Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
66 | 2014 :
I Guerra Mundial, Globalização e Guerra Total
Dossier: I Guerra Mundial, Globalização e Guerra Total
Resumo
Em 1914, ano da eclosão da Grande Guerra, com excepção da Etiópia, da Libéria e da
União Sul Africana, que eram independentes, da Líbia e de Marrocos que não tinham
sido ainda «formalmente conquistados», o resto do continente africano encontrava-se já
ocupado e dividido entre o Reino Unido, França, Alemanha, Portugal, Espanha, Itália e
Bélgica.
Este artigo procura fazer uma síntese da importância de África no contexto da Grande
Guerra, analisando o respectivo contributo humano e material para o conjunto da
beligerância europeia. O texto focará ainda algumas das razões por trás da entrada do
continente africano na I Guerra Mundial, e conclui com uma síntese em torno das
repercussões sociais, políticas e económicas trazidas pelo conflito às relações Europa-
África, e que, em suma, servem para compreender o modo como o continente se foi
«moldando» por forma a conseguir satisfazer os interesses das potências colonizadoras,
durante a guerra.
In 1914 when the Great War started, with the exception of Ethiopia, Liberia, and the
Union of South Africa, which were independent, Libya and Morocco which had not yet
been «formally conquered», the remaining continent found itself already occupied and
divided between the U.K., France, Germany, Portugal, Spain, Italy and Belgium.
This article attempts to summarize the importance of Africa in the context of the Great
War, analyzing its human and material input on the entire European belligerence. The
paper will focus also some of the reasons behind the entry of the African continent in
World War I, and concludes with a synthesis on the social, political and economic
impact brought by the conflict to the Europe-Africa relations, and that, in short, allow us
to understand how the continent «shaped» itself in order to satisfy the interests of the
colonial powers during the war.
Entradas no índice
Mots-clés : Afrique, guerre, globalisation, mondialisation
Keywords : Africa, war, globalization, mobilization
Texto integral
1 Em 1914, ano da eclosão da Grande Guerra, com excepção da Etiópia, da
Libéria e da União Sul Africana, que eram independentes, da Líbia e de
Marrocos que não tinham sido ainda «formalmente conquistados», o resto do
continente africano encontrava-se já ocupado e dividido entre o Reino Unido,
França, Alemanha, Portugal, Espanha, Itália e Bélgica. O Reino Unido era
então o mais importante poder imperial em África, não apenas em termos de
extensão territorial e população mas, também, porque exercia controlo sobre as
principais rotas comerciais na região situada a sul do Sahara1.
2 Esta nova expansão do império britânico tinha sido iniciada na década de 70
muito por acção do primeiro-ministro Benjamin Disraeli. O chefe de governo
britânico tinha avançado com o argumento de que era necessário conquistar
novos mercados para garantir o escoamento dos produtos das fábricas inglesas,
defendendo, perante a opinião pública, a ideia do império como garante da
hegemonia metropolitana. Foi este argumento que foi apresentado, logo em
1815, para justificar o direito de soberania britânica na colónia do Cabo, já que
o território era considerado essencial para salvaguardar a defesa das rotas
comerciais entre a Grã-Bretanha e a Índia. O primeiro ministro francês e
apoiante do colonialismo, Jules Ferry, utilizou o mesmo argumento, em
França, na década de 80 do século XIX, argumentando que os interesses
estratégicos e económicos, especialmente a necessidade de obter mercados
para os produtos da indústria francesa, tornavam imperativa a aquisição de
mercados coloniais.
3 Falar de África nas origens da Grande Guerra, implica por isso uma reflexão
em torno das características específicas do sistema económico mundial durante
a «Bélle Époque» e das interdependências que, a partir do fim das guerras
napoleónicas, começaram a marcar as relações entre a Europa e o resto do
Mundo, é nesse sentido que devemos olhar para África, como uma região que,
gradualmente, se foi tornando estrategicamente importante. Por isso mais do
que controlar/garantir o acesso a determinadas matérias primas a principal
preocupação dos governos europeus era conseguir conquistar novos mercados,
ainda que, na maioria das vezes, não conhecessem ao certo, e em rigor, o
respectivo potencial futuro. Neste sentido, Karl Marx, e depois dele J.A.
Hobson e até mesmo Lenine, estavam certos ao apontar a busca global de
mercados como um elemento estratégico do capitalismo industrial europeu.
Por esta altura assistimos à construção da primeira «economia global»
integrada, assente num sistema de trocas que incorporava já as partes mais
remotas do planeta. Importa por isso sublinhar a forma como essa
«integração» económica, gradual, do continente africano na economia global,
acabou por ficar marcada por três questões fundamentais: (i) a crescente
rivalidade militar entre a Inglaterra, a Alemanha e a França (ii) a necessidade
de, na sequência da Guerra Civil americana, a Europa encontrar novas fontes
de abastecimento de algodão e (iii) a tentativa de, através da procura de novos
mercados, se superarem alguns dos impactos da depressão económica europeia
de 1873-1896. África era nas palavras de Leopoldo II da Bélgica «a magnificent
cake which would yield up resources and wealth for Europe»2.
4 Pelo menos nesta fase inicial, o interesse e o empenho do Estado
na promoção da expansão ultramarina em África não foi acompanha-
do de igual ambição por parte da iniciativa privada que só começou a despertar
para o potencial do continente na década de 90 do século XIX. É comum
associarem-se três grandes marcos a esta segunda partilha de África:
Notas
1 Andrew D. Roberts, «Introduction» in A.A.V.V., The Cambridge History of Africa
c.1905-c.1940, (Ed.) A.D. Roberts, Vol. 7, Cambridge, Cambridge University Press, 1986,
p. 3.
2 Cf. Pádraig Carmody, The New Scramble for Africa, Cambridge, Polity Press, 2011.
3 Ver em particular: Godfrey N. Uzoigwe, «Partilha europeia e conquista da África:
apanhado geral» in AA.VV., História Geral da África. África sob dominação colonial,
1880-1935, Vol. VII, (Ed.) Albert Abubochen, Brasília, Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura/Ministério da Educação do Brasil, 2010, pp. 21-
50.
4 Idem, p. 42.
5 Cf. Andrew D. Roberts, «The Imperial Mind» in A.A.V.V., The Cambridge History of
Africa c.1905-c.1940, (Ed.) A.D. Roberts, Vol 7, Cambridge, Cambridge University Press,
1986, p. 27.
6 German Colonialism and National Identity, (ed.) Michael Perraudin and Jurgen
Zimmerer, New York, Routledge, 2010, p. 3. Ver também, Alice Conklin, A Mission to
Civilize: The Republican Idea of Empire in France and West Africa, 1895-1930,
Stanford, Stanford University Press, 1997.
7 Cf. John McCracken, «British Central Africa» in A.A.V.V., The Cambridge History of
Africa c.1905-c.1940, (Ed.) A.D. Roberts, Vol. 7, Cambridge, Cambridge University
Press, 1986, p. 603.
8 Walter Rodney, «A economia colonial» in História Geral da África. África sob
dominação colonial, 1880-1935, Vol. VII, (Ed.) Albert Boahen, Brasília, Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, 2010,
p. 379.
9 Matt Stanard, «Digging In: The Great War and the Roots of Belgian Empire,» in
Andrew Tait Jarboe and Richard S. Fogarty, eds., Empires in World War One: Shifting
Frontiers and Imperial Dynamics in a Global Conflict, Londres, I.B. Tauris, 2014, pp.
23-48.
10 C.M. Andrew and A.S. Kanya-Forstner, «France, Africa, and the First World War» in
Journal of African History, XIX, 1978, p. 11.
11 Catherine Coquery-Vidrovitch, «French Black Africa» in A.A.V.V., The Cambridge
History of Africa c.1905-c.1940, (Ed.) A.D. Roberts, Vol 7, Cambridge, Cambridge
University Press, 1986, p. 330.
12 C.M. Andrew and A.S. Kanya-Forstner, France Overseas: The Great War and the
Climax of French Imperial Expansion, London, Thames, 1981.
13 Cf. L.H. Gann and Peter Duignan, The rulers of German Africa, Stanford, Stanford
University Press, 1977, p. 239.
14 Cf. David Stevenson, The Outbreak of the First World War. 1914 in Perspective,
London, Macmillan Press Ltd., 1997, p. 3.
15 Idem, p. 2.
16 Idem, p. 21. Veja-se igualmente Documentos Oficiales relativos a la Guerra Europea
de 1914. Publicados por el Instituto Colonial del Estado de Hamburgo, Hamburgo,
Broschek y Cia., s/d.
17 Cf. David Killingray, «The War in Africa» in The Oxford Illustrated History of the
First World War, Edited by Hew Strachan, Oxford/New York, Oxford University Press,
1998, p. 92.
18 Michael Crowder, «A Primeira Guerra Mundial e suas consequências» in História
Geral da África. África sob dominação colonial, 1880-1935, Vol. VII, (Ed.) Albert
Boahen, Brasília, Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura, 2010, p. 324.
19 Edward Paice, Tip and Run – The Untold tragedy of the Great War in Africa,
Phoenix, Orion, 2010; Daniel Steinbach, «Challenging European Colonial Supremacy:
The Internment of “Enemy Aliens” in German East Africa during the First World War,»
in J. Kitchen, A. Miller, L., Rowe (eds.) Other Combatants, Other Fronts: Competing
Histories of the First World War, Newcastle, Cambridge Scholars, 2011, pp. 153-176.
20 Michael Crowder, «A Primeira Guerra Mundial e suas consequências»..., p. 325.
21 Idem, p. 324.
22 Ross Anderson, The Forgotten Front. The East African Campaign, 1914-1918, Stroud,
2004; Tanja Bührer, Die Kaiserliche Schutztruppe für Deutsch-Ostafrika. Koloniale
Sicherheitspolitik und transkulturelle Kriegführung, 1885 bis 1918, Munique 2011;
Michael Pesek, Das Ende eines Kolonialreichs: Ostafrika im Ersten Weltkrieg,
Frankfurt, 2010.
23 Philip A. Dehne, On the Far Western Front: Britain’s First World War in South
America, Manchester, Manchester University Press, Abril de 2010.
24 Ana Paula Pires, Portugal e a I Guerra Mundial. A República e a Economia de
Guerra, Casal de Cambra, Caleidoscópio, 2011.
25 Ver nomeadamente: John P. Mackintosh, «The role of the Committee of Imperial
Defence before 1914» in The English Historical Review, n.º 304, July 1962, pp. 490-503
e Franklyn Arthur Johnson, Defence by Committee: the British Committee for Imperial
Defence, 1885-1959, London/New York, Oxford University Press, 1960.
26 Sandra Swart, «Men of influence» – The ontology of leadership in the 1914 Boer
Rebellion» in Journal of Historical Sociology, n.º 1, March 2004, pp. 1-30.
27 A.P. Walshe, «Southern Africa» in A.A.V.V., The Cambridge History of Africa
c.1905-c.1940, (Ed.) A.D. Roberts, Vol 7, Cambridge, Cambridge University Press, 1986,
p. 560.
28 Robert Holland, «The British Empire and the War (1914-1918)» in The Oxford
History of the British Empire. The Twentieth Century (Ed.) Judith M. Brown and Wm
Roger Louis, Oxford/New York, Oxford University Press, 1998, p. 118.
29 Cf. Michael Crowder, «A Primeira Guerra Mundial e suas consequências»..., p. 324.
30 Herbert Charles O’Neill, The War in Africa and the Far East 1914-17, Yardley,
Welstholme Publishing, 2013.
31 David Killingray, «The War in Africa»..., p. 101. Ver ainda David Goodman,
«Expediency, Ambivalence, and Inaction: the French Protactorate and Domestic Slavery
in Morocco, 1912-1956» in Journal of Social History, n.º 47, Outono de 2013, pp. 101-
131.
32 Há uma extensa literatura sobre a agitação em África durante a Primeira Guerra
Mundial, ver nomeadamente: George Shepperson e Thomas Price, Independent African.
John Chilembwe and the Nyasaland Rising of 1915 (Edinburgh 1958); T.O. Ranger,
«Revolt in Portuguese East Africa» (St. Antony’s Papers, no. 15, Oxford 1963), 54-80;
Finn Fugelstad, A History of Niger, 1850-1960 (Cambridge 1983); Karen Fields, Revival
and Rebellion in Colonial Central Africa (Princeton, NJ 1985); Mahir Saul and Patrick
Roger, West African Challenge to European Culture and History in the Volta-Bani
Anticolonial War (Oxford 2001); Luc Garcia, «Les mouvements de résistance au
Dahomey, 1914-1917», Cahiers d’études africaines, 10, 1 (1971), 144-178; Hélène
d’Almeida-Topor, «Les populations dahoméens et le recrutement militaire pendant la
première guerre mondiale», Revue française d’histoire d’outre-mer, 60, 2 (1973), p. 196-
241.
33 B. Jewsiewiewicki, «Belgian Africa» in A.A.V.V., The Cambridge History of Africa
c.1905-c.1940, (Ed.) A.D. Roberts, Vol. 7, Cambridge, Cambridge University Press, 1986,
p. 463.
34 Ver em particular, Anne Samson, World War I in Africa: the forgotten conflict among
the European powers, s/l, IB Tauris, July 2012.
35 Anne Samson, World War I in Africa: the forgotten conflict among the European
powers... e Stanard, «Diggin In...»
36 Palavras Claras. Razões da intervenção militar de Portugal na guerra europeia.
Relatório publicado no Diário do Governo n.º 9, 1.ª série de 17 de Janeiro de 1917,
Lisboa, Imprensa Nacional, 1917, p.19.
37 Hew Strachan, The First World War in Africa, Oxford, Oxford University Press,
2004.
38 Michael S. Neiberg, The World War I Reader, s/l, NYU Press, Dezembro de 2006.
39 Sobre esta questão ver nomeadamente a introdução de Miguel Bandeira Jerónimo ao
livro de Andrew Porter: Andrew Porter, O Imperialismo Europeu (1860-1914), Lisboa,
Edições 70, Maio de 2011, p.97 e seguintes.
40 Cf. Michael Crowder, «A Primeira Guerra Mundial e suas consequências»...., p. 325 e
p. 327
41 Cf. Christian Koller, «The recruitment of colonial troops in Africa and Asia and their
deployment in Europe during the First World War» in Immigrants & Minorities, Vol.
26, n.º ½, March-July 2008, pp. 111-133.
42 Hew Strachan, The First World War in Africa...., p. 8.
43 Santanu Das (Ed.), Empire and First World War Writing, Cambridge, Cambridge
University Press, 2011, p. 4.
44 Sobre a composição do exército colonial francês, ver em particular: Richard S.
Fogarty, Race and War in France: colonial subjects in the French Army, 1914-1918,
Baltimore, John Hopkins University Press, 2008; e Marc Michel, L’Appel à l’Afrique:
contributions et réactions àl’effort de guerre en A.O.F. 1914-1919 (Paris 1982).
45 Michael Crowder, «A Primeira Guerra Mundial e suas consequências»..., p. 333.
46 Idem, p. 334.
47 André-Bernard Ergo, Congo Belge: La colonie assassiné, Paris, L’Harmattan, 2008.
48 Cf. David Killingray, «The War in Africa»..., pp. 97-98. Sobre os carregadores em
África durante a Guerra ver ainda, David Killingray, «Beasts of burden: British West
African carriers in the First World War», Canadian Journal of African Studies xii (1979),
pp. 5-23, and «Labour exploitation for military campaigns in British Colonial Africa,
1807-1945», Journal of Contemporary History xxiv (1989), pp. 483-501; Geoffrey
Hodges, Kariakor – The Carrier Corps: The Story of the Military Labour Forces in the
Conquest of German East Africa, 1914-1918 (2nd (rev.) edn., Nairobi, 1997); Donald C.
Savage and J. Forbes Munro, «Carrier corps recruitment in the British East Africa
Protectorate. 1914-1918», Journal of African History vii (1966), pp. 313-42.
49 Idem.
50 Idem, pp. 98-99.
51 Idem.
52 Cf. Andrew D. Roberts, «East Africa» in A.A.V.V., The Cambridge History of Africa
c.1905-c.1940, (Ed.) A. D. Roberts, Vol. 7, Cambridge, Cambridge University Press,
1986, p. 668.
53 Idem.
54 Michael Crowder, «A Primeira Guerra Mundial e suas consequências»..., pp. 339-
340.
55 Andrew D. Roberts, «East Africa»..., p. 668.
56 John McCracken, «British Central Africa»...., p. 621.
57 Cf. Catherine Coquery-Vidrovitch, «French Black Africa»..., pp. 352-353.
58 Idem, p. 353.
59 David Killingray, «The War in Africa»..., pp. 96-97.
60 Idem.
61 Cf. Michael Crowder, «A Primeira Guerra Mundial e suas consequências»..., p. 328 e
p. 330.
62 David Killingray, «The War in Africa»..., p. 101; Kenneth J. Orosz, «For God and
Country: Missionary Service in Colonial Africa During World War I,» in Jarboe and
Fogarty, eds., Empires in World War One, pp. 249-281.
63 Catherine Coquery-Vidrovitch, «French Black Africa»..., pp. 352-353. Ver também
Fogarty, Race and War in France, and Michel, L’Appel à l’Afrique.
64 Cf. A.P. Walshe, «Southern Africa»..., pp. 562-563.
65 Andrew D. Roberts, «East Africa»..., p. 670.
66 Michael Crowder, «A Primeira Guerra Mundial e suas consequências»..., p. 344.
Referência eletrónica
Ana Paula Pires e Richard S. Fogarty, « África e a primeira guerra mundial », Ler
História [Online], 66 | 2014, posto online no dia 20 julho 2002, consultado no dia 28
maio 2018. URL : http://journals.openedition.org/lerhistoria/721 ; DOI :
10.4000/lerhistoria.721
Autores
Ana Paula Pires
IHC-FCSH-UNL
asoarespires@gmail.com
Artigos do mesmo autor
MacMillan, Margaret, A Guerra que acabou com a Paz. Como a Europa trocou a
Paz pela Primeira Guerra Mundial [Texto integral]
Publicado em Ler História, 66 | 2014
Direitos de autor
Ler História está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-
NãoComercial 4.0 Internacional.