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liberdade, igualdade, segurança e propriedade – nos termos

seguintes: i) homens e mulheres são iguais em direitos e em


obrigações, nos termos desta Constituição; ii) ninguém será
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei; iii) ninguém será submetido a tortura nem a
tratamento desumano ou degradante; [...]
Disciplina: “Técnicas de Redação e Interpretação”
Turma: 3ª. Série do Ensino Médio (“Constituição da República Federativa do Brasil”. In: Va-
Responsável: Prof. Adriano Tarra Betassa Tovani Cardeal de mecum acadêmico de direito. São Paulo: Rideel, 2009,
Tema redacional 01: Trote universitário: práticas lindeiras p. 23-24)
entre a socialização e a injustiça.

Aluno é amarrado a poste em trote da


Cásper Líbero na Avenida Paulista

Leandro Machado

Um garoto ficou amarrado com fita adesiva por meia


hora anteontem à tarde em um poste da avenida Paulista, re-
gião central de São Paulo. O caso ocorreu em um trote pro-
movido por alunos veteranos de Publicidade e Propaganda
e Relações Públicas da Faculdade Cásper Líbero, cuja sede
fica naquela via. Essa cena lembra a que ocorreu no Rio de
Janeiro, dia 31, quando o garoto de 15 anos fora acorrentado
nu a um poste após ter sido agredido a pauladas por supostos
“justiceiros”, que o acusavam de ter cometido crime. O trote
da Cásper foi fotografado por estudantes, que postaram as
imagens em redes sociais. Muitos reclamaram de maus-tra-
tos aos calouros. Alunos não souberam dizer quem era o ra-
paz amarrado. Em outras fotos divulgadas, uma aluna apare-
ce no chão com uma banana na boca. Pepinos foram usados
para simular sexo oral. “Vai, bixete, chupa! E chupa com a-
mor, que é o lema da faculdade”, diz legenda duma imagem
publicada no “Instagram”. “Quando caloura, fui “miss pepi-
no”. Este ano, eu quis repetir a brincadeira. Mas, se a pessoa
não quisesse, tudo bem”, disse Stephannie Martins, 19, au-
tora do post – depois apagado – e aluna do curso de Rádio e
Televisão. “A própria cultura do trote propicia esse tipo de
coisa. Pessoas são coagidas a fazer, para não sofrerem bul-
lying”, diz Ana Júlia Gennari, 23, aluna de Jornalismo, inte-
grante de grupo feminista da universidade. O Centro Acadê-
mico Vladimir Herzog, da Cásper, repudiou esse trote. “Me-
ninos e meninas tiveram de enfiar um pepino na boca, quan-
do não tinham o legume esfregado no rosto, em clara alusão
a um pênis. Foi humilhante”, afirmou em nota. “Esperamos,
sinceramente, que [o trote] não tenha sido alusão ao ocorri-
do no Rio de Janeiro, pois teríamos motivos suficientes para
questionar o futuro da comunicação no país”. Cásper Líbero
informou haver adotado medidas para coibir “trote violento,
humilhante, vexatório ou constrangedor”. Citou a campanha
“Trote Não é Legal” e reuniões sistemáticas com principais
líderes estudantis.

(Folha de S. Paulo, “Cotidiano”, 12.02.2014)

Constituição da República Federativa do Brasil A origem do trote

Título II A palavra “trote”, segundo a Enciclopédia brasileira


Dos Direitos e das Garantias Fundamentais de consultas e pesquisas, é sinônimo do andamento do cava-
Capítulo I lo, mais ligeiro do que o passo comum e menos rápido que
Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos o galope. Também pode ser a troça ou o motejo que sofrem
os calouros das escolas, especialmente superiores; zombaria
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção e intriga. Portanto, dar trote é o mesmo que pregar peça. É,
de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estran- exatamente, essa segunda definição que nos interessa. São
geiros, residentes no país, a inviolabilidade do direito à vida, as atividades de recepção dos calouros que tentaremos com-

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preender e principalmente o que há por trás dessas “brinca- na segunda metade do século XI, teve início o ensino de Di-
deiras”. O trote é tradição muito antiga. É um “rito de pas- reito Romano por obra de Pepone, seguido no século ulteri-
sagem” presente em nossa sociedade tido como natural e or por Irnério. Bolonha era conhecida como “metrópole do
normal. Rito é ação seguida de consequências reais que po- Direito”. Foi nela que se pautaram as outras universidades
dem não ser inúteis, mas nocivas, por vezes dolorosas, se da Itália, Espanha e sul da França. A universidade, no seu
não cruéis. É entendido pela maneira de agir reproduzida complexo, era formada por um conjunto de escolas, cada u-
com certa invariabilidade. Distingue-se de outros costumes ma das quais constituía uma societas, chefiada por um mes-
pelo caráter particular da sua pretendida eficácia e pela im- tre que tinha jurisdição sobre os alunos. O mestre era com-
portância da repetição – seu elemento característico. Segun- pensado diretamente pelos alunos. Almeida Júnior lembra
do Cazeneuve, ritos certamente evoluem com o tempo, mas, que a Universidade de Bolonha foi governada pelos estu-
em geral, é de uma maneira lenta e imperceptível. Caso al- dantes; quem mandava eram os alunos, e quem obedecia e-
guma mudança ocorra muito bruscamente, o rito corre o ris- ram os mestres; não só a Universidade de Bolonha, mas, em
co de perder o seu valor e a sua razão, pois sempre há um algumas poucas universidades medievais, criadas à sua ima-
objetivo por trás de si, as mudanças são introduzidas com gem e semelhança. Vinham vários estudantes estrangeiros
extrema prudência. Assim, chega a ideia de que a repetição para estudarem em Bolonha, atraídos pelo conhecimento de
é dada na própria essência do rito. Num sentido mais amplo, alguns juristas. Em sua maioria, eram homens maduros, a-
o autor argumenta que o rito aplica-se também a certos ceri- bastados, pertencentes ao clero ou à nobreza. Vinham da
moniais, qual o que, em muitas nações modernas, marca a França, da Inglaterra, da Polônia, da Península Ibérica e, so-
abertura duma assembleia parlamentar ou a sessão inaugu- bretudo, da Alemanha. Em Bolonha, os estrangeiros não ti-
ral do ano universitário. Portanto, podemos afirmar que o nham direitos civis e proteção das leis. Assim, eles corriam
trote universitário é um rito, já que é tido como indispensá- grande risco com relação a seus bens e a sua segurança. Al-
vel, não tem uma utilidade positiva observável e se cumpre meida Júnior destaca a violência que sofriam: “sob mais in-
por hábito, para obedecer a uma tradição. Tanto Cazeneuve significante pretexto, eram espoliados, presos, torturados,
como Adorno nos chamam a atenção para o estranhamento expulsos, sem que houvesse a quem apelar”. Para se prote-
que alguns ritos, como o trote, deveriam causar, mas que gerem em Bolonha, os alunos formavam corporações estu-
não causam, ou, se causam, é apenas momentâneo. No en- dantis, organizadas por nações (estudantes duma determina-
saio Educação após Auschwitz, Adorno expressa sua preo- da nacionalidade) que defendiam os interesses e direitos co-
cupação com o fato de certas barbáries como Auschwitz não muns a todas as corporações e particulares de cada nação.
calarem fundo nas pessoas e, portanto, haver a possibilidade Havia a nação romana, a toscana, a lombarda, a gaulesa, a
de se repetir dependendo-se do estado de (in)consciência de catalã, a espanhola, a alemã etc. Ao todo eram dezessete na-
pessoas. Se não refletimos sobre fatos tão destruidores qual ções, sendo que cada uma elegia um conselheiro, destinado
esse, em que a violência é dirigida a muitas pessoas, pos- a integrar o órgão executivo da instituição. Esses conselhei-
sivelmente não teremos condições de refletir sobre a violên- ros elegiam, anualmente, o reitor que representava a univer-
cia hoje presente em nossa sociedade. Partindo dessas idei- sidade em suas relações externas com as autoridades e go-
as, podemos compreender com mais clareza os motivos que vernava as relações internas entre professores e estudantes.
levam a sociedade, tendo conhecimento dalguns rituais de O grêmio estudantil era dotado de poder judicial, adminis-
iniciação e de toda a violência presenciada constantemente trativo e disciplinar. Era ele que contratava e pagava os pro-
através dos noticiários jornalísticos, a princípio, ficar indig- fessores, além de controlar os horários. Também exerciam
nada frente ao horror, às tragédias ocorridas em alguns tro- uma estrita censura sobre os livreiros e copistas para que
tes, mas logo as identificar como “tradição” ou “naturais”. não corrompessem os textos. Havia uma comissão de estu-
A indignação que é causada por esses acontecimentos é mo- dantes – os denunciadores – que fiscalizavam os mestres e
mentânea, pois o horror é banalizado, torna-se corriqueiro e levavam suas infrações ao conhecimento do reitor. Podemos
habitual, característico dum rito. Os exemplos de que temos notar nesta contextualização uma formação de grupos (con-
conhecimento – de calouros que sofreram trote e tiveram sé- ceito que será desenvolvido mais adiante) de estudantes de-
rias consequências, uns para sua própria vida – comprovam terminados pela nacionalidade, já que todos frequentavam o
que o trote, sendo um rito, pode, muitas vezes, ser ação pre- curso de Direito, o único curso da época. Por isso, a aceita-
judicial, nociva, dolorosa e cruel. O trote tem a sua origem ção no grupo já era importante. Quando tais calouros chega-
com o surgimento das universidades. Elas surgem na Idade vam à universidade, não podiam assistir às aulas na mesma
Média, no período escolástico, por volta dos séculos XI e sala que os veteranos, pois, na época, havia muitas doenças
XII. Foi a fase áurea da educação medieval que preparou que proliferavam na Europa. Assim, eles eram obrigados a
culturalmente a Renascença. Manacorda esclarece que, pa- ficar nos vestíbulos, espaço entre a via pública e a entrada
ralelamente ao surgimento da economia mercantil nas cida- de um edifício. É dessa palavra que surge o “vestibular”, ou
des e à sua organização em comunas, foi introduzido novo seja, a passagem obrigatória para se chegar à sala de aula da
processo na instrução com o aparecimento dos mestres li- universidade. Quando o candidato era finalmente aceito, os
vres, que, sendo clérigos ou leigos, ensinavam também aos veteranos (nome dado aos soldados romanos mais velhos,
leigos. Antes de as instituições superiores serem chamadas que estavam para deixar a milícia) os recebiam com brinca-
de “universidades”, denominavam-se studium generale, on- deiras. Suas roupas eram retiradas e queimadas por questão
de se ensinava a escrita e a leitura, o trivium, ou “artes filo- de higiene, e seus cabelos, raspados, para eliminar piolhos.
lógicas e lógicas” (Retórica, Dialética e Gramática), o qua- Surge, então, a partir dessas características, a prática do tro-
drivium, ou “artes numéricas” (Aritmética, Geometria, As- te. Verificamos que o trote surge de uma atividade profiláti-
tronomia e Música) e a cultura religiosa. Era a escola aberta ca, mas que, desde a sua origem, possuía caráter sadomaso-
aos alunos dos mais diferentes lugares. A palavra latina quista. Almeida Júnior faz uma descrição muito interessante
universitas refere-se a um conjunto integral e completo de de como eram os trotes na Idade Média. O autor diz que o
seres particulares que constituem uma coletividade determi- calouro medieval, que se chamava bejaunus (como se tives-
nada. Bolonha é considerada a mais antiga universidade. Já se um bico amarelo, já que era considerado um animal que

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precisava ser domesticado) sofria as agruras do sadismo de atraso. Repito Paulo Freire: “A leitura do mundo precede a
veteranos, expressando-se por modalidades de trote as mais leitura da palavra”. A barbárie que se vê, todos os anos, na
grosseiras. Sendo uma iniciação, o trote passava por três eta- boçal prática do trote nas nossas “universidades” comprova
pas: a primeira era a “separação”, em que o que existia de o que Joaquim Nabuco escreveu há mais de cem anos: “A
humano dentro do calouro morria, pois seu corpo trocava de escravidão permanecerá por muito tempo como a caracterís-
alma com um certo quadrúpede – talvez, seja dessa ideia o tica nacional do Brasil”. O que é essa estupidez sem fim se-
surgimento da palavra “trote”, ligada ao trotar dos cavalos. não a perpetuação de uma prática que tem por trás a ideia de
Zuin já havia alertado da possível analogia entre o trotar do que calouros são escravos de veteranos, que, por sua vez,
cavalo e o comportamento do calouro que se movimenta em quando calouros, foram escravos de veteranos, que, por sua
um ritmo de tamanha velocidade que compactua o frenesi vez, quando calouros, foram escravos de veteranos, que...
de humilhações às quais é submetido. A segunda etapa do Há algum tempo, participei de um programa de televisão no
trote era o período de “prova”, durante o qual o corpo do ca- qual se discutiu o trote. Eu disse o que penso de qualquer
louro experimentava duros tormentos. Só, posteriormente, é trote (o assassino, o “solidário”, o “cidadão” etc.): é pura di-
que vinha a fase de “agregação”, constituída por uma festa tadura, já que não se concede à vítima a hipótese do “não”.
em comum, ruidosa, interminável, com iguarias e bebidas, É proibido recusar. Eu era um estranho no ninho... Fui até
tudo pago pelo calouro. Almeida Júnior observa que o trote motivo de troça. Acabara de ocorrer um caso medonho nu-
chegou a ser inserido nos regulamentos de várias universi- ma faculdade de Medicina, em que um calouro foi queima-
dades, mesmo havendo excessos por parte de alguns vetera- do. Eu disse que é inconcebível que numa escola de Medici-
nos. Além das apalmatoadas (pancadas de palmatórias) e na se pratique tamanha barbárie. Recebi mensagens de mé-
outras violências físicas, havia casos de “captura de livros” dicos e futuros médicos que me perguntavam o que eu tinha
– invasão do domicílio do calouro e apreensão integral da contra eles... Talvez tivesse sido melhor não responder, mas
sua modesta biblioteca, que os saqueadores repartiam entre eu disse que, a priori, contra médicos e futuros médicos não
si. Espoliado dos instrumentos de trabalho e coagido a esva- tenho nada, mas contra monstros burros tenho tudo. Foi pre-
ziar a bolsa com a festa, o calouro, que trazia todas as econo- ciso que corajosas alunas da Medicina da USP resolvessem
mias da família, às vezes era forçado a estender a mão à cari- denunciar o nojo que se dá nas “festinhas” para que a facul-
dade pública. Como livros eram raros e bibliotecas também, dade descobrisse a pólvora: nada de orgias, digo, nada de
tê-los era privilégio de poucos, e precisava ser defendido. festas na faculdade (e nada de barbárie, também). A tragédia
com o estudante chinês não bastara para pôr fim ao ritual
(COLLOCA, Viviane Patrícia. “O trote: sua origem, seus macabro. Quando olho para um médico, tenho vontade de
significados e implicações”. In: _______. O trote universi- perguntar-lhe se ele participou dessa estupidez quando alu-
tário: o caso do curso de Química da UFSCar. 2003, f. 31- no. Quando entrevistei o grande e querido escritor e médico
-36. Dissertação (Mestrado em Educação) – Centro de Edu- Moacyr Scliar, meu companheiro de feiras do livro Brasil a-
cação Ciências Humanas, Universidade Federal de São Car- fora, disse-lhe que não confio em médicos que nunca leram
los, São Carlos, 2003. Fernando Pessoa, Machado de Assis etc. Ele sorriu, como
que concordando com esse pensamento. O que se faz numa
conceituada escola paulista de Agronomia é o atraso do atra-
so do atraso. Calouros são levados de madrugada a um cana-
vial, onde são abandonados. Detalhe: a única coisa que se
lhes deixa é cachaça. Sem comentários. É dessa alta nobreza
que sai a “elite” do Brasil, uma gente insensível, bruta, burra
e besta, com muitas exceções, é claro. Dilma Rousseff, que
foi torturada, não entende ou finge que não entende que trote
é tortura. Nem ela nem todos os presidentes anteriores a ela.
Nem eles nem todos os ministros da Justiça da história deste
infame país, Dona Antônia. A leitura da realidade precede a
leitura da palavra, caro leitor. É isso.

(Folha de S. Paulo, “Cotidiano”, 26.02.2015)

O trote e o nosso incurável atraso

Pasquale Cipro Neto

Dona Antônia, certamente, vai escrever para mim.


Dona Antônia fica muito triste quando digo algo que dessa-
bone “o nosso maravilhoso Brasil, um país lindo, tropical,
onde não há vulcões, tornados, tsunamis etc.”. Dona Antô-
nia mora num condomínio de uma cidade paulista, famosa,
justamente, por seus condomínios (fechadíssimos). A exis-
tência dum sem-número desses condomínios país afora pro-
va que “o nosso Brasil” é mesmo “maravilhoso”. Sinto mui-
to, Dona Antônia, mas a senhora vai ficar triste novamente.
(Re)começaram as aulas nas nossas universidades, e com e-
las veio outra prova inconteste do nosso secular e incurável

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