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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
DISCIPLINA EPISTEMOLOGIA

Professor: José Carlos Gomes dos Anjos


Discente: Valesca Daiana Both Ames

INVENÇÃO, RESISTÊNCIA E “POLÊMICA”: UM OLHAR SOBRE A CIÊNCIA

Inscrevendo-se em um marco teórico e epistemológico pós-moderno e pós-


estruturalista, este ensaio sugerirá algumas respostas aos questionamentos levantados durante
o transcorrer da disciplina de Epistemologia. As questões que serão aqui discutidas dizem
respeito: 1) a singularidade das ciências frente a outras formas de conhecimento; 2) relação
entre verdade e erro, ou, ainda conhecimento objetivo e política e 3) distinção entre sujeitos e
objetos de pesquisa. As respostas a essas problemáticas seguem Gilles Deleuze e Félix
Guattari; Donna Haraway e, principalmente, Isabelle Stengers e serão articuladas na
conclusão do ensaio, com a finalidade de guiar reflexivamente a posterior construção de um
problema de pesquisa.
Introduzindo e explorando as relações e diferenças entre o que definem como “ciência
régia” e “ciência menor/nômade”, Deleuze e Guattari, em Mil Platôs: Capitalismo e
esquizofrenia, sugerem a ideia de que um devir – definido como um “gênero de ciência” –
perpassa o fazer científico. A “ciência nômade”, portadora do devir, seria inventiva, fluída,
marcada pela heterogeneidade e, por isso, difícil de classificar. Não se definiria por
categorizações, representações da matéria estudada, mas engendraria formas novas de
apreender a matéria, onde esta precederia a forma. A “ciência régia”, por sua vez, teria como
objetivo o estabelecimento de relações causais (leis) entre os fenômenos singulares,
classificando-os segundo suas predefinições e estabelecendo constantes onde anteriormente
tínhamos variáveis (DELEUZE; GUATTARI, 1997).
A ciência nômade, por suas características de heterogeneidade, exerce uma
“pressão/tensão” sobre a ciência régia, ou “de Estado”. Esse “devir revolucionário”,
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transformador, seria constantemente apropriado e disciplinado, ou mobilizado, pela ciência
régia, em um movimento de desterritorialização e reterritorialização. Essa necessidade de
disciplina e controle da ciência nômade relaciona-se a organização do aparelho de Estado e
suas normas, que reprimem a multiplicidade em nome de uma sociedade dividida entre
governantes e governados e é bem demonstrada nesta passagem de Deleuze e Guattari: “o
Estado precisa subordinar a força hidráulica a condutos, canos, diques que impeçam a
turbulência, que imponham ao movimento ir de um ponto a outro, [...] que o fluído dependa
do sólido, e que o fluxo proceda por fatias laminares paralelas”. Portanto, assim como a
fluidez da água é controlada por condutos e diques, a ciência nômade é apropriada e
disciplinada, ou solidificada, pela ciência régia (DELEUZE; GUATTARI, 1997).
Assim, a ciência régia tem como objetivo “resolver” problemas, incluindo-os em seu
“aparelho teoremático”, enquanto a ciência nômade inventa, suscita problemas. Essa distinção
entre ciência régia e nômade é também retomada por Isabelle Stengers, por meio da
diferenciação entre “nômades” e “sedentários”, com a finalidade de discutir a respeito daquilo
que define como “cosmopolítica”.
Segundo Stengers, em sua definição metafórica, política e moderna, aqueles
qualificados como sedentários – ou não modernos – são objetos de desprezo, pois “se aferram
aos territórios existenciais, profissionais ou culturais, e recusam as experiências da
modernidade”, enquanto os nômades (modernos) colocariam suas crenças em risco em nome
dos problemas suscitados pela prática1 (STENGERS, 1999). A crença a respeito da
singularidade dos modernos estaria relacionada à sua suposta autonomia, capacidade de
mobilizar a natureza “tal como ela é”, distinta da política e da moral, por meio da prática
experimental, e falar em seu nome, representá-la, permitindo assim distinguir entre
“verdades” e “ficções” (STENGERS, 2002).
O caráter mobilizador da ciência se estabelece sobre o pressuposto da distinção entre
sujeito e objeto, que supõe o poder do sujeito/cientista capaz de pôr à prova o objeto, em um
local cujas condições são bem definidas, o laboratório científico. É desta distinção que
nasceria o risco, ou seja, a possibilidade de criar uma diferença entre os enunciados, por meio
dos testes experimentais, discriminando ciência e ficção (STENGERS, 2002).

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Segundo Stengers, estas definições estão entrelaçadas, em tensão, definindo-se sempre contextualmente. Em
suas palavras: “não se trata de identificar nômades e sedentários, mas sim, com relação a cada interação dada,
de identificar um contraste em que a inclinação não exceda essa interação” (STENGERS, 1999, p. 99). Quem
aparece como sedentário (não moderno) em uma interação pode ser considerado nômade (moderno) em outros
espaços.
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Esse processo mobilizador não se restringiria ao âmbito dos laboratórios científicos,
mas estende-se para a criação de um mundo que se interesse por aquilo que os cientistas
fazem. Essas estratégias conduzidas pelos cientistas são exemplificadas por Stengers por meio
da retomada da narrativa desenvolvida por Latour sobre o trabalho de um cientista, diretor de
um laboratório em que se identifica um hormônio denominado pandorina (STENGERS,
2002).
Segundo Stengers, a pandorina não existe anteriormente às negociações, promessas e
viagens do cientista-chefe de laboratório, que busca arregimentar o maior número de aliados
possíveis para “fazê-la” existir, acreditando, financiando e apoiando suas pesquisas. No
entanto, a existência da pandorina não depende apenas das estratégias conduzidas pelo
cientista, mas igualmente da sua confrontação com testes severos. A estabilidade social e
natural da pandorina permite que ela seja considerada um “fato”, uma “verdade”, ou, ainda,
“aquilo que conta”, que condena ao mesmo tempo outros saberes como ilegítimos, irracionais
e “fadados a desaparecer” (STENGERS, 2002).
Essa mobilização de elementos conduzida pelos cientistas em uma rede de alianças
locais afirma um poder de “falar” no lugar de outro saber que se cala. Aquilo que não pode ser
verificado, manipulado nos termos padronizáveis dos laboratórios – que separaria humanos e
não humanos, verdade e política – é ignorado. O “erro”, a “irracionalidade” é produto da rede
e aparece nos momentos em que cessam as negociações, em que as “palavras são dirigidas a
atores definidos como ‘incompetentes’, aqueles de quem se fala, aqueles sobre cujas crenças,
temores, exigências se especula, porém no sentido em que são definidos como
‘influenciáveis’, alvo de estratégias e não protagonistas de uma estratégia” (STENGERS,
2002, p. 164). Portanto, aqui se instala um problema político, social e cultural de exclusão de
atores considerados “desqualificados”, disponíveis à ciência em nome do progresso. Ainda
nas palavras da autora:

O problema é, portanto, o dos juízos de valor que permitem a saberes científicos


“sair” dos locais em que são produzidos e pretender responder às questões que
importam não somente aos cientistas, mas a todos os humanos, ou melhor, propor-se
substituir as questões que importam pelas questões que importam aos cientistas
(STENGERS, 2003, p. 01).

Para resistir, modificar essa concepção de ciência autônoma, e resolver o seu


consequente impasse ético e político, sem perder de vista a sua singularidade, Stengers
recupera a imagem – utópica, mas possível – de um “Parlamento das Coisas”, tal como
propõe Latour. O Parlamento das Coisas nos permitiria colocar em comunicação, em relação,
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aquilo que foi distinguido pela “Grande Separação”, como natureza/cultura, sujeitos/objetos
ou conhecimento objetivo e política. Aqui, habitamos o “império do meio”, onde proliferam
os híbridos, representantes de um problema, onde “as naturezas estão presentes, representadas
pelos cientistas, que falam em seu nome. As sociedades estão presentes, mas com os objetos
que as completam desde sempre” (STENGERS, 2002, p. 202; 1999).
No Parlamento das Coisas encontraríamos não a disponibilidade à submissão, que
reduz o diverso ao mesmo, mas o princípio da multiplicidade, onde os representantes de um
problema – cientistas, industriais, trabalhadores e cidadãos – são variados e exigentes, e
participam da invenção das ciências, colocando questões de seu interesse, exigindo
explicitações, impondo condições. Neste espaço, “o que conta” está sendo negociado,
disputado, transformado. Nesse sentido, o Parlamento das Coisas seria o lugar da
heterogeneidade, onde “cada qual ‘se pronuncia’ sobre um ‘quase-objeto que todos criaram’,
mas que só é representado de maneira legítima pela associação heterogênea das práticas
através das quais eles o criaram e que os conecta” (STENGERS, 2002, p. 212-213).
No entanto, Stengers aponta uma dimensão problemática relacionada à imagem de um
Parlamento das Coisas: o nômade está “em casa” neste espaço, pronto para responder a novos
riscos e obrigações, mas está preparado para encontrar-se “com aqueles que se recusam a
cooperar, a jogar o jogo, a interessar-se pelas experiências que correspondem a esses
valores”? (STENGERS, 1999, p. 101). O “silêncio sedentário” também precisa ser ouvido, os
problemas devem ser complicados a fim de suscitar a presença de um maior número de
envolvidos. Para ilustrar a heterogeneidade de representantes com seus problemas e
significados, recuperamos a história contada pela autora a respeito dos três porquinhos e do
lobo mau:

Enquanto as casas dos dois primeiros porquinhos, feitas de palha ou de galhos secos,
constituem apenas soluções fictícias diante da necessidade de “estar protegido”, e
não irão resistir à prova concreta que fará o lobo mau “verdadeiramente” entrar em
ação, a casa do terceiro porquinho, de tijolo e cimento, “resiste de verdade”. Não se
trata, portanto, de se abandonar à ironia relativista que, remetendo toda diferença à
ficção, nos estimula a esquecer que o lobo não está submetido às nossas ficções, ou
seja, a esquecer que nossas práticas devem enfrentar uma realidade que, como o
lobo, as põe efetivamente à prova. Entretanto, antes de ouvir os experts que
discutirão tijolos e cimento, é necessário poder questionar o que a solução tijolos e
cimento considera incontestável, o que a história dos três porquinhos, como história
moral, tem como certo. Não teria sido possível criar outras relações com o lobo? De
que depende a definição do lobo como ameaça, isto é, a definição do problema como
“problema de proteção”? (STENGERS, 2002, p. 210).

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Assim, o Parlamento das Coisas, que não seria moral no sentido de definir uma
“causa” mais digna de ser levada em conta (a solução tijolos e cimento), faria proliferar
distintas interpretações a respeito do problema (o lobo). Aqui, outros lobos são possíveis,
talvez menos destruidores, menos ameaçadores, o que implicaria na possibilidade de
encontrar outras soluções. Desta maneira, Stengers não julga a crença em uma verdade
objetiva, já que é herdeira desta, mas busca meios para a “civilizar”, para que essa crença
possa conviver com aquilo que ela não é, para que possa também ser reinventada com outros
dados, “outras maneiras de colocar os problemas, avaliar as consequências, inventar os
significados” (STENGERS, 2002, p. 217).
Assim, abre-se espaço para ouvir outras vozes que, se contassem, fariam com que
novas articulações fossem possíveis. Nessa imagem, os cientistas não são mais juízes,
representantes legítimos dos fatos, capazes de julgar e desqualificar outros saberes em nome
do progresso. A autonomia da ciência, que a erige em representante legítimo da “natureza”, é
questionada pela autora por meio da modificação do sentido da distinção entre sujeito e objeto
– fruto da Grande Separação –, enfatizando a potencialidade do objeto de pôr à prova o
sujeito. As questões formuladas pelos cientistas interessariam de modos distintos, tanto a eles
quanto ao seu universo pesquisado. O que anteriormente era definido como “objeto de
pesquisa”, intervém ativamente nos resultados da prática científica, por meio de
questionamentos como: “o que este cientista quer de mim?”, recursos de especulação e
autoprodução. “O ‘objeto’, aqui, olha, escuta e interpreta o ‘sujeito’” (STENGERS, 2002, p.
198).
A proposta cosmopolítica de Stengers e seu questionamento a respeito da separação
entre sujeito e objeto de pesquisa é retomada por Donna Haraway em seu artigo intitulado A
partilha do sofrimento: relações instrumentais entre animais de laboratório e sua gente, onde
a autora irá problematizar as relações estabelecidas entre aqueles definidos como humanos –
os cientistas – e não humanos – ratos, camundongos e outros seres que habitam os
laboratórios. Haraway considera que os animais devem ser vistos como respondentes das
perguntas que lhes são feitas pelos cientistas. O reconhecimento de “resposta” dos animais
poderia “ajudar a combater as máquinas de matar”, construindo novas considerações sobre a
vida e a morte humana e de animais, em que “não tornarás matável” passa a ser importante,
em vez de “não irás matar” (HARAWAY, 2011).
Seguindo a imagem cosmopolítica introduzida por Stengers e recuperada por
Haraway, percebemos uma redefinição não apenas do papel do cientista experimental, mas

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igualmente do sociólogo engajado nos estudos em ciência: não se trata de analisar
causalidades sociais ou naturais que supostamente interferem no conteúdo do conhecimento,
mas acompanhar o processo de produção ou invenção deste, como já havia sido proposto por
Latour. Trata-se de “seguir aqueles que se ativam, especulam, se sujeitam a constrangimentos
a que atribuem significações interessantes”, mapeando os seres humanos e não humanos
envolvidos e suas formas de agenciamentos, observando como as redes são mobilizadas,
mantidas ou desfeitas (STENGERS, 2003, p. 142).

Considerações finais

A maneira proposta por Stengers de considerar a prática científica é mais “respeitosa”


do que aquela que busca denunciar a crença (sedentária) dos cientistas em uma “verdade”, tal
como formulado por expoentes do Programa Forte, por exemplo. Definindo a singularidade
das ciências por meio da prática mobilizadora conduzida pelos cientistas em redes
constituídas por atores humanos e não humanos, Stengers possibilita que essa prática seja
diferenciada de outras formas de conhecimento, ao mesmo tempo em que questiona o “poder”
da ciência em “falar em nome de” outros saberes definidos como incompetentes (ou
irracionais). Para resolver esse impasse ético e político, Stengers recupera a imagem de um
“Parlamento das Coisas”, onde os representantes de um problema são variados e articulam-se
de formas inesperadas, contingentes, ao mesmo tempo em que critica as dicotomias clássicas
entre “sujeitos” e “objetos”, afirmando que ambos se constituem e se transformam ao longo
das pesquisas. Assim, a autora coloca sob suspensão o poder do “sujeito” de representar o
“objeto”. A ciência não é mais um “juiz” capaz de julgar outras crenças como irrelevantes,
mas um processo mobilizador e contingente que se trata de acompanhar.

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REFERÊNCIAS

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Proposição III: A exterioridade da máquina de guerra é


confirmada ainda pela epistemologia, que deixa pressentir a existência e a perpetuação de
uma "ciência menor" ou "nômade". In: Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. São Paulo:
Editora 34, 1997.

HARAWAY, D. A partilha do sofrimento: relações instrumentais entre animais de laboratório


e sua gente. Horizontes Antropológicos, jun 2011, vol.17, n.35, p.27-64.

STENGERS, I. Para além da grande separação, tornamo-nos civilizados. In: SANTOS, B. S.


(org.) Conhecimento prudente para uma vida decente. São Paulo: Cortez Editora, 2003.

STENGERS, I. A invenção das ciências modernas. São Paulo: Editora 34, 2002.

STENGERS, I.“¿Nomadas y sedentarios?”. In: Nómadas, n. 10, Universidad Central


Colombia, 1999.

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