipo tortura ocorre quando a conduta busca o
castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Já no caso dos maus-tratos, o agente abusa
do poder que detém para fins de corrigir o custodiado. É um delito exclusivamente doloso,
mas não demanda a intenção lesiva, mas apenas a consciência de expor ao perigo a saúde
física ou psicológica de alguém. O elemento subjetivo do tipo é o dolo de perigo.
O crime de tortura é equiparado aos crimes hediondos. E por ter sido conflituosa em
pontos que orientavam a liberdade provisória e a progressão de regime com a Lei de Crimes
Hediondos, a constitucionalidade da Lei de Tortura prevaleceu. O impedimento da progressão
de regime foi considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. O nível de
hierarquia do crime de maus-tratos é inferior da tortura e dos crimes hediondos. O que fica
claro quando verifica-se o tempo e o regime das penas para ambos os delitos. A tortura
sempre é punida mais severamente. A semelhança, e que deve ser a causa pela similiaridade
superficial entre os crimes, está nos sujeitos ativo e passivo dos delitos aqui estudados. Apesar
do crime de tortura ser um crime comum, o inciso II da Lei 9.455/97 exige que o autor seja
servidor público, como também ocorre nos maus-tratos quando a vítima é um preso do
sistema penitenciário. É necessária uma relação de sujeição entre ambos. A própria definição
60

também ajuda a diferenciar ambos os tipos. Enquanto entidades de defesa dos direitos dos
presos ajudam a confundir a compreensão dos crimes de tortura e maus-tratos, o verdadeiro
significado de ambos os delitos não é simples. A definição de tortura é ampla a ponto de ser
um crime próprio e não apenas praticado por alguém que possui uma posição de fato ou
jurídica como é o servidor do sistema penitenciário. Para estudar ambos os tipos quando
ocorrem dentro dos cárceres, foi necessário delimitar o tipo penal da tortura e dos maus-tratos
para alcançar o objetivo e mesmo assim várias peculiaridades de ambos os crimes e, que os
diferenciam, foram encontradas. O mais fundamental é que o bem jurídico protegido nos
maus-tratos é a incolumidade da pessoa humana e na tortura é a dignidade da pessoa humana.
A monografia apresentou os mecanismos impostos pelas normas específicas do
sistema penitenciário para evitar a tortura e os maus-tratos na cadeia. Embora, na prática
cotidiana do serviço de segurança penitenciária as sanções previstas no Regulamento do
Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro e na Lei de Execução Penal não sejam aplicadas
como deveriam ser. Uma relação social única e dependente entre inspetor e preso produz uma
série de outras “saídas” que vão desde pequenos castigos físicos até humilhações para evitar
que o registro de tal falta disciplinar vá para a ficha comportamental do preso e a perda de
benefícios e regalias ocorram com ele.
O fato é cultural e para modificá-lo é necessário um trabalho árduo – por um período
longo, mas constante – de conscientização por meio da difusão da informação e conhecimento
de que os agentes do Estado devem cumprir a lei, inclusive as que dão direitos aos presos. E
caso isso não seja respeitado, este servidor em vez de conter as reivindicações dos condenados
por meio da força desproporcional, tente ser um meio de auxílio do preso para obter do Estado
o cumprimento da própria lei elaborada por quem está no Poder. Desta forma, o inspetor
penitenciário deixa de ser cúmplice desse desrespeito e braço repressor do Estado, e passa a
ser o que dele se espera. Um servidor público, do povo, que está ali para cumprir a lei em
favor do Estado, da população e não de um governo. As autoridades que comandam a
máquina estatal devem deixar o discurso hipócrita de respeito aos Direitos Humanos com a
produção de leis que não podem ser cumpridas e passar a respeitar o que eles próprios
determinam. As leis são caducas e tal ineficácia provoca um ambiente de descontrole que só
pode ser contido com ações ilegais. E quem executa a ilegalidade são os servidores, que
devem responder conforme o que se exige deles. Se a sociedade quer o endurecimento do
tratamento penal, que se façam leis, ou melhor, que se convoque uma Assembléia
Constituinte e se faça uma nova Constituição Federal para permitir outros tipos de penas
como a perpétua ou de morte. Porém, não podemos aceitar que isso aconteça de forma velada.
61

Pois quando um Estado Democrático e de Direito que possui um modelo garantista para
proteger o cidadão descumpre as leis que faz, cria-se um álibe para que os próprios cidadãos
também o pratiquem. No entanto, somente estes – os presos e os inspetores (o povão em
geral) – são penalizados efetivamente. Os presos têm deveres, mas também são sujeitos de
direitos que não perdem quando estão privados de liberdade. O equilíbrio entre sanções e
recompensas que o preso recebe por causa do comportamento prisional o ajuda a compreender
a necessidade de aprimorar a própria relação social que deverá ter ao sair dos muros de uma
cadeia. Certo é que alguns presos são indisciplinados porque não foram educados para viver
em sociedade. As falhas estão no próprio Estado, na família e na própria sociedade que perdeu
valores essenciais para o fortalecimento do caráter de cada indivíduo nas últimas décadas. No
entanto, o que também é fato é que parte considerável das indisciplinas é resultado do não-
cumprimento dos direitos dos presos. Neste caso, o Estado falido, que quase sempre não tem
recursos para cumprir a lei, exige um controle dessas reivindicações dos apenados, por meio
de práticas ilegais como a violência.
A capacitação do novo servidor, a recapacitação ou reciclagem dos que já trabalham
há anos no sistema deve ser uma constante no serviço penitenciário. A qualificação e a
valorização de quem executa essa função deve ser política pública urgente para evitar
conseqüências futuras piores que as já vivenciadas há alguns anos. A disciplina, junto com a
oportunidade de trabalho, a educação e o apoio familiar são bases para recuperação de quem
comete um crime e deseja voltar à sociedade de forma digna; são formas de acompanhar,
verdadeiramente, a tendência mundial de respeito aos Direitos Humanos e evolução no
tratamento do preso.
62

REFERÊNCIAS

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