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15/05/2018 A Ilha de Moçambique | PÚBLICO

VITAL
MOREIRA A Ilha de Moçambique
22 de Agosto de 2000, 0:00

David Shayler era um espião inglês. Acusou


publicamente o MI5 e o MI6 de
incompetência, de pôr escutas a membros
do Governo e de planear o assassínio de
Khaddafi. Ao fim de três anos de exílio,
voltou à Inglaterra. Jeremiah Mattysse é um
espião americano. Tinha acesso a
informações confidenciais. Judeu ortodoxo,
fugiu e foi encontrado em Israel. O que diria
James Bond de tudo isto?

Para o Diogo, o "macuinha"Encontrámo-los


logo no primeiro dia da nossa breve estada
na ilha, no seu agradável restaurante sobre a
praia, dedicadamente decorado com
fotografias antigas da ilha, com peças de
artesanato local, com instrumentos náuticos
e a presença insólita de um piano. São
ambos brancos e jovens, ainda na casa dos
vinte anos. Ele nasceu em Moçambique, na
terra firme fronteira à ilha. Foi em criança
para a Europa, mas, chegado aos vinte anos,
tomou-o o apelo da terra natal. Ela nasceu
em Portugal e foi para a Ilha como
cooperante, no âmbito de uma "organização
não governamental", e não regressou.
Conheceram-se e enamoraram-se.
Tomaram a seu cargo a gestão de um
restaurante que transformaram num sítio
cativante e num lugar da melhor comida da
ilha. Têm um filho de dois anos, que
frequenta a "escolinha" com as crianças
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macuas. Juntamente com o português de


casa aprende a língua materna dos seus
colegas de brincadeira. Baptizámo-lo
"macuinha".Este jovem casal constitui
apenas uma das muitas histórias luso-
moçambicanas que dão a sua pequena ajuda
à vida da ilha e do resto do país que dela
tirou o nome. Um quarto de século depois
da impreparada descolonização e menos de
uma década após o fim da devastadora
guerra civil, com a desgraça do "socialismo"
e do marxismo-leninismo pelo meio, o que
impressiona na ilha, tal como no país em
geral, é o sentimento contraditório entre,
por um lado, a destruição e a degradação e,
por outro lado, os sinais de reanimação e de
recuperação.Vista do ilhéu de Goa, do lado
do mar, a Ilha de Moçambique não parece
mais do que uma fita de terra baixa, com a
silhueta marcada por palmeiras, pelas torres
das igrejas e, na ponta mais próxima, pelas
ameias da seiscentista fortaleza de S.
Sebastião, com a adorável Igreja manuelina
de Nª Srª do Baluarte, fora das muralhas.
Vem à lembrança a feliz representação que
Armando Alves dela fez no catálogo de uma
exposição da Gulbenkian nos anos 80: uma
fina estria amarela e branca escondida entre
a imensidão do azul do céu e do verde do
mar.Mas no seu interior a ilha esconde os
seus tesouros à espera de quem os saiba
apreciar, os seus monumentos, igrejas e
mesquitas, as suas ruas sombreadas, as suas
torres e mirantes, os seus acolhedores largos
e praças e os seus jardins interiores (entre
os quais o inefável palmeiral do templo

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hindu). E, obviamente, as suas gentes e a


sua vida, a azáfama matinal do mercado
ribeirinho à sombra da mesquita velha, a
jovem macua com a máscara branca do
"msiro", a dança do "tofo" à noitinha nos
bairros do "macuti". Muito da ilha está
infelizmente em ruínas. Na antiga "cidade
de pedra e cal", muitas casas caíram ou
estão em vias de ruir, quase todas à espera
de reparação urgente. Nas ruas e praças o
asfalto desapareceu, bem como dos passeios
o empedrado "à portuguesa", de pedras
brancas e pretas, que se descobre nas
fotografias antigas. Restam raros
exemplares das antigas tabuletas de esmalte
azul e branco com os nomes das ruas e os
números das portas. Os candeeiros de ferro
forjado que ficaram, com as antigas "armas"
da ilha, deixam adivinhar o seu antigo
esplendor. Até nas arruinadas instalações do
Sporting Clube de Moçambique um quase
desaparecido leão verde testemunha a
grandeza de outrora.Há coisas
transformadas inexoravelmente em peças de
museu. Não apenas as seculares fortalezas.
Mas também a bela ponte-cais, a que a
ponte rodoviária para o continente retirou
serventia muito antes do fim do período
colonial. Ou as maquinarias navais da
capitania do porto (onde jaz uma estátua de
Vasco da Gama), a monumental alfândega e
os armazéns marítimos e comerciais,
abandonados paulatinamente desde que a
inauguração do "corredor de Nacala" iniciou
a decadência económica da ilha.A par dessa
imagem de destruição e desamparo são

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notórios os sinais de recuperação e de


reanimação da cidade. Restauram-se
edifícios públicos e privados, renasce a vida
económica, activam-se os interesses
turísticos. Vê-se a acção da cooperação
internacional, dos governos e das ONG. Mas
sem desenvolvimento endógeno não pode
haver esperanças na recuperação do
património. Ele tem de resultar do
desenvolvimento geral do país, da
recuperação e do empenho da
administração municipal, da exploração
inteligente das suas enormes
potencialidades turísticas, sobretudo na
vertente cultural.De facto, o que torna
singular o caso da Ilha de Moçambique é a
sua extraordinária beleza natural, riqueza
patrimonial e significado cultural, a que a
recente classificação pela UNESCO como
"património cultural da humanidade" veio
prestar o merecido reconhecimento.
Quando Vasco da Gama lá chegou, há
quinhentos anos, na sua primeira viagem
para a Índia, já a ilha era um ponto de
encontro entre os povos negros do interior e
os árabes do Norte, que nela haviam
estabelecido o seu mais meridional centro
de trocas comerciais. Desde o
estabelecimento dos portugueses, que nela
haviam de sediar a capital do que viria a ser
a futura colónia de Moçambique, a ilha
tornou-se um incomparável
entrecruzamento de gentes, costumes,
culturas e religiões.Para o visitante
português é impossível percorrer sem
emoção esses lugares míticos, onde durante

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séculos, para o bem e para o mal, fomos


deixando e radicando marcas e influências
materiais e culturais. Ao percorrer o
fabuloso conjunto patrimonial da Ilha de
Moçambique, ocorre pensar que ela
pertence àquele pequeno número de lugares
carregados de História - como a Cidade
Velha, na Ilha de Santiago, em Cabo Verde,
ou Olinda, em Pernambuco, no Brasil, ou
Goa, ou Macau - em que nos podemos
convencer de que a passagem dos
portugueses pelos trópicos não foi só
conquista, ocupação e exploração, mas
também edificação, legado e intercâmbio
cultural.

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