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Nelson Studart
As forças no avião • Arrasto (R), essencialmente
Departamento de Física, Universidade
uma força de atrito, é a componente

P
Federal de São Carlos, São Carlos ara os físicos, as forças da natu- da força aerodinâmica paralela à dire-
e-mail: studart@df.ufscar.br reza são quatro: a forte, respon- ção de vôo;
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ável pela coesão nuclear, a fraca • Peso é a força da gravidade
Sílvio R. Dahmen que produz a radioatividade, a eletro- (P = mg) atuando sobre o avião e diri-
Instituto de Fisica, Universidade magnética que está relacionada à maio- gida para o centro da Terra;
Federal do Rio Grande do Sul, Porto ria dos fenômenos com os quais con- • Tração (T) é a força produzida
Alegre e Physikalisches Institut, vivemos no cotidiano e finalmente a pelo motor e é dirigida ao longo do
Universität Würzburg, Würzburg.
gravitacional que atua entre quaisquer eixo longitudinal do avião.
e-mail: silvio.dahmen@ufrgs.br e
sdahmen@physik.uni-wuerzburg.de
corpos que possuem massa. Antes de discutir o movimento do
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ No jargão aeronáutico também se avião, é instrutivo calcular as forças
costuma falar em “quatro forças”. A de sustentação e arrasto na simples
menção obviamente restringe-se ao experiência com uma pipa. Para nos-
mundo particular de quem lida com sos propósitos, é suficiente considerar
o vôo e seu conhecimento é funda- a pipa como uma placa plana de área
mental para que os pilotos possam A. Na Fig. 1, apresentamos as forças
voar apropriadamente. O vento fluin- atuando sobre a pipa suposta em re-
do em uma determinada direção em pouso. Nesta situação, a tensão no fio
relação ao avião exercida por quem
produz uma força No jargão aeronáutico empina a pipa deve
sobre o aeroplano costuma-se falar em ser igual à resultan-
chamada de força “quatro forças”: te das forças. Consi-
aerodinâmica total. • Sustentação derando o sistema
Uma outra gran- • Arrasto ortogonal de coor-
deza intimamente • Peso denadas orientado
ligada à força aero- • Tração na direção da Terra,
O vôo tem inspirado a imaginação do homem
desde tempos remotos. Antes algo restrito a pou- dinâmica e também obtemos
cos, hoje os aviões se tornaram um meio de muito importante na descrição do vôo
transporte acessível, fato este comprovado pelo , (1)
crescimento espantoso do transporte aéreo nos
é o ângulo de ataque definido como o
últimos anos. Mesmo com esta popularização ângulo formado pela direção do vento
. (2)
a fascinação pelo vôo continua. Assim é sur- (chamado usualmente de “vento rela-
preendente como a descrição do vôo não tenha tivo”) e a direção do avião. Se você medir com um dinamô-
sido usada intensamente em livros didáticos e
na sala de aula para demonstrar em todos os
A força aerodinâmica total pode metro a força sobre o fio T e o ângulo
níveis de escolaridade a aplicação de princípios ser decomposta em duas componen- de inclinação θ, você terá uma boa es-
básicos da Física em exemplos atraentes. Nada tes: a sustentação e o arrasto. Além timativa das forças de sustentação e
contra as roldanas, os planos inclinados e outros desta, atuam sobre o avião o peso e a de arrasto. É importante notar que o
exemplos ideais, que ainda são importantes
como maneira de se treinar a abstração e reduzir
força de tração (ou propulsão). ângulo θ destas equações é o ângulo
problemas a seus elementos fundamentais. Mas Podemos definir mais especifica- que o fio da pipa faz com a relação à
um exemplo prático de um dia-a-dia cada vez mente as quatro forças envolvidas na horizontal e não deve ser confundido
mais próximo das pessoas desempenha sem física do vôo como com o ângulo que a pipa faz com
dúvida um papel essencial ao mostrar para os
alunos uma física presente na sua vida. Neste
• Sustentação (S) é a componente relação a esta mesma horizontal. Este
artigo, propomos o exemplo prático e fascinante da força aerodinâmica perpendicular último é o chamado ângulo de ataque
do vôo para ilustrar conceitos e leis da Física. à direção do movimento do vôo; e embora não apareça explicitamente

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são constante, o diagrama de forças diferença marcante é que enquanto as
referente às forças da Fig. 2 com o forças aerodinâmicas dependem da
sistema de coordenadas orientado na velocidade e do ângulo de ataque, a
direção longitudinal do avião (eixo x) força normal e a força de atrito são
indica que constantes.
Há dois outros pontos interessan-
, (3)
tes que merecem uma discussão: tal-
vez para os alunos seja mais “intuiti-
. (4)
vo” decompor as forças nos eixos x e
Durante a descida e novamente y num referencial do observador no
supondo que não existe aceleração em solo e não em um referencial relativo
qualquer direção temos que aos eixos do avião. Neste caso as
Eqs. 3 e 4 passam a serem escritas na
S - P cosθ = 0, (5)
forma
T + P senθ - R = 0. (6) , (7)
A Eq. 4 indica que, na descida, a
sustentação é menor do que o peso do
. (8)
Figura 1. Forças atuando sobre uma pipa
avião, como se pode supor à primeira
de seção reta com área A. vista, já que a força da gravidade deve Neste caso podemos ver pela Eq. 8
ser a responsável pela “queda” do avião que se a tração for maior que o ar-
nas Eqs. 1 e 2, ele entra implicitamente [2]. Curiosamente, o mesmo acontece rasto, então a diferença (T - R) sen θ é
nas fórmulas que determinam a na subida. Para qualquer ângulo de ata- exatamente o termo extra que se adi-
sustentação S e o arrasto R. Além dis- que, a sustentação é menor do que o ciona à sustentação para contrabalan-
so quem já empinou sabe que a ten- peso como mostram a Eqs. 4 e 6, se çar o peso. Pergunte aos seus alunos
são no fio depende da velocidade do tornando igual apenas para vôo o que aconteceria se T = R. O avião
vento. Assim também as forças de nivelado. Este resultado deve surpre- levantaria vôo?
sustentação e arrasto, como veremos ender muitos estudantes que, em ge- Um outro ponto interessante que
mais à frente. ral, têm a idéia preconcebida de que pode gerar alguma confusão deve ser
Voltemos ao avião. A Fig. 2 é uma para que um avião suba, a força de sus- destacado. A posição do avião na
representação esquemática das quatro tentação deve exceder o peso do avião. Fig. 3 é típica de um procedimento de
forças quando o avião está subin- Pergunte a opinião de seus estudantes descida rápida e não de pouso. Pode-
do [1]. antes de iniciar a aula. mos imaginar as conseqüências se um
A Fig. 3 mostra o avião na descida A situação acima discutida é aná- avião pousasse nesta posição. Por este
rápida com o motor fornecendo ainda loga ao caso, descrito na ampla mai- motivo pouco antes da aterrissagem
alguma potência. oria dos livros didáticos, de blocos o avião se posiciona como na Fig. 2.
Para um avião que está nivelado sendo arrastados para cima ou escor- Para ilustrar este ponto realçamos na
em vôo de cruzeiro com velocidade regando em rampas com atrito. A Fig. 4 as forças atuando sobre um
constante (cerca de 900 km/h a força normal neste caso corresponde aeroplano em uma descida lenta para
10.000 m de altitude) a resultante das à força de sustentação e curiosamente pouso em atitude de nariz elevado
forças é nula e devemos obter S = P e não nos surpreendemos com o fato com o motor ainda gerando uma pe-
T = R. da normal N (o análogo à força S no quena tração.
No entanto na subida ou na nosso caso) ser menor que o peso P. A Neste caso, embora as Eqs. 3 e 4
descida a situação é bastante diferente.
Por exemplo, na subida a uma veloci-
dade constante e a uma taxa de ascen-

Figura 2. Forças sobre um avião no procedimento de subida Figura 3. Forças sobre um avião no procedimento de descida
com velocidade constante e taxa de ascensão constante. com velocidade constante e taxa constante.

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continuem válidas (ou as Eqs. 7 e 8, A mecânica de fluidos era um im- fluidos e da hidrostática. Na Proposi-
dependendo do referencial que esco- portante tema de pesquisa à epoca de ção 33 ele mostrou que corpos mo-
lhermos), a analogia com o plano Newton em particular não menos de- vendo -se em um fluido sofrem
inclinado deixa de ser válida em vido à teoria do éter. Embora possa- “resistências em uma razão composta
função da direção do vôo, isto é, do mos encontrar as da razão do quadra-
movimento do avião. Outro ponto raízes do conceito É comum associarmos o do de suas veloci-
fundamental é que durante o proce- de éter na filosofia nome de Isaac Newton à dades, e uma razão
dimento de pouso o avião muda a dos pensadores gre- mecânica, em particular à do quadrado de seus
configuração das asas (usando os gos, foi René Des- mecânica de corpos rígidos diâmetros e uma
chamados flaps), tornando assim a cartes (1596-1650) ou à teoria da gravitação, razão simples da
área efetiva da asa maior. Isto tem quem pela primeira bem como à óptica. Porém densidade das partes
conseqüências importantes para os vez tentou introdu- suas contribuições à dinâmica dos sistemas”. Esta
valores das forças de sustentação e zir de forma des- de fluidos e à hidrostática é a lei do quadrado-
arrasto, que dependem da geometria critiva o conceito de foram fundamentais, embora da-velocidade para a
das asas e da velocidade do avião, éter em Física como nem sempre tão lembradas força aerodinâmica
como já pudemos explicar. Assim os um elemento indis- de um corpo em um
valores de S, T e R que aparecem nas pensável à realidade física do universo. fluido. Ao mesmo tempo, Newton
equações são diferentes das outras Para Descartes toda a matéria do mostrou que esta força era propor-
situações discutidas. universo era formada a partir de uma cional à área da seção reta A (“a razão
Sugerimos que, na discussão das proto-matéria que se manifestava de do quadrado de seus diâmetros”) e
leis de Newton, o equilíbrio de forças três formas: a matéria da qual eram varia diretamente com a densidade (“a
seja discutido de um modo mais formados o Sol e estrelas, a matéria razão simples das densidades”). Em
atraente e motivador usando um que formava os planetas e cometas notação moderna, podemos escrever
objeto tão fascinante como o avião pa- bem como um meio intermediário,
Fr ∝ ρAv2. (9).
ra ilustrar um aparato tradicional que preenchia todo o espaço e inter-
como o “bloco sobre o plano incli- mediava as forças entre todos os cor- Ao final do século XIX, a essência
nado”. pos. Por isso a necessidade de se desen- desta fórmula estava justificada tanto
volver uma teoria deste “meio inter- do ponto de vista teórico como expe-
Forças dependentes da meário”, uma tentativa que manteve rimental. As equações para as forças
velocidade os físicos ocupados até a segunda me- de sustentação e arrasto podem, en-
É comum associarmos o nome de tade do século XIX. Segundo o histo- tão, ser escritas como
Isaac Newton (1642-1727) à mecâ- riador John Anderson Jr. em sua
nica, em particular à mecânica de celebrada obra A History of Aerody- , (10)
corpos rígidos ou à teoria da gravita- namics (Cambrigde University Press,
ção, bem como à óptica. Porém suas 1997), o interesse em hidrodinâmica e
contribuições à dinâmica de fluidos e por parte de Newton não foi devido a
à hidrostática foram fundamentais, razões práticas, mas com o intuito de , (11)
embora nem sempre tão lembradas mostrar a inadequação do modelo de em que CL e CR são os coeficientes de
quanto suas outras contribuições. Descartes para o sistema solar que era sustentação e arrasto respectivamente
Este “esquecimento” é algo recorrente baseado na hipótese de que o éter mo- e o fator 1/2 foi introduzido por con-
na história das ciências, uma vez que via-se como vórtices em torno dos venção. A questão crucial era (e per-
grandes cientistas muitas vezes pro- planetas. A única explicação possível manece de certo modo até hoje!)
vocam mudanças tão profundas em para o movimento regular e periódico determinar como estes coeficientes de-
seus campos de trabalho que outras dos planetas, de acordo com as obser- pendem do ângulo de ataque. Foi
contribuições também importantes vações de Johannes Keppler (1571- Newton o primeiro a calcular esta de-
por eles dadas acabam ficando em se- 1630), era que os corpos celestes mo- pendência. O modelo de Newton para
gundo plano. vendo-se no éter não sofreriam arras- um fluido correspondia a uma coleção
to aerodinâmico. Newton de partículas individuais que ao se
devotou-se a mostrar que chocar diretamente contra a superfície
sempre existiria um arrasto de um corpo perdiam as componentes
finito sobre os corpos (inclu- dos momentos lineares na direção
sive os celestes) movendo-se normal e seguiam na direção tangente
em um meio contínuo. à superfície do corpo. Com base neste
As contribuições de modelo, ele mostrou na Proposição 34
Newton para aerodinâmica que
aparecem no livro II dos
Figura 4. A direção das quatro forças em uma descida Principia que trata exclusi- Fr = ρv2A sen2θ. (12)
para pouso em atitude de nariz elevado. vamente da dinâmica dos Esta é a lei do seno-quadrado de

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Newton. Adaptando este resultado equivalentes às equações do movi- cia prática. Os aviões de caça (F16, por
para uma asa na forma de uma placa mento de Newton para partículas são exemplo) chegam a atingir inacre-
plana, como a pipa ilustrada na Fig. 1, as equações de Euler referentes à con- ditáveis 9g.
e decompondo a força aerodinâmica servação da massa, do momento e da
em suas componentes temos que energia. Sustentação
(Fig. 5) Das quatro forças, a mais funda-
Fator de carga g mental para o vôo é a força da sus-
S = Fr cosθ = ρv Asen θcosθ,
2 2
(13)
Outra situação que merece discus- tentação. E a explicação, em termos
R = Frsenθ = ρv2Asen3θ, (14) são em sala de aula é o movimento do simples, de como ela pode ser enten-
e, finalmente, avião durante uma curva [3]. Quando dida tem sido alvo de inúmeras con-
as asas se inclinam de um ângulo φ, trovérsias na literatura e conceitos
. (15) como mostrado na Fig. 6, uma com- errôneos têm sido empregados [9]. Eis
ponente da força de sustentação apon- a questão: Princípio de Bernoulli ou
Estes cálculos de Newton levaram ta na direção do centro da curva leis de Newton para explicar como as
a predições muito pessimistas com originando uma força centrípeta Fc = asas de um aeroplano “realmente”
relação à possibilidade de vôo do mais- mv2/r, em que m é a massa do avião, v funcionam? Na verdade, Newton e
pesado-que-o-ar porque elas previam a sua velocidade e r o raio da trajetória Bernoulli não se contradizem e tanto
uma força de sustentação muito circular. as leis de Newton quanto o “princípio”
pequena, para pequenos ângulos de Do equilíbrio das forças temos que de Bernoulli são perfeitamente com-
ataque, por causa da dependência do patíveis. Aliás a equação de Bernoulli
tipo seno-quadrado. Se a opção fosse , (16) é facilmente obtida como uma equa-
aumentar o ângulo de ataque θ, a ra- ção de conservação de energia a partir
zão S/R decresceria bastante. A outra das leis de Newton. A raiz da discórdia
opção seria aumentar a área da asa. P = mg = S cosφ, (17) é que cada lado da disputa exige que
Neste caso seriam necessárias asas de forma que apenas a sua interpretação deva ser
gigantescas que tornariam imprati- ensinada, posto que seria “a correta”.
cáveis as máquinas voadoras. O mo- . Ambas as descrições podem e devem
(18)
delo do Newton não descreve de modo ser usadas. O ar, ao ser defletido pela
adequado um fluido e, portanto, feliz- asa, é acelerado para baixo exercendo
O ângulo de inclinação é, portan-
mente suas predições estavam erra- força sobre a asa (2ª lei de Newton).
to, determinado de maneira única pa-
das. Mas, mesmo assim, estes argu- Esta por sua vez, exerce uma força de
ra uma determinada curva. Outra
mentos foram utilizados pelos físicos reação (3ª lei de Newton) que origina
conclusão muito interessante pode ser
ao final do século XIX para descartar a sustentação. Por outro lado, as
obtida substituindo a velocidade na
a possibilidade concreta de vôo do linhas de corrente acima da asa estão
Eq. (16) pelo seu valor na Eq. (18). O
mais pesado-que-o-ar. mais comprimidas que as linhas abai-
resultado é
Atenção! O modelo de Newton xo da asa. Como conseqüência, a velo-
de um fluido constituído de uma S = mg secφ = mg’, (19) cidade do ar acima da asa é maior do
coleção de partículas colidindo com que a de baixo da asa. É como apertar
paredes na forma exposta acima está tal que a saída de uma mangueira: a água jor-
errado. Alguns textos ainda incorrem g’ = g secφ. (20) ra com mais velocidade [5]. Pela
no erro de explicar sustentação
através dos choques das moléculas do Este é o valor efetivo
ar incidindo sobre as asas. Um fluido para a aceleração da
é corretamente descrito através de um gravidade em um avião
modelo descrito em termos de funções realizando uma curva
contínuas como velocidades, densi- que é maior que a ace-
dades e campos de tensão. As equações leração da gravidade
por um fator de secφ.
Para uma curva com
ângulo de inclinação de
60° corresponde a 2g.
Este fator de carga (no
jargão aeronáutico) que
a estrutura do avião
Figura 5. Decomposição da força aerodi- deve suportar e os pilo-
nâmica atuando sobre uma placa plana tos (assim como os pas-
para ilustrar a lei do seno-quadrado de sageiros) “sentem” tem Figura 6. Avião em uma curva de raio r inclinado lateral-
Newton. considerável importân- mente (movimento conhecido como rolamento).

Física na Escola, v. 7, n. 2, 2006 A física do vôo na sala de aula 39


equação de Bernoulli P + (1/2)ρv2 = mostra as linhas de corrente sobre um
constante, onde P é a pressão e ρ a aerofólio em um túnel de vento em
densidade do ar, há uma diferença de que o fluxo torna-se visível devido à
pressão que causa a força de susten- introdução de fumaça. Evidencia-se
tação. claramente que a concepção de “tem-
Dois graves erros carecem ser real- pos iguais” ou “distância percorrida
çados. O primeiro que aparece em vá- maior por cima da asa” é uma falácia.
rios livros didáticos (talvez a explica- Na verdade o ar que flui pelo extra-
ção mais popular) usa a hipótese de dorso (a parte superior) da asa chega
que os tempos de trânsito do ar, por ao bordo de fuga antes que o ar que
cima e por baixo da asa, são iguais. flui ao longo do intradorso (a parte Figura 8. Distribuição esquemática das li-
Daí, como a superfície superior da asa inferior). nhas de corrente através de uma asa.
é, em geral, mais longa, a velocidade É muito comum encontrar-se em ERRADO!
do ar acima é maior do que a veloci- livros didáticos e sítios na Internet
dade abaixo. A solução numérica das uma explicação baseada na descrição Newton.
equações da aerodinâmica e a expe- de uma força sobre a asa que não cau- O cenário correto é mostrado na
riência demonstram que esta hipótese, sa nenhuma perturbação na corrente Fig. 9 em que as linhas de fluxo acom-
embora plausível, é falsa. A Fig. 7 de ar. Observe a Fig. 8. A ilustração panham a superfície superior e se-
mostra que as linhas de corrente após guem para baixo após deixarem o bor-
o bordo de fuga, são paralelas às li- do de fuga. A Fig. 9 ainda exibe clara-
nhas do fluxo incidente. Se, sobre a mente o fato de que o espaçamento
asa, age uma força para cima para entre as linhas na parte superior é
compensar o peso do avião, o ar deve menor do que na parte inferior, que é
ser acelerado para baixo de modo a essencial para o emprego correto do
produzir a força de reação (a susten- princípio de Bernoulli na explicação
tação), Assim, o fluxo após a saída da sustentação das asas.
da asa nunca pode estar na direção
paralela ao fluxo incidente. Uma sim- Movimento relativo
ples aplicação das leis de Newton. Outra aplicação interessante do
A discussão da Fig. 8 na sala de vôo para fins didáticos concerne ao
Figura 7. Linhas de corrente do ar através aula pode possibilitar uma aprendi- movimento relativo. É um tema
de uma asa em túnel de vento. zagem mais significativa das leis de pouco abordado no ensino da mecâ-

Sustentação e arrasto em asas reais


Embora a discussão a seguir es- que relaciona l, a sustentação por de correntes varia à medida que nos
teja um pouco acima do nível de unidade de comprimento da asa (sua deslocamos sobre a asa, da fuse-
alunos do Ensino Médio, é importan- envergadura) com a chamada circu- lagem até a sua ponta, o que torna
te que façamos alguns comentários lação Γ do ar em torno da asa, mais assim o cálculo da circulação de certo
a respeito dos coeficientes de arrasto especificamente, modo pouco útil. Esta variação da
e sustentação em situações práticas circulação é inclusive um dos moti-
l=ρvΓ (B1)
(o projeto de aviões) por uma ques- vos pelos quais aviões modernos
tão de completeza. Na vida real as em que v é a velocidade do vento rela- possuem uma extensão vertical na
Eqs. 10 e 11 são normalmente usa- tivo. Esta circulação é definida de ma- ponta das asas (as chamadas
das como as definições dos coeficien- neira semelhante à circulação do cam- winglets) que contribuem para um
tes de sustentação CL e de arrasto CR, po elétrico ou magnético em eletro- aumento efetivo da área das asas e
que podem então ser determinados magnetismo, com a diferença que a têm um papel importante na mini-
experimentalmente, uma vez que integral da circulação é sobre a velo- mização de vórtices que normal-
seu cálculo teórico pressupõe uma cidade do ar ao longo de uma curva mente se formam na ponta de asas
série de idealizações e nos dá resul- fechada. Com este teorema é possível normais e afetam a sustentação. Co-
tados que podem diferir sobremanei- calcular CL. Porém a teoria de aerofó- mo dissemos, podemos “definir” o
ra quando tratamos de aviões reais. lios (e o teorema acima) parte do pres- coeficiente de arrasto da Eq. (11)
A maioria dos livros-texto de mecâ- suposto que a asa tem envergadura como
nica de fluidos que trazem um infinita pelo simples motivo que neste
capítulo sobre “aerofólios” normal- caso o perfil das linhas de corrente de . (B2)
mente introduzem para tanto o fa- ar são iguais ao longo da envergadura
moso teorema de Kutta-Joukovski da asa - em aviões de verdade o perfil

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O termo ρv2/2 é conhecido como a diferença de pressão do ar que flui de eficiência e depende de como a sus-
pressão dinâmica e por definição pelo extradorso e o intradorso, na tentação varia ao longo do compri-
podemos dizer que o coeficiente de ponta da asa, onde estas duas “lâmi- mento da asa. A maioria dos aviões
arrasto é assim a razão entre o ar- nas” de ar se encontram, o ar de baixo atuais possui e < 1. Porém, o grande
rasto e a força resultante do produto (pressão maior) é empurrado para pioneiro da aerodinâmica, Ludwig
da pressão dinâmica pela área (a cima (onde a pressão é menor), o que Prandtl, mostrou que se a corda de
pressão dinâmica quando mul- acaba provocando um redemoinho uma asa variasse elipticamente da
tiplicada pela área de nosso corpo é (turbulência) que contribui para o fuselagem à ponta, então e = 1 e
a força que sentimos nos voltando arrasto - e agora fica claro o porquê neste caso era possível diminuir o ar-
contra o vento). A área A nesta dos aviões modernos utilizarem rasto induzido. Ou seja, olhando a
equação é a chamada “área de refe- winglets, cuja função é eliminar esse asa de baixo ela tem o perfil de uma
rência” que pode ser tanto a área real efeito na ponta da asa. As outras elipse. Uma forma aproximada de
da superfície da asa como a chamada grandezas no segundo termo da Eq. “asa elíptica” foi usada durante a II
“área frontal do avião”, que seria a (B3) são a razão de aspecto da asa e o Guerra Mundial nos famosos caças
área que o avião ocupa quando o fator de eficiência de envergadura. A Spitfire ingleses e nos bombardeiros
olhamos de frente. Para aviões reais razão de aspecto é a razão entre o Heinkel 111 alemães. Embora vanta-
costuma-se separar a Eq. B2 em dois quadrado da envergadura s2 e a área josa do ponto de vista de eficiência,
termos da asa A, ou seja, Ar = s2/A. Deste estas asas apresentam um proble-
modo, se quisermos diminuir o ma: sendo a sustentação pratica-
(B3) arrasto induzido, temos que aumen- mente constante ao longo do com-
tar a razão de aspecto (aumentar a primento da asa, quando o avião
em que o termo CR0 é a parte do coe- envergadura e diminuir a área). Por entra em condições de estol (termo
ficiente que depende da viscosidade isso planadores têm uma asa longa e técnico para designar a perda de
do ar e da forma da asa. O segundo delgada, pois uma vez que não pos- sustentação) ele o faz simulta-
termo é o chamado “arrasto indu- suem motor, eles têm que tentar dimi- neamente em todo ponto da asa, o
zido” e surge nas asas devido à sus- nuir ao máximo o arrasto induzido que pode levar a uma perda súbita
tentação. Como ele surge? Bem, com produzido pela sustentação. O fator do controle da aeronave.

é o solo e, portanto temos que avião esteja no ar tão rápido quanto


possível na decolagem e consiga parar
vavião-ar = vavião-solo - vvento (21)
tão cedo quanto possível na aterris-
No caso em que o sistema de refe- sagem. No caso da aterrissagem ele
rência é o avião não podemos medir tem que, uma vez em solo, desacelerar
diretamente a velocidade do vento, e isto é possível com um forte vento
mas podemos calculá-la a partir da contra (maior arrasto). Também os
relação entre as velocidades do avião aviões modernos utilizam os “contro-
Figura 9. Distribuição esquemática das li- como les de superfície de asa”, que são partes
nhas de corrente através de uma asa. móveis que no pouso servem como
vvento = vavião-ar - v avião-solo (22)
CERTO! breques aerodinâmicos.
A importância da velocidade rela- Peça a seus alunos também que,
nica do Ensino Médio, mas de funda- tiva explica por que os aviões decolam se um dia tiverem a oportunidade de
mental importância para a discussão e aterrissam em diferentes pistas de voar, que olhem as informações de
do princípio da relatividade de Galileu, pouso em diferentes
mais conhecido como a lei da inércia. dias. Os aviões visam a
A velocidade de um corpo depende do fazer a decolagem e
sistema de referência. A composição aterrissagem contra o
das velocidades leva à conhecida lei da vento que exige uma
adição de velocidades de Galileu (que menor velocidade em
vai ser modificada por Einstein na teo- relação ao solo para ser
ria da relatividade especial). Na aero- transportado no ar. Isto
dinâmica a velocidade relativa é um significa uma distância
conceito-chave, pois, como vimos, a mais curta a ser per-
força aerodinâmica depende do qua- corrida ao longo da
drado da velocidade relativa do objeto pista. Como as pistas
em relação ao ar. têm comprimento fixo,
Na Fig. 10 o sistema de referência é conveniente que o Figura 10. Composição de velocidades no referencial do solo.

Física na Escola, v. 7, n. 2, 2006 A física do vôo na sala de aula 41


vôo normalmente fornecidas nos mo- acordo com os objetivos do programa em que os temas já foram abordados
nitores de bordo ou transmitidas pelo estabelecido para a série escolar. nas referências aqui citadas.
comandante. A referência é sempre à
“velocidade em relação ao solo”, por- Conclusões
Notas e Referências
que para um passageiro na verdade esta Discutimos neste artigo como a
[1] G.J. Flynn, The Physics Teacher 25,
é a que importa, pois determina Física do vôo pode ser usada para ilus- setembro, 368 (1987).
quando ele chegará ao objetivo dese- trar alguns conceitos como composi- [2] Pilotos profissionais costumam dizer,
jado. Esta velocidade pode ser muito di- ção de forças, forças dependentes da jocosamente, que um pouso nada
ferente da velocidade do avião em re- velocidade e sistemas de referência em mais é que uma queda controlada - o
lação ao ar em função da presença dos um exemplo bastante prático e inte- que não deixa de ser uma verdade!
Obviamente, como as equações acima
chamados ventos de proa ou ventos de ressante [6,7]. Procuramos chamar nos indicam, trata-se de uma queda a
popa. Para viagens de longa distância, também a atenção para alguns con- velocidade constante.
estes ventos podem aumentar ou dimi- ceitos errôneos comumente propa- [3] N.H. Fletcher, Physics Education 10,
nuir a duração da viagem em horas. gados em livros didáticos, como o julho, 385 (1975).
Observe que as velocidades consi- chamado “princípio dos tempos de [4] Sobre a sustentação das asas, veja os
deradas são grandezas vetoriais. Deste trânsito iguais”. Embora alguns dos artigos de Anderson e Eberhardt (p.
43) e Eastlake (p. 53) bem como o de
modo, o material aqui discutido pode assuntos aqui discutidos, em particu-
Klaus Weltner, Martin Ingelman-
então ser estendido para tratar proble- lar a questão do coeficiente de arrasto Sundberg, Antonio Sergio Esperidião
mas de navegação aeronáutica que e sustentação, possam estar um e Paulo Miranda na Revista Brasileira
envolvem composição vetorial de pouco além da compreensão de alu- de Ensino de Física 23, 429 (2001).
Deve-se mencionar que o Prof. Welt-
nos do nível médio, é
ner tem sido um dos mais insistentes
importante que os pro- críticos do uso da equação de Bernoulli
fessores tenham estes para a explicação do fenômeno da
conceitos em mente sustentação aerodinâmica. Na Ref. 6,
você encontrará uma lista de suas
uma vez que as teorias
publicações sobre o tema.
de aerofólios encontra-
[5] Ver artigo de Eastlake neste número,
das nos livros-texto ser- p. 53.
vem de pontos de refe- [6] O sítio http://www.physics.umd.
rência e são desenvolvi- edu/lecdem/services/refs/refsf.htm
das a partir de idealiza- apresenta uma lista exaustiva de
ções de casos reais. Por artigos e sítios sobre a física do vôo.
fim, este artigo não [7] O sítio da Nasa http:www.grc.nasa.
gov/WWW/K-12/airplane/ contém
constitui uma contri- material de excelente qualidade para
buição original ao ensi- todos os níveis escolares. Os applets
Figura 11. Composição de velocidades no referencial do avião. no de Física, no sentido podem ser baixados gratuitamente.

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

42 A física do vôo na sala de aula Física na Escola, v. 7, n. 2, 2006

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