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A luz do bem e o brilho do belo: aproximações entre o Fedro e a República?

(notas e esboços)
Rafael Costa (EA/UFPA)
Resumo: Nosso propósito é refletir sobre as condições de cognoscibilidade e inteligibilidade
para Platão, com ênfase no ver e no visível como imagens para o conhecimento e a intelecção,
a partir do contexto discursivo da luz do bem (República VI) e do brilho do belo (Fedro).

– tal como deve haver homologia entre os fogos do dia, dos olhos e dos objetos, para que a
visão ocorra efetivamente.

1. Nosso propósito é relacionar os conceitos de bem, belo e ser, a partir da imagem da luz e do
brilho, no entrecruzamento dos diálogos República (a luz do Bem) e Fedro (o brilho do Belo).

2. A luz do bem é a verdade, como condutora da razão, como paradigma do que deve ser
buscado para o conhecimento legítimo, o paradigma da inteligibilidade.

3. Importante considerar que no registro inteligível, a Forma do bem é a condição da verdade e


da cognoscibilidade das demais Formas. E no campo da experiência, no campo do sensível, são
as imagens do belo (pelo modo como nelas o belo se acha presente) que funcionam, mais do
que quais quer outras imagens, como o ponto de partida para a reminiscência [Platão enxerga
na experiência da beleza algo mais do que um prazer puramente sensível; enxerga um prezar
inteligível, a possibilidade do despertar da inteligência pela via do desejo]. Considerar também,
junto com Hyland, que o objeto belo, ou a experiência que ele proporciona, revelam-nos a
verdade (alethéia) como evidenciação [desvelamento], como um objeto que se dá direta [e
imediatamente] à apreensão.

4. A verdade e o conhecimento são semelhantes à Forma do bem, mas não são idênticas a ela.
[Em que sentido são semelhantes, verdade e conhecimento, à Forma do bem?].

5. Desde o início do livro VI da Rep. a verdade (alethéia) é posta como condutora, seja à
sabedoria, à beleza ou à bondade, ela funciona como uma espécie de guia (natural) da alma
filosófica por natureza, embora também seja o resultado da aproximação e união da parte
similar ao ser, desta alma, com o ser que realmente é.

6. Desde o fim do livro V, quando precisa definir com clareza quem são e os que não são os
filósofos, Platão traça uma intrincada rede entre conhecimento (uma vez que essa distinção é
posta em termos cognitivos fundamentalmente, mas num, igualmente intrincado, jogo com o
desejo), ser e verdade. Sendo importante frisar, que a verdade é posta como um objeto, ou o
objeto propriamente, de desejo do filósofo e sua guia, seu condutor.

Os filósofos são aqueles que têm afeição (desejo) pela contemplação da verdade. A
contemplação da verdade está relacionada com a existência das Formas (contemplar a verdade
é apreender uma Formas, ou as Formas e seu Princípio). A inteligência (diánoia) do filósofo é
capaz de ver (idên) a natureza (physin) do belo (e dos demais objetos) e ligar-se a ela
afetivamente (apasasthai). Conhecer pressupõe a capacidade de distinção entre as coisas belas
e o belo em si. O conhecimento corresponde ao pensamento daquele que reconhece a diferença
entre as coisas belas e o belo em si e, uma vez isto reconhecido, é capaz de ver a natureza do
belo (o belo em si) e ligar-se a ela afetivamente (deleitar-se, comprazer-se com ela). A ciência
(episteme) tem por objeto o ser (tó ón), conhecer (gnonai) o que é o ser (esti tó ón). Platão
começa esse trecho pondo conhecimento e opinião e depois passa a opor ciência e opinião. A
ciência e a capacidade de conhecimento do que é o ser. [Perguntas importantes: o filósofo se
liga afetivamente a essa visão? Apenas sua inteligência se liga afetivamente a essa visão? Essa
ligação afetiva é com a visão da natureza do objeto (a visão de sua Forma), ou coma própria
natureza?].

7. No livro V, o símile do conhecimento é a visão na vigília, enquanto que o da opinião é a


visão no sonho. Já no início do livro VI, o símile do conhecimento é a visão 484e. [Sabedoria,
conhecimento, ciência, verdade].

8. [Verificar] Ao falar do símile do sol, Platão nos diz que a verdade e o conhecimento são
semelhantes ao bem, tal como a luz e a visão são semelhantes ao sol.

9. O nous [olho] é o órgão da alma em que se dá a epistéme [visão]. A epistéme não é o bem
[como a vista não é o sol] e nem o nous [como a vista também não é o olho]. Mas, dentre os
órgãos da alma, o nous é o mais semelhante ao sol [como o olho é o órgão dos sentidos mais
semelhante ao sol].

10. [República IV 507b] Em oposição ao que é considerado como múltiplo (as muitas coisas
belas, boa etc.), é preciso, para se falar de ciência, conhecimento, verdade e do Bem, considerar
os objetos, cada um deles, em relação a uma ideia única, ideia essa a que damos o nome de
essência (ou ser, ou o que é) – ou seja, a marca da aparência é a multiplicidade, enquanto que a
da essência, ou daquilo que é, é ser considerado segundo uma ideia única. Considerar um objeto
segundo uma ideia única (katha’idean mían), reunir na unidade a multiplicidade, é o que
caracteriza a intelecção, o conhecimento da essência, a ciência como conhecimento daquilo que
é. Nesse sentido, ao afirmar que a Forma do bem é a causa do ser e da verdade das demais
Formas (ela faz com que cada Forma seja aquilo que é [o estin]), a questão seria compreender
de que maneira a Forma do bem permite com que as demais Formas se constituam como aquilo
que é, ou seja, constituam-se, cada uma, como uma ideia única. Assim, também, podemos, de
algum modo indicar em que sentido a verdade e a ciência se assemelham sem se confundir com
o bem, pois, de alguma maneira ambas participam de unidade da multiplicidade; são
responsáveis, do ponto de vista do sujeito cognoscente, de suas capacidades, no caso da ciência
que é uma capacidade humana, de conferir, de algum modo, ou de representar essa ideia única
que é o que caracteriza aquilo que é, e é, justamente, a condição de sua inteligibilidade e,
portanto, de sua cognoscibilidade.

11. A visão (capacidade), o olho e a visão em si (o ato/estado de ver) não são o sol, mas são
semelhantes a ele; o olho é o órgão mais semelhante ao sol, a visão, como capacidade, é algo
que o olho possui em virtude de um fluxo do sol.

12. [Rep. VI, 508b] Não sendo o sol a visão (como capacidade), mas a causa dela é visto por
meio da própria visão? Não sendo o bem a ciência (capacidade de conhecimento do ser), mas a
sua causa, não seria visto por meio dela?

13. [Rep. VI, 508b-c] Tal como o sol está em relação ao olho e à visão, o bem está em relação
à inteligência e às coisas inteligíveis. Portanto, o bem não é a inteligência, mas ela é semelhante
a ele, e os seus objetos, os objetos inteligíveis, são iluminados pelo bem.

14. Importante frisar que, embora remetida à questão maior de justificar o governo dos
filósofos, toda a teoria a metafísica (teoria do conhecimento, epistemologia e ontologia) dos
livros centrais da República tem, como ponto de partida textual, por assim dizer, a questão de
explicar que os filósofos são aqueles que gostam de contemplar a verdade (philotheamonas
aletheias). Explicar o que é desejar, ou aspirar, à contemplação da verdade é o que abre espaço
para a metafísica central da Politéia. Aspirar, ou gostar de contemplar a verdade é ligar-se
afetivamente à contemplação da natureza dos seres.

15. Comecemos por considerar que o recurso à visão como imagem do conhecimento, nos
coloca em face da questão da luz e do brilho do objeto, conhecido é o objeto que brilha aos
olhos da alma – mas o que isso significa?
16. Assim como a luz atrai e, portanto, direciona o olhar, a verdade, como a luz que emana do
Bem e ilumina aquilo que é plenamente cognoscível, atrai a inteligência e, portanto, direciona-
a; ou seja: a luz, como o Bem, de que ela deriva, exerce uma função diretiva, conducente, ela
possui uma função modelar, paradigmática.

17. Comecemos pro frisar que, de modo geral, ao falar da verdade, Platão fala das Formas ou
dos seres que realmente são (ou o ser que realmente é); dizendo que a planície da verdade é o
lugar do ser que realmente é, ou dizendo que contemplar a verdade é conhecer o que é o ser,
conhecer sua essência.
18. A luz do bem e o brilho do belo são, num caso e no outro, a verdade, e é por isso que o
desejo do filósofo se dirige sobremaneira para esses objetos dos quais emana a luz, pois deles
o aparecimento é como que a própria verdade.
19. O que há de semelhante entre bem, ciência e verdade e formas (ou essências)? A unidade
da multiplicidade. Na ciência, a unidade da multiplicidade é compreendida como a constituição
formal da intelecção; na verdade, a unidade da multiplicidade é compreendida como o
paradigma do que deve ser apreendido para que haja conhecimento e inteligência; no caso das
Formas, a unidade da multiplicidade é compreendida como o seu ser ou essência, a estrutura
ontológica da Forma, seu modo autêntico de aparecimento ao intelecto.

## Buscamos refletir sobre as condições de cognoscibilidade e inteligibilidade, para Platão, a


partir da imagem de que aquilo que serve como condição ou ponto de partida para a
cognoscibilidade e para a inteligibilidade, seja uma Forma, no caso dos livros centrais da
República com o bem, seja uma aparência (cuja participação na Forma que lhe determina possui
uma condição especial), no caso das imagens da beleza no Fedro, é fonte de luz (a Forma do
bem), ou brilha (imagens da beleza), ou brilha com mais intensidade que os demais objetos com
os quais se acha em comunhão (a Forma da beleza e mesmo as imagens do belo). Ainda mais,
a ideia de esse brilho ou luz constitui a verdade, ou ao menos um indício seu; o que significa
que isso que emana luz ou brilha oferece ao sujeito cognoscente um modelo (paradeigma), ou
ao menos uma espécie de orientação do órgão cognitivo da alma. Ainda mais, esse brilho, esse
aparecimento que não se ofusca por nada, que é pleno, aponta também para uma afinidade,
familiaridade e semelhança entre o objeto e o sujeito cognoscente, entre o objeto e a parte da
alma a que cabe o seu conhecimento.

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