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DOIS DE ABRIL

Não.

Eu vi o menino nos meus sonhos copiar os desenhos orientais – e, bem, naquele tempo sequer
sabia da existência das palavras como palavras e, contudo, lambia-as e tomava a mão de Lady
MacBeth – onde estará agora? Ou seja, como outra força, esta, sim, honesta, porque vale-se
como dobradiça. E será que é necessário dizer tantos para muitos? Não. Terrível palavra,
Vieira! Tendo a achar que os outros estão corretos. Sem paciência não quero mais discutir e
encenar o papel daquele que apresenta os mais rigorosos argumentos e o milagre do contrato
social faz-se. Tu tens a certeza de que, no que tange à coleção de conhecimentos que
meramente distingue-me de um simples escolarizado, engano-me. Era sobre isso? É, aliás, para
isso que cheguei até aqui? Chegar até aqui é a afirmação do medo. Do desastre. Da ruína. Ó,
Klee. Para reclamarmos das injustiças do mundo? Acreditei, outrora, e me debulho em risos,
que a responsabilidade do mundo é o próprio mundo como responsabilidade. O mundo é
grave, sério, fraco e franco. Homens tombam pelos mais bobos motivos. O acúmulo de copos,
a nossa dignidade tomada como cifra de ciranda não é indicativo de orgulho nem ilustre tema
para a declinação das frases em pauta. E, bem, o que estou mesmo a fazer? A tentativa besta
de escrever dois de abril.

Dois homens masturbam-se no provador de uma renomada loja de departamentos enquanto


eu, diante do espelho, estuprado pela excessiva luz, procurava qualquer sinal daquilo que
denominam ou costumam chamam de beleza. A beleza, aliás, presenteada – é assim que se
diz? – pela grosseria de botões e justaposição de panos. Tossi. Ajeitei os óculos, onde sei que
posso esconder minhas atrapalhadas considerações, desisti do suéter, saí da loja, fui ao
banheiro, esperei os demais saírem, ajoelhei diante da privada, enfiei o dedo no limite de
minha garganta, vomitei três dias de nutrição, aposto. Olhei-me mais umas duas ou três vezes
no espelho. Colhi um pouco de água. Joguei-a no rosto e no espelho que me olhava. Solicitei
Guimarães Rosa. Ele não veio. Achei que, por um instante, eu prendia o tempo e todos
estavam à mercê de minhas vontades. Achei que o bater das asas de um pássaro atropelado
era a leitura das próximas horas. Achei que o acorde das buzinas no engarrafamento era a
deixa para a minha entrada aristocrática. Em plena Ayrton Senna. Então cheguei à casa e
observei o ligeiro amarelecimento de Le feu. Aditamentos.

O que eu gostaria realmente de contar é que pela primeira vez eu acordei suportando o
cansaço como um homem cicatrizado e, com as mãos coçando, pude voltar à meninice,
quando possuía um diário cuja capa havia um sol rubro cheio de sorrisos, como se estivesse
me dizendo: despeja a tinta aqui, meu amigo, que seus significados ecoam e ricocheteiam o
sujeito. É certo que se parte e se reparte e se desdobra e as consequências sociais, deste
círculo maldito, afinal, existem realmente no livro das desculpas e das culpas para se
acumularem. Mais do mesmo. Demasiada responsabilidade atribuída a quem não se conhece,
melhor, a quem não foi gerado, não nasceu, não sabe ainda articular os fonemas, não... E
então para quê tudo isso? O alheamento, se o outro de mim mesmo é insaciável, incontrolável
e assustador, não é mesmo? Não é mesmo – e o resto que se acerte no abismo e infinitude.

Os pares ditam o ritmo e assim a estratosfera assistiu, silenciosa, a conversa de canhões. Como
eu sei? É por ser espectador dos corpos como sinônimos para cifras, mas também para nossas
misérias e prepotências, nossas insolências e educações duvidosas. Leio de tudo e me esqueço
– e se forçosamente faço circular a ponta para um registro que se quer intenso e extenso é
que, no fundo, não se distingue tanto da turba a montagem do esqueleto cujas sinapses crê os
gestos, no ar e na gota de cada orvalho, pranto, elabora o importante das importâncias, isto é,
todos nós. A retificação, a lua, o escorregão e o hermetismo – cais.

Isto é dois de abril? Dois de abril é drums e rachaduras. Conversa! Tudo deve, pois, ter a sua
explicação e o seu tratado. Deus acredita em mim por compensação. Por fadiga. Medo.
Destreza. Covardia. Compaixão. Morri porque quis, não é mesmo? Aliás, como sempre,
fundado o terror, nossa vida artística – a arte como teleologia. Assinaturas possuem a forma
de lápides. Elogios como necrológios. Assim é o que é, aceita-se. Conforma-se. Planta-se.
Produz e diverte. Entendimentos para o currículo das pobrezas. Há as histórias particulares
cujos fatos são desinteressantes, mas existem as armadilhas e a organização de que nossa
estrela é a dádiva no início dos pés, excetuando-se, pois, os dáctilos. Então caminhemos,
esvaziando a sacola de chistes.

E se tudo cheira mal significa que meus sentidos ludibriam-me ou não sei diferençar
fragrâncias nem espécies? Esforços para justificar-te, eu sei, detalhados no livro da
contabilidade e chegará, logo, a oportunidade (em pares) determinando o código das águas
claras. Vou te confessar: a meninice me assalta, arrebata-me e me preenche de todos os às
disponíveis. Veja bem, no cálculo das probabilidades, nossa cama de papel e mancha. Escrever
é isto? Cores reacendendo o desperdício das eras vazias?

Abril é o mais cruel dos meses, germina lilases da terra morta, mistura memória e desejo, aviva
agônicas raízes com a chuva da primavera. O inverno nos agasalhava, envolvendo a terra em
neve deslembrada, nutrindo com os secos tubérculos o que ainda restava de vida – T.S.Eliot.

Nós dois tivemos muito medo e, contudo, não deixamos para depois a necessidade de sujar
lentamente os dedos e o pensamento. E é, talvez, por muito menos, que a cara encardida
denuncia nossa insensatez diante dos sistemas pré-estabelecidos. E é ingenuidade, afoita,
natimorta e saturada, que nos nossos semblantes abençoa. Jesus Cristo, Nosso Senhor.

Derramam-se chás. Hosanas! Hoje é dois de abril e eu, não sei por qual motivo, não posso
deixar que me pesem as amizades, os compromissos, a injustiça social, as resmas e a cor, a cor,
a cor invisível. Posso mesmo delinear, como esboço, a humanidade, exemplar consciente.
Afinal, é dia dois de abril? Os cachorros ajustam o relógio e o sussurro dos receios. Um rato
passou entre as varetas e o suor de minha carcaça – e distraídos ambos, levo-me pela torta
ideia de que sou incapaz de amar e ele muito menos de me morder.

Por que na minha frente aparecem amar amor amante e demais cognatos? Não aprendi a lição
de Nietzsche? Ainda não? Este é o cerne da questão? Meu girassol? O cajado do pastor? A
lança de Ulisses? Condimento para as mais macias carnes? Para os mais saborosos molhos? A
entrada, o prato principal e a sobremesa? E o que fazer da inanição? E das papilas sem
funcionalidade?

Ó, minh’alma, prepara-te para a vinda da Forasteira.


Abaixo, nos escombros do dia entre dia, pouco é pertinente afixar no calendário o furto de
nossas frustrações. Menos ambicioso é mixá-las ao estilo e às intenções de UMA OPERA
MAGNA. São palavras e são incertezas. O fio da aranha e o veneno da tesoura. Portas abertas
exalando cultura. Dois homens, multidão ensandecida, sexos rígidos, hormônios e
animalidade, matizes revolucionários, orações reacionários, grandes vasos e eu no meio de
tudo isso sem saber que paralelepípedo retirar do caminho. Ah, a produtividade. Tudo o mais
para dizer? Percebes que as dobraduras daquilo que avermelha-se como língua, verdejará e
azulou-se como lâmina? E o resto é conosco, ou melhor, o quadrado da libido. Surge o
universo, o mundo do guardanapo e preciosidades. Se perdeu ou perdeu-se? A poesia, as
carnes cruas de Heitor. Tudo é e não é dois de abril.

Eu sei. Eu concordo. Eu prefiro não. Eu dou-te um tapinha nas costas, em sinal de intimidade.
Eu olho nos seus olhos, como bem quereis, ditame da sinceridade sem igual. Eu te satisfaço
enchendo o copo de sangue do cordeiro. Eu te dou o líquido na boca. Eu te faço arrotar. Eu
despeço-me e eu recolherei, como bem quereis, o lixo do dia seguinte. Com discrição. Fora do
meio. Sem afinar. Perdoe os ossos. Tão brancos, não é mesmo? Eu concordo. Eles cegam.
Hinos ao Sagrado Coração. Trompetas. Abre-se a curvatura. Costelas. Tiros para ninguém. A
invisibilidade em par. Repetições. Datilográficas. Não, diz Antonio Vieira. Terrível. Dia-a-dia. Há
muitos séculos. Faz. De que sou herdeiro. Príncipes que não fui e carrasco que julguei ser.
Torturado pelas fibras. Vaidade no intervalo.

Irá o girassol voltar para nós, sim.

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