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Platão

PLATÃO. República. 9ª ed. Lisboa: Fundação


Calouste Gulbenkian.

375e
Ora não se te afigura que o futuro guardião precisará ainda de acrescentar
ao seu temperamento fogoso um instinto de filósofo?

376b
Ora — disse eu — ser amigo de aprender e ser filósofo é o mesmo?

376b-c
Portanto, admitamos confiadamente que também o homem, se quiser ser
brando para os familiares e conhecidos, tem de ser por natureza filósofo e
amigo de saber.

376c
Por conseguinte, será por natureza filósofo, fogoso, rápido e forte quem
quiser ser um perfeito guardião da nossa cidade.

473d-e
Enquanto não forem, ou os filósofos reis nas cidades, ou os que agora se
chamam reis e soberanos filósofos genuínos e capazes, e se dê esta
coalescência do poder político com a filosofia, enquanto as numerosas
naturezas que actualmente seguem um destes caminhos com exclusão do
outro não forem impedidas forçosamente de o fazer, não haverá tréguas dos
males, meu caro Gláucon, para as cidades, nem sequer, julgo eu, para o
género humano, nem antes disso será jamais possível e verá a luz do sol a
cidade que há pouco descrevemos. Mas isto é o que eu há muito hesitava em
dizer, por ver como seriam paradoxais essas afirmações. Efectivamente, é
penoso ver que não há outra felicidade possível, particular ou pública.
474b-c
Tenho de tentar — disse eu —, já que tu me ofereces uma aliança de tanta
magnitude. Parece-me necessário, se de algum modo queremos escapar
àqueles ataques que anuncias, determinar perante eles quais são os filósofos
a que nos referimos quando ousamos afirmar que são eles que devem
governar, a fim de que, uma vez esclarecidos, possamos defender-nos,
demonstrando que a uns compete por natureza dedicar-se à filosofia e
governar a cidade, e aos outros não cabe tal estudo, mas sim obedecer a
quem governa.

475b
Porventura não diremos também do filósofo que está desejoso da sabedoria,
não de uma parte sim e de outra não, mas da totalidade?

475c
Mas àquele que deseja prontamente provar de todas as ciências e se atira
ao estudo com prazer e sem se saciar, a esse chamaremos com justiça
filósofo, ou não?

475d-e
E Gláucon respondeu: — Então vais ter muitos filósofos desses, e bem
estranhos. Realmente, parece-me que todos os amadores de espectáculos,
uma vez que têm prazer em aprender, são desse número; e há os amadores
de audições, que são os mais difíceis de agrupar entre os filósofos, que não
quereriam, de boa vontade, vir ouvir uma discussão e uma conversa como
esta, mas que andam por toda a parte, como se tivessem alugado os ouvidos
para escutar todos os coros nas Dionísias, sem deixar de ir, quer às
Urbanas, quer às Rurais. A todos estes, portanto, e a outros que se dedicam
a aprender tais coisas e artes de pouca monta, havemos de chamar-lhes
filósofos?
De modo algum — respondi eu —, mas aparências de filósofos.
476a-b
É nesse ponto que eu estabeleço a distinção: para um lado os que ainda
agora referiste — amadores de espetáculos, amigos das artes e homens de
acção — e para outro aqueles de quem estamos a tratar, os únicos que com
razão podem chamar-se filósofos.

480a
Logo, não os ofenderemos de alguma maneira chamando-lhes amigos da
opinião em vez de amigos da sabedoria1? Acaso se irritarão fortemente
conosco, se dissermos assim?

484a
Ao cabo de uma longa discussão — observei eu — é que nós mais ou menos
pusemos a claro, ó Gláucon, estas duas coisas: quem é que é filósofo e quem
o não é.

484b
Que mais há-de ser, senão as suas consequências? Uma vez que os filósofos
são aqueles que são capazes de atingir aquilo que se mantém sempre do
mesmo modo, e que aqueles que o não são, mas se perdem no que é múltiplo
e variável, não são filósofos, qual das duas espécies é que deve ser chefe da
cidade?

485b
Concordemos, relativamente à natureza dos filósofos, em que estão sempre
apaixonados pelo saber que possa revelar-lhes algo daquela essência que
existe sempre, e que não se desvirtua por acção da geração e da corrupção.

1
A palavra «filósofo», que está no original, toma a partir daqui uma conotação diferente. Tivemos, no
entanto, de a decompor na tradução, para a opor com maior clareza ao outro composto paralelo, philodoxos
(«amigo da opinião»). Lembre-se que a substituição de sophos pelo famoso composto philosophos, que
uma ampla tradição tardia atribui a Pitágoras, tende actualmente a ser dada como de origem platônica (cf.
W. Burkett, «Platon oder Pythagoras? Zum Ursprung des Wortes «Philosophie», Hermes 88 (1960) 159-
177)· [Nota retirada da mesma edição aqui utilizada]
485d-e
Se a corrente for em direcção às ciências ou actividades dessa espécie, julgo
que não cuidará senão do prazer da alma em si, e deixará o que vem através
do corpo, se for um filósofo não fingido, mas autêntico?

487e
Então como é que está certo afirmar que as cidades não cessarão de sofrer
calamidades, antes de serem governadas por filósofos, os quais assentámos
que lhes são inúteis?

489a
Não me parece — prossegui eu — que seja necessário examinares a fundo o
quadro, para veres que se assemelha às relações das cidades com os
verdadeiros filósofos; mas compreendes o que quero dizer.

489a-b
E, antes de mais nada, ensina esta metáfora àquele que se admirava por os
filósofos não serem honrados nas cidades, e tenta convencê-lo de que seria
muito mais surpreendente, se o fossem.

489b-c
E que, portanto, dizes a verdade: que são inúteis à maioria os melhores
filósofos. Da sua inutilidade, manda, contudo, acusar os que os não utilizam,
e não os homens superiores. Pois não é natural que seja o piloto a pedir aos
marinheiros que sejam comandados por ele, nem que os sábios vão às portas
dos ricos, mas quem inventou este gracioso dito8 mentiu. A verdade é que
quem estiver doente, seja rico ou pobre, é forçoso que vá bater à porta do
médico, e que todo aquele que precisa de ser dirigido, à de quem puder
governá-lo, e não ser o comandante que suplica aos súbditos que consintam
em ser mandados, quando na verdade é dele que lhes vem auxílio. Se
comparares os chefes políticos actuais com os marinheiros a que há pouco
nos referimos, não errarás; e bem assim aqueles que eles qualificam de
inúteis e de pessoas que falam no ar, com os verdadeiros pilotos.
489d
Logo, ficou esclarecida a razão da inutilidade dos bons filósofos?

490a
Portanto, neste ponto estamos assim em oposição violenta com o que
actualmente se pensa a respeito do filósofo?

490c-d
E agora o outro coro da natureza filosófica, para que havemos de insistir na
necessidade de o ordenar outra vez desde o princípio? Lembras-te, de algum
modo, que concordámos em que as qualidades que lhe convinham eram a
coragem, a generosidade, a facilidade para aprender, a memória.
Objectaste-me que toda a gente seria forçada a concordar com as nossas
afirmações, mas que quando, deixando de parte as palavras, se pusessem a
examinar aquelas mesmas pessoas acerca das quais se discutia, declarariam
que, dentre essas, notavam que algumas eram inúteis, ao passo que a
maioria era possuidora de toda a espécie de perversidade; examinando a
causa da acusação, chegámos a este ponto: porque será que a maioria é
má? E, por esse motivo, retomámos a questão da natureza dos verdadeiros
filósofos e fomos obrigados a defini-la.

491a-b
Tentarei descrever-to, se for capaz disso. Este ponto toda a gente no-lo
concederá, penso eu: as naturezas assim e com todas as qualidades que há
momentos lhes preceituámos, a quem quiser tomar-se um filósofo perfeito,
são poucas, e raras as que surgem entre os homens. Ou não te parece?

494a
Por conseguinte — prossegui eu — é impossível que a multidão seja filósofo.
Logo, é forçoso que os filósofos sejam criticados por ela.
497b-c
Nenhum, mas queixo-me disso mesmo, de que nenhum dos actuais sistemas
de governo é merecedor do carácter de um filósofo. Por esse motivo é que
ele se altera e deteriora; tal como uma semente estranha, semeada num
terreno diferente, costuma adulterar-se e se submete, adaptando-se ao local,
assim também esta espécie, na actualidade, não pode reter a sua força
própria, mas degenera num carácter diverso. Mas, se vier a deparar-se-lhe
uma constituição excelente, como excelente é a sua qualidade, então a
experiência demonstrará que ele era na realidade divino, e o resto —
maneira de ser e ocupações — humano. Ora é evidente que, depois disto, me
vais perguntar qual é essa constituição.

497e-498b
Actualmente — disse eu — os que encetam sequer estes estudos são
adolescentes que mal saíram da infância, no intervalo antes de chegarem à
economia doméstica e negócios, que, mal se aproximam da parte mais
difícil, a deixam ficar — e são esses os que se imagina que são grandes
filósofos (a parte mais difícil a que me refiro é a dialéctica). Depois disto,
se acaso consentem, quando instados, em ouvir outros tratar de filosofia,
julgam que fazem uma grande coisa, pois entendem que ela não é mais do
que um passatempo; quando chegam à velhice, salvo raras excepções,
extinguem-se muito mais do que o Sol de Heraclito, na medida em que não
tomam a acender-se.

499a-c
Por tais motivos — disse eu — e com esta preocupação, é que então
dissemos, apesar do nosso receio, mas forçados pela verdade, que não há
Estado, nem governo nem sequer um indivíduo que do mesmo modo possa
jamais tornar-se perfeito, antes que a esses filósofos pouco numerosos a que
agora chamam, não perversos, mas inúteis, a necessidade, saída das
circunstâncias, os force, quer queiram quer não, a ocupar-se do Estado, e
que este lhes obedeça; ou antes que um verdadeiro amor da filosofia
verdadeira, por qualquer inspiração divina, se apodere dos filhos ou dos
próprios homens que estão actualmente no poder ou ocupam o sólio real.
Dizer que uma ou outra destas hipóteses é impossível de se dar, ou nenhuma
delas, acho que não há razão para tal. Se assim fosse, seria justo que
troçassem de nós, por não passarmos, nas nossas conversas, de meras
fantasias. Não é assim?

499c-d
Por conseguinte, se a filósofos eminentes se deparou a necessidade de se
ocuparem do governo, na imensidão do tempo passado, ou se ela
actualmente existe em qualquer país bárbaro, situado longe das nossas
vistas, ou se vier algum dia a existir, nós estamos dispostos a sustentar, a
esse respeito, que existiu a dita constituição, que existe e que existirá,
quando essa Musa se assenhorear do Estado, embora também da nossa
parte se concorde que é difícil.

499e-500a
Meu caro amigo, não acuses assim a multidão. Terá outra opinião, se, sem
questionares com ela, mas aconselhando-a e desfazendo as acusações
contra o gosto pelo saber, lhe apontares quais são aqueles a que chamas
filósofos, e lhe definires, como fizemos há pouco, a sua maneira de ser e
ocupação, para não julgarem que te referes aos que eles têm como tais, [ou
mesmo que os vejam desse modo, dirás que formarão outra opinião e que
responderão de modo diferente]. Ou julgas que alguém se zanga com quem
não se irrita ou que se tem inveja a quem não é invejoso, quando se é sem
inveja e cordato? Antecipando-me à tua resposta, declaro que, em meu
entender, um feitio assim difícil pode encontrar-se num pequeno número,
mas não na maioria.

500c-d
Ora certamente o filósofo, convivendo com o que é divino e ordenado,
tomar-se-á ordenado e divino até onde é possível a um ser humano. Embora
em toda a parte se multipliquem os detractores.

500d-e
Mas se a multidão sentir que lhe dizemos a verdade sobre os filósofos, ser-
lhes-ão hostis e desconfiarão de nós, quando lhes afirmamos que jamais um
Estado poderá ser feliz, se não tiver sido delineado por esses pintores que
utilizam o modelo divino?

501d
Que teriam, portanto, que discutir? Que os filósofos não são uns
apaixonados do Ser e da verdade?

501e
Enfurecer-se-ão, ainda, quando dissermos que, antes de a raça dos filósofos
se assenhorear do Estado, não haverá trégua de desgraças para o Estado
nem para cidadãos, nem a constituição que imaginamos em palavras se
objectivará nos factos?

502a
Seja portanto assim: eles estão convencidos. Quem poderá contestar que se
pode dar o caso de nascerem filhos de reis ou de governantes filósofos por
natureza?

503b
Eu hesitava, meu amigo, em dizer o que acabo de me atrever a declarar. E
agora ousemos afirmar o seguinte: que, se queremos guardiões muito
perfeitos, devemos nomear filósofos.
Pensa como é natural que eles sejam poucos, pois, quanto à natureza, que,
segundo a nossa análise, deve existir nos filósofos, as partes que a formam
raramente nascem juntas, mas nascem separadas a maior parte das vezes.

520a-d
Repara ainda, ó Gláucon, que não causaremos prejuízo aos filósofos que
tiverem aparecido entre nós, mas teremos boas razões para lhes apresentar,
por os forçarmos a cuidar dos outros e a guardá-los. Diremos, pois, que as
pessoas da mesma espécie nascidas noutras cidades é natural que não
tomem parte nas suas dificuldades; efectivamente, fizeram-se por si mesmas,
a despeito da respectiva constituição política; e tem razão, quem se formou
por si e não deve a alimentação a ninguém, em não ter empenho em pagar
o sustento a quem quer que seja. Mas a vós, nós formámos- -vos, para vosso
bem e do resto da cidade, para serdes como os chefes e os reis nos enxames
de abelhas, depois de vos termos dado uma educação melhor e mais
completa do que a deles, e de vos tomarmos mais capazes de tomar parte em
ambas as actividades. Deve, portanto, cada um por sua vez descer à
habitação comum dos outros e habituar-se a observar as trevas. Com efeito,
uma vez habituados, sereis mil vezes melhores do que os que lá estão e
reconhecereis cada imagem, o que ela é e o que representa, devido a terdes
contemplado a verdade relativa ao belo, ao justo e ao bom. E assim teremos
uma cidade para nós e para vós, que é uma realidade, e não um sonho4,
como actualmente sucede na maioria delas, onde combatem por sombras
uns com os outros e disputam o poder, como se ele fosse um grande bem.
Mas a verdade é esta: na cidade em que os que têm de governar são os menos
empenhados em ter o comando, essa mesma é forçoso que seja a melhor e
mais pacificamente administrada, e naquela em que os que detêm o poder
fazem o inverso, sucederá o contrário.

521b
Ora tu sabes de qualquer outro género de vida que despreze o poder político,
sem ser o do verdadeiro filósofo?

525b
São, portanto, ao que parece, daquelas ciências que procuramos. Com
efeito, é forçoso que o guerreiro as aprenda, por causa da táctica, e o
filósofo, para atingir a essência, emergindo do mundo da geração, sem o
que jamais se tornará proficiente na arte de calcular.
Ora dá-se o caso de o nosso guardião ser guerreiro e filósofo.

540d-e
Ora pois! Concordais que não são inteiramente utopias o que estivemos a
dizer sobre a cidade e a constituição; que, embora difíceis, eram de algum
modo possíveis, mas não de outra maneira que não seja a que dissemos,
quando os governantes, um ou vários, forem filósofos verdadeiros, que
desprezem as honrarias actuais, por as considerarem impróprias de um
homem livre e destituídas de valor, mas, por outro lado, que atribuem a
máxima importância à rectidão e às honrarias que dela derivam, e
consideram o mais alto e o mais necessário dos bens a justiça, à qual
servirão e farão prosperar, organizando assim a sua cidade?

581c
É por isso que dizemos que são também três as principais espécies de
homens, o filósofo, o ambicioso, o interesseiro.

581d-e
Mas o filósofo, que havemos de supor que ele pensa dos outros prazeres, em
comparação com o de conhecer como é a verdade e de gozar sempre de algo
de similar enquanto aprende? Não estarão muito longe [do prazer]? E não
lhes chamaria realmente necessários, pois não precisa dos outros para
nada, se não fossem impostos pela necessidade?

582a-b
Repara então. Dos três homens cin causa, qual é o mais experiente de todos
os prazeres que referimos? Parece- -te porventura que o interesseiro, se
aprendesse como era a verdade, ganharia mais experiência do prazer da
ciência, do que o filósofo da de obter lucro?

582b
Por conseguinte, o filósofo difere muito do interesseiro na experiência que
tem de um e outro desses prazeres.

582c
E qual será a sua relação para com o ambicioso? Terá o filósofo menos
experiência do prazer proveniente das honrarias do que aquele tem do que
procede da reflexão?
Mas a honra — objectou ele —, se realmente levarem a cabo a tarefa a que
se abalançaram, ficará adstrita a todos eles — realmente o rico é honrado
pela maioria, e bem assim o corajoso e o sábio — de tal maneira que todos
eles têm experiência da natureza do prazer derivado das honras. Porém a
natureza do prazer que procede da contemplação do Ser, é impossível a
qualquer outro saboreá-la, excepto ao filósofo.

582d
Mas realmente também o instrumento necessário para julgar não pertence
ao interesseiro nem ao ambicioso, mas ao filósofo.
***
filósofo: definição, 376b, 475b- -480a, 484b, 485a-487a, 490a- -d, 582c-e;
acusações que lhe são feitas, 487b-489d filósofo-rei, 473d-474c, 503b, 543a;
preparação da sua aceitação, 499d-502b, 535a-536d; educação e destino,
536d-540a.

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