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Agnès Aflalo*
A proposição “onde isso fala, isso goza” é um dizer de Lacan, na medida em que
é a sua prática que a comanda. Mas a questão que se põe é: como essa frase pode
prescrever uma prática lacaniana de cura de mulheres? É isso que tentarei demonstrar a
partir de vários casos de homossexualidade feminina.
Escolhi falar não de um caso, mas de uma série de casos, a fim de melhor isolar
essa lógica de gozo, onde uma parte permanece desapercebida por Freud e por Lacan. É,
no entanto, a partir da lógica da sexuação, que opõe o dizer e o dito, que eu pude resgatá-
la.
Para esses pacientes que fazem série com esse caso de Freud, é preciso especificar
dois pontos, respectivamente situados no tempo da saída do Édipo e na vida amorosa. O
primeiro ponto diz respeito a uma traição do pai em que a mãe é cúmplice: o nascimento
dessa filha é a ocasião de uma decepção do casal. No livro “Quem são seus
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psicanalistas?”[3] publicado por Jacques-Alain Miller, já isolei uma mesma memória
traumática para uma série de mulheres homossexuais: cada vez, a menina sente-se
abandonada pelo pai que a humilha e desvaloriza sua feminilidade. Notei que essa efração
de gozo produzia uma série de consequências desde esse momento, e em particular uma
mudança de posição sexuada: é nesse momento que a menina se identifica totalmente ao
pai e escolhe amar sua mãe. Essa lembrança me pareceu notável pois apresentava as
mesmas coordenadas de Margareth, exceto pelo fato de que ocorre na infância e não na
adolescência. Na realidade, essa lembrança é uma fantasia traumática que demonstra que
o pai é apenas um significante mestre, produzido pela análise, portanto, no après-coup.
Essa fantasia traumática apresenta uma série de constantes: ela é datada da saída
do Édipo, ela ocorre porque a menina, tomada de curiosidade, quer saber sobre o gozo
sexual; esse momento se apresenta como um enigma durante os jogos sexuais com os
meninos de cerca de sua idade, onde o gozo se manifesta como uma intrusão, pois a
questão de saber o que é a mulher continua sem resposta; ao pai pede-se que responda a
esse enigma e que nomeie essa intrusão de gozo; essa resposta é contruída com a fantasia
traumática que coloca em cena um pai especificado por dois traços: primeiro, é silencioso
e esse silêncio é vivido como uma traição, um abandono, então, quando ele fala, a menina
se sente desvalorizada, humilhada.
O segundo ponto está situado no começo da vida amorosa. Notemos primeiro que
o parceiro amoroso da mulher é o falo, conforme a equivalência garota=falo[4]. Antes da
análise, a vida amorosa oscila entre acting out e passagem ao ato suicida, pois o gozo
infinito da devastação amorosa está em primeiro plano. Com a análise, as passagens ao
ato cessam e os estados depressivos antes intensos acabam por desaparecer.
Percebemos então que ao desamor do pai sucede um amor, dividido em dois pela
mãe, marcado pelo infinito (S(A/). De fato, de um lado, o amor idealizado pela mãe (ou
aquela que tem o lugar dela) toma a forma do amor cortês: faz o impasse sobre o corpo
do parceiro, mas não sobre os ditos amorosos e o gozo que eles proporcionam. A forma
erotomaníaca do amor: “que o Outro me ame” é aqui desnudada. É um imperativo que
acentua a demanda de amor e reforça a exigência da prova de amor até a devastação.
A estratégia amorosa consiste em fomentar cenários onde se trata sempre de se
fazer preferida pelo parceiro como a única. A Outra mulher deve faltar e faltar apenas ela.
Trata-se de uma busca pelo significante que diz que seu ser existe e que é único. É também
um pedido, isto é, uma demanda de satisfação suplementar, demanda de um mais-de-
substância que a faria toda. Dito de outra maneira, é a busca do um do único, mas isso
para fazer um todo e desmentir assim a castração. Para a analisante, para além dos ditos,
o dizer amoroso visa se fazer de fetiche para o parceiro, fazer existir A mulher.
Por outro lado, o amor erotizado obedece à mesma lógica infinitizada (S(A/)): o
sujeito se empenha também em fazer cair o parceiro, ela o rebaixa e o humilha. E nos
momentos depressivos, a posição se inverte: é então o sujeito que ocupa o lugar da mulher
rebaixada, humilhada. O imperativo de gozo leva então a incorporar totalmente o objeto
a na sua versão de dejeto. O risco de passagem ao ato é possível.
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Com a análise, o sujeito acaba por perceber que esse estado de derrelição é um
semblante que visa angustiar o parceiro para gozar de sua divisão. Com o gozo silencioso,
o sujeito ocupa uma posição de mestre e pode fazer surgir o objeto voz do lado do parceiro
que ela continua a completar com seu ser. A dor de existir é apenas uma máscara do
desejo. Além disso, uma vez atravessado, o estado depressivo entrega sua chave: se vingar
do desamor, da traição do parceiro que humilha e que abandona, num cenário onde
atormentado e o atormentador falham constantemente em escrever a relação sexual. De
fato, o parceiro é portador de um mais-de-gozar que permite ao sujeito o retorno à posição
primeira, já que o outro deve salvá-lo. Mas é impossível para ele dar-lhe o complemento
de gozo que lhe permitiria reconhecer e simbolizar seu ser sexuado de mulher – nova
tentativa de fazer existir A mulher, com o risco de se fazer inexistente.
O pai humilhante
[3] Cf. Aflalo A., « Des homosexuelles en analyse », Qui sont vos psychanalystes ?,
s./dir. J.-A. Miller, Paris, Seuil, 2002,
p. 143-147.
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[4] Equivalência isolada por Otto Fenichel e conceitualizada por Lacan (“De uma questão
preliminar a todo tratamento possível da psicose”)
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