Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Rio de Janeiro
2010
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
ANA LUCIA DO NASCIMENTO
Rio de Janeiro
2010
CATALOGAÇÃO NA FONTE/BIBLIOTECA – UNIGRANRIO
CDD – 469
DEDICATÓRIA
Ao meu pai (em memória), que, com sua sabedoria de pesquisador “empírico”, me
ingressou neste mundo de conhecimento durante nossos diálogos sob o céu estrelado de
Itaipuaçu.
Aos meus filhos, por me permitirem que os abrigasse em meu ventre, repetindo o
ritual das GRANDES MÃES de todas as culturas, credos e raças. Por me oferecerem sua
sabedoria “inocente”, paciência e carinho durante este período em que me dedicava ao Mestrado.
Às crianças surdas que atendi na educação precoce durante todos esses anos, por me
tocar o coração, com seus sorrisos e olhares, mas, sobretudo, por permitirem que eu “brincasse”
em seu mundo, aprendendo, também, com elas.
AGRADECIMENTO
Ao DEUS DE MEU CORAÇÃO, por ter encontrado neste Mestrado pessoas tão
queridas. Para cada uma eu faria uma poesia, professores-alunos-amigos. Grandes Mestres.
Aos pais e responsáveis pelas crianças que participaram desta pesquisa, por
compreenderem a seriedade e importância deste trabalho.
À Haydéa Reis, minha co-orientadora, por suas palavras suaves, porém firmes, me
conduzindo na construção e reconstrução textual, nos caminhos da pesquisa científica.
Ao meu grande amigo Ademir de Ornéllas Cypriano, mestre nas artes mais sublimes
e terapeuta da mente e da alma, que, através de seu suporte emocional, nas horas mais difíceis do
Mestrado, me incentivou a prosseguir nesta jornada. Em nossos encontros e desencontros, mas
sempre próximos da Alma, me ensinou a fazer poesia da vida.
As palavras, sendo finitas, não são suficientes para transmitir meu sentimento de
gratidão a todos que me ajudaram de forma diferenciada, neste momento ímpar de minha vida.
EPÍGRAFE
DIDONET
RESUMO
Os primeiros três anos da criança constituem a base dos conhecimentos que serão acumulados ao
longo de sua vida. A criança surda perde muitas experiências significativas para o
desenvolvimento de suas potencialidades; diante de um laudo de surdez, a família, em situação
extrema, deixa de falar com ela. Winnicott (1983) afirma que a “aprovação ou desaprovação
podem ser transmitidas ao surdo e à lactente em um estágio muito anterior de se ter iniciado a
comunicação verbal”. Deste modo, objetivou-se compreender as primeiras aprendizagens para a
autonomia da criança surda; suas primeiras interações no grupo familiar, além de mapear formas
de orientar a família sobre a surdez e o potencial de sua criança surda. É uma pesquisa teórica
pautada na Psicologia Social convergida para a Educação. O embasamento teórico apoiou-se na
proposta multidisciplinar focada na abordagem sócio-histórica discutida por Duarte (2006). A
investigação crítico-dialética teve como fundamentação teórica os conceitos de Vigotski (2007;
2008) dialogando com outros estudiosos. A metodologia constituiu-se na abordagem quanti-
qualitativa (NOVIKOFF, 2010) adotando para coleta de dados o uso de questionário semi-
estruturado aos responsáveis e de avaliação pedagógica das crianças pesquisadas. Os sujeitos
deste estudo foram três crianças com surdez sensório neural, profunda/severa, comunicando-se
através da linguagem não verbal e seus responsáveis, ouvintes. Tratou-se de uma pesquisa
participante. O projeto apresentado ao Comitê de Ética em Pesquisa da Unigranrio foi avaliado e
autorizado em 13 de novembro de 2009, sob o nº 4351.0.000.317-09. Os casos foram
identificados por frases. O primeiro, intitulado: Uma família em busca de ajuda, no centro
uma criança “problema”. A criança nasceu surda. Sendo a surdez um tema desconhecido, a
família não reconhecia o potencial daquela criança. O segundo, identificado como: A
“bonequinha”: uma criança imaginária diante da criança real. A surdez dessa criança foi
adquirida após um ano de idade e seus pais não aceitavam tal diagnóstico. A dificuldade de
comunicação a tornou desatenta, refletindo-se em seu aprendizado. O terceiro recebeu o título
de: O menino que não queria (podia) crescer. Sua mãe adquiriu um vírus durante a gravidez.
Com dois anos e dez meses, ela carregava o filho no colo e não o alimentava corretamente. Essa
criança tinha pouca autonomia, considerando-se sua faixa etária. O estudo em tela possibilitou a
compreensão do atendimento pedagógico desenvolvido na educação precoce, confirmando as
pesquisas que apontavam a importância da intervenção precoce para crianças surdas, com
benefícios para seu desenvolvimento global e para sua interação no grupo familiar. Todavia, uma
visão crítica permitiu compreender que mesmo tendo adquirido as primeiras aprendizagens e um
grau de autonomia relativo para sua faixa etária, tais aprendizagens não foram suficientes. Seria
necessária a aquisição de uma língua para que essas crianças adquirissem qualitativa e
quantitativamente funções psíquicas mais complexas, considerando-se que a média de idade
delas era de três anos. Acreditou-se que a proposta desta pesquisa tenha tido relevância e
pertinência teórico-social tanto para a interação entre as crianças e seus familiares, quanto à
possibilidade de gerar novos conhecimentos para pais; professores e todos que convivem com
crianças surdas ou almejam esse conhecimento.
The first three years of a child compound the basis of the knowledge which will be acquired all
through the child‟s life. The deaf kid loses many meaningful experiences to develop their
potentialities and according to a report of deafness, the family, in an extreme situation, stops
talking to the kid. Winnicott (1983) affirms that “approval or the disapproval of a family can be
transmitted to a deaf kid or to an infant in an earlier stage than the one related to the oral
communication”. This way, the present research aimed at understanding the early learning for
the independence of deaf children, their first interactions in the family group and also aims at
mapping ways of guiding the family about deafness and potential of their deaf child. It is a
guided theoretical research in Social Psychology converged for Education. The theoretical
proposal relied on a multidisciplinary study focused on a socio historical approach discussed by
Duarte (2006). The critical-dialectical research had as its theoretical basis the concepts of
Vygotsky (2007, 2008) in dialogue with other studious men. The methodology consisted in the
quantitative and qualitative approach (NOVIKOFF, 2010) by adopting for data collection the use
of semi-structure questionnaire to managers and educational assessment of children surveyed.
The subjects of this study were three kids presenting deep sensory neural deafness, using non-
verbal language communication and their parents, listeners. This was a participant research. The
project submitted to the Ethics Committee in Research of Unigranrio was assessed and approved
on November 13, 2009, under No. 4351.0.000.317-09. Cases were identified by phrases. The
first, titled: A family seeking help for a child center "problem." The child was born deaf.
Deafness is an unknown theme; the family did not recognize the potential of that child. The
second, identified as: The “doll”: an imaginary child before the real child. Deafness was
acquired when this child was one year old and her parents did not accept this diagnosis. The
difficulty of communication of this kid turned the kid distracted and it was also reflected on the
learning process. The third received the title: The boy who would not (could not) grow. His
mother got a virus during pregnancy. With two years and ten months, she carried the child on her
lap and did not feed the kid properly. This child had little autonomy, considering the age. The
study in the screen allowed us to understand the pedagogic approach developed in the early
education confirming that the research indicated the importance of early intervention for deaf
children, with benefits to their overall development and their interaction in the family group.
However, a critical approach allows us to understand that even having the first learning and a
degree of autonomy relative to their age, such learning was not sufficient enough. It would be
necessary to acquire a language for these children to reach both qualitatively and quantitatively
more complex mental functions, considering that the average age of them was three years old. It
was believed that the purpose of this research has had relevance for both theoretical and social
interaction between children and their families about the possibility of generating new
knowledge for parents, teachers and all people who live with deaf children or really long for this
knowledge.
INTRODUÇÃO ____________________________________________________ 11
II METODOLOGIA___________________________________________________ 80
ANEXOS__________________________________________________________ 153
11
INTRODUÇÃO
Os primeiros três anos da criança constituem a base dos conhecimentos que serão
acumulados ao longo de sua vida. A criança surda perde muitas experiências significativas para o
desenvolvimento de suas potencialidades; diante de um laudo de surdez, a família, em situação
extrema, deixa de falar com ela. Os processos de interação da criança surda com sua família, e as
aprendizagens que se concretizam nessa relação ocorrem, inicialmente, através da linguagem não
verbal. Portanto, são aprendizagens adquiridas por crianças surdas e ouvintes. Winnicott (1983)
afirma que a “aprovação ou desaprovação podem ser transmitidas ao surdo e à lactente em um
estágio muito anterior de se ter iniciado a comunicação verbal”. Para este autor “a base do
desenvolvimento da criança é a existência física do lactente, com suas tendências herdadas.
Essas tendências herdadas incluem o esforço de maturação para o desenvolvimento posterior”.
No entanto, esse pesquisador ressalta a importância do meio ambiente para o desenvolvimento
infantil, dizendo que “o processo de maturação depende, para se tornar real na criança, e real nos
momentos apropriados, de favorecimento ambiental suficientemente bom”. Deste modo,
objetivou-se compreender as primeiras aprendizagens para a autonomia da criança surda, suas
primeiras interações no grupo familiar, além de mapear formas de orientar a família sobre a
surdez e o potencial de sua criança surda.
Para atender tais objetivos, desenvolveu-se uma pesquisa teórica pautada na
Psicologia Social convergida para a Educação. O embasamento teórico apoiou-se na proposta
multidisciplinar focada na abordagem sócio-histórica discutida por Duarte (2006). A
investigação crítico-dialética teve como fundamentação teórica os conceitos de Vigotski (2007;
2008) dialogando com outros estudiosos.
A metodologia constituiu-se na abordagem quanti-qualitativa (NOVIKOFF, 2010),
adotando, para coleta de dados, o uso de questionário semi-estruturado aos responsáveis e de
avaliação pedagógica das crianças pesquisadas. Os sujeitos deste estudo foram três crianças com
surdez sensório neural, profunda/severa, comunicando-se através da linguagem não-verbal e seus
responsáveis, ouvintes. Tratou-se de uma pesquisa participante. O projeto apresentado ao Comitê
de Ética em Pesquisa, da Unigranrio foi avaliado e autorizado em 13 de novembro de 2009, sob
o nº 4351.0.000.317-09.
O referencial teórico ancorou-se a partir de três pontos. O primeiro refere-se à
história do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), no qual se contextualizou os
sujeitos desta pesquisa. Três momentos marcaram essa história, refletindo o ideário sobre a
pessoa surda, sendo que o primeiro deles marcou a fundação da Instituição, em 1857. Naquele
12
Cada caso foi identificado por uma frase sinalizando as queixas trazidas pela família, ao iniciar
os atendimentos na educação precoce. Dessa forma, as mudanças observadas no comportamento
de cada criança e trazidas para análise refletiram-se às aprendizagens adquiridas por elas ao final
desta pesquisa.
O estudo em tela possibilitou a compreensão do atendimento pedagógico
desenvolvido na educação precoce, confirmando as pesquisas que apontavam a importância
desse atendimento para crianças surdas, com benefícios para seu desenvolvimento global e para
as interações no grupo familiar. Todavia, uma visão crítica permitiu compreender que, mesmo
tendo adquirido as primeiras aprendizagens e um grau de autonomia relativo para sua faixa
etária, tais aprendizagens não foram suficientes. Seria necessária a aquisição de uma língua para
que essas crianças adquirissem qualitativa e quantitativamente funções psíquicas mais
complexas, considerando-se que a média de idade entre elas era de três anos. Acreditou-se que a
proposta desta pesquisa tenha tido relevância e pertinência teórico-social tanto para a melhoria
das interações familiares, quanto à possibilidade de gerar novos conhecimentos para pais,
professores e todos que convivem com crianças surdas ou almejam esse conhecimento.
14
I REVISÃO HISTÓRICO-PEDAGÓGICA
1
Ana Rímoli de Faria Dória foi diretora do INES no período de 1951 a 1961. Durante sua gestão implementou
políticas de atendimento educacional ao surdo em todo território nacional. Criou o Curso Normal de Formação de
Professores para Surdos, o primeiro na América Latina, além de criar a Campanha de Alfabetização do Surdo
Brasileiro. Sua gestão esteve fortemente ligada ao cientificismo. Escreveu vários livros e traduziu inúmeros outros,
na área da surdez. Dentre as personalidades internacionais que visitaram o INES em sua gestão está Helen Keller,
em 1953.
2
Ivete Maria de Vasconcelos. Professora de adolescentes excepcionais na Sociedade Pestalozi do Brasil/RJ, de 1946
a 1951. Participou do projeto Miniplan APAE 1/73, do Seminário sobre organização de Clínicas Interdisciplinares
para Diagnóstico e Orientação de Deficientes Mentais, RJ, de 15 a 20/04/1974. Ministrou aulas de Estimulação
Precoce do Deficiente da Audição, no período de 14/06/1975 a 05/09/1975, realizado na PUC/RJ, em convênio com
o CENESP. Iniciou a Estimulação Precoce no INES, em agosto de 1975. Foi palestrante em Congressos, Seminários
e Cursos no Brasil e no exterior, sobre a Educação de Surdos, especialmente, sobre Estimulação Precoce.
3
Solange Maria da Rocha é licenciada e bacharelada em História pela UFF (1975/1979). Cursou Pedagogia com
habilitação em Educação Especial pela UERJ (1985/1987). Foi aluna do Curso de Especialização para Deficientes
da Audição. Professora do Instituto Nacional de Educação de Surdos, desde 1985. Autora do livro O INES e a
Educação de Surdos no Brasil, publicado pelo INES, em 2008. Mestre em Educação Especial, pela UERJ, 1994.
Doutora em Educação, pela PUC/RJ, 2009. Participou da criação da Revista Espaço, publicação técnico-científica,
do INES. Coordenou a pesquisa de alternativas educacionais na Educação Infantil, no período de 1987/1990. Foi
diretora do Departamento de Desenvolvimento Humano Científico e Tecnológico do INES, 1999/2001.
15
Huet “apresentou seu programa de ensino que compreendia as seguintes disciplinas: Língua
Portuguesa, Aritmética, Geografia e História do Brasil, Escrituração Mercantil, Linguagem
Articulada (aos que tivessem aptidão) e Doutrina Cristã.” Entretanto, em 1868, através de uma
rotina administrativa da Secretaria de Estado dos Negócios do Império, Dr. Tobias Rabello Leite,
que passou a ser responsável pelo denominado Imperial Instituto dos Surdos-Mudos, constatou
que “não havia ensino, e sim, uma casa que servia de asilo aos surdos”.
Sobre essa condição de atendimento, Rocha (2009, p. 18) pontuou que a educação de
ouvintes situava-se no âmbito do direito; a do surdo, no âmbito da moral. Para essa historiadora,
“o ensino de surdos estava inscrito no direito à assistência”. Em sua opinião, isto representava
um grande avanço, na época, devido às condições sociais destinadas a ele. Ou seja, mesmo tendo
um caráter assistencialista, esse atendimento foi considerado como um grande passo para as
mudanças que se seguiriam em relação à educação do surdo.
Durante quase trinta anos após sua fundação, a educação de surdos se fazia através
de gestos codificados, sendo a maioria deles criados entre os próprios surdos. Entretanto,
Kozlowski (1995, p. 150) resgata em sua pesquisa que a língua de sinais foi proibida em todas as
suas formas a partir de 1880, durante o Congresso Mundial de Surdos, em Milão. Nesse
congresso estiveram presentes surdos da Europa e dos Estados Unidos, definindo o oralismo
como uma nova corrente educacional que passou a ser imprescindível para que eles pudessem
ser aceitos numa sociedade, predominantemente, ouvinte. Sobre esse evento, Rocha (2009, p. 89)
diz que “as grandes narrativas sobre a educação de surdos vêm demarcando o campo em duas
idades míticas, a saber: o período antes do Congresso de Milão e o período depois do Congresso
de Milão.
Todavia, a autora faz uma crítica e ao mesmo tempo sugere maiores pesquisas em
relação aos pontos discutidos durante aquele evento, uma vez que para ela não apenas a questão
relativa à língua de sinais foi tema de discussão, mas a educação do surdo, em geral. Por isso, é
válido se buscar conhecer as propostas educacionais que surgiram após o Congresso de Milão,
no final do século XIX. Rocha (idem, p. 92) fez um convite para que as pesquisas não deixassem
de “examinar o modo pelo qual as instituições desenvolveram seus projetos educacionais para
surdos pós-Milão”.
Mazzotta (1995, p. 29-30), em sua pesquisa, comentou que, em 1883, a partir de uma
convocação do Imperador, houve o 1º Congresso de Instrução Pública, com a participação do
INES e do IBC, no qual entre os vários temas sobre Educação “figurava a sugestão de currículo e
formação de professores para cegos e surdos”. Tais discussões que envolviam a Educação de
Surdo podem ter originado no Congresso de Milão, reforçando, com isso, as ideias defendidas
17
por Rocha sobre possíveis propostas educacionais para a área da surdez discutidas naquela
cidade e trazidas para o Brasil.
Assim, o início do século XX foi marcado por várias pesquisas, em diversas partes
do mundo e em diferentes áreas do saber. Alguns temas pesquisados contribuíram com a área da
surdez, outros, procurando investigar o desenvolvimento do próprio homem, encontraram
respostas no período da infância. De acordo com Lacerda4 (1976, p. 23), uma pesquisa
importante foi desenvolvida por Harvey Fletcher e Wegel, encomendada pelos Bell Telephone
Laboratories, em 1922, sobre a sensibilidade do ouvido humano às frequências sonoras. Dando
prosseguimento a essa, outras pesquisas foram feitas por Kranz e Knudsen, permitindo
conclusões mais exatas sobre a curva auditiva de pessoas com audição normal. Seu objetivo era
aperfeiçoar os aparelhos fônicos, fonográficos e radiofônicos. Como resultado, aqueles físicos
americanos verificaram que a audição variava em cada indivíduo e que no mesmo indivíduo a
audição não era igual nos dois ouvidos. No entanto, após essas pesquisas, os otologistas tiveram
condições de avaliar com maior precisão as funções auditivas. Assim, o INES, como instituição
de surdos, tornou-se um lugar favorável para muitos estudos na área da surdez e da educação de
surdos, marcando época e pontuando ideologias.
Vários pesquisadores tornaram-se expoentes dentro do Instituto. Alguns, por oferecer
embasamento teórico para este trabalho, foram incluídos aqui. Sobre esses pesquisadores, Rocha
(2009, p. 18) diz que foram “profissionais ocupados com a socialização, educação e
escolarização dos surdos” e que “formulavam políticas, discutiam caminhos para sua educação”.
Desse modo, na área da audiologia, Lacerda (idem, p. 23) cita uma pesquisa realizada por ele,
dentro do Instituto, em 1948, e divulgada tanto no país quanto no estrangeiro. Em consequência
desse seu estudo, o surdo passou a ser avaliado com mais precisão sobre suas reais capacidades
auditivas. Através de avaliações mais elaboradas, os pesquisadores puderam concluir que os
surdos não aprendiam a falar por não estar ouvindo os sons da voz humana e que a maioria deles
possuía resíduo auditivo, ou seja, se conseguiam ouvir alguns sons, poderiam ser trabalhados a
4
Armando de Paiva Lacerda. Otologista, na década de 1920 já era conhecido por seus trabalhos de reeducação
auditiva. Foi diretor do INES no período de 1930 a 1947. Identificava-se com os ideais escolanovistas. Em sua
gestão incentivou a visita de cientistas no Instituto que em 1935 recebeu Henri Wallon, pensador conhecido
mundialmente por seu trabalho sobre Psicologia do Desenvolvimento Infantil. Como médico, Armando de P.
Lacerda pesquisou técnicas de reabilitação auditiva e da fala e levantou estatísticas sobre etiologia da surdez. Em
seus relatórios apontava o INES como um centro de pesquisas na área audiométrica. Em 1963, Vasconcelos
apresentou um trabalho intitulado Importância do Diagnóstico Precoce da Criança Surda, em colaboração com o
Doutor Armando de Paiva Lacerda, no XII Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia, no antigo Estado da
Guanabara.
18
partir de diferentes técnicas. Assim, o objetivo do atendimento, que já vinha sendo a oralização
do surdo, desde 1880, a partir do século XX, ganhou cada vez mais adeptos.
Na área da educação, Vasconcelos (1978, p. 20-21) ressaltou que “somente em 1951,
com a instalação promovida pelo MEC de cursos especializados para formação de professores,
expandiu-se e divulgou-se a educação de deficientes auditivos”. Esse período da história do
INES representou o segundo momento desta história, com relevância para esta pesquisa,
marcado pelo cientificismo na área da educação do surdo. Além disso, esse período aproximou a
escola e a família do surdo, até então afastada do processo educacional de seu filho. Foi nesse
período que se iniciou a estimulação precoce, nessa Instituição.
Assim, como diretora do INES, Dória promoveu grandes mudanças que contribuíram
para a área da surdez. Segundo Rocha (2008, p. 14), “durante sua gestão, Ana Rímoli vai
promover uma série de iniciativas relativas à educação de surdos em âmbito nacional”. Entre
seus trabalhos, destacaram-se a criação do Curso Normal de Formação de Professores Surdos e
da Campanha de Alfabetização do Surdo Brasileiro. Além disso, Dória tinha várias publicações
na área da surdez.
Dentro do enfoque científico, o Curso Normal Especializado para a Educação de
Surdos, do INES, tinha um currículo semelhante ao que era dado no curso normal do Instituto de
Educação e “a única diferença era um núcleo específico, relativo à educação de surdos”
(ROCHA, 2008, p. 89). Dória defendia que o surdo possuía um potencial que deveria ser
trabalhado através de educação especializada, já que não podia explorá-lo em sua totalidade por
falta de audição. Para ela “o surdo-mudo tem um caráter todo particular e inconfundível que lhe
não permite incluir-se entre os anormais” (DÓRIA, 1958, p. 18).
As ideias oralistas provocaram mudanças significativas no atendimento educacional
do surdo. Como um dos reflexos disso, Rocha (2008, p. 93) diz que “em 1957, ano do centenário
do Instituto, a diretora iniciou um longo processo com a finalidade de obter autorização para
operar a mudança de nome do Instituto. A denominação surdo-mudo já não condizia com as
novas concepções de surdez e de surdo”.
Naquele mesmo ano, Dória foi indicada para dirigir a Campanha para a Educação do
Surdo Brasileiro – C.E.S.B. Segundo Mazzotta (1995, p. 49), naquele período o governo federal
passou a assumir o atendimento educacional aos excepcionais através de campanhas com o
objetivo de promover as medidas necessárias à educação e assistência às pessoas com
necessidades especiais “no mais amplo sentido, em todo território Nacional”. A C.E.S.B. teve
como sede o INES. Ainda de acordo com Mazzotta (idem, p. 50), “alguns anos depois a
19
Campanha foi desativada [...]”. Todavia surgiram outras no decorrer dos anos até a efetivação do
Centro Nacional de Educação Especial – CENESP.
Na área da educação de surdos foram realizados trabalhos significativos. Muitos
eram de autoria de Dória e foram publicados pelo INES, ainda na década de 1950 (ROCHA,
2008, p. 101). No entanto, mesmo terminado o período de sua direção, esta pesquisadora
continuou contribuindo com a área da surdez. Vários trabalhos tratavam da criança surda em
seus primeiros anos de vida e a importância da família no processo educacional. Dória defendia
que “da ação conjugada, da perfeita articulação entre o lar e a escola, dependerá, em grande
parte, a harmonia no desenvolvimento psicológico da criança” (DÓRIA, 1958, p. 55-56).
Paralelo aos trabalhos desenvolvidos por Dória no INES, outra pesquisadora vinha
traçando um percurso dentro da educação do surdo. Vasconcelos também defendia a idéia de que
ele possuía potencialidades e que elas deveriam ser exploradas; defendia, também, o diagnóstico
e o atendimento precoces aproveitando o período mais significativo para as primeiras
aprendizagens. A partir dessas concepções, a família se tornou a principal mediadora no processo
educacional da criança surda em seus primeiros anos de vida. Sobre o surdo e suas famílias,
Vasconcelos (1978, p. 19) citou em uma de suas pesquisas que, anteriormente, “os modelos de
atendimento eram escolas residenciais do tipo de asilo ou internato, que excluíam o convívio
com a família e a comunidade, prejudicando sua educação e integração e acentuando as
características de anormalidade”. Todavia, Vasconcelos (1978, p. 23) destacava que o internato
passou a ser considerado uma situação desfavorável para a criança “por privá-la das ricas
oportunidades de experiências do lar que constituem a base de todo o desenvolvimento afetivo,
intelectual e de integração [...]”. Para essa pesquisadora (1978, p. 28), o educador especializado
deveria ser orientado em seu trabalho através do “amor, paciência, compreensão, perseverança e
técnicas especializadas”. Sobre a importância de apoiar e orientar os pais após a confirmação da
surdez de seu filho, Vasconcelos (apud CEIV, 1982, p. 41) esclarece que “um diagnóstico
apresentado aos pais, sem preparação e orientação prévia, é uma crueldade; causa impacto,
desespero, incredulidade e chega mesmo a desestruturar a dinâmica familiar”.
Vasconcelos (idem, p. 26) defendia que a metodologia educacional para os surdos
deveria ser “flexível e adequada a cada tipo de deficiência, grau de perda e outras deficiências
associadas”. Além disso, sobre o desenvolvimento da linguagem, a autora dizia que “toda a
orientação metodológica deve facilitar os processos de assimilação, conceituação e
generalização, tornando também possível a compreensão das normas sociais e padrões culturais
de comportamento”. Ela defendia a ideia de que esse trabalho “deve atender sempre à
individualidade e aos interesses de cada criança” e que “a linguagem das crianças completamente
20
surdas ou surdos profundos será formada laboriosamente mediante processos não naturais, de
maneira lenta, trabalhosa e difícil” (VASCONCELOS, apud CEIV, 1982, p. 36-37). Entretanto,
defendendo o oralismo, procurava desenvolver a comunicação global da criança surda. Assim,
dizia que “o nosso objetivo no trabalho educativo é a comunicação da criança, em sentido amplo,
não se enfatizando apenas a oralização (ecletismo de metodologia)”. De acordo com seu
pensamento “a comunicação apela para outros meios que permitem aprender, compreender,
intercambiar pensamentos, sentimentos e ideias” (idem, p. 43). Vasconcelos, tendo grande
embasamento teórico, defendia que:
De acordo com a orientação de especialistas em estimulação precoce, é
necessário aproveitar o período crítico – o mais propício à aprendizagem da
criança – para o aproveitamento da audição residual e o desenvolvimento da
comunicação. Nesta fase, a criança é mais sensível aos estímulos a que está
exposta. Desde os primeiros meses de vida, a criança reage a uma infinidade de
estímulos (percepções), e essas percepções estimulam seu desenvolvimento
global. (ibidem, p. 42)
Desse modo, os surdos, como minoria, deveriam ser oralizados para integrar-se em
uma sociedade predominantemente ouvinte. Esse movimento produziu pontos positivos para o
surdo. Vasconcelos (1978, p. 23) comenta que o CENESP, na área da surdez “procurou dados,
por meio de estudos e pesquisas, orientando sua estratégia de ação para a identificação,
diagnóstico, tipos de atendimento, currículos, equipamentos e aperfeiçoamento de pessoal
técnico especializado”.
Assim, essa professora, “verificando que grande número de crianças, na faixa etária
de 0 a 3 anos, aguardavam matrícula no INES, em abril de 1975, foi planejado e organizado um
Serviço de Orientação aos pais dessas crianças” (CEIV 1982, p. 44). Porém, era necessário que
esse atendimento fosse direcionado para as próprias crianças surdas e, assim, montou-se um
atendimento às crianças surdas, dessa faixa etária. Como naquela época o objetivo do CENESP
era a Formação de Recursos Humanos e o Atendimento ao Pré-Escolar, em julho do mesmo ano,
foi iniciado no INES um curso de Estimulação Precoce, em nível de extensão universitária, em
convênio com a PUC do Rio de Janeiro. O objetivo do curso era o preparo de pessoal, com vistas
à montagem de serviços, tanto na rede oficial como na particular. Em fins de agosto de 1975, foi
inaugurado o Setor de Estimulação Precoce no INES (idem).
Na opinião de Rocha (2008, p. 111), Vasconcelos foi a pioneira na estimulação
precoce de bebês surdos. Como grande pesquisadora, com diversos cursos no Brasil e no
exterior, em 1979 falou sobre a nova corrente filosófica chamada de Comunicação Total e que
associava oralismo e gestualismo ganhando adeptos no mundo inteiro (idem). De acordo com o
depoimento de Lacerda (CEIV, 1982, p. 8) Vasconcelos, em um congresso em Buenos Aires, em
1966, concluiu que “o problema (da educação de surdos), merece, portanto, uma análise muito
sincera dos educadores, partidários e entusiastas, como nós, do método oral, mas que
reconhecem a sua inadaptação a determinados casos”. Essa sua proposição se relacionava com a
questão que envolve, principalmente, o surdo profundo e severo, diante da língua oral, já que por
estar privado dos estímulos sonoros e, consequentemente, da voz humana, o ensino através desse
estímulo se tornava artificial, enfadonho e, na maioria das vezes, com pouco sucesso para a vida
prática desse surdo (idem).
Vasconcelos (1978, p. 25) também se referia aos trabalhos do Dr. Guy Perdoncini,
dizendo que era uma metodologia multissensorial e que muitas escolas utilizavam esse método
22
de treinamento auditivo. Segundo ela, tal método levava em consideração a capacidade auditiva,
acompanhando a habilidade no uso de pistas visuais, como as que são fornecidas pelos
movimentos, gestos e expressões faciais, facilitando a aprendizagem da criança. Sobre os
trabalhos do Dr. Perdoncini, Lacerda (1976, p. 193) nos diz que aquele pesquisador “considerava
o treinamento auditivo o ato mais importante na educação da criança surda, procura atribuir-lhe,
com o seu método pedagógico, um ritmo e uma melodia compatível à voz normal, segundo as
possibilidades e evolução individuais”.
Couto5 foi a precursora desse método no Brasil, dedicando suas pesquisas à criança
surda, em seus primeiros anos de vida, à orientação familiar e ao desenvolvimento da linguagem
através da estimulação auditiva. Couto (s/d, p. 23) defende que “privada da audição, uma criança
ficará, consequentemente, privada do período mais importante para a aquisição da linguagem,
por não ter acesso aos estímulos sonoros, imprescindíveis à comunicação oral”. Além disso, essa
pesquisadora enfatizou o importante papel da educação precoce para o desenvolvimento global
da criança surda e a importância da participação da família nesse processo educacional,
principalmente, nos primeiros anos de vida, assim como Dória e Vasconcelos. Os pensamentos
dessas três pesquisadoras norteiam os trabalhos na educação precoce, do INES, até hoje.
Outro dado importante na educação do surdo foi trazido por Marchesi (1995, p. 202),
ao afirmar que “a maioria das investigações sobre o desenvolvimento cognitivo das crianças
surdas foram realizadas nos anos de 1970 dentro do modelo teórico proposto por Piaget”. No
entanto, esse autor continua nos dizendo que nos anos de 1980 outros estudos complementaram
ou mesmo se opuseram aos estudos piagetianos que, para ele, “junto a este aspecto
epistemológico do conhecimento, deve-se considerar, também, o aspecto mais real e
contextualizado do mesmo”.
Ao abordar esse tema, Marchesi está se reportando aos estudos de Piaget nos anos de
1970. O Construtivismo, como foi chamado a teoria piagetiana, estava sendo bastante divulgada
entre os educadores brasileiros. Segundo Duarte (2006, p. 110), Piaget se utilizava de um
“modelo interacionista (adaptação, equilibração, assimilação, acomodação), biologiza os
5
Álpia Couto-Lenzi. Fez o Curso Normal Especializado para a Educação de Surdos, no INES, em 1951. Trabalhou
com surdos numa escola que funcionava dentro da casa de seus pais. Pedagoga. Especialista em Patologia da
Linguagem. Mestre em Linguística. No final da década de 1970 foi coordenadora da área de deficientes auditivos do
Centro Nacional de Educação Especial – CENESP. Nessa função, promoveu a reorganização do Curso de
Especialização para Professores de Surdos, no INES. As duas primeiras turmas foram formadas no ano de 1981.
Participou do Projeto de Pesquisa de Alternativas Educacionais, no INES, como Supervisora da Alternativa
Audiofonatória. Representante no Brasil do método “Perdoncini” com diversas publicações sobre essa metodologia
focada para o atendimento ao surdo.
23
Esse foi o modelo mais utilizado pela educação durante os anos de 1970. Em
contrapartida, nos anos de 1980, os estudos de Vigotski apontam outra abordagem adotada pela
educação. Duarte (2006, p. 106), indicando diferenças marcantes entre as duas abordagens, fala
que “Vigotski adotava o pressuposto marxista de que por meio do trabalho o ser humano vem, ao
longo da história social, criando o mundo da cultura humana [...]” e que se ocupou das Funções
Psíquicas Superiores. Segundo Duarte (idem) “para Vigotski, esses processos são de natureza
social e formam-se por meio da superação e da incorporação dos processos psíquicos
elementares, de origem biológica”. Foram essas ideias que passaram a habitar o universo
acadêmico dos anos de 1980 e utilizadas nesta dissertação para a compreensão das primeiras
aprendizagens da criança surda.
Segundo Rocha (2008, p. 112), pela necessidade de se formar novos professores que
pudessem substituir aqueles que estavam prestes a se aposentar no INES, em 1980, “o Instituto
retomou a atividade de organização de cursos para professores atuarem com alunos surdos”.
Rocha acrescenta que “o primeiro curso oferecido foi no ano de 1981 [...]. Em 1984, o
MEC/CENESP realizou um concurso para professores [...] e grande parte dos alunos que
frequentaram o curso foi admitida através do concurso”. A entrada de uma nova geração de
professores no INES coincidiu com as mudanças no campo educacional do Brasil. Portanto, o
terceiro momento da história do INES com relevância para esta pesquisa teve início na década de
1980, apontando para um período de lutas e conquistas do surdo brasileiro.
Dentro dessa nova proposta educacional, compreendeu-se que a abordagem sócio-
histórica veio trazer contribuições significativas para a educação do surdo, levando em
consideração sua história de vida bem como suas interações dentro do grupo social ao qual
pertencia. Com isso, sua participação deixou de ser passiva e passou a refletir, nos dias de hoje,
uma participação ativa e transformadora. Assim, de acordo com as políticas públicas, em 1994, o
Ministério da Educação (MEC) e a atual Secretaria de Educação Especial (SEESP) lançaram a
série intitulada Diretrizes, contendo contribuições para os serviços educacionais desenvolvidos,
em âmbito nacional, para as pessoas com necessidades especiais. Na elaboração desse
24
6
http://www.ines.gov.br
26
1.1 Surdez
1.1.1 Etiologia:
O INES (2003, p. 11) aponta que os fatores etiológicos “são aqueles que podem
causar perda de audição podendo ocorrer no período pré-natal, perinatal ou pós-natal”. Assim,
baseando-se naqueles estudos no período pré-natal ou gestacional, podem ocorrer fatores
hereditários, encontrando-se entre eles algumas síndromes e fatores familiares ou não
hereditários, como as alterações endócrinas; bacterianas, como a sífilis; deficiência na nutrição
materna; diabetes; drogas e medicamentos; más formações; entre outras causas, que apontam
27
para a possível causa da perda auditiva. A surdez pode ocorrer, também, no período perinatal, ou
seja, durante o parto, como anoxia, falta de oxigenação no cérebro; prematuridade e traumas no
parto. E, por último, a surdez pode ocorrer após o nascimento, configurando o período pós-natal
ou neonatal, através de drogas ototóxicas (medicamentos que podem causar surdez); infecções
bacterianas (encefalite, meningite); traumas (crânio encefálico); virais (caxumba, meningite,
sarampo); ruído; icterícia ou hiperbilirrubina e baixo peso.
1.1.2 Classificação:
De acordo com o INES (2003, p. 32), a perda auditiva pode ser classificada quanto
aos tipos e graus. A perda auditiva pode ser considerada transitória ou definitiva, estacionária ou
progressiva. Assim, quanto ao tipo, ela pode ser caracterizada como condutiva, quando
“proveniente de patologias na orelha externa e/ou média, sendo, na maioria das vezes, passíveis
de tratamento medicamentoso e/ou cirúrgico”. O INES (2003, p. 32) cita algumas patologias que
podem ser responsáveis por esse tipo de surdez. Entre elas as otites, a osteoclerose, a perfuração
timpânica e até mesmo a rolha de cerume.
Outro tipo de surdez denomina-se sensório neural. Esse tipo é irreversível, pois
atinge as células neurais que quando lesionadas não se regeneram mais. Para esse tipo de surdez
não existe tratamento. A surdez sensório neural localiza-se na orelha interna e/ou no nível
central. Entre as patologias e fatores que podem provocar essa surdez, encontram-se as doenças
viróticas, como meningite, rubéola, citomegalovírus; a ingestão de drogas; a anoxia ou falta de
oxigênio no cérebro; etc. (INES, 2003, p. 33).
De acordo com a definição do INES, ainda existe a perda auditiva do tipo mista que,
como o nome já diz, afeta a audição tanto na orelha externa quanto na orelha interna,
apresentando uma surdez de condução e ao mesmo tempo uma surdez sensório neural.
A surdez se classifica, também, pelo seu grau de perda auditiva. Lacerda (1976, p.
182) fala de dois grandes grupos, sendo os hipoacústicos e os surdos. Segundo essa classificação,
“as crianças hipoacústicas são as que adquirem normalmente a linguagem em seu meio familiar e
social, frequentando as escolas comuns juntamente com as ouvintes”. Fazem parte desse
subgrupo as pessoas que apresentam perda leve, moderada ou acentuada. Muitas vezes os
hipoacústicos são confundidos com crianças sem limites; desatentas ou hiperativas. A falta de
audição, na maioria das vezes, deixa de ser investigada logo que se percebem alguns
comportamentos incomuns na criança ouvinte. Isso pode, também, ser um reflexo do
28
Esta é uma variante muito importante, uma vez que vai permitir avaliar se o surdo já
havia adquirido ou não a língua oral, antes de ter ocorrido a perda de audição. Se a criança
nasceu surda ou ensurdeceu nos primeiros meses de vida, esse surdo é chamado de pré-
linguístico, ou seja, não teve acesso à língua materna, no caso de pais ouvinte, na modalidade
oral.
O surdo pós-linguístico é aquele que teve contato com a língua materna, adquirindo
os conceitos dessa língua. Ele geralmente tem condições de continuar a utilizar a língua materna
mediante um ensino especializado e através de sua memória auditiva. São aqueles surdos que
mesmo, tendo perda sensório neural, de grau severo ou profundo, fala e escreve com relativa
facilidade.
29
De acordo com o INES (2003, p. 28) “no ano de 2002, o „Joint Committee‟
simplificou a lista de fatores de risco para recém-nascidos”, incluindo: doenças ou condições que
tenha necessitado admissão em UTI-Neonatal por mais de 48 horas, história de surdez na família
e anormalidades craniofaciais, recomendando a avaliação ao nascimento denominada de Triagem
Auditiva Neonatal Universal (TANU).
Atualmente, o DIAU faz a avaliação de bebê desde o nascimento, indicando que
houve uma conscientização da população sobre a importância da avaliação precoce para a
audição. Isso é fruto, também, da divulgação feita nas maternidades e pelos pediatras. Entretanto,
constata-se que os pais ainda não procuram, imediatamente após o diagnóstico de surdez, o
atendimento educacional para seu filho. E a média de idade para o início na educação precoce,
do INES continua sendo de dois anos de idade. Tal constatação sugere que existe pouca
divulgação sobre o trabalho na área pedagógica para crianças surdas dessa faixa etária e que a
família necessita de um período para se refazer emocionalmente após o diagnóstico de surdez.
Segundo o INES (2003, p. 54), “grande parte do fracasso escolar de surdos pode estar
relacionado ao diagnóstico e intervenção bastante defasados. A detecção tardia vem sendo alvo
de grande preocupação dos profissionais e educadores de surdos em todo o mundo”.
Para Duarte (2006, p. 147), a educação deve enriquecer o indivíduo permitindo que
ele “se aproprie de determinados conhecimentos que ultrapassem, cada vez mais, o pragmatismo
imediatista da vida cotidiana e aproximem o indivíduo das obras mais elevadas, produzidas pelo
pensamento humano”. O surdo durante muito tempo foi visto apenas pela limitação causada pela
surdez e, assim, na ausência da fala, principalmente, a sociedade predominantemente ouvinte
atribuiu a esse sujeito outros limites na área do conhecimento, ou seja, como não falava não
aprendia. Ou aprendia apenas aquilo que tinha uma relação direta com o concreto, o tempo
imediato, o que estava diante de seus olhos, limitando, assim, seu potencial de aprendizagem.
Diante dessa constatação e objetivando transformar algumas idéias preconcebidas e
equivocadas, optou-se por percorrer os caminhos indicados por Duarte (2006, p. 177) por ele
tomar “como referência básica a Pedagogia Histórico-Crítica” acreditando-se que esta pudesse
oferecer subsídios para a investigação das primeiras aprendizagens. Ao se trazer a criança surda,
em seus três primeiros anos de vida, compreendeu-se esse período como a base de todo o
conhecimento. Desse modo, acreditamos que, após ter adquirido essa base, o surdo poderia
31
percorrer outras etapas mais complexas, podendo ser incluído nos ideais de educação, defendidos
por Duarte. Este autor, conclamando outros educadores neste ideal diz que:
[...] devemos lutar por uma educação que amplie os horizontes culturais desses
alunos [...] que produza nesses alunos necessidades de nível superior,
necessidades que apontem para um efetivo desenvolvimento da individualidade
como um todo [...] que transmita aqueles conhecimentos que, tendo sido
produzidos por seres humanos concretos em momentos históricos específicos,
alçaram validade universal e, desta forma, tornam-se mediadores indispensáveis
na compreensão da realidade social e natural o mais objetivamente que for
possível no estágio histórico no qual se encontra atualmente o gênero humano.
(idem, p. 10).
Além da área linguística, outro desafio para o surdo envolvia a questão das
interações sociais. O surdo, principalmente aquele que apresentava grau severo ou profundo,
tinha poucas possibilidades de interação em seu grupo social. Para Vigotski (apud DUARTE,
2006, p. 235), as relações humanas têm um papel primordial para a aquisição de todo o
conhecimento. Assim, ele diz que “pensamento realista e fantasia têm a mesma origem, a
capacidade de abstração e generalização que o pensamento humano vai desenvolvendo na
atividade social”. Com isso, percebeu-se o quanto a criança surda deixava de aprender em suas
primeiras interações dentro de seu grupo familiar, quando este parava de se comunicar com seu
filho surdo ou diminuía consideravelmente essa atividade, limitando-se às interações mais diretas
e ligadas às necessidades básicas da criança.
33
ocorreram na ausência de uma língua, ou seja, através da linguagem não verbal. Fernandes
define a linguagem como:
[...] qualquer meio de comunicação, como a linguagem corporal, as expressões
faciais, a maneira de nos vestirmos, as reações de nosso organismo (tanto aos
estímulos do meio, como de nosso pensamento ou, mesmo, dos aspectos
fisiológicos), ou a linguagem de outros animais, os sinais de trânsito, a música,
a pintura, enfim, todos os meios de comunicação, sejam cognitivos (internos),
socioculturais (relativos ao meio) ou da natureza, como um todo.
(FERNANDES, 1999, p. 64).
Sobre a aquisição de uma língua, Vigotski faz referência aos trabalhos de Stern que
aponta dois fatores relevantes para a aquisição de uma língua e que chamou de disposição interna
e externa. Assim, para Stern:
[...] a conquista da fala pela criança ocorre por meio de uma interação constante
de disposições internas, que levam a criança à fala, e condições externas – isto
é, a fala das pessoas ao seu redor –, que propiciam o estímulo e o material para
a realização dessas disposições. (STERN apud VIGOTSKI, 2008, p. 38).
fundamento biológico distinto em nossa espécie”. Sobre as disposições externas, Vigotski (2008,
p. 63) aponta que “o pensamento verbal não é uma forma de comportamento natural e inata, mas
é determinado por um processo histórico-cultural e tem propriedades e leis específicas que não
podem ser encontradas nas formas naturais de pensamento e fala”.
Entretanto, além desses dois fatores, existe o aspecto emotivo, que também participa
do contexto linguístico. Slobin (1980, p. 162) aponta essa questão em seus estudos quando se
refere aos sons emotivos. Assim, para ele “exceto em situação de tensão extremada, podemos
escolher entre comunicar sentimentos e deixar de fazê-lo. A expressão emotiva perde muito de
sua natureza reflexa e fica sob controle cognitivo nos seres humanos”. Vigotski (2008, p. 8)
também acredita nesse componente emotivo participando do contexto linguístico, dizendo que
“cada ideia contém uma atitude afetiva transmutada com relação ao fragmento de realidade ao
qual se refere”. Esse autor afirma que existe uma relação entre intelecto e afeto, uma vez que a
palavra não se dissocia da “plenitude da vida, das necessidades e dos interesses pessoais, das
inclinações e dos impulsos daquele que pensa”. (idem, p. 9). Isso permite compreender que a
estrutura de uma língua não se limita apenas à articulação dos sons e que não basta ensinar ao
surdo a articular palavras. Ele necessita adquirir o conceito linguístico. Vigotski afirma que:
[...] um conceito é mais do que a soma de certas conexões associativas formadas
pela memória, é mais do que um simples hábito mental: é um ato real e
complexo de pensamento que não pode ser ensinado por meio de treinamento,
só podendo ser realizado quando o próprio desenvolvimento mental da criança
já tiver atingido o nível necessário. (ibidem, p. 104).
Vigotski (2008, p. 6) acrescenta que “uma palavra sem significado é um som vazio,
que não mais faz parte da fala humana. Uma vez que o significado da palavra é simultaneamente
pensamento e fala, é nele que encontramos a unidade do pensamento verbal que procuramos”.
Com isso, pode-se compreender que, ao se apropriar de uma língua, o homem não apenas está
utilizando esse instrumento para se comunicar, mas também para seu desenvolvimento cognitivo.
A criança surda, como todas as crianças, dentro do processo de desenvolvimento linguístico,
adquire os primeiros significados linguísticos a partir da linguagem não verbal.
Sobre a língua de sinais, Kozlowsky (2000, p. 49) afirma que ela tem uma estrutura
própria e que um sinal gestual envia a um conceito, não havendo correspondência termo a termo
com a língua oral. Quadros (2003, p. 99) completa esta ideia dizendo que “ao expressar um
pensamento em língua de sinais, o discurso na língua de sinais utiliza uma dimensão visual que
37
não é captada por uma língua oral-auditiva, e, da mesma forma, o oposto é verdadeiro”. Dentro
desse enfoque, Fernandes acrescenta que:
As línguas de sinais, como as línguas oralizáveis, possuem gramática própria
que as diferenciam uma das outras e das oralizáveis. Isto quer dizer que a
Língua Brasileira de Sinais, por exemplo, tem estrutura diferente da estrutura da
Língua Portuguesa, e deve ser encarada, também, como uma língua natural (não
artificial), pois tem sua origem equivalente a qualquer língua natural que
conhecemos. (FERNANDES, 1999, p. 66).
Elas são de outra ordem, uma ordem com base visual, e, por isso, têm características
que podem ser ininteligíveis aos ouvintes. Dessa forma, compreendemos que a LIBRAS e a
Língua Portuguesa apresentam todos os elementos de uma língua natural, porém, se diferenciam
em sua realização. Sobre a aquisição da LIBRAS, a língua materna de filhos de pais surdos
Quadros e Schmiedt (2006, p. 19) dizem que tais crianças adquirem essa língua dentro do mesmo
período de desenvolvimento linguístico da ouvinte. Ou seja, é importante compreendermos que
tanto a criança ouvinte quanto a criança surda vivenciam naturalmente um modelo linguístico,
através de diferentes interações. No entanto, as crianças que nasceram surdas ou que ficaram
surdas no primeiro ano de vida, filhas de pais ouvintes, não puderam construir um vocabulário
básico para a compreensão da língua materna e muito menos inferir as primeiras regras
linguísticas que são assimiladas pelas crianças ouvintes, de forma natural, quando inexiste uma
língua comum entre eles.
Para Vasconcelos (apud CEIV, 1982, p. 37), a criança que apresenta uma surdez
profunda tem dificuldade muito grande para adquirir uma língua oral-auditiva e que, se ocorrer,
será “mediante processos não naturais, da maneira lenta, trabalhosa e difícil” e que “não se
realizando o circuito audição-fonação denominado feed-back, sua educação deverá ser feita
através das outras vias sensoriais de suplementação”. Seguindo nessa lógica, Vasconcelos
acrescenta que “estas, mais do que aquelas com resíduos auditivos, desenvolvem rapidamente
uma mímica espontânea e expressiva, que representa sua língua materna”. E conclui que “a
aprendizagem da língua oral, difícil, artificial e lenta, não tende à evolução do seu psiquismo
nem às necessidades imediatas da exteriorização do pensamento”.
metodologia específica, como sua segunda língua (L²). Kozlowski (ibidem, p. 105) considera que
“a necessidade do oralismo ainda é uma realidade para o surdo brasileiro quando pensamos em
educação de nível superior, inserção social e colocação profissional”. Neste sentido, dentro de
um modelo bilíngue de ensino, as duas línguas possuem o mesmo grau de importância dentro do
processo de ensino e de aprendizagem.
Porém, não adianta somente que o surdo tenha o domínio da LIBRAS. É necessário
que toda a sociedade partilhe desse conhecimento para que ele possa utilizá-la como um
instrumento de comunicação e de conhecimento. Assim, o INES oferece cursos de LIBRAS para
os pais e familiares dos alunos matriculados na instituição, assim como a todas as pessoas que
querem ter acesso a essa língua. Para Quadros e Schmiedt:
A escola torna-se, portanto, um espaço linguístico fundamental, pois
normalmente é o primeiro espaço em que a criança surda entra em contato com
a língua brasileira de sinais. Por meio da língua de sinais, a criança vai adquirir
a linguagem. Isto significa que ela estará concebendo um mundo novo usando
uma língua que é percebida e significada ao longo do seu processo.
(QUADROS; SCHMIEDT, 2006, p. 22-23)
Oferecer uma língua antes dos três anos de idade é permitir que a criança surda possa
adquirir não apenas um vocabulário, mas também conceitos linguísticos; possa dramatizar e
expressar seus sentimentos e experiências de mundo, criando situações novas e brincando com
os sinais que ela vai adquirindo na interação com adultos e crianças surdas. Essas são atividades
que, por serem próprias dessa faixa etária, facilitam o desenvolvimento linguístico. Entretanto,
essa ação somente terá um resultado positivo em relação ao aluno surdo se a família participar
ativamente desse processo de aquisição linguística, tendo a escola como mediadora. Essa língua
pode ser a língua de sinais ou a língua falada. Esse é um ponto que deve ser esclarecido para a
família e que a ela seja dado o direito de escolher a que melhor se adapte em seu contexto
familiar, seus anseios e projetos para o futuro de seu filho.
a fala infantil realizado nas décadas de 1920 e de 1930 por Piaget, na Suíça, e por Vygotsky, na
União Soviética”.
Sobre as pesquisas de Piaget, Dolle (1995, p. 18) diz que seu objetivo “era chegar ao
mecanismo psicológico das operações lógicas e do raciocínio causal”. As investigações daquele
pesquisador foram realizadas com crianças pequenas, e suas investigações, interpretações e
conclusões, reunidas em várias obras nas décadas de 1920 e 1930.
Já as pesquisas de Vigotski, envolvendo crianças nos primeiros anos de vida, foram
publicadas em 1931, na obra intitulada „História do Desenvolvimento das Funções Psíquicas
Superiores‟. Nela, entre os vários temas, Vigotski trata da importância de se pesquisar essas
funções, desde o início da vida do bebê. Este estudioso esteve bastante envolvido com as pessoas
com necessidades especiais, uma vez que fez parte do Instituto de Estudo das Deficiências, em
Moscou. Segundo Cole e Scribner:
Em estudos de problemas médicos, tais como cegueira congênita, afasia e
retardamento mental severo, Vigotski viu a oportunidade de entender os
processos mentais humanos e de estabelecer programas de tratamento e
reabilitação. Desta forma, estava de acordo com a sua visão teórica geral
desenvolver seu trabalho numa sociedade que procurava eliminar o
analfabetismo e elaborar programas educacionais que maximizavam as
potencialidades de cada criança. (COLE; SCRIBNER, apud VIGOTSKI, 2007,
p. XXIX).
De acordo com essas pesquisas, ficou claro que as crianças, alvo daqueles estudos,
apresentavam algum nível de carência afetiva e privação cultural, relacionadas à questão sócio-
econômica ou a algum outro problema, como os notados em recém-nascidos considerados de
alto risco tendo ou não algum tipo de deficiência. A partir desses estudos, surgiram diferentes
atendimentos para elas em seus primeiros anos de vida.
41
Sobre a questão da privação cultural, Soares diz que alunos da classe social mais
baixa estariam privados:
[...] não só do ponto de vista econômico – daí a privação alimentar, a
subnutrição, que teriam consequências sobre a capacidade de aprendizagem –
mas também do ponto de vista cultural: um meio pobre de estímulos sensórios,
perceptivos e sociais, em oportunidades de contato com objetos culturais e
experiências variadas, pobre em situações de interação e comunicação.
(SOARES, 1994, p. 13).
“avanços tecnológicos na área perinatal, que resultaram numa diminuição crescente da taxa de
mortalidade neonatal”. De acordo com Pérez-Ramos e Pérez-Ramos:
Para o período neonatal, aperfeiçoam-se os instrumentos e aumenta-se seu
número, permitindo verificar, com maior precisão, as reações do recém-nascido,
sobretudo quanto aos estímulos sensoriais. Constituem exemplos desta natureza
as escalas para detecção dos problemas de audição de DRUMWRIGHT (1972)
e de visão de BARKER (1972) e, em especial, a de BRAZELTON7 (1973). Esta
última técnica vem sendo utilizada com êxito em diferentes países. (CANDEL
GIL, 1985 apud PÉREZ-RAMOS; PÉREZ-RAMOS, 1996, p. 13-14).
7
T. Berry Brazelton, fundador da Unidade de Desenvolvimento da Criança no Hospital da Criança de Boston.
Pediatra por mais de 45 anos, introduziu o conceito de “orientação antecipatória” para pais na formação pediátrica.
Autor da Escala de Avaliação Comportamental Neonatal Behavioral Assessment Scale – NBAS. Conhecida como
Escala de Brazelton, ela é usada no mundo todo, clinicamente e em pesquisas, para avaliar não apenas as respostas
físicas e neurológicas de recém-nascidos, mas também seu bem-estar emocional e as diferenças individuais. Em seus
estudos desenvolve o pensamento de que todo aprendizado tem sua fonte nos primeiros relacionamentos. E que
todos os bebês aprendem, inicialmente, através da linguagem não-verbal.
43
Nos dias atuais, em todo o mundo existem trabalhos voltados para o atendimento de
bebês prematuros em maternidades ou clínicas, sendo elas públicas ou privadas. Esses bebês
prematuros são acompanhados em seu desenvolvimento durante seu primeiro ano de vida e, se
for identificada qualquer desvio em seu desenvolvimento global, uma equipe multidisciplinar
44
Paralelo aos trabalhos dirigidos pela Dra. Lygia Coriat, na Argentina, na década de
1960 sobre a estimulação de bebê de alto risco, outras pesquisas vinham sendo encaminhadas na
mesma área. Entre elas, algumas se projetaram para as questões levantadas sobre privação
cultural e afetiva. Essa linha de pesquisa procurava investigar as crianças que apresentavam
perda cognitiva em consequência da falta de estimulação ambiental. Assim, Queiroz e Pérez-
Ramos dizem que tais pesquisas:
Definiram os índices que identificam os diferentes status sócio-econômicos,
como a ocupação e instrução dos pais, o local de residência da família e a
constituição do lar (sobretudo a permanência do pai no mesmo), determinando,
de alguma forma, os fatores de estimulação do meio ambiente. (QUEIROZ;
PÉREZ-RAMOS, 1974, p. 8).
Nos dias de hoje, a estimulação precoce vem sendo reavaliada e ampliada dentro de
uma proposta mais ampla, desde a vida intra-uterina onde os cuidados se estenderiam tanto para
o bebê e os cuidados dirigidos à gestante quanto à família. Além disso, outra proposta que seria
um desdobramento desta: antecipa ainda mais esse atendimento com a proposta de orientar os
jovens sobre os cuidados de se engravidar, como um trabalho de prevenção e de uma gravidez
consciente; os cuidados durante a gravidez e os cuidados com o bebê em seu primeiro ano de
vida e a formação de vínculos emocionais, principalmente, entre mãe/pai/bebê nos quais se
formariam a base para que a criança possa ter assegurado seu desenvolvimento pleno.
Sobre esses atendimentos, Corrêa e Corrêa Filho (2002, p. 110-111) citam como
exemplo, no Brasil, a Pastoral da Criança, que desenvolve “atividades de acompanhamento da
gestação e educação essencial”. Esses autores citam, também, o trabalho de líderes comunitários
que “oferecem este apoio a aproximadamente 1.000.000 de famílias, acompanhando a gestação e
o controle do seu pré-natal e, sobretudo, prestando uma assistência bem mais intensiva no
primeiro mês de vida”. Corrêa e Correa Filho acrescentam que “os agentes comunitários de
saúde do Governo também são estimulados a prestar esta assistência”. Afirmam, também, que
“os programas de Saúde da Família têm um campo propício para que o trabalho de educação pré
e perinatal e de acompanhamento do desenvolvimento da criança se instale”. Corrêa e Corrêa
Filho argumentam que:
Estamos num campo de estudos e de trabalho que nos revelaram, nas três
últimas décadas, mais descobertas do que em todos os tempos. A importância
dos três primeiros anos de vida tornou-se mais evidente após a divulgação de
49
Segundo estes autores (ibidem), há um sério problema “da competência técnica dos
recursos humanos para este período inicial da vida. Daí a necessidade e prioridade de investir na
formação dos profissionais”. Eles consideram que, apesar dos dados obtidos sobre o
desenvolvimento da criança, nessa faixa etária, eles permanecem “fragmentários e largamente
insuficientes para compreender a complexidade da infância, para prevenir as dificuldades do
desenvolvimento e para criar as condições apropriadas, que revelam, ou recuperam as
capacidades de uma criança”.
Portanto, neste estudo, procurou-se investigar sobre a criança surda e quais as suas
potencialidades de aprendizagens, além de se investigar qual o seu lugar na sociedade,
principalmente em seu núcleo familiar, como mediadores das experiências que lhe permitirão
desenvolver-se plenamente.
A infância é definida pelos estudiosos como um período que vai desde o nascimento
até os doze anos de idade. Durante muito tempo este período de vida se mostrou encoberto,
portanto, invisível para o adulto. Porém, buscando modificar esse quadro, muitas pesquisas
apontaram para a necessidade de se reconhecer o lugar em que ela estaria situada. Werner Jr.
permitiu que se traçasse um percurso histórico sobre esse tema dizendo que:
No mundo antigo, a visibilidade social e afetiva da criança estava comprometida
por fatores tais como: a alta taxa de mortalidade, a participação precoce no
mundo dos adultos, os ideais de força e beleza física, as dificuldades de
sobrevivência, o misticismo de diferentes tipos. (WERNER Jr., 2002, p. 152).
inteiramente desconhecido enquanto ser inteligente e, por outro lado, o adulto constituía para o
educador o ideal a cuja semelhança ele pretendia formar a criança”. (idem, p. 98). Para
Benjamin, as crianças “[...] formam o seu próprio mundo de coisas, um pequeno mundo inserido
no grande. Dever-se-ia ter sempre em vista as normas desse pequeno mundo quando se deseja
criar premeditadamente para crianças [...]” (ibidem, p. 104).
Nesse processo histórico, quando a sociedade passou a ver que a criança possuía um
mundo próprio, a ciência procurou se ocupar dela. Assim, Brazelton e Greenspan (2002, p. 124)
dizem que, a partir de então, “o desenvolvimento infantil foi descrito de várias formas”.
Uma das maiores contribuições vem da neurociência uma vez que, segundo Cunha
(2002, p. 354), “o cérebro é o único órgão do corpo que se auto-esculpe a partir da experiência
extero e interoceptiva. O aprendizado da experiência modifica e reorganiza a estrutura e a
fisiologia do cérebro”. Além disso, essa pesquisadora afirma que “de quinze anos para cá, os
neonatologistas, agregando conhecimentos de outras disciplinas, principalmente da neurociência,
vislumbraram a possibilidade de explicar cientificamente quem eram realmente os bebês sob
seus cuidados”. Com isso, Cunha conclui que “o bebê não é uma tabula rasa ou uma massa
informe moldável segundo os desejos do adulto”.
Ainda sobre a visão atual, Brazelton e Cramer expressam-se da seguinte forma ao
falar do bebê:
Não vemos o bebê como um ser indefeso, caótico e imprevisível, mas como
uma pessoa que apresenta reações altamente previsíveis a estímulos externos,
tanto positivos (adequados ao bebê) quanto negativos (inadequados ou
sobrecarregantes). Estas reações, por sua vez, moldam as do cuidador,
estabelecendo assim um sistema de mútua realimentação adequado àquele bebê.
A natureza e a criação tornam-se inseparavelmente entrelaçadas por meio das
oportunidades de retroalimentação recíproca proporcionadas por toda interação,
desde o momento do nascimento. (BRAZELTON; CRAMER, 1992, p. 102).
Furth (1972, apud KELMAN, 1996, p. 27) concluiu que “estas crianças recorrem a
outras modalidades simbólicas”. Para ele esse pode ser o aspecto mais marcante do
funcionamento psíquico do surdo, afirmando que, mesmo sendo a língua e a fala uma forma de
representação simbólica, existem “outras formas de representação simbólica para a criança que
nasceu surda”. Nesse sentido, podem ser aí incluídas aquelas que ensurdeceram antes de adquirir
uma língua.
Fernandes (1999, p. 78) concorda com Furth ao afirmar que crianças surdas utilizam
“mecanismos mentais não-linguísticos” para resolver problemas cognitivos. Entretanto, essa
pesquisadora acrescenta que, “embora nem todos os processos mentais sejam realizados através
do mecanismo linguístico, o fato é que a ausência da linguagem provoca, no desenvolvimento
geral dos processos cognitivos, alguma alteração significativa” (idem).
Ao trazer tal afirmação, Fernandes adverte para o fato de que mesmo tendo
alcançado as primeiras aprendizagens através da linguagem não-verbal, a criança surda terá
necessidade de adquirir uma língua para alcançar outras aprendizagens mais complexas e que
somente poderão se efetivar completamente a partir desse instrumento.
Retornando aos estudos de Kelman, ela cita outra importante pesquisa que diz
respeito à capacidade da criança surda em criar sinais para se comunicar, na ausência de uma
língua. Assim, Kelman afirma que Feldman, Goldin-Meadow e Gleitman (1978, apud
KELMAN, 1996, p. 29-30). “estudaram crianças surdas, filhas de pais ouvintes, sem língua
adquirida, com idade variando entre 17 e 49 meses, na primeira entrevista, e entre 30 e 54 meses
na última entrevista”. Essas crianças estudavam em escola especial onde era utilizado o oralismo,
sendo impedidas de utilizar a língua de sinais. Todavia, entre elas e quando se encontravam
longe dos professores, usavam gestos criados entre si e que foram transformados em sinais
53
Brazelton e Greenspan (2002, p. 24) afirmam que “as interações emocionais são a
base não apenas da cognição, mas da maioria das capacidades intelectuais de uma criança,
incluindo sua criatividade e as habilidades de pensamento abstrato” (idem, p. 25). Esses autores
afirmam que:
As emoções são na verdade os arquitetos, os condutores ou os organizadores
internos de nossas mentes. Dizem-nos como e o que pensar, o que e quando
dizer e o que fazer. Nós „aprendemos‟ coisas através de nossas interações
emocionais e então aplicamos aquele conhecimento ao mundo cognitivo.
(BRAZELTON; GREENSPAN, 2002, p. 26).
De acordo com Brazelton e Greenspan (idem, p. 27), através das interações contínuas
é que o adulto poderá “ler e responder aos sinais do bebê”. Para eles entre o segundo e terceiro
mês de vida, um bebê e um pai, ambos, terão passado por três níveis de aprendizagem, sendo que
no nível I (1-3 semanas) o pai aprende a ajudar o bebê a se manter em um estado de alerta. No
nível II (3-8 semanas), a partir deste estado de alerta, o bebê produzirá sorrisos e vocalizações
que serão respondidos pelo adulto; e no nível III (8-16 semanas) esses sinais são reproduzidos
em „jogos‟ através de vocalizações e/ou sorrisos, imitados pelo adulto, reproduzidos, por sua vez,
pelo bebê. Esses autores concluem que “ritmo e reciprocidade são aprendidos nesses jogos” e
que “por volta dos quatro meses, o bebê terá aprendido a ter o controle do jogo e a guiar o pai
54
neles”. Mais adiante, com dezoito (18) meses, as crianças são excelentes leitoras de indícios não-
verbais. Porém, o ponto mais significativo diz respeito ao fato de que a capacidade de ler e
responder a estes indícios permite que a criança aprenda muito cedo a socializar-se (ibidem, p.
126).
Acredita-se, assim, que as primeiras interações da criança surda com o adulto
conduzem às mesmas aprendizagens desde que ocorram em outras modalidades que não a
auditiva, apenas. Ao fazer um paralelo entre a criança ouvinte e a criança surda, Couto (s.d., p.
14) diz que não ouvir os sons, principalmente os da voz humana “demonstra as principais
limitações a que a última está sujeita”. Segundo ela, as crianças ouvintes compreendem
“situações e sinais que antecedem a compreensão da linguagem.”; “ouvem a voz da mãe” e
mesmo não a vendo “ouve-lhe a voz, os passos e ruídos que marcam sua presença pela casa”,
(idem, p. 15). Todavia, essa autora diz que a criança surda “compreende os mesmos sinais,
exceto os sonoros”; “não ouve a voz materna, percebendo, apenas, sua expressão fisionômica”;
“não vendo a mãe, sente-se só, pois também não a ouve” (ibidem, p. 16).
Sobre as diferenças nas interações emocionais entre a criança que ouve e a criança
surda, Couto (s.d., p. 15) diz que o bebê que ouve percebe os sentimentos das pessoas que o
rodeiam “através das inflexões da voz de quem lhe fala, aprendendo, assim, a reconhecer
expressões de carinho, repreensão, alegria, tristeza, decepção, sempre ligadas à entonação com
que são pronunciadas; a própria essência do significado”. Porém, em substituição à fala “[...] fica
um conjunto de sinais visuais, como o sorriso e a expressão dos olhos e da face, movimentos
estes que adquirem para a criança que não ouve uma importância equivalente à da voz”. (idem,
p. 16). Essa pesquisadora sinaliza outro ponto muito importante que diz respeito ao ambiente
físico em que a criança surda está inserida. Ela enfatiza que, no escuro, a criança ouvinte,
percebe a presença da mãe através de sua voz, os sons e ruídos ambientais; porém, a criança
surda fica completamente isolada porque, além de não poder ouvir, não tem mais a referência
visual. Isso representa que a criança surda perde muitas experiências significativas dentro de um
contexto predominantemente oral-auditivo, além de deixar de participar de interações
significativas que lhe permitiriam equilibrar-se psiquicamente.
Além de perder muitas experiências por ocorrerem através de estímulos sonoros, a
criança surda está privada da riqueza produzida pela voz humana em relação ao ritmo,
intensidade, melodia e entonação, que vão produzir as diferenças marcantes da língua e que
oferecem os significados emotivos das palavras evocando sentimentos tais como: amor, afeto,
alegria ou repreensão, raiva, tristeza, bem como os tons de brincadeira ou de seriedade que são
dados às palavras pela entonação da voz.
55
Isso vai ao encontro dos estudos de Brazelton e Greenspan (2002, p. 25) que dizem
que “os relacionamentos também ensinam às crianças quais comportamentos são adequados e
quais não são”. E, “à medida que o comportamento das crianças se torna mais complexo no
segundo ano de vida, elas aprendem pelas expressões faciais, tom de voz, gestos e palavras [...]”.
Ainda de acordo com esses autores:
Por volta dos dois a dois anos e meio, quando a criança está falando, ela já teria
a capacidade de envolver-se em longas cadeias de interações (interações
recíprocas) envolvendo suas diferentes emoções, seus sentimentos e
comportamentos. Estes são baseados nos primeiros padrões estabelecidos de
dois a quatro meses. (idem, p. 28).
Completando esse estudo, Brazelton e Greenspan (2002, p. 29) dizem que “em um
nível mais adiantado, elas podem começar a raciocinar sobre seus sentimentos, percebendo
porque estão felizes, ou tristes, ou alegres. Isso ocorre entre as idades de três a quatro anos”.
Esses pesquisadores acrescentam que à medida que as crianças crescem, elas podem refletir mais
sobre seus sentimentos e compreendê-los em um contexto mais amplo.
Brazelton e Greenspan (2002, p. 29) consideram que, sendo os relacionamentos
emocionais interativos muito importantes para as habilidades essenciais, intelectuais e sociais,
“esse tipo de interação também é central quando estamos ajudando crianças com necessidades
especiais”.
A partir dessas afirmações sobre crianças ouvintes e crianças surdas, alvo de diversas
pesquisas, entende-se a necessidade de se conhecer tanto a surdez e suas consequências para o
desenvolvimento da criança quanto o próprio mundo infantil. Esses conhecimentos permitem
visualizar a criança surda em sua totalidade e não apenas uma criança com “faltas”: a falta de
audição; a falta de comunicação; e, o mais grave, o déficit cognitivo. A criança surda deve ser
vista em seu desenvolvimento global. A importância de se conhecer a criança está na relevância
desse período para as primeiras aprendizagens. Segundo Vigotski:
Todas as funções no desenvolvimento da criança aparecem duas vezes:
primeiro, no nível social, e, depois, no nível individual; primeiro, entre pessoas
(interpsicológica), e, depois, no interior da criança (intrapsicológica). Isso se
aplica igualmente para a atenção voluntária, para a memória lógica e para a
formação de conceitos. Todas as funções superiores originam-se das relações
reais entre indivíduos humanos. (VIGOTSKI, 2007, p. 57-58).
Com essa visão, pretende-se investigar algumas aprendizagens que são próprias da
criança em seus três primeiros anos de vida, uma vez que a compreensão que se tem dessa
criança é a de que, antes de ser surda, é uma criança, com desejos, expectativas e sonhos, além
de possuir um potencial criativo que lhe permite apreender o mundo através do lúdico; no
56
entanto, seu desenvolvimento pleno está atrelado à qualidade de suas primeiras interações,
principalmente, em seu grupo familiar.
3.2 A família
Todas as pesquisas apontam para a família como o primeiro grupo social e sua
importância para os primeiros conhecimentos adquiridos pela criança nas interações produzidas
nesse grupo. De acordo com Mamede (2002, p. 483) existe uma diversidade na organização das
famílias na sociedade atual. Para a autora as estruturas familiares vêm passando por
modificações que acarretam diferentes configurações e formas de significar a rede de suas
relações. Mamede acrescenta que “mesmo nas famílias tradicionais, o papel exercido pelos pais
tem sofrido alterações significativas”. (idem). Independente da organização familiar, geralmente,
este é o primeiro grupo social da criança e é nele que surgirão as primeiras interações e,
consequentemente, se efetivarão as primeiras aprendizagens.
Considerando que a família, ao observar sua criança e constatar que ela não fala no
período em que todas as outras crianças estão falando, ela procura respostas através do pediatra e
de outras pessoas que podem lhe justificar tal ausência. Sendo orientada para fazer os exames
que vão lhe dar a resposta exata e diante de um laudo de surdez, a maioria das famílias ouvintes,
se desestrutura. Surgem, então, diferentes reações: sentem-se culpadas, deprimidas ou
ressentidas; passam a ver a criança surda através da falta; afastam-se dela, fisicamente. Essas
reações demonstram um total desconhecimento sobre a surdez e o potencial daquela criança.
Assim, instala-se um processo que é conhecido pela expressão: „luto pelo filho sonhado‟. Este
sentimento pode durar um período curto ou prolongar-se, e o resultado é que as interações entre a
família e a criança surda ficam comprometidas.
Sobre este luto pelo filho sonhado, Brazelton e Cramer (1992, p. 188) afirmam que
“todo recém-nascido carrega um potencial de decepção” e que nenhum bebê é capaz de estar à
altura das fantasias que os pais acalentam em relação ao seu futuro filho. Nesse sentido, esses
autores dizem que “uma das maiores tarefas psicológicas que se apresenta aos pais após o
nascimento é a de reconciliar-se com o bebê real e chorar a perda do bebê perfeito e imaginário”.
Assim, compreende-se o período de luto que os pais vivenciam diante de um laudo de surdez de
seu filho e a necessidade do apoio familiar com o objetivo de se resgatar o vínculo entre a
criança surda e seus familiares.
57
Salles fala, também, sobre a reação dos pais diante de um laudo de surdez, devendo-
se ressaltar que as reações apresentam variações, mas que, na maioria dos casos, estão ligadas ao
fato de que são pais ouvintes que desconhecem a surdez. A autora cita que:
O diagnóstico apresentado aos pais, sem preparação e esclarecimentos para com
o problema, causa impacto e desespero, chegando mesmo a desorganizar toda a
dinâmica familiar. Os pais ficam sem saber como ajudar aos filhos, quais suas
possibilidades e limitações, quais as providências a tomar, com quem podem
contar, a quem recorrer, qual a escola ideal, qual a conduta médica. (SALLES,
1990, p. 138).
Este depoimento aponta um dos sonhos que se traça diante de uma gravidez, ou
mesmo antes da concepção. É um processo vivenciado por muitas pessoas que tiveram ou
desejam ter filhos. No entanto, para esses pais da educação precoce, o filho imaginado não veio.
Defrontaram-se com uma realidade da qual não esperavam e para a qual não foram preparados.
Este pai acrescenta que:
“Desde os três meses ela não sustentava a cabeça igual Jamile [a filha mais nova –
explicação nossa]. Ela só ficava com a cabeça caída.”
“Um dia eu estava indo para a casa de minha mãe e soltaram aqueles fogos de São
João. Eu me assustei. Ela nem aquele sustinho de leve ela deu.”
p. 43), a mãe, “alimentando o bebê quando está faminto, trocando-o quando está molhado,
cobrindo-o quando está com frio, etc., modifica essas condições e alivia a tensão desagradável”.
Para Spitz (2004, p. 101), mesmo diante da alegação de que a mãe não é o único ser
humano que participa da vida da criança e que todos os outros membros da família podem ter
significado afetivo para ela e de que o ambiente cultural e seus costumes exercem grande
influência sobre a criança, desde o nascimento, este autor lembra que “em nossa cultura
ocidental estas influências são transmitidas à criança pela mãe ou seu substituto”.
A importância da presença da mãe, principalmente nos primeiros anos de vida,
sempre foi tema de estudos ligados ao desenvolvimento infantil. Vasconcelos, em suas
pesquisas, afirma que os cuidados maternos são primordiais para a criança surda da mesma
forma como os são para a criança que ouve. Essa autora diz que:
Quando se trata de uma criança muito pequena, que ainda não pode frequentar a
escola, a orientação inicial deve ser dada à mãe a fim de que esta aplique, em
casa, os ensinamentos recebidos, começando, desse modo, a educação precoce
da criança. O ideal é que a aprendizagem inicial seja feita pela própria mãe
porque, repetindo a situação idêntica da criança que ouve, ela dá o apoio básico
da afetividade ao desenvolvimento da linguagem. (VASCONCELOS, apud,
CEIV, 1984, p. 35).
Entretanto, não se pode negar que houve uma mudança bastante significativa em
relação à presença do pai na vida da criança. Brazelton e Cramer (1992, p. 49) dizem que “a
psicanálise sempre considerou uma figura fantasiada ou mítica do pai: o portador da lei, o porta-
voz da realidade, aquele que detém nas mãos a faca que corta o cordão umbilical e ameaça o
filho de castração”. Atualmente, entende-se a importância que o pai exerce no desenvolvimento
da criança. Segundo esses dois autores, os estudos mais recentes vêm demonstrando que “o pai
exerce influência direta sobre o desenvolvimento da criança, influência essa que é enfatizada
pelo apego existente entre ele e o filho desde a primeira infância”. Para Brazelton e Cramer
(idem, p. 126) existem diferenças significativas nas relações entre o bebê e a mãe e o bebê e o
pai. O bebê aprende a diferenciar uma interação da outra. Esses autores afirmam que “o pai
desenvolve-se segundo estágios bastante semelhantes aos que a mãe atravessa. Interagindo e
respondendo aos sinais não-verbais de seu bebê, ambos os pais aprendem sobre a própria
capacidade de criar um filho”.
Através dessas interações, inúmeras aprendizagens vão ocorrer de forma natural. São
experiências vivenciadas na relação familiar e dentro de um contexto real, diferenciando-se
daquelas apresentadas para a criança surda durante as atividades escolares.
61
Vigotski (2007, p. 24) afirma, ainda, que “o mundo não é visto simplesmente em cor
e forma, mas também como um mundo com sentido e significado”, concluindo que “toda
percepção humana consiste em percepções categorizadas em vez de isoladas”. Isso vai ser
oferecido por um processo de mediação entre a criança e o adulto através do processo histórico-
cultural. Compreende-se, assim, que as aprendizagens da criança pequena, mesmo aquelas
caracterizadas como pertencendo à inteligência prática e, consequentemente, às experiências
perceptivas e motoras são significadas pelo contexto social, cabendo à família esse papel inicial.
Sendo assim, a família da criança surda tem o papel de mediadora, oferecendo significados aos
objetos e situações em que está envolvida. Entende-se, nesse momento, que tais significados vão
ocorrer através da linguagem não verbal, tais como o sorriso, os gestos, as expressões
fisionômicas e todos os sinais, exceto os sonoros.
Concluindo este pensamento, Vigotski afirma que:
A transição, no desenvolvimento para formas de comportamento
qualitativamente novas, não se restringe a mudanças apenas na percepção. A
percepção é parte de um sistema dinâmico de comportamento; por isso, a
relação entre as transformações dos processos perceptivos e as transformações
em outras atividades intelectuais é de fundamental importância. (VIGOTSKI,
2007, p. 24).
Duarte (idem, p. 119) explica que o conhecimento do objeto pode ser feito de forma
científica ou de forma empírica, ou seja, “de generalização a partir da prática”. A criança através
de suas vivências toma conhecimento dos vários objetos que lhe são oferecidos. Considerando-se
as interações da criança com o meio social, a criança surda aprende em suas experiências com a
família e com a escola. O objetivo da educação precoce é mediar as brincadeiras que as crianças
estão iniciando com suas ações sobre o objeto; são, portanto, formas de pensamento prático para
as ações mais complexas, permitindo a utilização de instrumentos.
Para Spitz (2004, p. 133) “o sinal (sign) é um percepto ligado empiricamente com a
experiência de um objeto ou situação. Ele pode funcionar como um substituto de uma percepção
de um objeto ou situação”. Continuando, o autor acrescenta que:
Sinais e signo são hierarquicamente relacionados: sinal é o termo genérico;
signo é o termo subordinado; este é o uso específico de um sinal. Portanto, o
termo signo designa uma conexão convencionalmente aceita entre um sinal e
uma experiência, seja a conexão acidental, seja arbitrária, ou esteja presente
objetivamente. (SPITZ, 2004, p. 133).
Para Spitz (2004, p. 134) “um símbolo é um sinal que representa um objeto, uma
ação, uma situação, uma ideia; ele tem um significado que vai além de seus aspectos formais”.
Sendo assim, “gestos e palavras são os símbolos mais elementares”. Esse autor defende a ideia
de que:
A comunicação mãe-filho, sob vários aspectos, é basicamente diferente da
comunicação entre adultos. O aspecto mais importante é o fato de que os meios
utilizados na comunicação entre dois ou vários parceiros adultos pertencem, em
geral, a uma mesma categoria, isto é, a categoria de símbolos verbais ou de
gestos. Isto não ocorre no caso de mãe e filho; aqui há uma notável
desigualdade quanto aos meios de comunicação. Pois, enquanto a mensagem
procedente do bebê, pelo menos durante os primeiros meses de vida, compõe-se
apenas de sinais, as mensagens que se originam no parceiro adulto da criança
são signos dirigidos volitivamente e percebidos como tais por ela. (SPITZ,
2004, p. 134).
Vigotski defende que o signo “constitui um meio de atividade interna dirigido para o
controle do próprio indivíduo”. Portanto, este autor diz que:
Assim como as ferramentas são mediadoras na ação do homem sobre objetos,
são necessárias ao controle da realidade material, os signos são mediadores na
ação do indivíduo sobre si mesmo ou sobre outros indivíduos, isto é, são
mediadores necessários ao controle do comportamento humano e dos processos
mentais. (VIGOTSKI, apud DUARTE, 2006, p. 209).
64
Vigotski (2007, p. 55) acrescenta sobre o uso do signo que “a invenção e o uso de
signos como meios auxiliares para solucionar um dado problema psicológico (lembrar, comparar
coisas, relatar, escolher, etc.) é análoga à invenção e uso de instrumentos, só que agora no campo
psicológico”.
Spitz (2004, p. 42) afirma que “o recém-nascido não tem nenhuma imagem do
mundo, nem estímulos de qualquer modalidade sensorial que possa reconhecer como sinais”.
Segundo ele “[...] os estímulos que incidem sobre o sensório do bebê são estranhos à modalidade
visual, como a todas as outras modalidades sensoriais”. Com isto, Spitz (idem) afirma que “todo
estímulo deverá ser primeiro transformado em uma experiência significativa; somente então ele
pode tornar-se um sinal ao qual outros sinais são acrescentados, gradativamente, para construir a
imagem coerente do mundo da criança”. Ele ressalta a importância daquilo que denominou de
„diálogo‟ e que ocorre nas primeiras interações do bebê com sua mãe, provocando as
experiências significativas sobre as quais se referiu. Para Spitz:
O diálogo é o ciclo sequencial de ação-reação-ação, no quadro das relações
mãe-filho. Esta forma muito especial de integração cria para o bebê um mundo
exclusivo, que é bem dele, com um clima emocional específico. É este ciclo de
ação-reação-ação que torna o bebê capaz de transformar gradualmente os
estímulos sem significado em signos significativos. (ibidem, p. 43).
expressão corporal, os gestos, a percepção visual e tátil. Portanto, as experiências táteis são tão
importantes na relação criança surda/pais ouvintes e não devem ser negligenciadas,
principalmente nesses três primeiros anos de sua vida. É importante relembrar que o ato de pegar
a criança no colo geralmente ocorre acompanhado da voz do adulto, sendo acrescentado mais
uma informação para ele através do canal auditivo. Para a criança surda, ficará apenas a
percepção tátil e a expressão facial e o olhar. Nesse sentido é necessário que o adulto não se
detenha apenas na percepção auditiva, já que esta é uma necessidade interna do próprio adulto
diante de um laudo de surdez, mas que procure dar ênfase aos outros códigos perceptivos.
Todavia, se ainda não houve o diagnóstico da surdez e o adulto não foi orientado nesse sentido, a
criança surda terá essa experiência fragmentada; consequentemente, a aprendizagem ocorrerá
apenas em parte, portanto incompleta, acentuando as diferenças no desenvolvimento global entre
crianças surdas e ouvintes.
Neste processo de aprendizagem, Winnicott (1977, p. 69) diz que a criança com raiva
possui autenticidade porque “sabe o que quer, sabe como conseguir o que quer e recusa-se a
perder a esperança de consegui-lo”.
Winnicott faz uma comparação entre o sentimento de um adulto e o de uma criança
diante do sentimento de tristeza, sendo essa a quarta classificação de choro. Assim:
Se pela perda de alguém que amamos profundamente, não podemos evitar uma
dolorosa tristeza, cumprimos um período de luto que os nossos amigos
compreendem e toleram. E, depois disso, podemos esperar uma recuperação,
68
mais cedo ou mais tarde. Não nos deixamos entregar a uma tristeza aguda, a
qualquer momento do dia ou da noite, como acontece aos bebês.
(WINNICOTT, 1977, p. 70).
Portanto, Winnicott (1977, p. 71) define o choro de tristeza e aponta uma diferença
entre a raiva e a tristeza, visto que, “enquanto a raiva é uma reação mais ou menos direta à
frustração, a tristeza implica acontecimentos bastante complexos na mente infantil”. Além disso,
ao se dirigir às mães, o autor diz que “quando o seu bebê mostra que pode chorar de tristeza,
você poderá deduzir que ele percorreu uma longa jornada no desenvolvimento de seus
sentimentos”. Ele completa seu pensamento sobre o choro de tristeza com a seguinte afirmação:
[...] um bebê triste poderá necessitar do amor físico e demonstrativo da mãe. O
que ele não precisa, contudo, é ser distraído efusivamente (por exemplo, fazê-lo
saltar no colo, provocar cócegas, etc.) da sua tristeza. Digamos que ele se
encontra num estado de luto e requer certo período de tempo para recuperar-se.
Precisa apenas de saber que a mãe continua a amá-lo e, por vezes, pode ser
preferível deixá-lo chorar à vontade. (WINNICOTT, 1977, p. 74).
Por fim, ele aponta um quinto tipo de choro, chamando-o de choro de desamparo ou
desespero, sendo para ele “o choro em que todos os outros tipos se diluem se não restar qualquer
esperança no espírito do bebê”. Porém, ele reforça que somente nas instituições ouviu “o choro
de desamparo e desintegração, onde não existem meios nem possibilidades de fornecer uma mãe
para cada bebê”. Winnicott se refere às instituições e abrigos de crianças órfãs e abandonadas nas
quais desenvolveu muitas de suas pesquisas.
Ele conclui sua palestra sobre o choro infantil dizendo que, quando existe uma mãe
que ampare e esteja disposta a cuidar de seu bebê, ele terá condições de caminhar em frente e
demonstrar à mãe “quando está zangado com ela e quando a ama, quando quer livrar-se dela,
quando está ansioso ou com medo, ou quando apenas quer que a mãe compreenda que ele está
triste”. Não se pode negar a importância deste código comunicativo entre a família ouvinte e a
criança surda como um diálogo inicial em que a criança pode expressar seus medos, anseios e
desejos buscando no adulto um amparo psíquico.
O exemplo que Vigotski trouxe para seus estudos sobre o significado do gesto de
apontar o dedo é muito propício para esta pesquisa que trata não apenas da criança pequena que
num determinado período de vida utiliza este sinal para se comunicar, mas também por se tratar
de crianças surdas que predominantemente se utilizam desses sinais em suas interações. De
69
acordo com Vigotski (2007, p. 56), o gesto de apontar, inicialmente, “não é nada mais do que
uma tentativa sem sucesso de pegar alguma coisa, um movimento dirigido para um certo objeto,
que desencadeia a atividade de aproximação”. Desta forma, o ato de esticar o dedo, na concepção
vigotskiana, é um movimento através do qual a criança “tenta pegar um objeto colocado além do
seu alcance; suas mãos, esticadas em direção àquele objeto, permanecem paradas no ar” (idem).
Essa tentativa de aproximação do objeto vai ser modificada qualitativamente pela presença do
adulto. Vigotski prossegue em seu exemplo dizendo que:
Quando a mãe vem em ajuda da criança, e nota que o seu movimento indica
alguma coisa, a situação muda fundamentalmente. O apontar torna-se um gesto
para os outros [...]. Neste momento, ocorre uma mudança naquela função do
movimento: de um movimento orientado pelo objeto, torna-se um movimento
dirigido para outra pessoa, um meio de estabelecer relações. O movimento de
pegar transforma-se no ato de apontar [...]. De fato, ele só se torna um gesto
verdadeiro após manifestar objetivamente para os outros todas as funções do
apontar, e ser entendido também pelos outros como tal gesto. (ibidem, p. 57).
Assim, o gesto de apontar utilizado por todas as crianças no período que antecede a
fala permite que se compreenda como se processa essa forma de comunicação da criança surda.
No início, tanto para a criança surda quanto para a ouvinte, o gesto de apontar tem um
significado de aproximação e gradativamente ganha significado. No caso da criança ouvinte o
gesto de apontar é substituído pela palavra em um período relativamente curto. Entretanto, a
criança surda, que não tem nem a língua oral e nem a língua de sinais, faz uso do gesto de
apontar por um tempo mais prolongado para comunicar seus desejos e necessidades, por falta de
um sinal ou palavra que os substitua.
Spitz (2004, p. 118) explica o termo „organizador‟ como utilizado pela embriologia e
que “refere-se à convergência de várias linhas de desenvolvimento biológico em um ponto
específico no organismo do embrião”. A consequência desse processo vai levar “à indução de
um conjunto de elementos agentes e reguladores chamados „organizador‟, que influenciará
processos de desenvolvimento posteriores”. Dessa forma, Spitz (2004, p. 119) procurou observar
esse desenvolvimento biológico nos setores da personalidade. Sendo assim, ele compreendeu que
“o resultado dessa integração é uma reestruturação do sistema psíquico em nível mais elevado de
complexidade. Esta integração é um processo delicado e vulnerável que, quando bem sucedido,
conduz ao que chamo de um „organizador‟ da psique”.
70
A partir desse estudo Spitz (2004, p. 120) concluiu que o organizador psíquico marca
“um ponto crítico, claramente visível no comportamento da criança”, sendo ele “de importância
extraordinária para a progressão ordenada e livre do desenvolvimento infantil”. Ele acredita que
“se a criança estabelecer e consolidar com êxito um organizador no momento apropriado, seu
desenvolvimento pode prosseguir na direção do próximo organizador”.
Spitz cita três momentos bastante significativos em termo de organização psíquica.
Além disso, são momentos que propiciam inúmeras aprendizagens para a criança, principalmente
nos primeiros dois anos de vida. Pode-se entender que a base dessas aprendizagens é a
linguagem não verbal; assim, a criança surda pode ter acesso a todas elas. Tais organizadores são
os que continuam evoluindo para a autonomia da criança surda e para o significado linguístico.
Spitz cita o sorriso como o primeiro organizador psíquico, sendo ele uma “resposta
de sorriso recíproco”. Ele diz que o sorriso é o sintoma visível de que houve a “convergência de
diversas correntes de desenvolvimento no aparelho psíquico”. Para Spitz (2004, p. 119), “o
estabelecimento da resposta de sorriso indica que essas correntes foram agora integradas,
organizadas, e irão operar, daí em diante, como uma unidade distinta no sistema psíquico. A
emergência da resposta de sorriso marca uma nova era no modo de vida da criança”.
seja, voluntariamente”. Para Spitz (2004, p. 163), isso permite não apenas “uma satisfação mais
eficiente das necessidades, como também a realização voluntária e dirigida da obtenção de
prazer”. Ele conclui que “o encaminhamento bem-sucedido das transições de uma fase para a
seguinte age como um catalisador para uma mudança brusca no desenvolvimento infantil”.
(2004, p. 165).
Para Spitz “o meneio negativo da cabeça „não‟ é o terceiro organizador psíquico. Ele
o considera também, e talvez principalmente, o primeiro conceito abstrato formado na mente da
criança”. De acordo com este autor:
[...] torna-se bastante evidente que não é imitação pura e simples. É verdade que
a criança imita o gesto da mãe. Mas é a criança que escolhe as circunstâncias
em que deve usar esse gesto e, mais tarde, quando deve usar a palavra „não‟. Ela
usa primeiramente o gesto, quando recusa algo, seja uma solicitação ou um
oferecimento. (SPITZ, 2002, p. 188).
Spitz (2002, p. 189) continua dizendo que “não é simplesmente um traço de memória
onde a criança associou o gesto e o meneio de cabeça da mãe, mas, sim, uma evidência de que a
criança é capaz de apreender seu significado”. “[...] esta fase do desenvolvimento é marcada pelo
conflito entre a iniciativa da criança e as apreensões da mãe”. O autor conclui que “o estudo
cuidadoso das circunstâncias que levam a criança ao domínio do gesto de meneio negativo da
cabeça revela que é o resultado de um complexo processo dinâmico”. Spitz (2002, p. 189)
enfatiza que “o principal fato intelectual necessário para tais abstrações e generalizações não
pode ser explicado através da simples acumulação de traços de memória”.
Fazendo um paralelo entre a criança ouvinte e a criança surda Quadros e Schimiedt
(2006, p. 20) dizem que por volta de dois anos de idade a criança surda começa a utilizar a
negação não manual através do movimento da cabeça para negar, bem como o uso de marcação
não-manual para confirmar expressões comuns na produção do adulto. Tal fato constatado por
essas autora pode ser comparado ao uso do meneio de cabeça a que Spitz se refere, indicando
que a criança ouvinte já adquiriu o conceito; porém, somente depois é que faz uso da palavra.
Isso comprova que a criança surda, antes de utilizar a língua como um instrumento, seja ela oral
ou de sinais, utiliza o gesto e a expressão corporal para expressar esse conceito adquirido em
suas experiências.
Vigotski (2008, p. 34) cita que Wallon, Koffka, Piaget, Delacroix e muitos outros,
estudando o desenvolvimento de crianças ouvintes, e K Buehler, em seu estudo sobre crianças
72
surdas, constataram que dois pontos importantes ocorrem na criança antes que ela compreenda o
verdadeiro significado da palavra. Primeiro, ela não faz um relacionamento entre palavra e
objeto; de início considera a palavra como um atributo ou propriedade do objeto e primeiro
“apreende a estrutura externa objeto-palavra antes que consiga apreender a relação interna entre
o signo e o referente”. O segundo ponto faz referência ao fato de que a descoberta da criança
sobre o significado ou conceito linguístico passa por “uma série de longas e complexas
transformações [...]”.
Vigotski (2008, p. 104) acredita que “o desenvolvimento dos conceitos, ou dos
significados das palavras, pressupõe o desenvolvimento de muitas funções intelectuais: atenção
deliberada, memória lógica, abstração, capacidade para comparar e diferenciar.” Ele conclui que
“esses processos psicológicos complexos não podem ser dominados apenas através da
aprendizagem inicial”. Sua afirmativa vai ao encontro das de Spitz e diante desses estudos não se
pode negar que, para a criança surda chegar a utilizar uma palavra ou um sinal, precisará
vivenciar inúmeras experiências com o auxílio do adulto ou brincando com outras crianças e,
assim, poderá se apropriar de seus significados.
Egocentrismo foi um termo criado por Piaget a partir dos estudos psicanalíticos.
Entretanto, ao discordar do pensamento deste teórico, Vigotski propõe outra interpretação
apontando em que momento sua teoria se distancia da concepção piagetiana de egocentrismo.
Assim, Vigotski (2008, p. 19) comenta que “em sua descrição da fala egocêntrica e de seu
desenvolvimento inevitável, Piaget enfatiza que ela não cumpre nenhuma função
verdadeiramente útil no comportamento da criança, e que simplesmente se atrofia à medida que a
criança se aproxima da idade escolar”. Entretanto, contrariando esta ideia, as experiências de
Vigotski (idem) sugerem que “a fala egocêntrica assume, desde muito cedo, um papel muito
definido e importante na atividade da criança” e que “os dados obtidos sugerem fortemente a
hipótese de que a fala egocêntrica é um estágio transitório na evolução da fala oral para a fala
interior”. A partir dessa ideia, a teoria vigotskiana atribui um valor inestimável às interações
sociais, nos primeiros anos de vida da criança. Para Vigotski:
(...) a fala egocêntrica não paira no vazio, mas tem uma relação direta com o
modo como a criança lida com o mundo real. Vimos que isto é parte integrante
do processo de atividade racional, adquirindo inteligência, por assim dizer, a
partir das ações intencionais da criança, que ainda são incipientes; e que a fala
egocêntrica vai, progressivamente, tornando-se apropriada para planejar e
73
Ou seja, para este autor a fala egocêntrica não desaparece, mas se transforma. Ele
afirma que “a fala egocêntrica emerge quando a criança transfere formas sociais e cooperativas
de comportamento para a esfera das funções psíquicas interiores e pessoais”. Isso marca a
diferença entre estes dois teóricos, uma vez que para Vigotski o pensamento egocêntrico
caminha do social para o individual. Segundo ele, “a fala egocêntrica é um fenômeno de
transição das funções interpsíquicas para as intrapsíquicas, ou seja, da atividade social e coletiva
da criança para a sua atividade mais individualizada” (idem, p. 166). Ainda segundo ele, “a fala
para si mesmo origina-se da diferenciação da fala para os outros. Uma vez que o curso principal
do desenvolvimento da criança caracteriza-se por uma individualização gradual, essa tendência
reflete-se na função e na estrutura de sua fala” (ibidem). Nesta lógica ele pontua que:
A função da fala egocêntrica é semelhante à da fala interior: não se limita a
acompanhar a atividade da criança; está a serviço da orientação mental, da
compreensão consciente; ajuda a superar dificuldades; é uma fala para si
mesmo, íntima e convenientemente relacionada com o pensamento da criança.
(VIGOTSKI, 2007, p. 166).
O isolamento ao qual este autor se refere representa um fato que ocorre muitas vezes
com a criança surda em seu meio social. Kelman (1996, p 109), em sua pesquisa, diz que a
criança surda utiliza-se da fala egocêntrica assim como a criança ouvinte. Tal conclusão foi
possível ao se comparar tanto crianças surdas quanto crianças ouvintes em atividade. Dessa
forma, Kelman afirma que “este fato revela que existem outras formas de externalização da
atividade mental”. Acrescenta, também, que “é possível observarmos os momentos em que a
criança entra em „diálogo‟ consigo mesma, no processo de pensamento, buscando a melhor
solução para algum problema e esse „diálogo‟ se revela sob diferentes formas de manifestação”.
Sobre tal atividade da criança surda, Kelman comenta que:
74
3.6 A escola
surdas podem-se entender as palavras trazidas por Brazelton e Cramer. Esses dois autores dizem
que:
A avaliação de qualquer bebezinho nos permite identificar não só as
capacidades existentes, mas também quais as reações que os bebês produzem
nos pais. Compartilhando com eles nossas observações, damos-lhes a
oportunidade de identificar o potencial positivo de um bebê, e não apenas seus
problemas. (BRAZELTON; CRAMER, 1992, p. 240).
A linguagem visual permite que a criança surda compreenda seu meio ambiente por
intermédio da linguagem viso-espacial. E vai além: evoca a fantasia e a imaginação da criança.
Esta é a linguagem que mais se aproxima da criança surda. Benjamin (2002, p. 70) pontua que
“nesse mundo permeável, adornado de cores, em que a cada passo as coisas mudam de lugar, a
criança é recebida como participante”.
Resgatando a história do material ilustrado como um recurso pedagógico, Benjamin
faz referência a um material de ensino visual e que tinha sido encontrado em um sótão de uma
escola do distrito de Brandenburgo:
Esse material provém de um certo Wilke, um professor surdo-mudo, e que foi
feito para crianças surdas-mudas. Sua drasticidade é tão angustiante que uma
pessoa normal, contemplando esse mundo sufocante, estaria quase correndo o
perigo de ficar tão aterrorizada a ponto de perder por algumas horas a voz e a
audição. (BENJAMIN, 2002, p. 85).
A respeito do trabalho do professor surdo citado por Benjamin, pode-se completar tal
informação com a pesquisa de Rocha (2008, p. 19), quando diz que “era comum que professores
surdos, formados pelos Institutos de surdos europeus, fossem contratados para fundar
estabelecimentos para a educação de seus semelhantes”.
Rocha (idem, p. 43) acrescenta que o INES passou a adotar uma prática semelhante:
a contratação de professores surdos. “O Instituto acompanhava uma tendência que vinha do
Instituto de Surdos da França: a de ter seus ex-alunos atuando como professores”. Segundo suas
pesquisas, “Flausino José da Costa Gama, que trabalhou como repetidor na instituição de 1871 a
1879”, fez um livro intitulado “Iconografia dos Sinais” com desenhos de sinais, que segundo o
diretor Dr. Tobias Leite tinha o objetivo de “vulgarizar a Linguagem dos Sinais, meio predileto
dos surdos-mudos para a manifestação dos seus sentimentos” (ibidem, p. 41). Suas afirmações
permitem compreender a importância que o material ilustrado tem no processo de ensino e de
aprendizagem para o aluno. Torna-se mais importante, ainda, ao se tratar de crianças surdas, pois
a linguagem visual é acrescida da magia e fantasia; da imaginação e da criatividade.
Além do livro ilustrado, o brinquedo é outro material que pode ser bastante
explorado nesse período da infância, uma vez que, através dele, a criança surda terá acesso a
várias aprendizagens podendo, assim, aprender através da abstração e da generalização. Ao
explorar o brinquedo, a criança inicialmente tem contato com diferentes vivências perceptivas,
como reconhecer diferentes cores, tamanhos, formas, texturas, cheiros. Isso tudo permite que a
criança surda desenvolva uma infinidade de ações, favorecendo seu pensamento prático desde os
primeiros meses de vida. Entretanto, Benjamin (2002, p. 94) enfatiza que o brinquedo não pode
ser visto como entidade isolada do grupo social. Ele diz que “seus brinquedos não dão
testemunho de uma vida autônoma e segregada, mas são um mudo diálogo de sinais entre a
criança e o povo”. Ou seja, o brinquedo torna-se um objeto de interação entre a criança surda e o
meio ambiente em que está inserida, podendo apreender conhecimentos próprios de seu grupo
sócio-cultural.
78
Benjamin (2002, p. 85) continua dizendo que “não há dúvida que brincar significa
sempre libertação. Rodeadas por um mundo de gigantes, as crianças criam para si, brincando, o
pequeno mundo próprio [...]” e afirma que “para a criança que brinca a sua boneca é ora grande,
ora pequena, e certamente pequena com mais frequência, pois se trata de um ser subordinado”
(idem, p. 97-98). E, assim, a criança vai brincando e elaborando seus pensamentos, organizando
ideias e sentimentos. Para Benjamin (2002, p. 101), a grande lei do jogo é a repetição: “para a
criança ela é a alma do jogo; que nada a torna mais feliz do que o „mais uma vez‟”. Ela
transforma a experiência mais comovente em hábito, “pois é o jogo, e nada mais, que dá à luz
todo hábito”. Benjamin (idem, p. 102) continua dizendo que “o hábito entra na vida como
brincadeira, e nele, mesmo em suas formas mais enrijecidas, sobrevive até o final um restinho de
brincadeira”.
Para Vigotski (2007, p. 108-109) “a criança em idade pré-escolar envolve-se num
mundo ilusório e imaginário onde os desejos não realizáveis podem ser realizados, e esse mundo
é o que chamamos de brinquedo”. Este autor, se referindo ao importante papel do brinquedo, diz que
através dele o pensamento encontra-se separado do objeto, e a ação surge das idéias e não dos
objetos. Ele cita que “um pedaço de madeira torna-se um boneco e um cabo de vassoura torna-se
um cavalo”. Além disso, para Vigotski “nesse ponto crucial, a estrutura básica determinante da
relação da criança com a realidade está radicalmente mudada, porque muda a estrutura de sua
percepção” (2007, p. 115). Vigotski fala da questão simbólica do brinquedo dizendo que:
O mais importante é a utilização de alguns objetos como brinquedos e a
possibilidade de executar, com eles, um gesto representativo. Essa é a chave
para toda a função simbólica do brinquedo das crianças [...]. O próprio
movimento da criança, seus próprios gestos é que atribuem a função de signo ao
objeto e lhe dão significado [...], portanto, o brinquedo simbólico das crianças
pode ser entendido como um sistema muito complexo de „fala‟ através de gestos
que comunicam e indicam os significados dos objetos usados para brincar.
(VIGOTSKI, 2007, p. 130).
Sobre as regras que são encontradas na brincadeira, Vigotski (2007, p. 110) diz que
“a situação imaginária de qualquer forma de brinquedo já contém regras de comportamento,
embora possa não ser um jogo com regras formais estabelecidas a priori”. Para ele “a criança
imagina-se como mãe e a boneca como criança e, dessa forma, deve obedecer às regras de
comportamento maternal”. Vigotski acrescenta que:
Assim como operar com o significado de coisas que leva ao pensamento
abstrato, observamos que o desenvolvimento da vontade, a capacidade de fazer
escolhas conscientes, ocorre quando a criança opera com o significado de ações.
79
No brinquedo, uma ação substitui outra ação, assim como um objeto substitui
outro objeto. (ibidem, p. 120).
Para Brazelton e Greenspan (2002, p. 29), é necessário criar oportunidades para essas
interações, e acrescenta-se aqui que a criança surda aprenderá a „regular‟ seus sentimentos e
emoções de acordo com suas necessidades e situações. Como exemplo, eles citam o jogo de faz-
de-conta, em que as crianças “criam cenas nas quais há raiva, felicidade, ou tristeza” e
completam dizendo que “crianças que são bem reguladas têm mais detalhes em seus dramas”.
Pode-se entender o quanto é importante a atividade que privilegia a brincadeira da
criança, compreendendo que essa é a forma que ela tem de aprender e interagir com o mundo.
Assim, valorizar essa atividade é valorizar a criança surda. Do contrário, pode ocorrer aquilo que
Duarte fala sobre o processo de alienação. Para ele “[...] toda vez que um ser humano é impedido
de apropriar-se daquilo que faça parte da riqueza do gênero humano, estamos perante um
processo de alienação, um processo que impede a humanização deste indivíduo” (DUARTE,
2006, p. 282).
Através de uma linguagem própria do mundo infantil que envolve o lúdico, a
criatividade, a fantasia e a imaginação de todas as crianças, a brincadeira se torna uma grande
riqueza da infância. Não permitir que a criança brinque se assemelha a impor para ela tal
processo de alienação. Brazelton e Greenspan dizem que:
A noção de que os relacionamentos são essenciais para regular nosso
comportamento, nossos humores e nossos sentimentos, bem como para o
desenvolvimento intelectual, necessita de maior ênfase, à medida que pensamos
sobre os tipos de ambientes e prioridades que desejamos para nossas crianças.
(BRAZELTON; GREENSPAN, 2002, p. 29).
II METODOLOGIA
pela falta de uma língua comum entre elas e seus familiares refletindo-se na qualidade de suas
interações, a pesquisadora procurou investigar as primeiras aprendizagens daquela criança,
tornando-se o objeto de seu estudo. Para tanto, seria necessário, de acordo com Slobin (1980, p.
231) “estudar a evolução cognitiva sem a presença da linguagem”, como o fizeram diferentes
estudiosos que se ocuparam desse tema.
Escolhido o objeto de estudo – as primeiras aprendizagens da criança surda –, três
crianças junto com seus responsáveis, possuindo as características necessárias para a
investigação do tema escolhido, tornaram-se sujeitos desta pesquisa. A presença dos adultos na
investigação das primeiras aprendizagens da criança surda tornou-se relevante, porque, além de
ser um dos objetivos deste atendimento apoiar e orientar as famílias, compreendeu-se que na
faixa etária escolhida, todo aprendizado ocorreria, principalmente, dentro do núcleo familiar. A
escolha desses sujeitos seguiu alguns critérios: as crianças possuíam um laudo de surdez do tipo
sensório neural, de grau severo ou profundo; elas adquiriram a surdez no período pré-verbal,
portanto, não possuíam uma língua estruturada e suas interações eram feitas por gestos e
expressões corporais, ou seja, utilizavam-se da comunicação não verbal. Essas características
indicaram dificuldades de interação dentro do grupo familiar uma vez que todos os responsáveis
pelas crianças eram ouvintes. Este fato possuía um agravante porque, sendo a família o primeiro
grupo social das crianças surdas, este deveria ser um “ambiente suficientemente bom”
(WINNICOTT, 1983) para a aquisição das primeiras aprendizagens. Diante de tal constatação, a
pesquisadora compreendeu que a falta de comunicação seria um fator de interferência direta
tanto na qualidade quanto na quantidade de experiências daquelas crianças surdas, refletindo-se
em todas as áreas de seu desenvolvimento e não apenas na área da linguagem.
O questionamento levantado pela professora-pesquisadora se situou em torno de
quais os ganhos que a criança surda teria a partir de um atendimento pedagógico juntamente com
um trabalho de apoio e orientação familiar. Levantou-se, então, a hipótese de que através de uma
proposta pedagógica que considerasse os interesses da criança surda, sua forma de apreender o
mundo, inicialmente, através da linguagem não verbal e do lúdico, poderia ser favorável às
primeiras aprendizagens. Quanto mais cedo isso ocorresse melhor seria para ela, pois suas
defasagens, se comparadas com a criança ouvinte, seriam atenuadas, em maior ou menor grau,
além de melhorar a interação entre ela e seu meio social, principalmente o familiar. Assim sendo,
identificado o objeto, os sujeitos, o problema e a proposição, a autora elaborou o pré-projeto da
pesquisa com o objetivo de compreender as primeiras aprendizagens para a autonomia da criança
surda, suas primeiras interações no grupo familiar, além de mapear formas de orientar a família
sobre a surdez e o potencial de sua criança surda.
82
pode apontar para as famílias que muitas aprendizagens estariam ligadas aos valores e cultura
adquiridas pela criança, dentro desse grupo. Além disso, era necessário que os responsáveis
reconhecessem que o vínculo emocional, tão importante no período de vida em que as crianças
pesquisadas se encontravam, somente seria re(construído) a partir das interações vivenciadas em
seu meio ambiente. Segundo Mamede:
[...] a família continua sendo a instituição social responsável pelos
primeiros cuidados, pela proteção e pela educação da criança pequena e,
ao mesmo tempo, o primeiro e principal canal de iniciação dos afetos,
das relações sociais e das aprendizagens para a criança. (MAMEDE,
2002, p. 484).
Foi necessário, também, enfatizar para os responsáveis que, mesmo sendo crianças
surdas, elas teriam que ser vistas a partir das características do mundo infantil e não apenas da
surdez como uma “falta”, um déficit. Assim, todo o conhecimento adquirido por elas se
construiria através de suas disposições internas e externas. Sobre isso Novikoff (2010, p. 224)
aponta que “[...] o conhecimento não nasce do vazio e, sim, das experiências que acumulamos
em nossa vida cotidiana, da convivência com diferentes situações intrapessoais ou interpessoais”.
Portanto, as relações familiares nesse período de vida e o reconhecimento do potencial da criança
surda são fundamentais para seu desenvolvimento pleno.
Paralelo às observações de seus alunos, através da prática pedagógica, a professora-
pesquisadora fazia a revisão histórico-pedagógica. O referencial teórico ancorou-se a partir de
três pontos. O primeiro se referiu à história do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES).
Três momentos marcaram essa história refletindo o ideário sobre a pessoa surda, sendo que o
primeiro deles marcou a fundação da Instituição, em 1857. Naquele período, a expressão „surdo-
mudo‟ provocava uma série de equívocos em relação ao potencial do surdo, mantendo-o afastado
do convívio social, até mesmo familiar. O segundo momento, envolvendo a década de 1950, foi
marcado pelo cientificismo na área da educação do surdo. Esse período histórico ganhou
destaque por ser o início dos atendimentos às crianças surdas, em seus primeiros anos de vida, e
por ter trazido a família do surdo para o processo educacional. O terceiro, tendo como início a
década de 1980, apontou o momento atual como um período de lutas e conquistas do surdo
brasileiro, principalmente na área da Educação. Além disso, foram abordados outros aspectos
relacionados com a surdez, tais como: a idade em que foi adquirida; sua causa; os tipos e os
graus diferenciando um surdo de outro; as questões que envolviam o diagnóstico de surdez; e a
importância de sua realização o mais cedo possível. Reconhecer esses fatos e cada momento do
processo histórico do INES permitiu contextualizar a criança surda da qual esta pesquisa fala.
85
O segundo ponto desta pesquisa investigou a história da estimulação precoce que teve
início com os estudos de Piaget, na década de 1920, e de Vigotski, na década de 1930. A
proposta deste atendimento envolvia tanto a criança quanto seus familiares. Sua história
apontava duas vertentes: uma pautada na privação cultural direcionando os estudos, basicamente,
para as questões linguísticas e cognitivas; e outra voltada para as questões do recém-nascido de
alto risco, em que muitos bebês sobreviveram, entretanto com sequelas. Nesses dois aspectos a
família sempre esteve envolvida, e o enfoque maior era o vínculo materno. Sobre o trabalho
desenvolvido com crianças pequenas, Guedeney afirma que:
O campo da saúde mental precoce tem sua autonomia e suas particularidades.
Com efeito, ele é multidisciplinar por essência: profissões e funções diversas
nele se encontram, psiquiatras e psicanalistas, psiquiatras infantis e pediatras,
psicólogos do desenvolvimento, mas também parteiras, assistentes sociais e
profissionais da previdência social, puericultoras e educadoras de crianças
pequenas, fonoaudiólogos, especialistas em psicomotricidade, sem omitir os
juízes de menores. (GUEDENEY, apud GUEDENEY; LEBOVICI, 1999, p.
11).
deveriam atuar em parceria visando o desenvolvimento global da criança surda nesses primeiros
anos de vida. Sobre isso, Stelling (1996, p. 68) diz que “é necessário conclamar os profissionais
envolvidos na prática escolar às ações mais efetivas junto à família, considerando-a como
colaboradora constante no processo educativo formal”.
Para o desenvolvimento desses temas, a pesquisadora trouxe alguns teóricos cujos
estudos possibilitaram articulações conceituais com a teoria vigotskiana, além de estarem
envolvidos com a faixa etária das crianças pesquisadas e com as questões da surdez. Entre esses
teóricos estão: Rocha (2007, 2008 e 2009), que contribuiu com sua pesquisa sobre o histórico do
INES e os vários momentos da história do surdo no contexto mundial; Kozlowsky (2000), com
seus estudos sobre o bilinguismo e o processo ensino-aprendizagem do surdo; Dória (1958),
Vasconcelos (1982) e Couto (s.d.), com os estudos desenvolvidos sobre a criança surda desde o
nascimento, bem como a necessidade de apoiar e orientar seus responsáveis sobre a surdez e o
potencial dessa criança, trazendo a visão educacional desse processo; Lacerda (1976), na área de
Audiologia, contribuiu com as investigações sobre a surdez; Kelman (1996) permitiu que se
compreendesse o desenvolvimento linguístico da criança surda apontando que ela, assim como a
ouvinte, utilizava-se da fala egocêntrica; Quadros (2006), pesquisando o desenvolvimento global
do surdo frente às diferentes aprendizagens, contribuiu com questões sobre a criança surda, filha
de pais surdos, contrapondo-se com as crianças da pesquisa, filhas de pais ouvintes; Coriat
(1997) e Pérez-Ramos e Pérez-Ramos (1996), tecendo estudos sobre a proposta da estimulação
precoce, traçou o percurso histórico desse atendimento; Fernandes (2008), na área da
Psicolinguística, investigou a relação da linguagem e da cognição diante da surdez; Spitz (2004)
contribuiu com suas idéias sobre a importância das primeiras interações do bebê com a mãe,
além de contribuir com os estudos sobre os organizadores psíquicos; Winnicott (1977) enfatizou
em sua pesquisa a importância do choro como um elemento de comunicação e de aprendizagens;
Brazelton (2002), com seus estudos sobre as primeiras relações da criança afirmou que os
vínculos emocionais contribuiriam para as primeiras aprendizagens, afirmando, também, que
elas ocorreriam a partir da linguagem não verbal; Didonet (2002), com seus estudos sobre a
Educação Infantil, permitiu reconhecer a importância do trabalho pedagógico para essa faixa
etária; Mamede (2002), como educadora, falou sobre a importância da participação da família no
processo educacional. Para a revisão histórico-pedagógica, também foram utilizadas as
publicações do INES e documentações do MEC (1985; 1995 e 2001).
Terminado o ano letivo de 2009, foi feita a avaliação pedagógica dessas crianças,
pautando-se nas observações da professora em sala de aula. Assim a avaliação pedagógica
envolvendo as crianças surdas, dentro da faixa etária investigada, procurou “documentar e
87
ilustrar a história da criança no espaço pedagógico, sua interação com os vários objetos do
conhecimento, sua convivência com os adultos e outras crianças que interagem com ela”
(HOFFMANN, 1998, p. 51), levando em conta a história individual e registrando as “trajetórias
peculiares, curiosidades, avanços e dificuldades próprias de cada criança, respeitando o seu „ser‟
diferente dos outros” (idem).
Desse modo, na avaliação pedagógica foram observadas as diferentes áreas de
aprendizagem visando o desenvolvimento global da criança surda, o grau de autonomia
alcançado por ela e, como especificidade da área da surdez, sua comunicação envolvendo a
compreensão e a expressão. Assim, cada caso configurou-se dentro de uma trajetória que
resultou em um conjunto de aprendizagens diferenciando-se entre si e que foram analisadas
individualmente, dentro de uma mesma lógica.
Tanto o questionário quanto a avaliação pedagógica utilizada para registrar o
desenvolvimento das crianças ao final da pesquisa foram elaborados pela equipe de professores,
da Educação Precoce, do INES, da qual a pesquisadora participou, adaptando-os para o estudo
em tela. Assim, a análise dos resultados foi construída a partir desses dois instrumentos.
Na análise dos resultados a professora-pesquisadora apresentou sua prática
pedagógica, com as três crianças surdas, além de suas intervenções junto aos seus responsáveis.
Os casos foram identificados por frases que marcaram as queixas que cada família apresentou ao
iniciar na educação precoce. As mudanças observadas no comportamento de cada criança e
trazidas para análise refletiram as aprendizagens adquiridas por elas, considerando seu histórico
de vida e os objetivos pedagógicos traçados pela professora, individualmente. Dessa forma, as
crianças observadas foram: Helena, a mais nova do grupo. Iniciou na EP em junho de 2008, com
um ano e três meses e concluiu a Educação Precoce com dois anos e nove meses. Alice iniciou
na EP, em fevereiro de 2009, com dois anos e onze meses e concluiu a EP com três anos e nove
meses. Gabriel iniciou na EP em junho de 2009, com dois anos e dez meses e concluiu essa fase
de escolaridade com três anos e quatro meses. Os nomes fictícios foram escolhidos respeitando a
privacidade dos envolvidos.
O primeiro caso teve como título Uma família em busca de ajuda, no centro uma
criança “problema”. Essa criança foi identificada pelo nome de Helena. Sendo a surdez um
tema desconhecido para seus familiares, eles a viam sem qualquer chance de aprendizagem e,
por isso, chamavam-na de “debilóide”. Esta afirmação foi trazida para a escola no primeiro
contato com a família. Ao iniciar na educação precoce, Helena tinha um ano e três meses de
idade, ainda não andava e usava fraldas. A partir daí foram traçados objetivos e estratégias que
permitiriam à criança experimentar e reconhecer as possibilidades de seu corpo, adquirindo a
88
autonomia necessária para caminhar, sem auxílio do adulto. Essa aprendizagem lhe permitiu
outras, mais complexas, tais como desenvolver sua atenção voluntária, bem como a capacidade
de memorização; abstração e generalização através da possibilidade de explorar os espaços
livremente e pela ampliação de seu campo visual. Durante os atendimentos suas brincadeiras se
tornaram cada vez mais criativas. Helena prestava atenção em tudo que fazia. Isso lhe permitiu
adquirir inúmeras aprendizagens marcando sua presença no trabalho de educação precoce. Os
familiares de Helena compreenderam que ela tinha um potencial a ser desenvolvido. Muitas
mudanças que seriam importantes para que a criança desenvolvesse outras habilidades não foram
possíveis, principalmente, por causa do histórico familiar aliado ao fator sócio-econômico, pois
algumas ações caberiam exclusivamente à família distanciando-se da competência escolar.
Entretanto, independente da concretização dessas ações, a criança continuou em seu processo de
desenvolvimento. Athanassiou explica que
A criança se constitui, de fato, um mundo interior em função não apenas do
lugar em que seu meio a colocou, mas também em função de suas próprias
pulsões. Considerar unicamente a organização grupal é esquecer que a criança
constitui toda uma organização grupal no seu interior, pela constituição de seu
teatro interno. (ATHANASSIOU, 1999, p. 42).
pesquisa, seu pai afirmou ter observado mudanças no comportamento da filha; no entanto, a mãe,
em seu depoimento, afirmou o contrário, sinalizando que ambos tinham diferentes expectativas
sobre os objetivos do trabalho desenvolvido na educação precoce com sua filha e em relação aos
seus próprios sonhos e expectativas. Sobre a imagem que os pais carregavam da criança, Paín
(1985, p. 69) ofereceu um suporte teórico dizendo que “a falta de aprendizagem revelará seu
significado se prestarmos atenção à maneira como o sujeito é para o outro, evidentemente a
partir de sua maneira particular de ser como organismo e como história”.
O terceiro caso recebeu o título O menino que não queria (podia) crescer. No
primeiro contato com a professora, a mãe de Gabriel falou sobre a causa da surdez de seu filho
utilizando-se de termos técnicos e dizendo que havia buscado tais informações consultando a
internet. Entretanto, apesar de um vasto conhecimento teórico, demonstrou não saber lidar com
seu filho surdo. Ao iniciar na educação precoce, a criança já havia completado dois anos e dez
meses; porém, era carregado no colo e não se alimentava corretamente. Gabriel demonstrou ser
extremamente voluntarioso. Quando suas vontades não eram prontamente realizadas, ele batia
em sua mãe. Sua aparência física era de um bebê bem cuidado. Ele foi atendido em outra
instituição não especializada na área da surdez mesmo tendo recebido o diagnóstico próximo a
completar dois anos de idade. Seus pais estavam em um processo de separação intercalado pelas
inúmeras voltas do pai para casa. Isso desestabilizava emocionalmente a criança que “aprendeu”
a lidar com esses sentimentos. Ao utilizar a “fala” egocêntrica durante suas brincadeiras, a
criança elaborava seus pensamentos e organizava-se emocionalmente. Por gostar de brincar
sozinho, foi confundido com uma criança autista. Um dos motivos de seu aprendizado ser mais
lento foi o pouco tempo em que esteve na EP, mas também por causa da vulnerabilidade
emocional em que sua mãe se encontrava. A mãe percebia que sua instabilidade emocional
refletia-se no comportamento do filho, no entanto, dizia que o pai não dava limites para a
criança. Esse pai participou dos atendimentos da educação precoce apenas uma vez. Ao finalizar
o período da educação precoce, a mãe reconheceu que houve uma evolução no desenvolvimento
global de seu filho. A instabilidade emocional vivenciada por Gabriel, porém, fez com que seu
desenvolvimento fosse mais lento, impedindo-o de avançar em seu processo de autonomia.
Sobre esta dificuldade de aprendizagem da criança, Paín faz uma relação entre a dificuldade e o
comportamento dos pais dizendo que:
[...] os pais que não podem suportar o crescimento ou a transformação de seus
filhos, que não podem ver neles sujeitos independentes e curiosos que poderão
descobrir seus defeitos, que não modificam os dos filhos enquanto eles mesmos
não podem superar-se; também é difícil para uma criança perder a legitimidade
que lhe é dada pela ignorância, a proteção que lhe proporciona o não saber, e a
castidade que lhe garante a inocência. (PAÍN, 1985, p. 40).
90
A prática pedagógica foi mantida a mesma que já vinha sendo utilizada pela autora
com essa faixa etária. Os atendimentos na educação precoce aconteceram duas vezes por
semana, com uma média de quarenta e cinco (45) minutos em cada sessão. A sala de aula foi
mantida com todos os materiais utilizados com essa faixa etária, procurando despertar a atenção
e o interesse da criança surda. Sendo uma sala ampla; bem iluminada e com “cantinhos” de
leitura, com livros ilustrados; de “casinha da boneca” com uma cozinha em miniatura; uma
estante com jogos e brinquedos variados; um quadro de giz; uma mesa com cadeiras em tamanho
adequado para a faixa etária das crianças; um tapete de material lavável, próprio para as
atividades de chão; um espelho grande e instrumentos musicais. O planejamento das estratégias
pedagógicas considerou as atividades livres e dirigidas, buscando o interesse da criança e os
objetivos da professora.
Inicialmente os responsáveis participavam desses atendimentos, mas foram sendo
retirados gradativamente, considerando os objetivos traçados para cada criança, dentre os quais
distanciar-se do responsável e interagir com outras pessoas fora de seu ambiente familiar era um
deles. Entretanto, o apoio e as orientações familiares foram mantidos. Eram oferecidos ao
término de cada atendimento e sempre que as famílias assim o solicitavam. Nessas ocasiões, a
professora procurava apoiá-los no que estava especificamente ligado ao processo de ensino e de
aprendizagem, podendo interferir no trabalho de sala de aula. Tais momentos permitiram o
desenvolvimento de uma empatia bastante significativa entre os responsáveis e a professora que,
consequentemente, tiveram reflexos positivos no desenvolvimento global da criança. Assim,
cada caso configurou-se dentro de sua especificidade.
91
Quando esta pesquisa teve início, as três crianças em foco já vinham sendo atendidas
pela professora-pesquisadora. Elas foram matriculadas no Instituto em períodos diferentes. No
entanto, como norma da instituição, para ingressar na educação precoce, as famílias precisam
fazer um cadastro na secretaria escolar, sendo chamada em seguida para uma avaliação, que
antecedeu à matrícula.
Este processo foi feito por uma equipe multidisciplinar envolvendo médico,
assistente social, fonoaudiólogo e a professora-pesquisadora. A avaliação, no início da educação
precoce, tinha os mesmos objetivos que tem atualmente. Vasconcelos (CEIV, 1982, p. 44), em
sua referência, diz que era formada “por alguns serviços médicos da comunidade para
complementar a equipe multidisciplinar [...]”. De acordo com esta pesquisadora, o objetivo
daquela equipe era de avaliar e reavaliar os casos. Atualmente, a equipe multidisciplinar é
composta por profissionais do próprio INES. Cada um, dentro de sua área de conhecimento,
reúne informações para montar a história de vida da criança surda e observá-la em seu
desenvolvimento global.
Dessa forma, ao passar pela avaliação médica, verificou-se o calendário de vacinação
de cada criança da pesquisa, além do histórico do médico que os acompanhava fora do INES.
Tais informações foram arquivadas para que pudessem ser resgatadas e a criança reavaliada se
em algum momento houvesse necessidade. No caso dessas crianças, neste período em que
estiveram na educação precoce, não houve necessidade.
Além disso, cada família passou por uma avaliação com a assistente social,
objetivando-se reconhecer os elementos sociais que poderiam de alguma forma interferir no
processo de escolarização da criança surda. A organização familiar era diversificada. Assim, a
família de Helena configurou-se como uma família ampliada, sendo aquela em que “as crianças
são cuidadas pelas avós e/ou tios”; a de Alice, como uma família tradicional, na qual a criança
vivia com seus pais e um irmão mais velho, e a de Gabriel, como uma família monoparental,
pois ele vivia com sua mãe. Essas classificações foram denominadas por Mamede (2002, p. 483)
como “rede de relações familiares”. Tais configurações ofereceram dinâmicas próprias para a
história de vida de cada criança. Essas três famílias faziam parte de um grupo sócio-econômico
baixo, o que interferiu na frequência desses alunos aos atendimentos pedagógicos. No entanto, a
baixa frequência não ocorreu apenas por causa da dificuldade financeira para transportá-las até a
escola, mas também por causa da distância de suas moradias. Pela localização do Instituto, as
três famílias precisavam utilizar duas conduções para chegar lá. Segundo elas, a decisão de
92
matricular a criança no INES foi tomada por ser um dos poucos lugares que ofereciam esse tipo
de atendimento às crianças surdas, nessa faixa etária, e porque apresentavam surdez do tipo
neurossensorial e grau profundo ou severo. Além disso, era uma escola pública. Assim, quando
as famílias faltavam aos atendimentos, na maioria das vezes tinham como justificativa a falta de
dinheiro de passagem, provocando prejuízos para a rotina pedagógica. Todavia, algumas faltas
foram justificadas por doença da criança ou dos responsáveis que a acompanhavam, entre outros
motivos.
As crianças passaram, também, pela avaliação audiométrica com objetivo de detectar
seu tipo e grau de surdez, uma vez que somente seriam matriculadas na Instituição aquelas que
apresentassem uma perda auditiva profunda ou severa. Nesse grupo estariam surdos que se
comunicavam, predominantemente, através da língua de sinais e que adquiriram a língua
portuguesa de forma artificial, apoiada por técnicas pedagógicas especiais. Era o caso dessas três
crianças; por isso, puderam ser matriculadas no INES. Uma das recomendações do MEC era de
que o atendimento educacional para esses casos fosse oferecido em classes, escolas ou serviços
especializados, “em função das condições específicas dos alunos [...]” (BRASIL, 2001, p. 12).
Por último, as crianças passaram por uma avaliação pedagógica. Foram, então,
avaliadas suas interações, principalmente no grupo familiar e suas primeiras aprendizagens e seu
grau de autonomia considerando-se o mundo infantil. Nessa avaliação a professora tinha como
critério observar suas escolhas em relação aos brinquedos e objetos disponíveis na sala de aula; o
grau de interesse e de atenção, além da criatividade nas brincadeiras livres. Para Winnicott
(1977, p. 163), a criança adquire experiência brincando, e suas experiências tanto internas quanto
externas encontram riqueza, principalmente, na brincadeira e na fantasia. Para ele “a brincadeira
fornece uma organização para a iniciação de relações emocionais e assim propicia o
desenvolvimento de contatos sociais”. As ideias desse autor permitiram compreender a
importância de se avaliar a criança surda nessa atividade.
Durante a avaliação de ingresso, os responsáveis pelas crianças surdas foram
entrevistados também, e suas informações serviram para compor a história de vida de cada uma,
além de permitir conhecer os sonhos e expectativas da família diante do laudo de surdez. Através
de suas respostas foi possível conhecer, também, o grupo social em que a criança estava inserida,
ou seja, a dinâmica familiar e a forma pela qual ocorriam as interações nesse grupo de ouvintes
junto com a criança surda. Segundo Stelling (1996, p. 64), “a família de pais ouvintes que tem
um filho surdo precisa aprender a replanejar a sua vida, traçar objetivos e se modificar para
alcançá-los”.
93
Com esse objetivo, seus responsáveis foram deixados “à vontade para abordar os
assuntos, sem sentir-se invadidos” e, ao apresentar resistência em relação a algum tema, foram
respeitados (idem, p. 69). Desta maneira, considerou-se, para este estudo, o questionário que
consta no apêndice desta pesquisa por ter sido reelaborado com o objetivo de colher informações
que alcançassem os propósitos deste trabalho, além de procurar atender os objetivos da pesquisa
científica. Assim, a ordem das perguntas seguiu um critério temático (RIZNNI, 1999, p. 78) sem
ferir o discurso trazido anteriormente pelos responsáveis das crianças da pesquisa sobre a
dinâmica familiar e a história de vida delas, o que já havia sido abordado durante a avaliação de
ingresso no INES.
Na análise dos resultados foram recortadas as respostas mais significativas desse
questionário sobre a surdez da criança e sobre as aprendizagens que cada uma trouxe para a
escola ao iniciar na educação precoce. Assim, poderia se entender quais os objetivos traçados
pela professora-pesquisadora para cada criança ao iniciar esse atendimento, e quais as
aprendizagens que as crianças adquiriram e que puderam ser observadas pela autora ao final da
pesquisa. Além disso, a autora pôde, também, compreender de que modo os responsáveis
contribuíram para essas aprendizagens e para a autonomia da criança surda. Porque, para Stelling
(1996, p. 65), “o modo de agir dos pais pode resultar em atitudes de consequências positivas ou
negativas. A repercussão de seus atos afeta potencialmente seu filho surdo [...]”.
O histórico da surdez resgatou o período da gravidez da mãe e as ocorrências dos
primeiros anos de vida do bebê que pudessem sugerir a perda auditiva. Segundo o INES (2003,
p. 87), os fatores etiológicos “são aqueles que podem causar perda de audição podendo ocorrer
no período pré-natal, perinatal ou pós-natal”. Assim, objetivou-se, com as perguntas,
compreender a causa e o período em que ocorreu a surdez daquelas crianças. Além disso,
permitiu compreender alguns sentimentos da família em relação à criança surda, levando em
conta que várias pesquisas apontavam que, ao saber que seu filho nasceu surdo ou ficou surdo, a
maioria das famílias, num primeiro momento, desenvolveria um sentimento de luto (idem, p.
87). Outro ponto relevante seria conhecer os elementos de comunicação utilizados entre a família
e a criança surda, avaliando o grau de compreensão desenvolvido entre elas, além de procurar
compreender a maneira que esse grupo expressava seus desejos, necessidades e sentimentos. Por
fim, o questionário respondido pelos responsáveis permitiria compreender quais as
aprendizagens adquiridas pela criança surda através de suas interações em seu meio ambiente e
que seriam trazidas para a escola. Segundo Vigotski (2007, p. 94), “o aprendizado das crianças
começa muito antes de elas frequentarem a escola”. Para esse autor “qualquer situação de
aprendizado com a qual a criança se defronta na escola tem sempre uma história prévia”. E esta
94
visão foi compartilhada na pesquisa em tela. Sendo assim, as respostas dos responsáveis
permitiram compreender as primeiras aprendizagens da criança surda no conjunto de
conhecimentos psicomotor, sócio-afetivo e linguístico, desde o nascimento até o momento em
que a criança iniciou o atendimento na educação precoce. Compreendeu-se que cada área
enfocada separadamente deveria ser avaliada no conjunto do desenvolvimento global da criança
surda.
Após as avaliações da equipe multidisciplinar, iniciou-se o atendimento dessas
crianças e os trabalhos de apoio e orientação familiar, considerados importantes por Stelling
(1996, p. 65), pois, segundo ela, a família “precisa ser informada e conscientizada de seu papel
de participante maior no processo educativo da criança surda”.
Sendo assim, a análise dos resultados considerou tanto o questionário respondido
pelos responsáveis quanto a avaliação pedagógica feita pela professora ao final do ano letivo. A
avaliação pedagógica envolvendo as crianças surdas, dentro da faixa etária investigada, procurou
“documentar e ilustrar a história da criança no espaço pedagógico, sua interação com os vários
objetos do conhecimento, sua convivência com os adultos e outras crianças que interagem com
ela” (HOFFMANN, 1998, p. 51), levando em conta a história individual e registrando as
“trajetórias peculiares, curiosidades, avanços e dificuldades próprias de cada criança, respeitando
o seu „ser‟ diferente dos outros” (idem).
Desse modo, na avaliação pedagógica foram observadas as diferentes áreas de
aprendizagens, visando o desenvolvimento global da criança surda, o grau de autonomia
alcançado por ela e, como especificidade da área da surdez, sua comunicação envolvendo a
compreensão e a expressão. Assim, cada caso configurou-se dentro de uma trajetória que
resultou em um conjunto de aprendizagens diferenciando-se entre si e que foram analisados
individualmente, dentro de uma mesma lógica.
questionada se durante a gravidez ou durante o nascimento do bebê tinha ocorrido algum fato
que sugerisse a perda auditiva, confirmou o que disse anteriormente, ao responder que a mãe fez
uso de um medicamento proibido para mulheres grávidas. Entendeu-se que esse fato, apontado
por vários pesquisadores, se relacionava ao uso indevido de medicamento, no período pré-natal,
podendo tornar-se um risco para a surdez (INES, 2003, p. 11). A tia respondeu negativamente ao
ser questionada se o bebê se assustava ou acordava na presença de barulhos fortes ou se chorava
muito e acrescentou que Helena era uma criança que não tinha reações. Somando-se a isso,
ainda segundo suas palavras, durante o parto e nos primeiros dias de vida do bebê, nada tinha
acontecido que pudesse indicar tal perda. As respostas da tia sugeriram que a criança nasceu
surda e que a perda auditiva ocorreu no período pré-natal.
Sobre o desenvolvimento psicomotor, a tia disse que não observou se a criança
sustentava a cabeça, mas lembrava-se de que o bebê não se sentou e não engatinhou na época
esperada. Apenas se arrastava para se locomover. Entretanto, a tia afirmou que a criança passou a
ficar de pé com apoio e começou a caminhar somente após o ingresso na educação precoce.
Sobre se a criança pegava os objetos que estavam ao seu alcance ou batia palminhas imitando
outra pessoa, as respostas da tia foram negativas. Segundo ela a criança era totalmente parada.
Diante da pergunta sobre a forma de alimentação do bebê, respondeu que a mãe o amamentou
durante os quinze primeiros dias de vida e depois disto Helena foi alimentada na mamadeira.
Isso aconteceu porque, de acordo com suas palavras, a mãe rejeitou o bebê. Sendo assim, a tia
passou a criá-lo desde o segundo mês de vida. Nesse caso, Winnicott (1983, p. 84) considera que
“pode haver tias e avós adequadas ou amigos especiais dos pais que pela sua presença constante
se qualificam como substitutos da mãe”. No caso de Helena, sua tia tornou essa pessoa especial e
passou a cuidar dela substituindo sua mãe. Foi nesse período que a prima, observando as reações
mínimas da criança, desconfiou da surdez. Entretanto, somente procuraram o INES depois que a
criança tinha completado um ano de idade. Esse caso, assim como os outros dois, retratou uma
distância muito grande entre a desconfiança da surdez e o início da intervenção, acarretando
perda para o desenvolvimento global da criança. Ao ser questionada sobre quais as reações de
Helena para com os sons e como estava ocorrendo seu desenvolvimento linguístico as respostas
da tia foram negativas. Assim, respondeu que a criança não se virava quando eram emitidos sons
fortes e nem acordava com o barulho. Não demonstrava compreender os rituais da rotina da casa
e nem apontava para indicar aquilo que desejava. Entretanto, a tia disse que sabia diferenciar um
choro de outro. Percebeu-se nessa resposta que havia uma comunicação não verbal entre ela e a
criança. Segundo a tia, a falta de reação da criança para os estímulos do meio ambiente fez com
que a família não investisse em seu potencial, tornando-se um problema para o desenvolvimento
96
global de Helena: a família se referia a ela como debilóide. Assim, as interações entre a criança e
seu meio familiar eram quase inexistentes, limitando-se aos cuidados básicos de sono,
alimentação e higiene. A idéia de que aquela criança apresentava um “problema cognitivo” foi
uma reação daqueles que, não tendo informações sobre a surdez e as suas conseqüências, deram
início, então, a um processo de “mistificação” e “preconceito” (STELLING, p. 65), impedindo
que Helena tivesse experiências significativas para suas primeiras aprendizagens com a família.
Essa atitude dos familiares impedia que a criança brincasse até mesmo com outras crianças que
viviam dentro da mesma casa. Como resultado, durante o primeiro ano de vida, Helena perdeu as
experiências mais ricas dessa fase por falta de uma orientação especializada na área da surdez.
Ao responder sobre o desenvolvimento sócio-afetivo sua tia repetiu que todo o
desenvolvimento ocorreu após seu ingresso no INES, o que pode ser comprovado através das
respostas dadas por ela sobre o segundo e terceiro anos de vida da criança, ou seja, o período em
que Helena já se encontrava na educação precoce. A professora-pesquisadora pôde avaliar que
faltavam para a criança espaços físicos e emocionais que favorecessem as aprendizagens daquele
período. Faltavam-lhe experiências apropriadas. Helena era uma criança surda, porém,
cognitivamente não apresentava nenhuma perda.
Ao iniciar na educação precoce ela ainda não andava; usava fraldas e chorava muito
diante de pessoas estranhas. Não saía do colo da tia nem para pegar algum brinquedo exposto na
sala de aula. A professora observou que Helena demonstrava medo. Ao questionar a tia sobre tal
comportamento, ela respondeu que a criança tinha medo de ambientes e pessoas estranhas.
Considerou-se que a criança não queria se afastar da tia que era sua única referência de amparo
naquele espaço. Portanto, mediante aquelas observações, o primeiro objetivo do trabalho
pedagógico desenvolvido com aquela criança seria oferecer-lhe um ambiente acolhedor onde ela
pudesse se sentir segura, caso contrário Helena não exploraria livremente o espaço da sala de
aula e os espaços próximos. Entretanto, para alcançar essa autonomia, ela precisaria aprender a
caminhar livremente, sem auxílio do adulto. A professora compreendeu que Helena estava
pronta para aquelas aprendizagens que lhe dariam autonomia necessária para que outras
aprendizagens ocorressem. Além disto, a tia deveria ser apoiada e orientada, mas precisaria se
sentir, também, em um espaço amigo e conhecer melhor o potencial de sua sobrinha, ou seja,
conhecer a surdez e o potencial da criança surda. Couto (s.d., p. 19) enfatiza em sua pesquisa que
“torna-se imperiosa a orientação dos pais para a aceitação do problema e a conscientização das
possibilidades, do papel que lhes cabe na educação de seu filho e da importância da educação
precoce”.
97
Durante toda a entrevista com sua responsável, Helena foi mantida no colo. A
criança observava os movimentos da professora, e qualquer tentativa de aproximação fazia com
que a criança se encolhesse no colo da tia demonstrando estranhamento. Terminada a entrevista
com a responsável, iniciou-se a avaliação da criança que se recusava a sair do colo da tia ou
mesmo a olhar para a professora. Nem os brinquedos para os quais a criança olhava com certo
interesse foram suficientemente interessantes para afastá-la daquele colo acolhedor. Quando a
professora tentava interagir com Helena, esta se agarrava com muita força ao pescoço da tia. A
autora desta pesquisa reconheceu que deveria respeitar aquele momento e aguardar até que fosse
possível conquistar a confiança da menina. Isso não foi possível naquele dia. Sobre a confiança
que a criança vai desenvolvendo em suas relações, Winnicott (1983, p. 91-92) diz que “[...] o
lactente e a criança pequena são habitualmente cuidados de modo confiável, e deste ser
suficientemente bem cuidado resulta no lactente a crença da confiabilidade; a isto se pode
acrescentar a percepção da mãe e do pai ou avó ou enfermeira”. No caso de Helena,
compreendeu-se que a pessoa com a qual ela desenvolveu essa confiança foi sua tia. Esse nível
de confiabilidade a criança precisaria desenvolver, também, no ambiente escolar. Isso não seria
um problema, pois o trabalho desenvolvido pela professora na educação precoce sempre esteve
envolvido num ambiente lúdico, de atenção e de carinho, características para um ambiente
propício para as aprendizagens, no qual o interesse da criança se torna muito importante. Uma
das propostas para o atendimento de Helena seria tornar a sala de aula um ambiente confiável
para ela e pra a tia que somente liberaria a sobrinha se sentisse confiança na professora. Assim,
Helena poderia interagir naquele espaço de múltiplas aprendizagens.
Vários estudos apontam para um período em que todas as crianças, sejam elas surdas
ou ouvintes, desenvolvem um comportamento semelhante. Brazelton (1990, p. 32) diz que nessa
fase a criança se torna “cautelosa com todos os lugares estranhos e com a maior parte das
pessoas estranhas”. Assim, tal comportamento de Helena perante o desconhecido foi interpretado
como uma reação normal para sua faixa etária. Porém, esse processo prolongou-se um pouco
mais para ela, não apenas por ser surda, mas pelo contexto em que vivia. Desse modo, mesmo
diante de tantos brinquedos, de cores e tamanhos variados, durante quase um ano as interações
entre Helena e a professora ocorreram enquanto a criança estava sentada no colo da tia.
Entretanto, gradativamente seu olhar foi se fixando no olhar da professora, que ainda não podia
fazer qualquer tentativa de retirá-la de perto de sua responsável e nem mesmo tocá-la. Helena
chorava muito e mantinha-se na postura inicial: agarrada ao pescoço da tia. Brazelton (1990, p.
98
32) descreveu algo semelhante ao falar sobre a reação da criança nesse período: “se a tirarmos
dos braços da mãe ou se nos aproximarmos de uma maneira demasiado abrupta, provocaremos
seu choro”.
Tal reação sugeria que a criança ainda estava vivenciando a “ansiedade do oitavo
mês” (SPITZ, 2004). Helena demonstrava que aprendeu a distinguir o rosto da tia, a substituta de
sua mãe e “lhe conferiu um lugar único entre os outros rostos humanos” (SPITZ, 2004). Segundo
este autor, o choro diante de pessoas estranhas indicaria que “o objeto foi estabelecido não
apenas no setor ótico (cognitivo), mas também – e talvez devêssemos dizer principalmente – no
setor afetivo” (SPITZ, 2004). Ficou claro que Helena tinha trazido para a escola muitas
aprendizagens adquiridas em seu meio familiar, mas que precisaria de estímulos facilitadores de
outras aprendizagens, não apenas na área da linguagem, mas globalmente para avançar em seu
processo de desenvolvimento integral.
Assim, as atividades pedagógicas deveriam mediar as aprendizagens que ocorreriam
nesse período da vida da criança surda e as aprendizagens das etapas seguintes. Sobre a
“ansiedade do oitavo mês”, Spitz (2004) acredita que essa etapa de desenvolvimento “varia
consideravelmente” e que, sendo o resultado de relações entre dois indivíduos, “depende da
capacidade desses dois indivíduos para estabelecerem e manterem tais relações, da personalidade
individual, mas também de inúmeras outras condições ambientais e culturais”. No caso de
Helena diversos fatores participavam desse processo.
Ao terminar o ano letivo de 2008, a criança ainda entrava nos atendimentos com a tia
e ficava em seu colo durante todo o período. Entretanto, já participava de experiências lúdicas
interagindo com a professora, sem permitir, no entanto, maior aproximação física. Os
atendimentos eram alternados com atividades para a criança e o trabalho de orientação à tia sobre
as aprendizagens que Helena vinha adquirindo na educação precoce e aqueles que ela estava
pronta para adquirir. Enquanto a professora orientava a tia, a criança brincava livremente.
Compreendia-se que aquele momento era propício para que ela organizasse suas idéias,
sentimentos, além do próprio reconhecimento dos objetos. Helena ainda fazia o reconhecimento
dos objetos colocando-os na boca. Por isso o material tinha que ser apropriado para tal atividade.
Foram usados aqueles coloridos, de formas variadas e tamanhos adequados para sua faixa etária.
Como exemplo da importância dessa seleção do material, na sala de aula havia bonecas de
diferentes tamanhos. Tanto a menor quanto a maior não eram adequadas para aquela criança, na
época com, aproximadamente, um ano e meio de idade. A boneca menor apresentava o perigo de
Helena colocá-la na boca e se engasgar. A maior, sendo maior que a própria criança, lhe causava
medo. Da mesma forma outros materiais eram selecionados com cuidado. Enquanto a criança
99
brincava, a professora apontava para a tia o potencial da criança e o que poderia ser desenvolvido
com a mediação da professora e a participação de toda a família, em casa. Avaliou-se que Helena
tinha adquirido muitas aprendizagens importantes para seu processo de autonomia; inclusive,
estava começando a dar os primeiros passos, ainda com o auxílio do adulto. Sendo assim, ela
retornaria aos atendimentos na educação precoce, em 2009.
No ano seguinte, Helena demonstrou ter avançado mais um pouco. Tais avanços
foram resultantes de seu desenvolvimento biológico, que no período de vida em que se
encontrava, ocorria de forma acelerada. Todavia, pode se avaliar, também, que durante as férias
escolares a família havia mudado seu comportamento em relação a criança e passado a interagir
com Helena de forma mais direcionada, ou seja, compreenderam a importância da família como
mediadora das primeiras aprendizagens da criança surda. Assim, Helena voltou para a escola
com mais autonomia. Além disso, estava mais atenta aos objetos da sala de aula. Sua principal
aquisição no período de férias foi andar com maior equilíbrio, sem o auxílio do adulto. Esta
aprendizagem lhe permitiu explorar diferentes espaços e prosseguir para as etapas seguintes
como: correr; subir e descer escadas. Assim, esta autonomia lhe permitiu relativa independência
para explorar espaços e alcançar os objetos que estavam ao seu alcance, começando, inclusive, a
utilizar outros objetos como instrumento para alcançar os que desejava.
Todavia, as interações com a professora ainda eram bastante restritas. Demonstrando
pouca maturidade na área social, a criança tinha poucas interações com pessoas estranhas a seu
círculo familiar. Além disso, havia uma relação de proximidade extrema entre Helena e sua tia
que dificultava a separação de ambas. Foi necessário, então, dar início a outra etapa de
aprendizagens relacionada com a autonomia da criança e seu processo de distanciamento da tia.
Em uma das orientações, a professora sugeriu que a tia saísse da sala de aula, mas que ficasse
sentada do lado de fora, pois a qualquer momento que sentisse necessidade a criança teria a
possibilidade de vê-la e, aos poucos, compreenderia que, mesmo estando fora de seu campo
visual, a tia continuava a existir, em outro espaço, próximo a ela. Foi um processo doloroso para
ambas; porém, necessário para o desenvolvimento global da criança. Foi também um momento
em que muitas aprendizagens puderam ser adquiridas por Helena e que se relacionavam com a
percepção do “eu” e a representação mental envolvendo a capacidade de atenção, memorização,
abstração e generalização.
Isso somente foi possível com muita paciência, com várias idas e vindas ao mesmo
ponto, porque a criança chorava muito e somente parava quando a professora a conduzia até sua
tia. Alguns atendimentos tiveram seu tempo reduzido por causa do desgaste emocional em que
criança se encontrava; entretanto, foi necessário e saudável para o trabalho de distanciamento e,
100
da linguagem não verbal e deveriam ser sinalizadas para sua família como um grande potencial
da criança surda e que Helena estava conseguindo desenvolver, contrariando a imagem inicial
que seus familiares tinham da situação. Isso propiciou, também, uma aproximação entre outros
membros da família que passaram a visitar a escola.
No entanto, apenas no segundo semestre de 2009 foi que a criança começou a entrar
na sala de aula, espontaneamente, sem a presença da tia. Isto permitiu que Helena brincasse mais
livremente durante suas atividades. Para Winnicott (1983, p. 36), “com o passar do tempo o
indivíduo se torna capaz de dispensar a presença real da mãe ou figura materna”. Esse autor diz,
também, que “a capacidade de ficar só é um fenômeno altamente sofisticado e tem muitos
fatores contribuintes. Está intimamente relacionada com a maturidade emocional” (idem, p. 37).
A partir desse momento a criança adquiriu a possibilidade de se afastar de sua tia. Assim,
chegava à escola, dava tchau para tia e entrava na sala de aula. Ao terminar as atividades, dava
tchau para a professora e se dirigia para a tia. E começou a interagir com crianças e adultos no
ambiente escolar que lhe tornara familiar. Esta mudança de comportamento foi avaliada pela
professora como um ganho da criança em relação ao potencial que tinha, ao entrar na escola, mas
que, a partir do trabalho pedagógico direcionado para suas necessidades, bem como o trabalho de
orientação e apoio familiar, pode ser desenvolvido plenamente por ela.
A mudança de comportamento observado na criança apontou que ela estava pronta
para uma nova etapa de desenvolvimento, pois tinha alcançado o equilíbrio psíquico do segundo
organizador (SPITZ, 2004). A partir daí, Helena estava pronta para ingressar no terceiro
organizador psíquico (idem). Por volta de dois anos e meio, Helena passou a dizer “não”
balançando o dedo indicador. Sempre que fazia tal movimento, observava-se que estava dentro
de um contexto real, ou seja, a criança sabia exatamente aquilo que era seu objeto de recusa:
Helena tinha adquirido o conceito da palavra “não”. Dessa forma, “dizia não” quando encontrava
a professora do lado de fora da sala de aula, indicando que não queria entrar; quando ia para o
refeitório na hora do lanche, indicando que não queria comer e quando a professora começava a
arrumar a sala de forma que sugerisse uma atividade da qual Helena não queria participar. Ao
utilizar o “não” com gestos e meneio da cabeça demonstrava ter adquirido seu significado
linguístico, pois o utilizava dentro de um contexto real. Mas, em alguns momentos também
contextualizados, Helena brincava com a própria palavra e com as pessoas ao fazer os mesmos
gestos acompanhados de um sorriso, significando que estava provocando o interlocutor para uma
brincadeira, um desafio. Tudo isso era visto pela professora como as aprendizagens que Helena
estava adquirindo. Sua tia confirmava ao dizer que a criança fazia a mesma coisa, em situações
reais, fora da escola.
102
corredor, parava e observava a distância entre ela e a tia. A criança repetia essa atividade muitas
vezes, até que começou a ter segurança de ficar em pé e se descolar de um lugar para outro,
sempre dando pequenos passos e se apoiando nos móveis da sala de aula. Algumas vezes ela
perdia o equilíbrio e caía. Das primeiras vezes, se assustava e, chorando, procurava o colo da tia.
Quando isso acontecia sua tia corria para pegá-la, consolando-a. No início a brincadeira acabava
aí. Depois se tornou um desafio, e Helena saía do colo da tia e voltava para a atividade que
estava fazendo antes da queda.
A professora sabia que era necessário “orientar a família para deixar a criança
explorar os espaços, sempre na presença de um adulto, com cuidado para não lhe transmitir
insegurança e que as quedas fazem parte do aprendizado” (NASCIMENTO, 2007, p. 173). Sua
tia, querendo proteger a sobrinha dessas quedas, não permitia que ela andasse e, assim, impedia
que a criança adquirisse essa aprendizagem tão importante para outras futuras. Como Helena
ainda tinha pouco equilíbrio, sendo natural para sua faixa etária, não tendo qualquer ligação com
a surdez, era necessário que a criança aprendesse a cair e se levantar.
Esse aprendizado estava ligado ao processo biológico, mas também ao histórico-
cultural; portanto, quanto mais o adulto lhe apresentasse modelos positivos melhor para a
criança. Era necessário que a tia compreendesse que ela deveria estender essas experiências para
outros ambientes fora da escola onde a criança pudesse caminhar, inicialmente, com seu auxílio.
Para Nascimento (2007, p. 172) “a postura do adulto como mediador deve ser de amor e
compreensão, assim a criança, gradativamente, adquire autonomia necessária para confrontar-se
com as várias situações de aprendizagem”.
Helena aprendeu a caminhar após seu ingresso na educação precoce. Todavia
compreendeu-se que, se ela tivesse iniciado esse atendimento com mais idade, naturalmente
também teria aprendido a caminhar, correr, subir e descer escadas. Entretanto, as orientações
familiares sinalizaram a importância do adulto em apoiar emocionalmente a criança,
incentivando-a nesse processo de aprendizagens, porque elas ocorrem a partir da vontade da
criança em superar os desafios que surgem em suas atividades. E, principalmente, o adulto
precisa entender que a surdez não impede tais realizações. Essa aprendizagem lhe permitiu
outras, mais complexas, relacionadas com a possibilidade de explorar os espaços livremente e
ampliar seu campo visual. A partir daí Helena teve autonomia para explorar o ambiente e se
movimentar em direção aos brinquedos livremente.
105
Para Vigotski (2007, p. 156), “um sistema funcional de aprendizado de uma criança
pode não ser idêntico ao de uma outra, embora possa haver semelhanças em certos estágios do
desenvolvimento”. Apesar de a professora ter focado seus objetivos no processo de autonomia de
Helena, através da sua separação da tia e do caminhar livremente, muitas aprendizagens foram
adquiridas pela criança nesse intervalo de tempo.
Helena desenvolveu a atenção dirigida muito rápido. Mesmo nos momentos em que
estava no colo da tia, seus olhos percorriam todo o espaço da sala de aula. Essa atenção visual
lhe permitiu olhar para o rosto das outras pessoas e para os objetos. E a tia respondeu
positivamente às perguntas do questionário pedagógico sobre o desenvolvimento psicomotor;
sócio-afetivo e o desenvolvimento linguístico de Helena dizendo ter ocorrido após seu ingresso
na educação precoce. A criança passou a prestar atenção ao movimento da boca do adulto.
Segundo a tia, a família se comunicava com Helena falando para ela e apontando para os objetos
e situações. Isso fez com que ela olhasse para a professora que também se comunicava com
Helena através da fala. Assim, Helena passou a tentar se comunicar através da fala, por um
processo de imitação, mas também, porque estava ouvindo alguns sons relacionados à área da
voz humana. De início seus sons não tinham significado. Isso ocorreu no período em que recebeu
o AASI. Todavia, seu aparelho teve um problema que não foi solucionado no período em que
Helena estava sendo atendida. Mesmo sem o aparelho a criança continuou tentando emitir os
sons da fala, mas não evoluiu para os sons com significado. Acreditou-se que, se ela continuasse
a usá-lo, poderia adquirir o conceito linguístico através da audição com a ajuda do aparelho de
amplificação sonora e o trabalho especializado de fala. Entretanto, compreendeu-se, também,
que o fato de Helena ser uma criança bastante atenta estava relacionado com sua percepção
auditiva, sendo que uma foi condição para a outra, ou seja, ela era atenta porque tinha um bom
resíduo auditivo e, tendo um bom resíduo auditivo, poderia melhor direcionar sua atenção aos
estímulos do meio ambiente.
O bom desenvolvimento global que Helena vinha tendo foi confirmado através das
respostas que sua tia deu ao ser questionada se, quando estava em casa, a criança prestava
atenção à televisão. Respondeu que sim. Isso era um ponto positivo para que Helena passasse a
se concentrar por um tempo maior em outras atividades. Por outro lado, a criança que tem
atenção dirigida desenvolve rapidamente sua memória e outras funções psíquicas mais
complexas. Helena passou a se interessar por duas atividades desenvolvidas na sala de aula que
se tornaram muito importantes para outras aprendizagens da criança.
106
Livro ilustrado
Helena gostava muito de folhear os livrinhos de histórias infantis que havia na sala
de aula. Sabendo que o interesse da criança auxiliaria no processo de aprendizagem, a professora
passou a adotar essa estratégia com ela. Algumas atividades são mais interessantes para uma
criança do que para outra. As atividades que Helena realizava na sala de aula, na maioria das
vezes, eram escolhidas por ela. A atividade que envolvia o livro ilustrado era uma delas.
A professora colocava vários livros na frente de Helena que folheava cada um deles.
Às vezes, a criança escolhia apenas um, colocando os outros de lado. Folheava as páginas, uma
de cada vez, com cuidado. Para uma criança na sua idade isso era muito significativo porque,
geralmente, ainda não conseguem fazê-lo com a mesma atenção de Helena. No início, mesmo os
livros estando de cabeça para baixo, e Helena não tendo esta percepção visual, continuava a
folheá-lo até a última página. Às vezes, se detinha em uma figura olhando seus detalhes. Ria,
vocalizava alguns sons olhando para a professora e apontava para as imagens daquela página.
Seu comportamento sugeria que, em seu pensamento, muitas situações se inscreviam naquela
gravura ou cena. A professora, procurando acompanhar sua imaginação, apontava, também, para
as gravuras nomeando-as e dramatizando. Vasconcelos, falando do material didático utilizado
com o surdo, enfatiza a importância do material visual. Pode-se incluir aí o livro ilustrado. De
acordo com esta autora:
Em todas as classes, ao lado do material convencional, nacional ou estrangeiro,
a gravura é o nosso principal material. É usada com finalidades as mais
variadas: aquisição de vocabulário, ilustração de conhecimentos, leitura labial,
redação, avaliação psicológica. Para esta última finalidade, usamos uma coleção
com temas sugestivos e de conteúdo emocional. (VASCONCELOS, apud
CEIV, 1982, p. 30).
“Cantinho da Boneca”
Outra atividade preferida por Helena estava em um canto da sala de aula: tinha uma
cozinha em miniatura com uma pia, pratos, copos e talheres, um fogão e panelinhas. Ao lado
tinha uma geladeira, com ovos, garrafas para água e algumas vasilhas. Depois que ela passou a
caminhar e a ficar sozinha na sala de aula com a professora, teve oportunidade de explorar os
espaços e ali estava sua brincadeira preferida. Ao chegar, a criança se dirigia para esse
“cantinho” e convidava a professora para brincar com ela. Sua comunicação era bastante clara:
quando a professora estava olhando, Helena olhava para ela e, com algum objeto da “cozinha”
nas mãos, esticava os braços fazendo um convite ou oferecimento para a professora. Ao se
107
aproximar, as duas se envolviam numa grande brincadeira. Helena repetia um ritual: fazia a
comida, oferecia para a professora, e as duas comiam juntas; depois colocava água no copo e
oferecia para a professora; por último, lavava a louça guardando-a nos lugares certos. Às vezes,
além da professora, Helena trazia uma boneca para a brincadeira. Na imaginação de Helena, a
boneca era uma criança que, talvez na regra da brincadeira, fosse ela mesma. A professora,
conversando sobre essa atividade com a tia, esta disse que enquanto estava na cozinha fazendo
suas tarefas, Helena ficava ao seu lado e pedia para ajudá-la.
Vigotski (2007, p. 108) diz que “a criança em idade pré-escolar envolve-se num
mundo ilusório e imaginário onde os desejos não realizáveis podem ser realizados, e esse mundo
é o que chamamos de brinquedo”. Segundo este autor a imaginação “não está totalmente
presente na consciência de crianças muito pequenas”; entretanto, acreditou-se que Helena estava
começando esse processo através da sua brincadeira, pois naquele período ela estava com mais
de dois anos e meio. Seria possível dizer que Helena, como uma criança surda, estava adquirindo
as primeiras aprendizagens dentro de uma faixa estabelecida pelas pesquisas como a ideal.
Vigotski considera “o começo da imaginação humana na idade de três anos”. As brincadeiras de
Helena possuíam muita imaginação e ela sempre criava situações novas, mesmo aquelas com o
mesmo tema. Outro fato importante que apontava para suas várias aprendizagens através dessa
atividade era o fato de que existiam regras e Helena as seguia. Ela era a sua tia naquele momento
em que brincava. Assim, agia como sua tia, obedecendo às mesmas regras que envolviam a
situação real. Para Vigotski essas regras não são aquelas “previamente formuladas e que mudam
durante o jogo, mas as que têm sua origem na própria situação imaginária”.
As brincadeiras de Helena se tornaram mais criativas, marcadas pelo
desenvolvimento da atenção voluntária, da capacidade de memorização, abstração e
generalização. Fica reconhecido, assim, que a criança surda, através de suas ações, desenvolve-se
a partir das funções elementares para as mais complexas. Nascimento (2007, p. 172) fala da
importância da participação da família na sala de aula, pois, observando a ação da criança, o
adulto “passa a compreender que o surdo possui grande potencial a ser desenvolvido, da mesma
maneira que todas as crianças: brincando”. Portanto, observou-se que a tia de Helena,
compreendendo essa forma de “ensinar”, investiu nas brincadeiras com a criança e sempre que
chegava aos atendimentos dizia que Helena estava brincando direitinho com suas irmãs e
primas. E assim, nesse espaço lúdico vivenciado tanto na escola quanto em casa, Helena adquiriu
maior grau de atenção. Para Nascimento (2007) durante a brincadeira “a criança observa e
explora diferentes objetos adquirindo a capacidade de classificá-los de acordo com seus
108
atributos”; além disso, “cria soluções novas para os diferentes problemas que surgem em cada
atividade e vai adquirindo, aos pouco, noção de tempo e espaço”.
Segundo ela, o trabalho de apoio e orientação familiar foi muito bom para ela. Dona
Elisa sempre dizia para a professora: a senhora foi muito boa para Helena. Suas palavras
retrataram outra face do trabalho de orientação e apoio familiar. Várias mudanças ocorrem no
meio ambiente da criança. Tais mudanças, relacionadas com o desenvolvimento da criança
surda, inevitavelmente provocam uma reelaboração nas estruturas sociais, ao seu redor.
Ao iniciar o atendimento na educação precoce, a professora observou que a tia de
Helena tinha adotado uma postura que impedia a mãe da criança de se aproximar dela. Todavia,
ao terminar o atendimento, a própria tia disse que a mãe tinha se reaproximado da filha trazendo
muita alegria para todos, inclusive para a criança. Essa mudança ocorreu gradativamente, quando
a professora decidiu falar da importância do amor que dona Elisa tinha pela criança e que mesmo
não sendo a mãe biológica, o amor entre elas não acabaria; pelo contrário, se fortaleceria ainda
mais. Segundo a tia, esse relacionamento mudou porque ela mesma modificou sua conduta,
facilitando a aproximação entre a criança e sua mãe por compreender que seria bom para o
desenvolvimento da sobrinha.
Dona Elisa dizia para a professora: tudo que for bom para Helena vou fazer. Assim
ela o fez durante um ano e meio, enquanto estava acompanhando sua sobrinha nos atendimentos.
O reflexo disso foi percebido em sua postura: sua relação superprotetora com a sobrinha
diminuiu e houve uma transformação da própria tia, quando passou a se preocupar mais com sua
aparência física, cuidando de seus próprios cabelos e suas roupas. Quando chegava ao
atendimento, perguntava à professora se tinha gostado da forma com que tinha se arrumado para
ir lá. As respostas, que eram sinceras, valorizavam cada vez mais esta tia. O resultado foi o
desenvolvimento de sua auto-estima.
Assim, Helena procurava objetos que tinham sido retirados de seu campo visual, demonstrando
que tinha adquirido a permanência do objeto, combinava objetos semelhantes e empilhava cubos
de diferentes tamanhos. E montava quebra-cabeça de até doze peças, embora ainda com auxílio.
Seu desenvolvimento psicomotor ocorria de acordo com o esperado para ela considerando seu
potencial de aprendizagem. Helena alcançou um grau de maturidade suficiente para interagir em
diferentes ambientes e lhe permitir uma independência relativa do adulto. Para Winnicott (1983,
p. 80) “a maturidade do ser humano é uma palavra que implica não somente crescimento pessoal,
mas também socialização”. Ao trazer essa ideia Winnicott (idem) acrescenta que “a
independência não é absoluta. O indivíduo normal não se torna isolado, mas se torna relacionado
ao ambiente de um modo que se pode dizer serem o indivíduo e o ambiente interdependentes”.
Helena aprendeu “de forma não expressa (mentalmente), a planejar sua atividade”. Ao mesmo
tempo ela requisitava a “assistência de outra pessoa, de acordo com as exigências do problema
proposto” (VIGOTSKI, 2007, p. 19). Observando-se as aprendizagens que Helena havia
adquirido, pode-se compreender que ela buscava resolver seus problemas de acordo com o
esquema apresentado por Vigotski. Helena fazia “tentativas diretas de atingir o objetivo”,
utilizando-se de seu próprio corpo como instrumento e tentava utilizar-se de fala dirigida à
pessoa que estava próxima a ela, às vezes através de sons sem significado, outras vezes
apontando para o objeto de sua atenção. Para Vigotski (2007, p. 42) “a potencialidade para as
operações complexas com signos já existe nos estágios mais precoces do desenvolvimento
individual”. A partir das aprendizagens adquiridas por Helena, observou-se que a criança já
estava neste estágio.
No primeiro encontro Alice demonstrou ser uma criança feliz. Sorriu e interagiu com
todos os adultos que encontrou no ambiente da Educação Infantil. Porém, a criança não saiu do
colo de sua mãe. Ao falar com a professora, a mãe aparentava tranqüilidade. Tal estado foi se
alterando através de suas palavras ao relembrar aquela criança que até um ano de idade mantinha
uma interação com seus pais como qualquer criança daquela fase. A surdez de Alice foi
adquirida após o primeiro ano de vida, e seus pais não aceitavam tal diagnóstico. Stelling (1996,
p. 64) aponta que os pais ouvintes que têm um filho que nasceu surdo ou ficou surdo nos
primeiros anos de vida “apresentam-se fragilizados nos primeiros tempos, encontram inúmeras
dificuldades à sua frente e, quase sempre, alteram seus planos de vida em função desta nova
situação”. Esta autora acrescenta que:
111
Os pais ouvintes com filhos surdos têm que ter assegurado o seu direito de saber
tudo sobre a surdez. Precisam habituar-se com a nova situação. Têm
necessidade de um tempo para entender o que se passa na relação com este filho
„estrangeiro‟, que não compartilha da sua língua e, portanto, é próximo
fisicamente, porém distante linguisticamente. E, mal absorveram a ideia de
terem tido um filho diferente, é exigido deles uma postura de vida também
diferente. (STELLING, 1996, p. 67).
Isso aconteceu com os pais de Alice. Entre todas as mudanças ocorridas em sua vida,
uma delas foi a de ter que reorganizar os horários de seus empregos para que cada dia um deles
levasse a filha para a escola. Mas isso foi importante para que a professora-pesquisadora pudesse
apontar para o pai e a mãe de Alice o potencial de sua filha. Assim, tiveram a chance de
compartilhar da educação de Alice. Essa situação era incomum na educação precoce, pois
dificilmente um pai acompanhava o filho surdo nesses atendimentos, e tudo que se referia à
educação da criança ficava a cargo da mãe. Porém, o pai não quis responder ao questionário
pedagógico, ficando essa tarefa para a mãe de Alice.
Resgatando o histórico da surdez, ela se emocionou bastante quando relembrou dos
momentos em que a criança ainda ouvia. Assim, ao responder sobre a causa da surdez a mãe
disse que desconfiou da falta de audição da filha após uma bronquiolite. Segundo ela, a criança
ficou internada durante quatro dias para tratar de sua saúde e, ao retornar para casa, os pais
observaram que ela não tinha reação para os sons. Ao ser questionada em que período isso
ocorreu, a mãe respondeu que a criança tinha um ano e cinco meses, mais ou menos. Sobre o
histórico familiar, ela desconhecia qualquer caso na família relacionado a problema genético ou
de síndrome que sugerisse a perda auditiva da criança. Entretanto, lembrou que uma das tias de
seu marido era surda, mas que, segundo a família do marido, foi causada por meningite,
adquirida, também, na infância. Compreendeu-se que não existia nenhuma relação entre uma
surdez e outra. Além disso, segundo a mãe de Alice, a gravidez foi tranqüila, e o bebê nasceu a
termo. De acordo com suas respostas ao questionário pedagógico, o período da surdez era
conhecido, entretanto, assim como no caso anterior; restava apenas uma suspeita sobre sua
causa, pois não havia um laudo médico que a confirmasse.
As respostas da mãe sobre o primeiro ano de vida do bebê foram todas positivas,
apontando para um desenvolvimento normal de acordo com os pesquisadores desse período da
infância. Na área do desenvolvimento psicomotor, a mãe disse que o bebê sustentava a cabeça;
rolava de um lado para outro; sentou-se; engatinhou; levantou-se e caminhou sem ajuda, de
acordo com a evolução infantil. Continuando, disse que a criança pegava os objetos que estavam
ao seu alcance; trocava-os de uma mão para a outra; batia palminhas, imitando outra pessoa; e
procurava aqueles que desapareciam de seu alcance visual. Sobre o desenvolvimento sócio-
112
afetivo, as respostas da mãe indicaram que a criança tinha um “ambiente suficientemente bom”
(WINNICOTT, 1983) que favorecia diferentes experiências e que lhe permitiram as
aprendizagens próprias do primeiro ano de vida. Dessa forma, a mãe respondeu afirmativamente
quando questionada se o bebê era risonho e se ficava no colo de pessoas fora de seu núcleo
familiar. Respondeu, também, que a criança não chorava na presença de pessoas estranhas e nem
sem motivo aparente.
As respostas da mãe sobre o desenvolvimento linguístico e auditivo de Alice
indicaram uma criança que ouvia todos os sons, inclusive os da voz humana. Assim, a mãe
respondeu que Alice se assustava e acordava na presença de barulhos fortes e que se virava ao
ouvir esses sons, procurando-os. Além disso, a mãe afirmou que o bebê prestava atenção ao som
da fala do adulto, que tentava repetir os sons que os adultos emitiam e que começou a balbuciar e
a emitir sons, sem significado. Segundo sua mãe, Alice compreendia os rituais da casa, como a
hora do banho, do alimento, de dormir, assim como as palavras que ouvia. Todos esses pontos
respondidos afirmativamente pela mãe indicaram que a criança, até um ano de idade, tinha a
audição normal. Couto (s.d., p. 18) afirma que “a criança que ouve, partindo do balbucio, entra
na fase linguística estabelecendo a relação palavra-objeto [...]”. Portanto, todas as respostas
apontavam para pais dedicados com uma criança que se desenvolvia plenamente e que estava
pronta para adquirir a língua materna.
Ao ser questionada se a família tinha o hábito de passear com a criança, a mãe
respondeu que sim. Ao responder se a criança, no primeiro ano de vida, prestava atenção ao som
da fala do adulto, também disser sim, mas que, quando parou de ouvir, foi ficando dispersa e sua
atenção reduzida. Desse modo, compreendeu-se que a história de vida de Alice foi marcada por
dois momentos. Inicialmente a criança vivenciou as interações do primeiro ano de vida, como
criança ouvinte, adquirindo as aprendizagens próprias desse período; depois, como criança surda,
a vida se transformou tanto para ela quanto para seus pais. Sendo assim, todos tiveram que se
adaptar a essa nova realidade. A mãe de Alice disse que, após ter completado um ano de idade, a
criança não emitia sons com significado porque adoeceu, passando a se comunicar com os pais
utilizando o gesto de apontar.
Então, ao responder se a criança prestava atenção ao movimento da boca do adulto,
nos segundo e terceiro anos de vida, a mãe respondeu que não. Ao ser questionada como a
família se comunicava com a criança, a mãe respondeu que era através de gestos naturais e
criados dentro da família. Respondeu, também, que a criança preferia se comunicar por gestos.
A mudança de uma modalidade oral-auditiva para uma viso-espacial provocou uma série de
interferências na qualidade das interações produzidas naquele grupo familiar e, gradativamente, a
113
criança foi se tornando desatenta; nem os sons mais fortes despertavam-lhe a atenção. Ao
perguntar à mãe se a criança prestava atenção aos sons fortes, como do avião e de fogos de
artifício, procurando a fonte sonora, a mãe respondeu que antes, demonstrava ter mais atenção
para esses sons. Sua resposta pode sugerir uma forma de surdez que não ocorre imediatamente,
mas que provoca uma perda auditiva progressiva.
Após o diagnóstico de surdez, os hábitos familiares continuaram, mas a forma de
comunicação mudou. Diante da surdez e sem a orientação necessária, os pais não souberam
manter as interações que permitiriam novas aprendizagens para sua filha. O sonho da criança
imaginária se desfez diante da criança real. Nessa situação nova toda a família deveria se
(re)estruturar para acolher aquela criança que, não sendo uma estranha, passou a ser e ter uma
nova realidade. Um conjunto de sinais visuais foi mantido, em substituição aos sons da fala,
como o sorriso e a expressão dos olhos e da face, movimentos que adquirem para a criança surda
a equivalência da voz humana (COUTO, s.d., p. 17). No entanto, mesmo diante do novo, o ser
humano desenvolve a capacidade de reencontrar seu ponto de equilíbrio. Esse movimento em
direção ao (re)equilíbrio se configura como uma das propostas do trabalho de apoio e orientação
familiar.
Como Alice já estava com mais de dois anos ao iniciar na educação precoce, a
maioria das respostas de sua mãe sobre esse período de vida foi afirmativa em relação às
aprendizagens da criança até aquele momento, mas eram aprendizagens que não tinham ligação
direta com a percepção auditiva. Assim, a criança tinha autonomia para caminhar sem ajuda,
correr, pular, subir e descer escadas, segurar um copo para beber água, tentar tirar e colocar
calçados e roupas, assim como interagir com os brinquedos e objetos atribuindo-lhes funções
corretas e contextualizadas. Essas foram as aprendizagens que Alice trouxe para a escola.
Demonstrava, também, um grau de maturidade suficiente para interagir com crianças e adultos
no ambiente escolar, mas apenas na presença da mãe.
Entretanto, a professora observou que Alice ainda usava fraldas e chupeta e que não
se detinha por muito tempo nas atividades que ela mesma tinha escolhido. Alice se mantinha
ligada à mãe através do olhar, e esta traduzia para a professora todos os desejos da filha. Ao
menor sinal de desagrado, a criança corria para a mãe que tratava de solucionar seus problemas.
Um dos pontos evidenciados e que deveria ser trabalhado com aquela criança seria a retirada da
fralda e da chupeta. Essas duas formas de dependência, provavelmente, estavam impedindo a
criança de se desenvolver mais rapidamente e de assumir uma postura mais independente. Além
disso, a postura da mãe indicava sua falta de conhecimento sobre a surdez e, como consequência,
das potencialidades que sua filha possuía e poderia desenvolver com o auxílio da família.
114
O trabalho de educação precoce foi estruturado para Alice com o objetivo de atrair
sua atenção que era bastante limitada. Tal desatenção provocava grande dispersão na criança e,
assim, ela perdia muitas experiências significativas para seu desenvolvimento global. Alice não
apresentava problemas cognitivos que a impedissem de adquirir a atenção necessária nas
atividades. Todavia, o fato de não participar de experiências sonoras e de não ouvir os sons da
fala e, talvez, por seus pais terem deixado de interagir com ela tanto quanto faziam no período
em que ouvia, podia ser um indicador da falta de atenção, que gradativamente, foi se agravando e
prejudicando a rotina da criança. Compreendeu-se, então, outra afirmação de Vigotski (idem, p.
94) sobre a diferença entre o aprendizado adquirido nas experiências cotidianas da criança e o
adquirido durante o processo escolar, ou seja, para este autor aquele que a criança leva para a
escola “difere nitidamente do aprendizado escolar, o qual está voltado para a assimilação de
fundamentos do conhecimento científico”. Mas, antes de iniciar a sistematização do ensino, na
educação precoce, era necessário resgatar com os pais o que Alice já havia aprendido antes de
ficar surda, como, por exemplo, o interesse de fixar o olhar no rosto das pessoas. Partindo dessas
aprendizagens, a professora mediaria outras aprendizagens ou resgataria aquelas, anteriores.
Seria necessário elaborar algumas estratégias pedagógicas que pudessem atrair o interesse da
criança e sua atenção voluntária. Para isso, seria necessária a organização de uma rotina não
apenas para a criança, mas também para seus familiares.
Alice não se detinha em nenhuma brincadeira marcando sua desatenção, mas isso
refletia, ao mesmo tempo, a necessidade de explorar o ambiente apreendendo o mundo infantil.
Uma das intervenções pedagógicas foi trazer seu pai para os atendimentos. Assim ficou
determinado entre eles que um dia o pai acompanharia a filha e no atendimento seguinte a mãe a
acompanharia. Além disso, as atividades seriam realizadas com os pais dentro da sala para que
eles brincassem com a criança. Enquanto isso a professora ia orientando os dois sobre as
atividades que deveriam fazer em casa. As atividades oferecidas na escola e as oferecidas pelos
pais, em casa, deveriam objetivar o desenvolvimento da atenção e da comunicação de Alice.
No início, Alice pegava os brinquedos, mas logo em seguida os deixava de lado,
pedindo outro para seus pais e era atendida. A professora orientava-os para não ter essa atitude.
Eles respondiam que, se não fosse assim, a criança chorava muito. Era sempre assim dentro de
casa. Durante muitos atendimentos, Alice chorou porque nem sempre seus desejos eram
atendidos. Sua mãe, principalmente, demonstrava que não aceitava tal atitude da professora. De
uma forma ou de outra, a mãe fazia as vontades da criança, por isso foi necessário que os pais de
116
Alice não ficassem mais na sala de aula. Gradativamente, a professora desenvolveu um trabalho
mais direcionado para a criança, embora sua atenção ainda não fosse suficiente para que Alice
adquirisse as aprendizagens necessárias para sua comunicação e consequentemente, sua
autonomia. A própria família não estava querendo ficar com a criança nem mesmo para visitas, e
seus pais, então, estavam deixando de sair com Alice por causa daquele comportamento.
A comunicação de Alice com seus pais era muito difícil, pois eles não estavam
conseguindo resgatar o vínculo emocional que tinham construído com aquela criança que antes
interagia com eles através do sorriso, da atenção em seus rostos e das “gracinhas” produzidas
pelas crianças em geral daquela fase de vida. Depois da surdez, isso havia desaparecido. Em seu
lugar ficou uma criança “levada”, “difícil” e que não era aceita pelos próprios familiares. Seus
pais, inicialmente, tinham a colaboração de uma tia, mas que, por ter adoecido, não pode
continuar cuidando dela. Nenhum outro parente se propôs a ajudá-los neste sentido. Como
consequência, a mãe teve que sair do emprego. Ao se resgatar as aprendizagens de Alice, a
professora começou a sinalizar para os pais o significado do gesto de apontar e sua importância
para as aprendizagens, tão utilizado entre eles e a criança. Esse conhecimento poderia ajudá-los
em suas interações.
Como ouvinte, no primeiro ano de vida, Alice teve a oportunidade de passar por
todas as fases do desenvolvimento linguístico. Nas primeiras interações com seus pais ela
aprendeu a identificar, através do ritmo e da melodia, a voz do pai e a voz da mãe, além das
diferentes entonações que indicavam para a criança os sentimentos e as emoções de seus pais.
Para Vigotski (2008, p. 84) “a linguagem do meio ambiente, com seus significados estáveis e
permanentes, indica o caminho que as generalizações infantis seguirão”. Ao responder o
questionário pedagógico, a mãe de Alice disse que a criança somente chorava com fome ou com
o incômodo de roupa suja; que sorria para outros adultos fora do ambiente familiar e que
balbuciou na fase considerada como normal para esse tipo de aprendizado. Segundo Vigotski
(idem, p. 85-86) “a comunicação verbal com os adultos torna-se um poderoso fator no
desenvolvimento dos conceitos infantis”. Com isso ela estava apreendendo gradativamente os
conceitos da língua materna. Sua mãe disse, também, que Alice tentava imitar os sons que os
adultos emitiam e que, no final do primeiro ano de vida, a criança apontava para indicar aquilo
que desejava. Stobäus e Bussab (2009, p. 129) afirmam que o gesto de apontar “fornece pista aos
pais de quais palavras e sentenças as crianças precisam ouvir para organizar suas ideias e dar
117
outro passo rumo à aprendizagem”. Além disso, esses gestos “desempenham um papel principal
no aprendizado linguístico e na aquisição da cognição”.
Em se tratando de crianças ouvintes, essa afirmação é verdadeira porque, na maioria
das vezes, logo em seguida do gesto de apontar, o adulto nomeia o objeto para ela. Este é o
momento em que, sendo uma brincadeira, a criança tem a possibilidade de ouvir um número
enorme de palavras, ampliando cada vez mais seu vocabulário. Isso permite que a criança
participe de interações dentro de seu grupo familiar, com mais criatividade e tornando essas
interações sociais mais prazerosas, contribuindo, inclusive, para sua organização cognitiva.
Entretanto, Alice perdeu a audição. Tanto eles quanto a própria criança precisariam
de um tempo para se adaptar à nova situação. E o gesto de apontar passou a ser o principal
elemento de comunicação com seus pais. Para Vigotski (2007, p. 57) apontar para um objeto
passa a ser “um gesto verdadeiro após manifestar objetivamente para os outros todas as funções
do apontar, e ser entendido também pelos outros como tal gesto”. Assim, ao ser questionada
como a família se comunicava com a criança, a mãe respondeu que era através de gestos naturais
e criados dentro da família e que Alice preferia se comunicar, na maioria das vezes, por gestos.
Segundo Stobäus e Bussab (2009, p. 129) a criança surda “utiliza-se do gesto de apontar com
muita frequência”.
Desta forma, privada do modelo de língua oral, Alice passou a se expressar através
da linguagem não verbal, principalmente os gestos naturais, a expressão corporal, além do
sorriso e do choro. A comunicação entre ela e seus pais ouvintes, que antes da surdez favorecia o
desenvolvimento linguístico, foi se perdendo e diminuindo em quantidade e em qualidade. Eles,
desconhecendo a surdez e desestruturados emocionalmente diante daquele laudo, deixaram de
brincar com as palavras, limitando-se a “adivinhar” aquilo que sua filha queria dizer ao apontar
para algum objeto, resumindo-se ao que estava próximo ou à situação imediata. Dessa
comunicação resultaram duas situações de conflito: ou a criança era atendida imediatamente por
ter apontado para algum objeto que seus pais já sabiam de que se tratava; ou, quando não
compreendida, chorava muito, demonstrando frustração e tristeza.
No segundo semestre de 2009, mesmo ainda se comunicando através do olhar e do
gesto de apontar, Alice adquiriu alguns significados linguísticos que lhe permitiram evoluir
cognitivamente, mesmo na ausência de uma língua. Para Stobäus e Bussab (2009, p. 129) “o
gesto de apontar funciona como item léxico, referindo-se ao objeto e combina-se com outros
gestos construindo uma sentença mental de forma estruturada”. Isso foi observado na criança.
Sua comunicação era feita preferencialmente pelo gesto de apontar. Entretanto, ainda não era
suficiente para que adquirisse aprendizagens mais complexas. Compreendeu-se que a falta de
118
atenção da criança e a ausência de uma língua comum entre ela e seus pais impedia seu avanço
em termos de desenvolvimento global, estendendo-se para as interações em seu meio ambiente,
sobretudo, no grupo familiar.
A presença do pai de Alice nos atendimentos permitiu uma visão diferenciada dos
momentos de apoio e orientação familiar. Raramente um pai acompanhava seu filho na educação
precoce. Normalmente eles alegavam falta de tempo porque trabalhavam e não podiam deixar o
serviço para ir à escola do filho. Isto retrata a antiga ideia de que cabe ao homem, como chefe de
família, a função de mantenedor e à mãe, a de educadora. Todavia muitas mudanças ocorreram e
hoje se compreende o pai “como alguém que tem um papel importante com relação aos cuidados
dispensados ao seu bebê, bem como no plano emocional e de relação”. Assim, “o pai, tal qual a
mãe, também necessita ser valorizado nas suas funções paternas” (ANDRADE, 2002). Este era
exatamente o objetivo da professora quando convidou o pai de Alice para participar dos
atendimentos. Além de valorizar sua função como pai, era necessário sinalizar para ele que a
educação da filha deveria ser partilhada entre o casal, uma vez que o modelo apresentado pela
sua família permitia essa divisão de papeis. Andrade (2002, p. 169) diz que “as mudanças que
ocorreram e continuam ocorrendo no seio da família levam o homem a participar cada vez mais
dos cuidados dispensados a seu bebê”. E o pai de Alice tinha se proposto a isso ao aceitar o
convite da professora. Era necessário esclarecer para ele que o trabalho de apoio e orientação
familiar não tinha o objetivo de ensinar aos pais a educar seus filhos, mas, sim, a partir de um
diálogo “trazer algum conhecimento técnico para que possa ser confrontado com o saber dos pais
e das famílias” (MAMEDE, 2002).
Diante da professora estava um homem jovem interessado em “aprender” a lidar com
sua filha. Isso poderia ser traduzido como “aprender a se comunicar” com Alice. Ele a carregava
no colo da mesma forma que a mãe. Ela, como sempre, bem arrumada retratava os cuidados que
seus pais tinham com sua aparência física. No entanto, diferente da mãe, falou sobre seus
sentimentos mais íntimos e dúvidas quanto ao futuro da filha. A professora soube por ele que sua
tia tinha sido, também, aluna do INES, mas que ele nunca sentiu vontade ou curiosidade em
conhecer a Instituição. Segundo ele, essa escola, antes, estava muito distante de sua realidade.
O pai de Alice falou de suas inúmeras perdas demonstrando grande dor. Uma delas
estava relacionada com a gravidez inesperada e o casamento precoce, quando sua namorada tinha
dezesseis anos e ele dezenove. Ambos estudavam, mas ele precisou abandonar seus estudos e
119
procurar um emprego. Era um trabalho que não correspondia aos seus sonhos. O primeiro filho
nasceu e, de acordo com o pai de Alice, o casal ficou muito feliz. Vieram as dificuldades
financeiras, e sua esposa precisou trabalhar fora. Quatro anos depois ela engravidou outra vez.
Mais uma vez ficaram felizes com o novo bebê. Sua tristeza maior foi quando receberam o laudo
de surdez. Isso não significava apenas a perda daquela criança risonha e que convidava toda a
família para uma brincadeira. Nesse momento, diante de tais lembranças, o pai de Alice chorou e
depois pediu desculpas à professora como se isso fosse um grave erro. Na cultura ocidental, a
maioria dos homens foi treinado desde a infância para não chorar. Todavia, o carinho com que a
professora observou aquela cena demonstrava que aquele era um momento importante e
necessário e que ele poderia chorar e tentar (re)significar seus sentimentos. Depois desse dia, em
vários outros ele também chorou.
O pai de Alice falou para a professora-pesquisadora que a surdez da filha o lembrava
que sua avó, bastante idosa, tinha receio de que ao morrer ninguém quisesse cuidar de sua filha,
que, por ser surda, vivia isolada do restante da família. Os familiares alegavam não saber se
comunicar com ela. Frederico acrescentou que a família julgava ser um problema somente da
avó, por isso, nunca ajudaram esta senhora e mantiveram-se distantes daquela surda. Agora ele
estava vivenciando a mesma situação.
Nos primeiros atendimentos, o trabalho se dividia entre as atividades elaboradas para
a criança e para apoiar e orientar o pai de Alice. Diante de sua própria história de vida este pai
demonstrava reconfortado durante estes momentos. Desse modo, ele foi se aproximando e
participando dos atendimentos com mais interesse. Desejava conhecer um pouco daquele mundo
e vivenciar a paternidade. Assim, brincava e participava com a filha das atividades propostas
pela professora. No entanto, dizia que em casa não sabia brincar com ela porque Alice batia no
irmão e não sabia brincar com ele. De acordo com suas palavras, ele brincava com o filho mais
velho. E não deixava que ela se aproximasse do vídeo game porque poderia quebrá-lo. Segundo
o depoimento do pai, num dia em que ele se distraiu, Alice tentou pegar no jogo, deixando-o
cair, quebrou o “brinquedo”. A professora perguntou qual a sua reação naquele momento, e ele
disse que colocou a criança de castigo, mas que ela resistiu e não ficou. Então ele bateu nela. Ele
havia comprado o jogo para o filho, mas os dois brincavam juntos. A professora sugeriu que,
quando os dois fossem jogar, seria bom convidar Alice para participar, colocando-a próxima a
ele. O pai respondeu com firmeza que a criança não sabia brincar e iria quebrar o jogo, outra vez.
Ele completou dizendo que ficou muito aborrecido e que teve um gasto, que não poderia ter, para
consertar o vídeo game. Era necessário dizer para este pai que Alice gostaria de participar da
brincadeira com os dois e que isso seria muito bom para ela, uma vez que “o fazer junto, o fazer
120
Na escola Alice desenvolveu uma autonomia que ainda não era suficiente para torná-
la independente de seus pais. Dessa forma, interagia com crianças e adultos, todavia, mantendo-
se próxima aos pais ou distanciando-se por um período mínimo, considerado pela professora
como sendo um período de tempo muito curto para sua faixa etária. Esse comportamento não
121
permitia que Alice concluísse suas brincadeiras ou atividades em que estava envolvida. Isso
demonstrava também, a necessidade de adquirir outras aprendizagens que a fizessem
compreender que sua separação seria momentânea. Talvez por imaturidade emocional, seu
desenvolvimento global tenha sofrido interferências que a impediam de adquirir aprendizagens
mais complexas.
Segundo os pais, Alice continuava a bater no irmão e nas outras crianças,
aparentemente sem motivos; a quebrar os objetos ao pegá-los, sem autorização e, mais grave, as
pessoas do círculo familiar não queriam ficar com ela, alegando não saber conversar com a
criança. Suas declarações apontaram para a dificuldade da criança na área social se refletindo na
qualidade de suas interações. Provavelmente, porque seus pais não estavam sabendo lidar com a
criança, e a comunicação entre eles ainda era bastante precária. Para Mamede (2002, p. 489) “a
palavra é o elemento de mediação principalmente entre as pessoas e a criança” e esta autora
acrescenta que “pensamento e palavra formam uma unidade dinâmica na prática social da
linguagem”. Ao se tratar de criança surda, entendeu-se que o termo utilizado como palavra pode
ser empregado, não apenas como a modalidade oral da língua materna, mas também como a
língua de sinais e todos os signos não verbais.
No desenvolvimento cognitivo, Alice demonstrou ter alcançado algumas
aprendizagens que se refletiam em seu comportamento. Ao final do ano letivo, ela combinava
objetos por atributos. Alice estava ainda na fase da inteligência prática, ou seja, seu pensamento
se desenvolvia através da ação e percepção, porém, já começava a participar de operações mais
complexas. Para Vigotski (2008, p. 86) existe uma fase em que “a criança começa a operar com
conceitos, a praticar o pensamento conceitual antes de ter uma consciência clara da natureza
dessas operações”. Alice estava nesse período intermediário.
Ela ainda não empilhava cubos de diferentes tamanhos e nem conseguia montar
quebra-cabeça de até doze partes. Essas atividades eram realizadas através do ensaio e erro. Ao
agrupar ou montar os objetos, a criança estava realizando aquilo que Vigotski (idem, p. 74)
explica em sua pesquisa dizendo que “o grupo é criado ao acaso, e cada objeto acrescentado é
uma mera suposição ou tentativa; outro objeto o substitui quando se prova que a suposição
estava errada”. Alice estava vivenciando uma fase do pensamento infantil chamada de
„sincretismo‟. Vigotski (ibidem) acrescenta ao seu pensamento que “na percepção, no
pensamento e na ação, a criança tende a misturar os mais diferentes elementos em uma imagem
desarticulada, por força de alguma impressão ocasional”. Alice demonstrou ter alcançado essa
fase de desenvolvimento.
122
Todavia, a professora observou que apesar dessas respostas, Alice poderia estar em
uma fase mais complexa de aprendizagem se não fosse sua atitude voluntariosa. Nesse caso, era
necessário apontar para os pais as aprendizagens conquistadas, mas alertá-los de que a criança
tinha um potencial que poderia estar além. Um dos motivos do pouco resultado em seu
desenvolvimento poderia estar na falta de uma língua comum entre os familiares.
Alice adquiriu algumas aprendizagens relacionadas ao seu desenvolvimento
linguístico. Assim, a criança demonstrou compreender as propostas de atividades apresentadas
pela professora e no momento das atividades Alice podia aceitá-las ou recusá-las, escolhendo
outra. Isso também fazia parte das estratégias pedagógicas, nas quais o objetivo da professora era
oferecer oportunidades para que a criança aprendesse a escolher e a recusar, além de
compreender em quais momentos isso seria possível. Compreendeu-se que a criança estava
abstraindo e generalizando quando assim agia e, consequentemente, antecipando situações. Alice
compreendia, também, algumas ordens simples dentro da rotina de sala de aula, mas que,
segundo seus pais, já estava começando a transferir essas aprendizagens para outras situações
fora do ambiente escolar. Este era o objetivo do trabalho pedagógico. Todavia, a comunicação da
criança ocorria através de gestos naturais e expressão corporal, tanto no nível da compreensão
quanto da expressão. Alice passou a expressar-se, também, através das mudanças fisionômicas
entre os dois extremos: ou sorria ou chorava.
Quando contrariada, chorava esperando ser atendida imediatamente, porque sabia
que assim ela iria conseguir o que queria. Essa era a forma que ela tinha para manipular os seus
pais, buscando, talvez, uma maneira de ser vista por eles, ou seja, chamando-lhes a atenção de
forma negativa. Ao ser avaliada pedagogicamente, Alice estava com três anos e oito meses. As
aprendizagens adquiridas por ela tiveram relevância para seu desenvolvimento global, mas não
foram suficientes, considerando-se sua faixa etária.
as perdas por CMV; exceto pelo fato de ser neurossensorial, a perda pode variar de leve a
profunda, atingindo os dois ouvidos ou um só ouvido” (INES, 2003, p. 21). A audiometria de
Gabriel apontava uma perda neurossensorial, com grau severo, para ambos os ouvidos. Através
da comparação entre alguns exames de sangue que a mãe havia feito durante o pré-natal e outros
feitos depois que o bebê nasceu, suspeitou-se que a perda auditiva tinha ocorrido entre o quarto e
quinto mês de gravidez. Todavia, nesse período, a mãe havia apresentado alguns sintomas que
indicavam a presença do Citomegalovírus. Segundo ela o médico, naquela época, confirmou o
contágio, mas não lhe deu nenhuma informação sobre os perigos para o bebê. Continuando com
o questionário pedagógico, ao responder se havia caso(s) de doença(s) genética(s) na família, a
mãe disse ter pessoas na sua família com síndrome de Down, hidrocefalia e problemas mentais.
Sobre quem observou que a criança era surda, a mãe respondeu que foram os pais
porque, após o nascimento, o bebê não tinha reação para os sons. Ao ser questionada se o bebê
se “assustava” ou acordava na presença de barulhos fortes, a mãe respondeu que não. Essas
respostas confirmavam que o bebê nasceu surdo. Além disso, sobre o período pós-natal, a mãe
disse que, na maternidade, logo após receber o bebê em seus braços, observou que Gabriel não
tinha unhas nos dedos dos pés e nem das mãos. Isso a fez buscar outros atendimentos para seu
filho, além do pediátrico. A mãe completou dizendo que a criança estava sendo acompanhada
por uma equipe de neurologistas e geneticistas, sem que houvesse ainda um laudo médico que
confirmasse a causa da surdez. Ou seja, a criança nasceu surda, mas a causa ainda estava sendo
investigada. Ao ser perguntada se a criança já teve ou estava tendo algum atendimento
especializado, quando entrou para o INES, ela respondeu que a criança tinha fisioterapia e
hidrocinesioterapia, pois, segundo ela, Gabriel apresentava hipotonia ao nascer.
Ao contrário do caso anterior, as respostas da mãe sobre o primeiro ano de vida do
bebê foram quase todas negativas, confirmando que criança era surda desde aquele período. Na
área do desenvolvimento psicomotor, a mãe disse que o bebê não sustentava a cabeça e não se
sentou na época esperada. Sobre se a criança havia engatinhado, a mãe disse que começou a se
arrastar e depois a engatinhar após o décimo mês de vida. Ela completou suas respostas dizendo
que Gabriel levantou se apoiando nos objetos com um ano e meio de vida. Continuando, disse
que a criança não pegava os objetos que estavam ao seu alcance; não batia palminhas, imitando
outra pessoa; e que não lembrava se a criança procurava os objetos que sumiam de seu alcance
visual.
Sobre o desenvolvimento sócio-afetivo, as respostas da mãe indicaram que a criança,
em seu primeiro ano de vida, tinha poucas experiências com pessoas fora de seu núcleo familiar,
limitando-se às interações com seus pais. Isso impediu que Gabriel ampliasse suas experiências
124
nessa área e aprendesse com outras pessoas. Ela completou dizendo que o pai brincava muito
com Gabriel, mas que o deixava fazer tudo que queria. Assim, ao responder se a criança ficava
no colo de pessoas fora de seu núcleo familiar, a resposta da mãe foi negativa. Talvez por não ter
tido a oportunidade de vivenciar experiências com outras pessoas fora do seu núcleo familiar e
não apenas porque não escutava, Gabriel passou a brincar sozinho, e, assim, de acordo com a
declaração da mãe, o comportamento da criança fez com que o confundissem com um autista. A
mãe declarou que Gabriel não tinha outra criança que pudesse brincar junto com ele. Tinha
irmãos, mas não moravam com ele.
Questionada se Gabriel compreendia os rituais da casa, como do banho, da
alimentação e da hora de dormir, a mãe respondeu negativamente e completou dizendo que a
criança apenas chorava e lhe puxava quando tinha algum desejo ou necessidade. A mãe de
Gabriel demonstrava grande preocupação com a criança e procurava formas mais corretas para
cuidar de seu filho. Para Winnicott (1983, p. 70) a preocupação, em um sentido positivo, “indica
o fato de o indivíduo se importar, ou valorizar, e tanto sentir como aceitar responsabilidade”. E
isso a mãe demonstrou desde o início, ao dizer que procurou na internet as informações sobre o
caso de seu filho e que sempre procurou por atendimentos que pudessem auxiliar no
desenvolvimento dele. Entretanto, ao longo dos atendimentos, observou-se que suas
preocupações excediam-se e estavam impedindo que Gabriel se desenvolvesse plenamente. Esse
comportamento podia ser justificado, em parte, pela falta de orientação sobre o potencial da
criança e o que ela, como mãe, poderia fazer para estimular a criança em suas primeiras
aprendizagens. Apesar de ter acumulado diversas informações, elas não eram suficientes para
que aprendesse a lidar com seu filho surdo.
Quando chegou à educação precoce, em junho de 2009, Gabriel estava com dois anos
e dez meses. Já sabia andar, mas era carregado no colo. Gabriel usava fraldas. Segundo a mãe,
em casa, a criança não usava. Além disso, ele “brincava” com os seios da mãe que dizia ter
pouco leite. Ela se incomodava com isso porque dizia que Gabriel só queria dormir e completou
dizendo que se ela não o permitisse Gabriel “arrancava sua roupa”, mesmo na rua ou na
condução. Isso foi constatado em sala de aula, quando a criança interrompia suas brincadeiras
para ser amamentado.
A criança olhava os brinquedos da sala de aula demonstrando interesse, mas não saía
do colo da mãe: queria brincar sozinho e no colo dela. Durante o atendimento, Gabriel batia e
“chutava” a mãe sempre que contrariado. Ela justificava dizendo que seu filho era assim porque
o pai fazia todas as vontades dele. Outro comportamento não adequado da criança era jogar no
chão tudo que se encontrava ao seu alcance. Assim, fazia, também, com os brinquedos que a
125
professora colocava em cima da mesa. E a mãe de Gabriel dizia que, ao fazer isso, ele queria que
alguém pegasse e lhe devolvesse para que pudesse jogar de novo no chão. Sempre que Gabriel
fazia isso, ele olhava ou para a mãe ou para a professora, que o repreendia, orientando a mãe
para fazê-lo também em casa. A professora observou que Gabriel compreendia quando estava
sendo repreendido e que sua atitude era de desafiar a mãe. Existe uma fase em que toda criança
joga os objetos que estão em suas mãos para experimentar diversas situações, entre elas a própria
separação e aproximação do objeto. Pela idade de Gabriel, ele já estaria vivenciando outras fases
mais complexas e, para isso, ele deveria adquirir outras aprendizagens para prosseguir em seu
desenvolvimento.
Dessa forma, um trabalhado feito tanto pela mãe quanto pela professora, utilizando-
se da mesma linguagem, permitiria uma melhor compreensão de Gabriel que, assim, conseguiria
modificar tal comportamento. Esse aprendizado envolveria a questão do limite. Sobre o limite
que é dado pelo adulto, Winnicott (1983, p. 69) diz que “sem deixar a área abrangida pela
palavra amor, verificaremos que uma criança necessita de firmeza na orientação, precisando ser
tratada como a criança que é e não como um adulto”. Os trabalhos de orientação para a mãe de
Gabriel foram direcionados nesse sentido. Além disso, a criança precisava desenvolver uma
autonomia que lhe garantisse a aquisição de outras aprendizagens além daquelas trazidas para a
escola. Com relação à idade com que Gabriel se encontrava, Brazelton (1990, p. 67) diz que “a
maioria das crianças é basicamente independente”. Entretanto, a professora observou o contrário,
Gabriel ainda não tinha um bom equilíbrio no seu caminhar; não tinha adquirido bons hábitos
alimentares e ainda não tinha deixado de usar fraldas, principalmente, durante o dia.
Naquela idade ele ainda era bastante dependente de sua mãe. Paín (1985, p. 70) diz
que “o organismo é possibilidade, mas também limite; o limite produz dependência caso não seja
compensado adequadamente em outros níveis da competência”. Esta autora acrescenta que
muitas vezes “a superproteção materna é causa de dependência, portanto, de perturbação na
aprendizagem” e isso ficava claro na relação de Gabriel com sua mãe. A professora observou que
ao iniciar os atendimentos, Gabriel não se alimentava porque a mãe lhe dava o seio quando ele
queria, apesar de se entender que naquele período o leite materno não sustenta a criança em suas
necessidades nutricionais. Gabriel não se vestia e nem se calçava porque sabia que a mãe correria
para fazê-lo, alegando ser mais rápido; o menino não controlava os esfíncteres porque ele sabia
que a mãe trocaria suas fraldas, imediatamente. Talvez, todas essas atitudes estariam refletindo
uma forma de manter sua mãe junto dele. Paín (1985, p. 38) diz que “tem-se apontado a
superproteção como causa de déficit na aprendizagem. Na realidade não é a superproteção como
atitude o que inibe a aprendizagem. A criança se defende contra ela e reinventa seu direito à
126
independência”. Mas as atitudes da mãe, que para ela era uma demonstração de amor, estavam
limitando seu filho e, assim, diminuindo suas oportunidades de experiências, interações e
aprendizagens mais complexas, ou seja, interferindo em todo seu desenvolvimento.
A mãe contou que o pai de Gabriel brincava muito com ele, mas nunca o contrariava;
fazia-lhe todas as vontades. Aos poucos a mãe foi contando sobre seu relacionamento difícil com
o marido: que eles já haviam se separado diversas vezes, mas que, em seguida, o pai de Gabriel
retornava para casa, mantendo as mesmas atitudes com a criança, ou seja, não o contrariando.
Neste caso, o menino não ouvia, mas compreendia e participava de tudo que se passava em seu
ambiente, através da linguagem não verbal. A situação de conflito que existia entre o casal estava
interferindo no desenvolvimento emocional de Gabriel que, não ouvindo, absorvia as mensagens
de forma fragmentada e externalizava seus sentimentos sobre aquela situação através de
comportamentos negativos. A escola poderia intervir em alguns desses comportamentos, porém
outros caberiam apenas aos pais. Tais comportamentos estavam ligados ao processo de
autonomia da criança. A partir de algumas mudanças, a criança poderia adquirir uma
independência relativa para sua faixa etária e, ao mesmo tempo, melhorar a forma de interação
com seus pais.
Paín (1985, p. 28) afirma que “a maioria das crianças conserva o carinho dos pais
gratificando-os através de sua aprendizagem, mas há caso nos quais a única maneira de contar
com tal carinho é precisamente não aprender”; assim, compreendeu-se que “a não-aprendizagem
não é o contrário de aprender, já que como sintoma está cumprindo uma função positiva tão
integrativa como a dessa última, mas com outra disposição dos fatores que intervêm”. Seria
necessário que, através da intervenção precoce, tanto Gabriel quanto sua mãe entendessem esse
processo de aprendizagem. Além disso, era importante que a mãe compreendesse o quanto
Gabriel já havia aprendido, mas era, também, importante que ele prosseguisse nesse processo.
Nesse sentido, ele teria que ser mais independente. A independência da criança não significaria
seu afastamento dos pais.
momento em que o adulto diz “não”, muitas vezes. Nada mais lógico que ela repita o “não” de
formas diferenciadas em substituição à fala. Segundo a mãe, Gabriel tirava os objetos do lugar e
os jogava ao chão. Assim, ela dizia “não” para a criança o dia inteiro. Ele não estava ouvindo a
palavra, mas estava vendo suas expressões faciais e suas atitudes diante daquele seu
comportamento. Vigotski (2008, p. 85-86) afirma que “a comunicação verbal com os adultos
torna-se um poderoso fator no desenvolvimento dos conceitos infantis”. Como resultado, Gabriel
adquiriu o conceito da palavra “não”. Portanto, quando ele jogava algum objeto no chão, olhava
para a mãe porque estava antecipando suas reações e a palavra “não” que seria dita por ela. Para
ele isso era um jogo, que, entretanto, não lhe permitia avançar para outras aprendizagens. Era
necessário que adquirisse outros conceitos. Gabriel era capaz de adquiri-los assim como qualquer
outra criança surda. Era necessário, porém, convencer a mãe a interromper aquele jogo que se
estabeleceu entre eles e oferecer outras experiências para seu filho. Para Vigotski (2008, p. 86),
“a criança começa a operar com conceitos, a praticar o pensamento conceitual antes de ter uma
consciência clara da natureza dessas operações”. Nas interações que Gabriel mantinha com seus
pais, ele foi adquirindo o conceito da palavra “não”. Quando chegou à escola, demonstrou que
tinha este conceito bem estruturado e o empregava de acordo com suas vontades. A importância
da mãe e da professora compreenderem que Gabriel adquiriu tal conceito estava em entender
que, a partir daquele ponto, a criança poderia adquirir outros. Segundo Vigotski, (2008, p. 86)
“esta situação genética peculiar não se limita à aquisição de conceitos; mais que uma exceção, é
a regra no desenvolvimento intelectual”.
Várias estratégias pedagógicas foram elaboradas com o objetivo de oferecer noções
de limites para Gabriel, uma vez que a palavra “não” também estava ligada a essa questão. Além
disso, objetivava-se sua independência. Portanto, Gabriel não poderia mais andar no colo de sua
mãe; não deveria mais ser amamentado por ela; deveria ir junto com outras crianças para o
refeitório, alimentando-se de comidas sólidas, nas mesinhas, utilizando os talheres como elas.
Foram processos muito longos a que a mãe não conseguiu dar prosseguimento. No início,
quando a professora começou a acompanhá-los nas refeições, Gabriel batia na mãe e jogava a
comida no chão. Ela disse que ele não comeria e não quis mais participar da atividade. A criança
continuou entrando nos atendimentos sendo carregado pela mãe, em seu colo, e sempre que
terminava o atendimento, antes de ir para casa, Gabriel era amamentado porque, segundo a mãe,
evitaria se aborrecer com a criança, dentro do ônibus. Como essas mudanças dependeriam da
colaboração da mãe, não somente na escola, mas também em casa, a professora julgou que seria
melhor para a criança naquele momento buscar outras alternativas que atingissem os mesmos
objetivos: a autonomia da criança e sua compreensão de alguns limites sociais. Da mesma forma
128
que a mãe foi orientada a iniciar tais mudanças, a professora a orientou sobre a retirada da fralda.
De início ela resistiu, mas, vendo que a criança estava colaborando, ela conseguiu levá-lo para a
escola sem fraldas. Um dia comentou, muito feliz, que o filho estava de short. Isso foi muito
bom para os dois. Foi um grande passo para a autonomia de Gabriel. A criança apresentou
mudanças positivas; no entanto, quando estava avançando em seu desenvolvimento, rumo à
independência, seus pais se separavam e Gabriel voltava a chorar e a bater na mãe. Ela
justificava que, quando o pai saía de casa, Gabriel sentia muito sua falta. Não muito tempo
depois, o pai retornava. Mas saía de casa outra vez. Essa situação não permitiu que Gabriel
avançasse de acordo com o seu potencial observado pela professora durante os atendimentos.
Nesses momentos de separação de seus pais, Gabriel nitidamente fazia um caminho
inverso daquele que vinha fazendo através de suas interações na educação precoce e retrocedia
até um período anterior de desenvolvimento, querendo “satisfazer seus desejos imediatamente”
(VIGOTSKI, 2007, p. 108). Para este autor, nesse período de vida “normalmente, o intervalo
entre um desejo e a sua satisfação é extremamente curto”. Isso se opõe ao período escolar em
que “surge uma grande quantidade de tendências e desejos não possíveis de serem realizados de
imediato” (idem). Gabriel certamente teria dificuldades para enfrentar essas frustrações diante
das situações de desequilíbrio emocional em que se encontravam seus pais e que o atingiam
diretamente. A fragilidade estava instalada em seu meio ambiente: Gabriel voltava a ser aquele
bebê que chorava e vinha de colo para a escola. Nesses períodos, ele não aceitava nenhuma
atividade sugerida pela professora. Então, as orientações se voltavam para buscar novas formas
de atuar com a criança e com o problema emocional instalado em seu meio ambiente.
Entretanto, sua mãe estava tão fragilizada que ela começava a falar sobre sua vida
íntima, e a professora, ouvindo-a, entendia que mais que uma intervenção pedagógica para
Gabriel era importante, naquele momento um apoio psicoterápico para sua mãe. Todavia, não
havendo esse profissional que a atendesse, Gabriel adquiriu as aprendizagens muito lentamente;
não conseguindo uma autonomia própria, retornou àquela aparência de um bebê.
129
Várias pesquisas indicam que a surdez sugere a redução ou incapacidade para ouvir
alguns sons. Uma perda significativa de audição interfere na possibilidade de o indivíduo
identificar, localizar e discriminar os sons. Desse modo, segundo o INES (2003, p. 55), “crianças
que apresentam desatenção, dificuldades de compreensão quando estão distante do falante,
desligamento, alterações fonéticas e problema de aprendizagem, podem indicar sinais de perda
auditiva”.
Na sala de aula, Gabriel pegava os brinquedos e escolhia um canto para brincar
sozinho. A professora, em alguns momentos, se aproximava dele procurando entrar na
brincadeira. Gabriel se afastava dela procurando outro espaço. Ela tentava a aproximação,
oferecendo outros objetos que pudessem interessar à criança e, assim, adquirir sua atenção.
Entretanto, outras vezes a professora deixava que Gabriel explorasse os brinquedos, sem
interferir. Foram vários atendimentos assim. Enquanto brincava, vocalizava. Por causa desse seu
comportamento, segundo sua mãe, ele foi confundido com uma criança autista.
O autismo é uma síndrome que se caracteriza “pela interação social precária,
distúrbios de comunicação e da linguagem e padrões atípicos de comportamento”. Segundo
pesquisa feita com uma criança autista, as características apresentadas por ela indicavam
“prejuízo qualificado na interação social recíproca [...], ausência de comunicação (fala),
comunicação não verbal severamente comprometida e ausência de atividades imaginativas e
repertório de interesses restritos [...]” (NUNES et al, 2007, p. 168-169).
De acordo com as declarações da mãe de Gabriel ao iniciar no INES, antes desse
período a criança tinha alguns comportamentos que poderiam ser identificados como os de uma
criança autista por aqueles que desconhecem a surdez e algumas características da criança surda.
Sobre tais comportamentos, ao responder o questionário pedagógico, pode-se identificar alguns
deles, todos apontando para uma perda auditiva desde o nascimento, além de falta de
experiências sociais. Assim, ao ser questionada se o bebê chorava na presença de pessoas
estranhas, ela respondeu que não; no entanto, respondeu que Gabriel não ficava no colo de
pessoas estranhas. Essas respostas podem indicar uma falta de vivência com pessoas fora de seu
núcleo familiar, que, no caso, se resumia aos seus pais. Isso foi confirmado depois pela mãe.
Além disso, a mãe respondeu que a criança tem irmãos, mas que não brinca porque não tem
contato com eles. Depois as respostas da mãe indicaram que Gabriel, no segundo e terceiro anos
de vida, passou a brincar e interagir com crianças e adultos fora de seu ambiente familiar.
Entretanto, eram poucos os momentos de interações fora de casa e Gabriel começou a criar suas
130
próprias brincadeiras. A mãe de Gabriel afirmou que ele preferia brincar com seus carrinhos, não
tendo interesse por outros brinquedos.
Quanto à área da comunicação, por ter nascido surdo, Gabriel não respondia aos
estímulos sonoros e, portanto, não se virava quando chamavam seu nome e não emitia sons sem
significado. Mais tarde, segundo a mãe, Gabriel passou a emitir sons enquanto brincava. A mãe
assinala que depois que entrou para o INES começou a se interessar pelos desenhos infantis, na
televisão, o que antes não lhe despertava atenção. Essa mudança de comportamento, na maioria
das vezes, aponta que a criança surda adquiriu atenção visual necessária para acompanhar as
imagens da televisão e, assim, compreender o conteúdo do programa. Antes, tendo a atenção
dirigida bastante reduzida, os programas, mesmo aqueles contendo temas próprios de sua faixa
etária, não lhe despertavam o interesse.
Desse modo, um dos objetivos do atendimento pedagógico com a criança foi
trabalhar sua atenção e oferecer a Gabriel oportunidades de interagir com outras pessoas fora de
seu ambiente que, inicialmente, seria somente a professora. Foram-lhe oferecidos brinquedos e
objetos variados. Nos primeiros atendimentos, Gabriel quis os carrinhos da sala de aula e
brincava sozinho. Nessa atividade, ele vocalizava. Entretanto, a professora observou que muitas
aprendizagens estavam presentes. Paín (1985, p. 53), falando sobre a avaliação psicopedagógica
diz que “o mais importante é notar até que ponto a criança toma o objeto como tal, o diferencia e
o relaciona com os outros e em que medida acata as leis do objeto e as diferencia e as aproveita
para desenvolver as suas”. A mãe dizia que ele sempre brincou sozinho em casa e que ela não via
nenhum problema nisto. As observações da professora-pesquisadora em relação às brincadeiras
desenvolvidas por Gabriel também indicavam bom desenvolvimento da criança nessa atividade.
Mesmo sem desejar partilhar da brincadeira com outras pessoas, Gabriel demonstrava
criatividade, portanto, um bom desenvolvimento cognitivo. Assim, ao brincar sozinho, a criança
estava indicando sua falta de vivências sociais e, ao vocalizar durante suas brincadeiras, estava
repetindo aquilo que a maioria das crianças fazem nessa época, que é utilizar-se da fala
egocêntrica.
Segundo Paín (1985, p. 54), “algumas crianças com problemas de aprendizagem não
são capazes de fazer a síntese cognitiva porque destroem o jogo no momento em que está mais
organizado [...]”. Isso não ficou caracterizado no caso de Gabriel. Na sala de aula havia alguns
quebra-cabeças com seis, nove e doze peças; e outros, com dezesseis, vinte e cinco e quarenta e
nove peças. A professora descobriu que a criança se interessava por esta atividade e inicialmente
lhe apresentou o jogo que continha o número menor de peças. Gabriel não olhava para a
professora, mas começou a procurar montá-lo de forma que, experimentando as peças, conseguia
131
encaixá-las através do ensaio e erro. Nessa atividade, ele também se utilizava da fala egocêntrica.
Nas primeiras vezes, desmontava o jogo logo assim que terminava de montá-lo. Porém, com o
passar do tempo, não o desmontava mais e observava os detalhes dos desenhos ou figuras que
tinham se formado. Portanto, a ação de montar e desmontar não sugeria nenhuma dificuldade da
criança, principalmente, na área cognitiva.
Algumas vezes a professora deixava que ele concluísse a atividade sem interferir no
processo. Outras vezes, mesmo que a criança não estivesse olhando, a professora fazia gestos
naturais indicando se Gabriel tinha acertado ou não com a peça escolhida por ele, com a intenção
de iniciar um diálogo entre os dois. De início, a criança, ainda não olhando para a professora,
completava o quebra-cabeça menor e, em seguida, desmontava-o misturando suas peças. Depois
passou a deixá-lo montado e procurava outro para montar e colocá-los juntos. Gradativamente,
Gabriel passou a olhar para a professora. Nessa atividade, também havia a produção de sons. A
criança estava se utilizando da fala egocêntrica. Segundo Vigotski (2008, p. 166) a fala
egocêntrica “não se limita a acompanhar a atividade da criança; está a serviço da orientação
mental, da compreensão consciente; ajuda a superar dificuldades; é uma fala para si mesmo,
íntima e convenientemente relacionada com o pensamento da criança”. Assim, compreende-se
que durante suas brincadeiras, enquanto vocalizava, Gabriel estava se organizando cognitiva e
emocionalmente. Durantes as atividades com o quebra-cabeça, a criança adquiriu muitas
aprendizagens, principalmente aquelas ligadas à experiência com o objeto. Gabriel, na segunda
etapa, passou a montar os quebra-cabeças de dezesseis peças, sem o auxílio da professora, e os
de vinte e cinco peças, com o auxílio dela.
Quando Gabriel passou a fixar mais seu olhar no olhar da professora, passou a
vocalizar menos e a prestar mais atenção aos gestos apresentados por ela, repetindo-os. Além
disso, procurava manter os jogos montados e resistia quando a professora dizia que tinha
acabado e que era o momento de guardá-los. Este era, também, um dos objetivos das atividades
da educação precoce. Os jogos com quarenta e nove peças, que apresentavam maior dificuldade,
não despertaram o interesse da criança que, ao vê-lo em cima da mesa, fazia um gesto de
negação, misturava as peças e as guardava na caixa. Isso demonstrou, também, que Gabriel
começava a utilizar-se de formas mais complexas de comunicação. Gradativamente, a criança
deixou de vocalizar em suas atividades para interagir com a professora caracterizando uma nova
fase de seu desenvolvimento.
Para Winnicott (1983, p. 224), “a brincadeira é também um dos métodos
característicos da manifestação infantil – um meio para perguntar e pra explicar”. Talvez pela
falta de uma língua comum entre Gabriel e a mãe e buscando explicações para o conflito que se
132
instalou em seu ambiente familiar, ele tenha encontrado na fala egocêntrica explicações e
respostas para os conflitos dos quais vivenciava, mas que não compreendia porque não ouvia.
Além disso, ao vocalizar, talvez Gabriel estivesse, segundo Winnicott (1983, p.147),
com seus “imaginários companheiros de brincadeiras” que, “derivados de um mundo interior e,
entretanto, mantidos momentaneamente num plano externo à personalidade, por alguma boa
razão” e que “são inteiramente reais para as crianças”. Para se entender esse período pelo qual a
maioria das crianças passa, haveria a necessidade de se conhecer o mundo infantil e suas
diferentes fases, além de compreender a surdez e as potencialidades da criança surda. Tais
conhecimentos evitariam os enganos a respeito da criança surda. Winnicott conclui seu
pensamento sobre a brincadeira da criança dizendo: “estimulemos a capacidade de brincar da
criança [...] e se ela gostar de brincar, tanto sozinha como na companhia de outras crianças, não
há qualquer problema grave à vista”.
Para Winnicott (1983, p. 220), o papel da professora de crianças pequenas deve estar
bastante estruturado e ocorrer bem próximo da família, principalmente da mãe. Dessa forma “o
seu dever é, antes, manter, fortalecer e enriquecer as relações pessoais da criança com a própria
família, apresentando simultaneamente um mundo mais vasto de pessoas e oportunidades”. Além
disso, esse autor acrescenta que “a lealdade ao lar e o respeito pela família são fundamentais na
manutenção de relações firmes entre a criança, a professora e a família”. Em cada avanço que
observava em seu filho ou que a professora sinalizava, ela demonstrava felicidade. Sua
dedicação como mãe era recompensada pelas mudanças que o filho apresentava. A mãe de
Gabriel manteve uma frequência muito boa nos atendimentos. Entretanto, fragilizada em sua
vida emocional, Abgail não estava conseguindo ajudar seu filho no processo de independência.
Porém, essa mãe estava sempre atenta e pronta para ir com o filho a todos os lugares que lhe
indicavam, visando o melhor atendimento para ele.
Para ela era muito importante saber a causa da surdez do filho. Por um lado tinha a
presença do citomegalovírus, confirmado através de exame de sangue dela e do bebê. Além
disso, existia a desconfiança de alguma síndrome dentro de sua família. Mesmo sabendo que
seus familiares nunca concordariam com uma investigação genética, Abgail não deixava de
comparecer às consultas do neurologista e do geneticista. Segundo o INES (2003, p. 12), “o
aconselhamento genético é frequentemente dado aos pais que tiveram uma criança com
problemas e que estão interessados em conhecer o risco de terem outra criança com as mesmas
133
características”. No caso da mãe de Gabriel, seu interesse era saber se a surdez do filho tinha
alguma ligação com os problemas apresentados dentro da família de seus pais.
Outra preocupação de Abgail era que sua fragilidade emocional, devido à
instabilidade de seu casamento, estava interferindo no desenvolvimento global de Gabriel. Por
isso, em muitos momentos da orientação familiar, ela falava sobre a vida do casal. Era uma
situação em que a professora não poderia intervir, pois eram decisões que caberiam apenas ao
casal. Ainda assim, poder falar sobre isso com alguém estava lhe fazendo muito bem. Ela se
sentia verdadeiramente apoiada durante os atendimentos pedagógicos, na educação precoce.
Ao finalizar o período da educação precoce, esta mãe reconheceu que houve uma
evolução no desenvolvimento do filho; porém, acreditava que a instabilidade emocional
vivenciada por Gabriel tornou seu desenvolvimento mais lento e o impediu de avançar em seu
processo de autonomia. Mesmo assim, considerou-se que ela, fazendo algumas mudanças em sua
própria vida, colaborou com as aprendizagens que o filho adquiriu nesse curto espaço de tempo
em que esteve na educação precoce.
Para Winnicott (1983, p. 220-221), “desde o momento da entrada da criança na
escola, pela primeira vez, relações sinceras e cordiais entre a professora e a mãe servirão para
suscitar um sentimento de confiança na mãe e de tranquilidade na criança”. Além disso:
O estabelecimento de tal relação auxiliará a professora a localizar e
compreender aquelas perturbações, em suas crianças, que resultem de
circunstâncias familiares e, em muitos casos, facultará oportunidades para que a
professora ajude as mães a terem maior fé em si mesmas como mães.
(WINNICOTT, 1983, p. 220-221).
de ir ao banheiro, encaminhando-se, em seguida, para o local correto. Além disso, não sentiu
mais necessidade de ser amamentado na hora de dormir ou enquanto estava na rua com sua mãe.
Também começou a tentar se vestir e se calçar sem ajuda.
Paín (1985, p. 38) diz que “tem-se apontado a superproteção como causa de déficit
na aprendizagem. Na realidade não é a superproteção como atitude o que inibe a aprendizagem.
A criança se defende contra ela e reinventa seu direito à independência”. Em seis meses de
atendimento, a relação de Gabriel com sua mãe não apresentou grandes mudanças a ponto de
permitir que a criança adquirisse independência própria de sua faixa etária. Entretanto, Gabriel
pôde demonstrar algumas mudanças em seu comportamento que indicam as aprendizagens
adquiridas por ele.
Gabriel iniciou os atendimentos na educação precoce logo após ser matriculado, em
junho de 2009, com dois anos e dez meses. Ao término da pesquisa, a criança estava com três
anos e quatro meses. Ficou na educação precoce apenas seis meses. Isso significou um tempo
muito curto para que pudesse ocorrer uma mudança significativa, principalmente levando-se em
conta a história de vida da criança. Entretanto, a professora avaliou que, no caso de Gabriel, seria
melhor que ele continuasse seu processo de aprendizagens junto com outras crianças surdas,
pois, assim, poderia brincar com elas e aprender nas brincadeiras. Para Vigotski (2007, p.119) “a
criança, ao querer, realiza seus desejos. Ao pensar, ela age. As ações internas e externas são
inseparáveis: a imaginação, a interpretação e a vontade são processos internos conduzidos pela
ação externa”. Naquele momento a professora avaliou que Gabriel estava precisando desse tipo
de experiência.
4. Discussão geral
falta significativa de experiências, como foi apontado por Furt em suas pesquisas na década de
1960 e sinalizada nesta pesquisa em sua metodologia.
As conclusões acima revelaram outro fator significativo relacionado com a idade em
que as crianças iniciaram o atendimento pedagógico e com o tempo em que ficaram na educação
precoce. Não se objetivou realizar um estudo comparativo entre as três. Todavia, concluiu-se que
Alice e Gabriel, mesmo sendo mais velhos, apresentaram ritmo mais lento de aprendizagem do
que Helena. Esse fato provavelmente é resultante de problemas relacionados com o desequilíbrio
emocional que dificultaram as interações deles com seus familiares. Esta comparação permitiu
compreender que nenhuma das crianças iniciou a educação precoce logo após o laudo de surdez,
teve e que este fato pode ter sido um indicador para as defasagens apresentadas em seu
desenvolvimento global. As três crianças, em suas interações familiares, já tinham adquirido
algumas aprendizagens anteriores ao processo escolar, e a escola, como mediadora, através da
sistematização do ensino especializado na área da surdez, ofereceu experiências que favoreceram
novas aprendizagens a partir daquelas trazidas de casa.
Desta forma, pode-se compreender que a criança surda tem a capacidade de adquirir
as mesmas aprendizagens que a criança ouvinte, a partir de um ambiente suficientemente bom,
construído tanto na família quanto na escola em seus primeiros anos de vida. Para Winnicott
(1977, p. 146), a criança “começa a criar um mundo interior e pessoal, em que batalhas são
ganhas e perdidas, um mundo em que a magia se conserva em equilíbrio oscilante”. Este autor
faz um convite irrecusável para o trabalho de educação precoce com crianças surdas:
“estimulemos a capacidade de brincar da criança” (idem, p.147). Winnicott conclui seu
pensamento sobre a importância da brincadeira apontando que é através dessa atividade que a
criança constrói uma base segura para suas aprendizagens futuras. Isso não pode ser negado à
criança surda. Segundo este autor:
Suas brincadeiras revelam que essa criança é capaz, dado um ambiente
razoavelmente bom e estável, de desenvolver um modo de vida pessoal e,
finalmente, converter-se num ser humano integral, desejado como tal e
favoravelmente acolhido pelo mundo em geral. (WINNICOTT, 1977, p. 147).
generalizar resultados otimistas para todos os casos” (CEIV, 1982, p. 45). Tais conclusões
puderam ser reafirmadas neste estudo.
A conclusão final a que se chegou nesta pesquisa reforçou um conceito que esteve
presente para a professora-pesquisadora em seus atendimentos, ao longo desses anos, com
crianças surdas nessa faixa etária, apontando que nesse período de vida elas adquirem muitas
aprendizagens, salvo aquelas que, além da perda de audição, apresentavam outras perdas
relacionadas com a cognição. Entretanto, mediante uma necessidade interna que a maioria dos
ouvintes desenvolve, tais aprendizagens ficam invisíveis na ausência de uma língua oral. Assim,
para muitos, o desconhecimento sobre a surdez não permite que se visualizem outras
aprendizagens.
Surge, então, outro objetivo deste trabalho e que tem tanta importância quanto os
delimitados inicialmente: apontar para os familiares e para todos aqueles que queiram trabalhar
com criança surda, nesta faixa etária, que existem aprendizagens que podem ser adquiridas por
essas crianças através de interações suficientemente boas e que estão relacionadas com o período
não verbal, ou seja, antes mesmo que ela comece a falar ou a utilizar a língua de sinais.
Reconhecendo suas aprendizagens, podem-se reconhecer os ganhos da criança surda, no nível
cognitivo e emocional. O mundo da criança surda é o mesmo mundo infantil: dinâmico em sua
constituição como a própria criança. Neste mundo as crianças surdas podem rir e brincar. Podem
chorar e elaborar seus sentimentos. Podem aprender criativamente, utilizando-se da fantasia, da
imaginação e da criatividade.
138
IV CONSIDERAÇÕES FINAIS
8
A Lei 12303, de 2 de agosto de 2010 “torna obrigatória a realização gratuita do exame denominado Emissões
Otoacústicas Evocadas, em todos os hospitais e maternidades, nas crianças nascidas em suas dependências”.
http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/1024360/lei-12303-10
140
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
BRAZELTON, T. Berry. Ouvindo uma criança. Tradução: Wilson Roberto Vaccari. 1ª ed.
brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 1990. (Psicologia e Pedagogia).
CORIAT, Elsa. Psicanálise e clínica de bebês. Tradução Julieta Jerusalinsky. Porto Alegre:
Artes e Ofícios Ed., 1997.
CORIAT, E., JERUSALINSKY, J. (Orgs). Escritos da criança. Centro Lydia Coriat. nº. 1, 2ª
ed. Porto Alegre, 1997.
CUNHA, Iole da. Neurobiologia do vínculo. In: CORRÊA FILHO, Laurista, CORRÊA, Maria
Elena G. e FRANÇA, Paulo Sergio (Orgs.). Novos olhares sobre a gestação e a criança até 3
anos: saúde perinatal, educação e desenvolvimento do bebê. Brasília: L.G.E., 2002. p. 353-387.
DIDONET, Vital. A criança de 0 a 3 anos – uma história de caso e descaso. In: CORRÊA
FILHO, Laurista, CORRÊA, Maria Elena G. e FRANÇA, Paulo Sergio (Orgs.). Novos olhares
sobre a gestação e a criança até 3 anos: saúde perinatal, educação e desenvolvimento do bebe.
Brasília: L.G.E., 2002. p. 78-90.
DOLLE, Jean-Marie. Para compreender Jean Piaget. Trad. Álvaro Cabral. Nova edição
atualizada. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1995.
GLAT, Rosana. A integração social dos portadores de deficiência: uma reflexão. 3ª ed. Rio de
Janeiro: 7 Letras, 2004.
GUIRANDELLI Jr., Paulo. História da educação. 2ª ed. revisada. São Paulo: Cortez, 1992.
(Coleção Magistério – 2º grau. Série Formação do Professor).
__________. O modelo educacional bilíngue no INES. Espaço. Rio de Janeiro, nº 18/19, p. 102-
105, dez 2002 – jul 2003.
MARCHESI, Álvaro. Comunicação, linguagem e pensamento das crianças surdas. In: COLL,
Cézar; PALÁCIOS, Jesus e MARCHESI, Álvaro (Orgs.): Tradução: Marcos A. G. Domingues.
Desenvolvimento psicológico e educação: necessidades educativas especiais e aprendizagem
escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
MAZOTTA, Marcos. Educação especial no Brasil: história e políticas públicas. São Paulo:
Cortez, 1995.
NASCIMENTO, Ana Lucia do. Estratégias pedagógicas na educação precoce do INES. In:
INES: 150 ANOS NO CENÁRIO DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA. 26 a 28 de setembro de
2007. Anais do VI Congresso Internacional e XII Seminário Nacional do INES. Rio de
Janeiro: INES; Divisão de Estudos e Pesquisas, 2007. p. 170-176.
NORTHERN, Jerry L., DOWNS, M. P. Audição em crianças. Trad. Maria Lucia M França
Madeira [et. al.]; 3. ed. São Paulo: Manole, 1989.
NUNES, Leila Regina d‟Oliveira de P. et al. Comunicação alternativa e autismo: isto dá samba?
In: NUNES, Leila Regina d‟Oliveira de P., PELOSI, Myriam B., GOMES Márcia R. (Orgs). Um
144
PAÍN, Sara. Diagnóstico e tratamento dos problemas de aprendizagem. Tradução: Ana Maria
Netto Machado. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.
QUADROS, Ronice M. de, SCHMIEDT, Magali L. P. Idéias para ensinar português para
alunos surdos. Brasília: MEC/ SEESP, 2006.
RIZZINI, Irma, CASTRO, Monica Rabello de, SARTOR, Carla Silvana D. Pesquisando: guia
de metodologias de pesquisa para programas sociais. Rio de Janeiro: USU Ed. Universitária,
1999. (Série Banco de Dados - 6).
__________. Instituto Nacional de Educação de Surdos. Espaço, nº 27, p. 76-77, jan/jun 2007.
Edição especial comemorativa dos 150 anos do INES.
SOARES, Magda. Linguagem e escola: uma perspectiva social. 11ª ed. São Paulo: Ática, 1994.
SPITZ, René A. O primeiro ano de vida. Tradução: Erothildes Millan Barros da Rocha.
Revisão: Monica Stahel. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
VIGOTSKI, L. S. Pensamento e linguagem; trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins
Fontes, 2008.
WINNICOTT, D. W. A criança e o seu mundo. Tradução: Alvaro Cabral. 4ª ed. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1977.
146
APÊNDICE (S)
A – QUESTIONÁRIO PEDAGÓGICO
EDUCAÇÃO PRECOCE / FAMÍLIA (Instrumento utilizado pelo INES e adaptado por Ana
Lucia do Nascimento: Junho-agosto de 2009 para pesquisa de mestrado/UNIGRANRIO).
As repostas abaixo serão de extrema importância para que o trabalho desenvolvido com a
criança tenha o máximo de êxito; sendo assim, pedimos que sejam dadas com a maior
imparcialidade, visando o melhor aproveitamento do aluno durante as atividades planejadas
para ele. Tal questionário será mantido na pasta do aluno apenas para ser consultado pelos
profissionais que o atendem na Educação Precoce.
I – Histórico da surdez:
II – Histórico familiar:
1 Houve alguma intercorrência que apontasse uma suspeita de surdez no bebê, durante algum
desses períodos? ___________________________________________________________
2 Se afirmativo, o que ocorreu? _________________________________________________
3 Como a família foi orientada? ________________________________________________
4 Sabe o valor do APGAR de seu filho? __________________________________________
5 Há alguma observação relevante para nossos atendimentos pedagógicos que queira nos dizer
e que tenha ocorrido em um desses dois períodos? ________________________________
- Desenvolvimento psicomotor:
- Desenvolvimento sócio-afetivo:
- Desenvolvimento psicomotor:
- Desenvolvimento sócio-afetivo:
___________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
Data: __________________________________________________________________
Responsável: ___________________________________________________________
Professora: _____________________________________________________________
151
B – AVALIAÇÃO PEDAGÓGICA
EDUCAÇÃO PRECOCE / ALUNO (Instrumento utilizado pelo INES/adaptado por Ana Lucia
do Nascimento: Junho-agosto de 2009 para pesquisa de mestrado/UNIGRANRIO).
I – Desenvolvimento da linguagem
- Linguagem compreensiva:
- Linguagem expressiva:
b) A criança:
II – Desenvolvimento sócio-afetivo:
1 Procura objetos que tenham sido retirados de seu campo visual? ______________________
2 Retira objetos de um recipiente? ______________________________________________
3 Coloca objetos no recipiente, imitando o adulto? _________________________________
4 Combina objetos semelhantes? _______________________________________________
5 Empilha cubos de diferentes tamanhos? ________________________________________
6 Vira páginas de um livro, uma de cada vez? _____________________________________
7 Monta um quebra-cabeça de quatro, seis, nove e doze partes? ________________________
8 Monta um quebra-cabeça de dezesseis e vinte cinco partes? __________________________
IV – Desenvolvimento psicomotor:
V – Autonomia:
___________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
Data:__________________________________________________________________
Responsável:____________________________________________________________
Professor:______________________________________________________________
153
ANEXO A
Ao _______________________________________________
Atenciosamente,
Pesquisador(a):
_______________________________
Professor(a) Orientador(a):
________________________________
154
ANEXO B
(Observação: O TCLE deve ser impresso em duas cópias, ficando uma delas sob
responsabilidade do Pesquisador Coordenador e a outra sob a guarda do participante)