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Caio Navarro de Toledo

O Governo Goulart
E o Golpe de 64
Índice

Um governo no entreato golpista

O "golpe branco" ou "a solução de compromisso"

A crise político-institucional na versão parlamentarista

Um governo no trapézio

A politização da sociedade — esquerda e direita

mobilizam-se

O golpe político-militar

Conclusões

Indicações para leitura


Um governo no entreato golpista

O governo João Goulart nasceu, conviveu e morreu sob o signo


do golpe de Estado. Se, em agosto de 1961, o golpe militar pôde
ser conjurado, em abril de 1964, no entanto, ele deixaria de se
constituir no fantasma — que rondou e perseguiu permanentemente o
regime liberal-democrático inaugurado em 1946 — para se tornar
numa concreta realidade.
No dia 25 de agosto de 1961, Jânio Quadros resignava sem ao
menos completar sete meses na Presidência da República. Na carta-
renúncia — autêntica paródia e pastiche da carta-testamento de
Getúlio Vargas, como observaram diversos autores —, Quadros não
formulou uma única razão convincente para explicar e justificar o
seu teatral gesto. Se, naquele momento, a denúncia do golpe
janista soava como uma mera especulação, hoje restam poucas
dúvidas a esse respeito. A rigor, a renúncia constituía-se no
primeiro ato de uma trama golpista. Julgava o demissionário que os
ministros militares não apenas impediriam a posse de João Goulart,
como também procurariam impor, juntamente com o massivo e sonoro
"clamor popular", o retorno do "grande líder". Na sua fantasia,
Quadros voltaria, pois, nos "braços do povo".
As ilusões do renunciante, contudo, logo se desvaneceram. Nem
os ministros militares e, menos ainda, as massas populares tomaram
qualquer iniciativa no sentido de reivindicar a volta de Quadros.
Em várias partes do país, os setores populares e democráticos
sairiam às ruas para defender, isto sim, a posse de João Goulart,
ameaçada por um arbitrário veto militar, plenamente respaldado
pela UDN e demais setores conservadores. As manifestações
populares, associadas com as de políticos democráticos e de
militares nacionalistas, conseguiram impedir o golpe militar que
se configurava em agosto de 1961.
Assim, com a diferença de poucos dias, duas tentativas de
golpe se sucediam: a de Jânio Quadros e a dos setores militares.
Três anos depois, tendo sido alcançada uma forte coesão ideológica
no seio das Forças Armadas, os militares impuseram, juntamente com
a significativa mobilização política das classes dominantes e de
setores das classes médias, uma nova ordem político-institucional
no país. Os setores populares e democráticos, a partir de então,
pagariam um preço muito elevado pela resistência oferecida aos
golpistas em 1961.
Foi, portanto, no entreato de alguns ensaios golpistas e de um
golpe político-militar, plenamente vitorioso, que existiu o
governo João Goulart. Nos seus dois anos e meio de vigência
(setembro de 1961 a março de 1964), um novo contexto político-
social emergiu no país. Este novo quadro caracterizou-se por uma
intensa crise econômico-financeira, freqüentes crises político-
institucionais, extensa mobilização política das classes
populares, ampliação e fortalecimento do movimento operário e dos
trabalhadores do campo, crise do sistema partidário e acirramento
da luta ideológica de classes.
Este período da história política brasileira é significativo
ainda pois nele se intensificam e se condensam alguns dos impasses
e dos conflitos da democracia burguesa. Se entendemos que as
contradições sociais são processos constitutivos da formação
social capitalista e de seus regimes políticos, então o período de
1961/1964 deve ser visto como um momento privilegiado da vida
política brasileira posto que nele ocorreu uma polarização
política e ideológica com dimensões inéditas e com características
singulares. Para os que vêem nos conflitos e nos antagonismos o
sinal da desagregação social, os "tempos de Goulart" só podem ser
encarados como trágicos "tempos do caos e da anarquia".
1964 é, pois, um marco divisor e uma referência obrigatória em
qualquer avaliação sobre o passado recente. Decorridos menos de 20
anos da queda do regime liberal-democrático, não deixam de ser
ainda conflitantes as interpretações sobre o período Goulart. A
nosso ver, motivações antagônicas parecem estar presentes em
algumas dessas interpretações. As esquerdas — não obstante
reconheçam os reais avanços sociais e políticos ocorridos no
período —, buscam, fundamentalmente, investigar as razões dos
limites e das impossibilidades da democracia burguesa com
características "populistas". A direita, ao definir os "tempos de
Goulart" como a expressão acabada de toda a perversidade social
(subversão, corrupção, crise de autoridade, desordem etc), procura
justificar a implantação do regime autoritário e a perpetuação do
poder de Estado militarizado.
O "GOLPE BRANCO" OU
"A SOLUÇÃO DE COMPROMISSO"

O veto militar

Com a renúncia de Jânio Quadros, o Congresso Nacional, reunido


extraordinariamente no dia 25 de agosto de 1961, dava posse, na
Presidência da República, a Ranieri Mazzilli (presidente da Câmara
dos Deputados). Tal solução era encontrada em virtude de se
encontrar ausente do país o vice-presidente da República, João
Goulart.
Imediatamente, os meios de comunicação do país passavam a
divulgar versões — cuja veracidade seria confirmada nos dias
seguintes — segundo as quais haveria, da parte de expressivos
círculos militares, uma forte oposição à posse constitucional de
João Goulart na Presidência da República. As notícias iam mais
longe: afirmava-se que os ministros militares não apenas
desaconselhavam o retorno imediato de Goulart, como estavam
decididos a detê-lo no momento em que pisasse o território
nacional. Ao mesmo tempo que difundiam estas informações, vários
jornais da chamada grande imprensa — expressando a opinião
política dos setores conservadores das classes dominantes —
conclamavam as Forças Armadas a assumirem um papel decisivo na
crise política que se configurava com a renúncia de Jânio Quadros.
Em outras palavras, tais setores estimulavam e apoiavam o golpe
militar.
No dia 28 de agosto, através do presidente-interino, os três
ministros militares buscaram impor ao Congresso a aprovação de uma
breve nota onde — sem qualquer justificativa — era vetada a posse
de Goulart. Por uma expressiva maioria, os congressistas
manifestaram-se contra aquela arbitrária e ilegal exigência. No
dia 30, os ministros militares voltariam à carga. Através de um
manifesto à nação, agora se dignavam a explicitar as razões do
veto a João Goulart. A certa altura, afirmava o documento: "Na
Presidência da República, em regime que atribui ampla autoridade e
poder pessoal ao chefe do governo, o sr. João Goulart constituir-
se-á, sem dúvida alguma, no mais evidente incentivo a todos
aqueles que desejam ver o País mergulhado no caos, na anarquia, na
luta civil". Todas estas "previsões" eram feitas na base do
passado político de Goulart. Na ótica dos militares e dos demais
setores civis golpistas, Jango simbolizava tudo aquilo que havia
de "negativo" na vida política brasileira: demagogo, subversivo e
implacável inimigo da ordem capitalista. Seria o "diabo" tão
vermelho como o pintavam?

Goulart: por um capitalismo "humano" e "patriótico"


Nos primeiros anos de sua rápida trajetória política, os
estreitos laços de amizade mantidos com o ex-ditador — seu vizinho
de estância na longínqua São Borja (RS) — transformavam Goulart em
figura altamente suspeita aos olhos dos setores antigetulistas.
Como deputado pelo Rio Grande do Sul, eleito em 1950, Goulart
sofreu contundentes ataques pela imprensa; esteve seriamente
ameaçado de perder o mandato parlamentar, pois raramente compa-
recia à Câmara Federal. Dedicava-se às suas tarefas de presidente
do Diretório Estadual do PTB e, desde então, orientava toda a sua
ação política em direção ao movimento sindical. Destacando-se
neste tipo de atividade, foi escolhido, em 1953, por Vargas, para
o cargo de ministro do Trabalho.
Foi um "deus nos acuda". Como admitir, num Ministério do
Estado, indagavam os setores de direita e liberais conservadores,
o "chefe do peronismo brasileiro", o "demagogo sindicalista", o
"corrupto negociante"? Pior ainda, prognosticavam: controlando e
manipulando a classe operária e as massas populares, a partir do
Ministério do Trabalho, Jango se constituiria numa peça importante
para o sucesso de um novo golpe de Estado que estaria sendo
engendrado pelo "maquiavélico" Vargas.
Como ministro do Trabalho, Goulart é diariamente acusado de
insuflar greves e de pregar a luta de classes. Seu maior sonho,
afirmam ainda seus críticos, seria o de implantar no Brasil a
"República sindicalista" nos moldes do justicialismo peronista.
Fazendo blague, mas iradamente, um influente periódico das classes
dominantes denunciava que Jango, ao invés de ser ministro do
Trabalho, transformara-se num autêntico "ministro dos
Trabalhadores"... Diante desta lamentação, a resposta de Goulart
seria extremamente elucidativa. Numa entrevista, expressou com
muita clareza a estratégia do Estado democrático-burguês quanto à
questão sindical: "(...) essa confiança do proletariado na
secretaria de Estado que dirijo deveria constituir-se num motivo
de tranqüilidade (para os patrões), e nunca de alarme. Pretender-
se-ia, talvez, que o operariado brasileiro, já tão desencantado,
não acreditasse nos poderes constitucionais?" (grifo nosso).
Como herdeiro de imensa fortuna pessoal e grande proprietário
de terras ("um latifundiário com saudável instinto de propriedade
privada", como afirmou um de seus colaboradores), Goulart era, tal
como seus críticos de direita, um fiel defensor do capitalismo. No
entanto, asseverava ele, sua diferença em relação a estes residia
na sua aspiração a um capitalismo mais "humanizado" e
"patriótico"; ou seja, Jango dizia opor-se àquilo que hoje se con-
vencionou chamar de "capitalismo selvagem". "Não passa de torpe
intriga o boato de que sou contra o capitalismo. Ã frente do
Ministério do Trabalho estou pronto a estimular e a aplaudir os
capitalistas que fazem de sua força econômica um meio legítimo de
produzir riquezas, dando sempre às suas iniciativas um sentido
social, humano e patriótico."
Pouco mais de oito meses permaneceria no Ministério do
Trabalho do segundo governo Vargas. Enquanto Goulart defendia
publicamente um aumento de 100% para os trabalhadores que ganhavam
salário mínimo, Vargas, através de seu ministro da Guerra, tomava
conhecimento de um documento ("Memorial dos Coronéis") assinado
por 81 oficiais do Exército. Nele se advertia o Exército e a Nação
dos perigos do "comunismo solerte sempre à espreita", do "clima de
negociata, desfalques e malversação de verbas", da "crise de
autoridade" que solapava a coesão de "classe militar" etc. Em
nenhum instante o nome de Jango era citado no "Memorial", mas a
conseqüência da sua divulgação pela imprensa foi a sua imediata
demissão do Ministério do Trabalho. (Entre os signatários do
documento, redigido pelo então ten.cel. Golbery do Couto e Silva,
estavam militares que, dez anos mais tarde, afastariam Goulart
definitivamente da vida política brasileira: Amaury Kruel, Syzeno
Sarmento, Sílvio Frota, Ednardo D'Ávila, Euler Bentes, etc.)
Como vice-presidente da República, durante o qüinqüênio
desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek, João Goulart não
deixaria de estar sob o fogo cerrado da direita e de setores
liberais-conservadores. No manifesto de agosto de 1961, os
ministros militares alinhavam algumas acusações: "No cargo de
vice-presidente, sabido é que usou sempre de sua influência em
animar e apoiar, mesmo ostensivamente, manifestações grevistas
promovidas por conhecidos agitadores. E, ainda há pouco, como re-
presentante oficial em viagem à URSS e à China Comunista, tornou
clara e patente sua incontida admiração ao regime destes países,
exaltando o êxito das comunas populares".
Desta forma, na ótica dos políticos e militares, comprometidos
com as ideologias liberal-conservadora e de direita, de nada
adiantava Goulart reiteradamente afirmar a sua crença no
capitalismo. Deixavam, pois, de reconhecer que a atuação política
de Jango (seja na condição de ministro de Trabalho, seja na de
vice-presi-dente) contribuía objetivamente para um melhor controle
do Estado burguês sobre as atividades sindicais. Igualmente,
aqueles setores deixavam de perceber que — tal como concebia e
exercia suas funções políticas e administrativas — Jango era uma
eficiente porta-voz, nos meios sindicais e populares, da ideologia
populista do Estado protetor e "acima das classes". Obstinadamente
reacionários e intransigentemente anticomunistas, não conseguiam
deixar de representar Jango na figura de "perigoso agitador" e de
"demagogo sindicalista".

A luta pela legalidade

Nem todos os setores sociais e políticos, no entanto,


interpretavam nessa direção a trajetória política de João Goulart.
Não viam, pois, razões para lhe negar o direito de assumir a
Presidência da República. Ideologicamente, estes setores afinavam-
se com o nacionalismo reformista, com a liberal-democracia, com a
esquerda revolucionária. Governadores de estados, parlamentares
federais e estaduais, sindicatos de trabalhadores, entidades de
empresários (CONCLAP), estudantes e alguns setores militares, se
manifestavam em defesa da ordem constitucional.
Dos governadores estaduais que declararam seu apoio à posse de
Goulart (Carvalho Pinto, São Paulo; Ney Braga, Paraná; Mauro
Borges, Goiás e Leonel Brizola, Rio Grande do Sul), foram estes
dois últimos os que mais intensamente se empenharam na" "defesa da
legalidade". Contudo, foi a partir de Porto Alegre que se unificou
a oposição nacional ao golpe militar, em virtude da decidida ação
política de seu governador e da adesão do III Exército, sob o
comando do gal. Machado Lopes. Brizola mobilizou amplos recursos
de seu estado, chegando, inclusive, a se dispor a distribuir armas
à população civil para combater eventuais ataques das forças
golpistas. Através das emissões da "Rede da Legalidade",
acompanhava-se o desenrolar dos acontecimentos em todo o país e
articulava-se o movimento antigolpista em nível nacional.
Militares nacionalistas (o mal. Lott fora preso por ter
lançado um manifesto contra o golpe), altos-oficiais do Exército,
organizações militares sediadas nos estados do Pará, Minas Gerais,
Rio Grande do Sul, São Paulo, Goiás, Guanabara e até mesmo em
Brasília, almirantes, associavam-se ao movimento contra a solução
conspiratória. Apesar de proibidas e reprimidas, manifestações
populares sucediam-se nos grandes centros urbanos (passeatas,
comícios, panfletagem etc). Várias entidades de classe condenavam
os golpistas e defendiam a posse de Goulart. Inúmeras greves
políticas em diversos setores (têxtil, transportes, bancários,
metalúrgicos, portuários, etc.) culminam numa greve nacional em
"defesa da legalidade", deflagrada pelo Comando Geral da Greve
(CGG), embrião do CGT. A UNE decretou "greve nacional"; na Bahia
os estudantes criavam a Frente de Resistência Democrática.

A "solução de compromisso"

O Congresso Nacional, expressando o sentimento geral dos


setores democráticos e populares, negava-se, no primeiro momento,
a transigir com os golpistas. Contudo, os dois grandes partidos
conservadores (UDN e PSD) articulavam, desde as primeiras horas da
crise, a chamada "solução de compromisso": a emenda constitucional
que instituía o regime parlamentarista no País. Se o golpe militar
era derrotado, um golpe político, no entanto, era perpetrado
contra o regime vigente, pois a carta de 1946 proibia,
taxativamente, toda e qualquer reforma constitucional num clima
insurrecional. Um outro significado deste "golpe branco" é que a
emenda parlamentarista retirava a eleição do presidente da
República do âmbito popular, transferindo-a para o espaço reduzido
da Câmara Federal.
Por 236 votos a favor e 55 contra (40 eram do PTB), a emenda
constitucional era aprovada no Congresso Nacional. Os
congressistas julgavam-se vitoriosos, pois afirmavam ter evitado
uma "guerra civil" no país. Na verdade, o Congresso, através de
sua maioria conservadora e liberal-democrata — com o incentivo dos
militares dissidentes e com a anuência dos golpistas —, adiantou-
se em oferecer tal solução, pois o avanço das forças populares
passava a se constituir numa ameaça política indesejável. Para os
ideólogos burgueses da Ciência Política, o Congresso Nacional,
neste episódio, dava uma excelente lição daquilo que denominam de
"realismo político" ou da "arte de conciliação".
Alguns analistas afirmam, hoje, que o parlamentarismo não se
configurava, naquela conjuntura, como uma saída política
inescapável. Argumentam que o tempo corria na direção favorável à
manutenção do regime presidencialista, posto que o crescimento da
participação popular e a ampliação dos setores políticos e
militares antigolpistas punham na defensiva e em minoria as forças
reacionárias. Como sugere o ex-deputado Almino Afonso: "Com mais
alguns dias de resistência política do presidente João Goulart
teria havido a solução normal, que seria a sua posse dentro do
sistema presidencial". Ao contrario disso, João Goulart não apenas
concordou com a emenda constitucional, como se apressou em esco-
lher uma solene efeméride nacional para ser empossado. No dia 7 de
setembro de 1961, João Belchior Marques Goulart recebia no
Congresso Nacional a faixa presidencial, sob o manto do regime
parlamentarista.
De acordo com a emenda parlamentarista, o Poder Executivo
passava a ser exercido pelo presidente da República e por um
Conselho de Ministros (Gabinete Parlamentar), a quem caberia a
"direção e a responsabilidade da política do governo, assim como a
administração federal". Ao presidente competiria nomear o
presidente do Conselho de Ministros (primeiro-ministro) ou chefe
do governo e, por indicação deste, os demais membros ministros de
Estado. Na verdade, transformava-se o presidente da República em
autêntico chefe de Estado, perdendo a sua iniciativa de elaborar
leis, orientar a política externa, elaborar propostas de
orçamentos, etc. O governo se efetivava fundamentalmente através
do Conselho de Ministros que, por sua vez, dependia
permanentemente do voto de confiança do Congresso Nacional. A
emenda constitucional nº 4, nas suas Disposições Transitórias,
previa a realização de um plebiscito que viesse a decidir acerca
da "manutenção do sistema parlamentar ou volta ao sistema
presidencial". Tal consulta popular devia ocorrer nove meses antes
do término do período presidencial de Goulart.
Sob rédeas relativamente curtas, João Goulart iniciava, assim,
seu governo na versão parlamentarista. Mas, conforme confessaria a
um assessor, faria ele de tudo para abreviar a vida do novo
regime. Recusava-se a representar o papel de uma "Rainha
Ehzabeth". Queria governar, não apenas reinar...
A CRISE POLlTICO-INSTITUCIONAL
NA VERSÃO PARLAMENTARISTA

Na curta existência do regime parlamentarista (setembro de


1961 a janeiro de 1963), o país veria sucederem-se três Conselhos
de Ministros, além de se defrontar com o agravamento de sua
situação econômico-financeira e se debater ainda com novas crises
político-institucionais. Administrativamente ineficiente e
politicamente inviável, o parlamentarismo — sistema natimorto,
como alguns o denominaram — teria os seus dias contados dentro da
vida republicana brasileira.
Do ponto de vista econômico, o governo parlamentarista não
apenas herdava as profundas distorções da política
desenvolvimentista do governo Kubitschek como também tinha de
fazer face às conseqüências imediatas das medidas econômico-
financeiras postas em prática pela fracassada administração
Quadros. No período Kubitschek, ao se optar por um elevado nível
de investimentos e ao se manter as importações de equipamentos
necessários ao desenvolvimento econômico, apelou-se para um pro-
gressivo endividamento externo. No período 1956/60, mostram os
dados oficiais, o déficit nas transações correntes (mercadorias e
serviços) alcançou a elevada cifra de 1,2 bilhões de dólares. De
outro lado, "como o investimento externo fazia-se com a regalia da
Instrução 113, isto é, sem cobertura cambial, o atendimento do
déficit fez-se, principalmente, através de empréstimos a curto
prazo e de atrasos comerciais, aumentando o endividamento externo"
(Cibilis Viana, Reformas de Base e a Política Nacionalista de
Desenvolvimento). A taxa inflacionária elevou-se
significativamente nos últimos anos do governo Kubitschek,
agravada fundamentalmente pela "deterioração das relações de
troca, acúmulo de estoques invendáveis de café adquiridos pelas
autoridades monetárias; crescimento insuficiente da oferta de pro-
dutos agrícolas e oligopolização do comércio atacadista de gêneros
alimentícios" (Idem, ibidem). No período desenvolvimentista
anterior, houve um acentuado descompasso entre o crescimento do
setor industrial e o da agricultura. Ainda segundo o autor acima,
"a produção agrícola apresentou a taxa anual média de crescimento
de 4,3% inferior a de todos os demais períodos". Com o aumento da
população urbana (75% entre 1952 a 1961) e um aumento do poder de
compra dos assalariados em geral, houve, conseqüentemente, a
expansão da demanda de alimentos. Com o insuficiente crescimento
da produção agrícola para o mercado interno, passaram a ocorrer, a
partir de 1961, agudas crises de abastecimento, gerando
inquietações sociais e movimentos reivindicatórios de grande
extensão nos campos e nas cidades.
Além desses problemas, o governo que se empossava tinha de
enfrentar as graves conseqüências da reforma cambial
precipitadamente realizada por Quadros. Através da famigerada
Instrução 204 da SUMOC, instituiu-se o regime de liberdade cambial
(enganosamente denominado de "verdade cambial"). A partir de
agora, as importações passavam a ser realizadas a taxas de mercado
livre, ficando suprimidos os subsídios governamentais às compras
de petróleo, trigo e papel. Na justificativa oficial, buscava-se
alcançar o equilíbrio das transações com o exterior, altamente
comprometido no governo Kubitschek. A eliminação dos subsídios
teve como conseqüência uma brusca e imediata alta do custo de
vida, particularmente daqueles produtos que eram fundamentais no
orçamento das classes trabalhadoras.

Um gabinete de "união nacional"

No dia 8 de setembro de 1961, o Congresso Nacional aprovava o


primeiro Conselho de Ministros; era ele presidido por Tancredo
Neves, conhecida figura do PSD mineiro. Goulart e Tancredo denomi-
naram o gabinete de "união nacional". Uma vez mais, pois, a
fórmula da "união nacional" era desenterrada do arsenal ideológico
das classes dominantes a fim de encobrir a existência de conflitos
e antagonismos no interior da conjuntura política. Na verdade, o
primeiro gabinete representava uma nítida derrota do movimento
popular que, alguns dias antes, havia empolgado o país. Como as
esquerdas viriam a denunciar, tratava-se de um autêntico "gabinete
de conciliação": "conciliação para evitar que fossem colhidos os
frutos da vitória popular. Conciliação com os imperialistas,
conciliação com os golpistas" (Paulo M. Lima, in Revista
Brasiliense, nº 22).
A vitória das forças politicamente conservadoras do Congresso
evidenciava-se mediante a composição do Gabinete, onde 4 ministros
representavam o PSD e 2 a UDN; ao partido do qual o presidente da
República era o presidente nacional, PTB, coube apenas uma pasta:
o Ministério das Relações Exteriores, na figura de Francisco San
Tiago Dantas. O importante Ministério da Fazenda teve sua respon-
sabilidade entregue ao banqueiro Walter Moreira Salles —
ideologicamente identificado com os manuais ortodoxo-conservadores
em matéria de política econômico-financeira. Procurava-se, assim,
conquistar o apoio do FMI e das autoridades financeiras norte-
americanas.
Em matéria de política econômica, pode-se afirmar que "o
programa do Conselho de Ministros obedecia aos mesmos princípios
conservadores enunciados nos efêmeros governos Café Filho e Jânio
Quadros, revelando-se, sob muitos aspectos, antagônicos ao ideário
do nacionalismo desenvolvimentista" (Cibilis Viana, op. cit.).
Segundo este programa, por exemplo, não se fazia nenhuma crítica à
reforma cambial implementada pelo governo anterior. Não seria
este, no entanto, o pensamento que orientava a assessoria
econômica de Goulart (Goulart e Tancredo tinham assessorias
distintas). Composta de petebistas e nacionalistas-reformistas, a
assessoria de Goulart buscaria influir sobre a orientação conser-
vadora do gabinete ao defender, por exemplo, o fortalecimento do
setor estatal da economia. Nos seus primeiros pronunciamentos,
Goulart faria críticas ao regime de "verdade cambial" e postularia
a realização das Reformas de Base.
Embora majoritariamente conservador, o gabinete de Tancredo
Neves, logo nos seus primeiros meses de existência, tomou duas
decisões amplamente apoiadas pelos setores progressistas e nacio-
nalistas. A rigor, contudo, estas duas medidas nada mais faziam do
que concretizar estudos oriundos do governo Quadros. Por proposta
do ministro das Minas e Energia, Gabriel Passos (um nacionalista
quase solitário na "constelação entreguista" da UDN), o Conselho
de Ministros cancelava todas as autorizações feitas ao truste
norte-americano Hanna Corporation (companhia de mineração que
explorava jazidas em Minas Gerais). A outra decisão que repercutiu
favoravelmente nos meios progressistas do país foi o
restabelecimento das relações diplomáticas com a URSS (rompidas no
governo Dutra, em plena "guerra fria"). Dava-se, assim,
continuidade à política externa independente cujos princípios
básicos ("não intervenção de um Estado nos negócios internos de
outro" e "autodeterminação dos povos") foram enunciados no governo
do contraditório Jânio Quadros.
Exatamente dois meses depois, uma prova decisiva teria de
enfrentar a política externa independente do Brasil. Em Punta Del
Este, Uruguai, reunia-se a Organização dos Estados Americanos
(OEA) a fim de debater a situação de Cuba, após seu governo
revolucionário ter-se definido oficialmente pelo socialismo. Além
da expulsão, proposta pelos EUA, pretendiam estes fazer aprovar
sanções contra o governo presidido por Fidel Castro. O Brasil se
opôs a qualquer forma de sanção (militar, econômica, rompimento
das relações comerciais e diplomáticas) contra Cuba. No entanto,
aprovou uma declaração onde se afirmava a "incompatibilidade entre
um regime marxista-leninista e os princípios democráticos do
sistema interamericano". Cedendo parcialmente às fortes pressões
norte-americanas, o governo brasileiro se absteria na votação que
propunha a expulsão de Cuba da OEA.
As relações norte-americanas/brasileiras sofreriam ainda um
sério abalo quando, duas semanas após o encerramento da reunião da
OEA, o governador Leonel Brizola, cunhado de João Goulart, de-
sapropriou os bens da Companhia Telefônica Nacional, no Rio Grande
do Sul, subsidiária da International Telephone & Telegraph (ITT).
"O Departamento do Estado protestou, energicamente, classificando
o ato de Brizola como um 'passo atrás' nos planos da Aliança para
o Progresso (...) E o Congresso dos EUA, diante da perspectiva de
outras estatizações, votou a emenda Hinckenlooper, que determinava
a suspensão de qualquer ajuda aos países que desapropriassem bens
americanos, sem indenização imediata, adequada e efetiva" (Moniz
Bandeira, O Governo João Goulart).
Diante de futuras tentativas de encampações (Carlos Lacerda,
governador da Guanabara, anunciou — demagogicamente — que
expropriaria empresas estrangeiras em seu estado), o governo
federal apressou-se em declarar sua disposição em negociar um
acordo geral com as empresas de serviços públicos de propriedade
estrangeira. Procurava, assim, o governo brasileiro demonstrar sua
"boa vontade" face ao capital estrangeiro; ao mesmo tempo tentava
limpar o terreno dos possíveis obstáculos que poderiam dificultar
as conversações a serem mantidas, nas semanas seguintes, entre os
presidentes do Brasil e dos EUA.
Assessorado pelo embaixador brasileiro nos EUA, Roberto
Campos, e por Moreira Salles, o presidente Goulart — no discurso
pronunciado perante o Congresso norte-americano e no comunicado
conjunto dos presidentes do Brasil/EUA — procura tranqüilizar a
opinião pública e os homens de negócios norte-americanos quanto
aos caminhos a serem trilhados pelo governo brasileiro nos
próximos anos. Entre outros temas, Goulart manifestou a adesão de
seu governo aos "princípios democráticos"; defendeu enfaticamente
a participação do capital privado estrangeiro no desenvolvimento
brasileiro; aprovou o princípio da "justa compensação" nos casos
de desapropriações de empresas estrangeiras operando no Brasil,
etc. Embora revelasse preocupações quanto às dificuldades de
execução do programa reformista da Aliança para o Progresso,
Goulart elogiou a iniciativa de Kennedy (provocada pela Revolução
Cubana). Advertindo sobre os perigos que representaria o fracasso
deste programa para os "povos democráticos", o presidente
brasileiro fez seu o ideário reformista de Kennedy: "Aqueles que
tornarem impossível a revolução pacífica, farão inevitável a
revolução violenta".
Apesar de todas as "juras de fidelidade e de amor" feitas por
Goulart à democracia e ao capital estrangeiro, o país pouco
lucraria com a festejada viagem de Goulart aos EUA e México. Como
observou um estudioso: "(...) o FMI e os outros principais
credores do Brasil voltaram à sua atitude de esperar-para-ver dos
últimos anos do governo Juscelino. Sentiam-se pessimistas. Não
confiavam em que Jango tivesse o desejo, nem o poder de continuar
o duro programa antiinflacionário empreendido por Jânio" (Thomas
Skidmore, De Getúlio a Castelo).

A campanha das Reformas. Goulart X Gabinete

Internamente, a viagem de Goulart aos EUA rendeu-lhe alguns


proveitos; pela primeira vez, em toda a sua carreira política, a
direita mais conservadora prestou-lhe homenagens. A UDN, através
de seu líder na Câmara, Herbert Levy, saudou a sua performance nos
EUA como a de um verdadeiro estadista. Porém, muito curto seria o
período de tréguas que a oposição conservadora concederia ao
governo de Goulart. A partir do dia 1º de maio, a guerra novamente
lhe seria declarada.
Em reiteradas oportunidades, o presidente da República tinha
se pronunciado acerca da urgência de o Executivo e de o Congresso
aprovarem as reformas estruturais exigidas para a superação dos
graves problemas econômicos, sociais e institucionais enfrentados
pelo país. Não obstante se pudesse afirmar que era praticamente
consensual — no Gabinete, no Congresso, nas Forças Armadas, nas
associações e confederações rurais, na Igreja, nas organizações de
trabalhadores rurais, etc. — o reconhecimento da necessidade da
Reforma Agrária, as concepções acerca do seu sentido social e
político, da sua extensão e das pré-condições legais à sua
realização eram conflitantes. No seu discurso de 1º de maio, em
Volta Redonda, Goulart chamou sobre si a fúria dos conservadores.
Embora não explicitamente, Jango se opôs à forma moderada e
conciliadora pela qual o gabinete de Tancredo Neves vinha
encaminhando o debate do anteprojeto de Reforma Agrária de autoria
do ministro da Agricultura, o conhecido usineiro pernambucano
Armando Monteiro (PSD). Apesar de ter criado importantes
assessorias técnicas (Superintendência da Reforma Agrária, SUPRA,
e o Conselho Nacional de Reforma Agrária), o primeiro gabinete não
chegou a enviar nenhum projeto de Reforma Agrária ao Congresso.
A rigor, o que provocou a violenta reação dos setores de
direita foi o apelo do presidente ao Congresso no sentido de este
realizar uma reforma da Carta de 1946. A reforma constitucional
reivindicada por Goulart visava basicamente a alterar o § 16 do
Art. 141 que condicionava as desapropriações de terra à "prévia e
justa indenização em dinheiro". A vigência de tal preceito
constitucional, na prática, impedia — pelos altos recursos a serem
despendidos pelo governo — a realização de uma Reforma Agrária que
implicasse uma ampla redistribuição de terras àqueles que nela
efetivamente trabalhavam. Diante da proposta do presidente da
República, unem-se proprietários rurais, setores da Igreja,
congressistas liberais e conservadores, imprensa etc, para
denunciar a "reforma agrária radical" cogitada, segundo eles, por
Goulart. Na ótica desses grupos, a "revolução agrícola" deveria se
fixar na "obediência aos preceitos constitucionais aliada ao
interesse prioritário pelo estímulo à produção" (Aspásia Camargo,
"A Questão Agrária", in Brasil Republicano).
Como observou a autora acima, o discurso de Volta Redonda pode
ser considerado como um importante marco político: seja porque
representou o primeiro esforço concentrado do governo em torno da
realização das Reformas de Base (o segundo momento dessa campanha
ocorreria a partir de abril de 1963), seja porque significou o
afastamento político do presidente da República face ao Conselho
de Ministros e ao regime parlamentarista propriamente dito.
Reconhece-se, também, nessa data, o início da intensificação da
luta pela antecipação do Plebiscito.
Sem o apoio do presidente da República, o Gabinete Tancredo
Neves tinha os seus dias contados. Sob o pretexto de terem de
cumprir a exigência legal de desincompatibilização funcional a fim
de poderem concorrer às eleições de outubro de 1962, todos os
membros do Gabinete Tancredo pediram demissão em junho.

As crises de Gabinete

A formação do 2º gabinete parlamentarista implicou uma


complicada batalha política para o presidente Goulart. Os dois
grandes partidos conservadores do Congresso, PSD e UDN, uniam suas
forças para rejeitar o nome do petebista San Tiago Dantas,
indicado por Jango para presidir o novo gabinete. As razões da
recusa eram evidentes: San Tiago, que fazia parte da chamada
"esquerda positiva", notabilizara-se, nos meses anteriores, pela
condução da política externa independente. O febril anticomunismo
da direita brasileira jamais poderia perdoar-lhe o reatamento das
relações diplomáticas do Brasil com a URSS; igualmente, a sua
intransigente oposição, dentro da OEA, a qualquer sanção contra
Cuba socialista lhe valeria a pecha de "traidor da pátria", por
parte dos setores conservadores. Além do mais, era um elemento da
estrita confiança de Goulart, estando, pois, inteiramente
solidário na luta que este movia contra o parlamentarismo e a
favor das reformas de base.
Sendo forçado a buscar apoio no PSD, Goulart apresentou um
outro candidato: Auro Soares de Moura Andrade, presidente do
Senado. No entanto, esta decisão desagradou as lideranças
sindicais comprometidas com a luta pelas Reformas e que, desde o
mês de junho, vinham defendendo a formação de um "Conselho de
Ministros nacionalista e democrático". Diante da negativa face ao
nome de San Tiago e da eminente aprovação do Conselho de Ministros
a ser chefiado pelo conservador Moura Andrade, o Comando Geral da
Greve (CGG) decretou uma greve geral em todo o país para o dia 5
de julho. No dia anterior, porém, o senador do PSD desistia da sua
indicação a primeiro-ministro. Apesar da renúncia de Moura Andrade
e dos insistentes apelos de Jango, a greve foi mantida. Na
Guanabara, estado onde se concentrou praticamente todo o movimento
paredista, os militares do I Exército — sob o comando do general
nacionalista Osvino Alves — colaboraram com os grevistas; não
cederam veículos de seu uso para transporte público e também
participaram das negociações para a libertação dos líderes
sindicais reprimidos pela polícia do reacionário governador da
Guanabara, Carlos Lacerda (S. Amad Costa, CGT e as Lutas Sindicais
Brasileiras). A greve — considerada pelo líder comunista Jover
Telles como a maior da história do movimento operário brasileiro —
foi igualmente vitoriosa pelo fato de o presidente Goulart
sancionar, uma semana depois, a lei que instituiu o 13º salário,
uma das principais reivindicações da greve geral.
O novo gabinete, presidido por Brochado da Rocha (PSD),
recebia voto de confiança no dia 13 de julho. Tratava-se de um
gabinete de centro com orientação reformista. Nos seus dois curtos
meses de existência, este conselho distinguiu-se basicamente por
duas iniciativas políticas. A primeira consistiu num projeto de
lei enviado ao Congresso visando antecipar a realização do
Plebiscito; propunha-se o dia 7 de outubro, data marcada para as
eleições da renovação do Congresso e escolha de alguns gover-
nadores de estado. Nova derrota de Goulart e do gabinete; nova
greve geral seria decretada pelas lideranças sindicais. Embora
tivesse uma extensão menor do que a anterior, a greve foi
igualmente vitoriosa pois, na madrugada de 15 de setembro (data
fixada para a paralisação dos trabalhadores), o Congresso aprovou
um projeto conciliador dos pessedistas Gustavo Capanema e Benedito
Valadares. O Plebiscito, finalmente, tinha agora seu dia definido:
6 de janeiro de 1963. No entanto, a greve não reivindicava apenas
a convocação do referendum popular; exigia, também, a sanção da
Lei de Remessa de Lucros (aprovada pelo Congresso mas ainda não
regulamentada pelo Executivo), a elevação dos níveis de salário
mínimo na base de 100%, etc. Posto que o governo prometeu realizar
estudos no sentido de atender àquelas reivindicações, o Comando
Geral do Trabalhadores (CGT), recentemente criado, suspendia a
greve.
A segunda importante iniciativa do Gabinete Brochado da Rocha
consistiu numa mensagem enviada ao Congresso na qual se solicitava
a autorização deste para que o Conselho de Ministros pudesse
legislar, através de decretos, sobre as Reformas de Base, remessa
de lucros, regulamentação do direito de greve, abuso do poder
econômico, etc. Expressando os interesses dos proprietários e das
associações rurais, bem como da burguesia associada ao capital
multinacional, a aliança PSD/UDN fechava a questão contra a
"delegação de poderes" pedida pelo gabinete. Prevendo a iminente
derrota no plenário do Congresso, Brochado da Rocha demitiu-se.
Desta forma, o Congresso cedia quanto à convocação do Plebiscito,
mas a sua maioria não abriria mão de sua condição de intransigente
defensora dos interesses das classes proprietárias e dos setores
politicamente conservadores e de direita. Uma vez mais, Brizola se
encarregaria de expressar a insatisfação dos movimentos populares
e das correntes políticas nacionalistas e de esquerda: "O povo não
poderia esperar outra coisa de um Congresso constituído, em sua
maioria, de latifundiários, financistas, ricos comerciantes e
industriais representantes da indústria automobilística,
empreiteiros e integrantes da velha oligarquia brasileira" (apud
M. Victor, 5 Anos que Abalaram o Brasil).

A campanha do plebiscito

O terceiro e último Conselho de Ministros, presidido pelo ex-


ministro do Trabalho, Hermes Lima, duraria pouco mais de 4 meses.
A rigor, a partir de meados de setembro de 1962, o comando do
Executivo passava praticamente para as mãos do presidente da
República. Como viria a assinalar mais tarde o último premier do
governo parlamentarista: "Vivia-se no país uma atmosfera mais
presidencialista que parlamentarista" (Hermes Lima — apud M.
Bandeira, op. cit). Nesse sentido, deve-se reconhecer que o
Gabinete provisório — oficialmente empossado dois meses depois —
estava inteiramente solidário com o mais importante objetivo
político perseguido por Goulart naquele momento: articular as
forças políticas e sociais do país a fim de derrotar o
parlamentarismo na eleição plebiscitária de 6 de janeiro.
Pode-se afirmar que este gabinete esteve inteiramente
envolvido com a campanha do Plebiscito. Excluída a direita mais
ardorosamente anticomunista e antijanguista (a maioria da UDN
IPES/ IBAD, imprensa conservadora, etc), poucos "moveram uma
palha" em defesa do parlamentarismo. Em contrapartida, inúmeras
foram as entidades e organizações que se empenharam na batalha
política pelo retorno do presidencialismo. Importantes figuras po-
líticas nacionais (algumas delas particularmente interessadas em
se candidatar, em eleições diretas, para a sucessão presidencial
de Jango) apoiaram ostensivamente a derrubada do regime
parlamentarista. Entre eles se incluíam Juscelino Kubitschek,
Leonel Brizola, Cid Sampaio, Magalhães Pinto, Juraci Magalhães e
Carlos Lacerda (a UDN, partido dos três últimos, defendia a
manutenção do parlamentarismo).
Durante a campanha do Plebiscito, importantes figuras da
oficialidade militar posicionaram-se a favor da volta do
presidencialismo. Poucas razões igualmente tinham os trabalhadores
para apoiarem o regime parlamentarista. Nas últimas semanas de
1962, a CNTI (Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Indústria) conclamava os trabalhadores brasileiros a comparecer ao
referendum: "Todos, no, dia 6 de janeiro de 1963, assinalem o NÃO:
NÃO à espoliação do país; NÃO aos exploradores do povo; NÃO à
carestia e à fome. Portanto, companheiro, um NÃO grande ao
parlamentarismo". A rigor, para os trabalhadores, a luta pela
retomada do presidencialismo significava, simplesmente, dar um
"voto de confiança" ao presidente da República que vinha
defendendo publicamente a realização de reformas fundamentais na
estrutura da sociedade brasileira. No dia 6 de janeiro de 1963,
depois de uma intensa e dispendiosa campanha político-publicitária
contra o regime parlamentarista — comandada por Goulart e
financiada por setores da burguesia brasileira —, cerca de 13
milhões de eleitores compareciam às urnas. Numa proporção de 5
votos para 1, rejeitava-se o regime implantado na crise político-
militar de agosto de 1961.
O regime parlamentarista fracassou pois se revelou altamente
ineficaz do ponto de vista administrativo, como também pelo fato
de ter-se constituído numa fonte permanente de crises
institucionais e políticas. O caráter híbrido e dualista do
sistema — o presidente da República e o Conselho de Ministros,
além de disputarem o controle do Executivo, divergiam quanto aos
seus programas e prioridades de governo — dificultava a tomada de
decisões que a realidade econômica e social do país urgentemente
demandava. Não se sustentam, pois, aquelas interpretações que
atribuem exclusivamente à "má vontade" ou ao "desinteresse" de
Goulart a responsabilidade pela "triste sorte" que veio a ter o
parlamentarismo no país. Ressalte-se que o gabinete presidido por
Brochado da Rocha buscou agilizar as decisões no campo
administrativo e econômico; mas as Reformas de Base e outras
medidas que estavam previstas para serem implementadas esbarraram
na intransigente oposição da aliança PSD/UDN. O Congresso que
encerrava a sua legislatura em 1962, sendo majoritariamente
conservador, constituiu-se, assim, num forte obstáculo ao
encaminhamento de políticas de caráter reformista oriundas do
Executivo (seja da Residência da República, seja do Gabinete).
Na crise político-militar de agosto de 1961, os dois maiores
partidos conservadores apressaram-se em instituir no país um
regime que lhes permitiria deter maiores possibilidades para o
controle do Executivo. Como vimos, em certa medida, foram bem-
sucedidos nesse intento, pois conseguiram impor limites e
barreiras à ação do Executivo reformista — reconhecidamente mais
eficazes do que aqueles tradicionalmente utilizados em regime
presidencialista. No entanto, o parlamentarismo — forjado a toque
de clarim e em ritmo marcial — não resistiu às inúmeras crises
políticas que seu funcionamento provocou e não conseguiu resolver.
Um governo no trapézio

No dia 23 da janeiro de 1963, com a revogação da emenda


parlamentarista, João Goulart reassumia os plenos poderes que a
Carta de 1946 conferia ao presidente da República. Após o malogro
da experiência parlamentarista, todas as indagações políticas
resumiam-se na seguinte: conseguiria o governo presidencialista de
Goulart superar a crise econômico-financeira, aliviar as tensões
sociais e afastar as crises políticas que vinham continuadamente
desgastando a administração pública? Não seria exagerado afirmar
que — entre os diferentes setores sociais — era praticamente
consensual o reconhecimento de que da solução da crise econômico-
financeira dependia fundamentalmente o encaminhamento satisfatório
dos demais problemas que afetavam o país. As propostas que as
diversas classes sociais e grupos políticos ofereciam para
resolver os problemas da inflação, do déficit da balança de
pagamentos, da continuidade do desenvolvimento econômico etc, não
deixavam de ter orientações diferentes e, por vezes, antagônicas.
A este respeito deve-se ressaltar que os tempos de Goulart
constituíram-se em anos "extremamente férteis" na medida em que
neles se processaram intensos debates sobre os rumos e direções
que deveriam ser trilhados pela economia e sociedade brasileiras.
Como observou um economista: "Ao contrário dos anos anteriores, em
que reduzidas minorias controlavam a formulação política, nestes
anos novos agrupamentos passaram a fazer ouvir sua voz no processo
de decisão social. A política econômica não foi indiferente a este
contexto social mais complexo" (Carlos Lessa, 15 Anos de Política
Econômica) .
Como tende a ocorrer em todo regime democrático-burguês, o
Executivo anunciava que o seu Plano de Governo tinha condições de
resolver em profundidade os impasses e as dificuldades enfrentados
pelo conjunto da sociedade brasileira. Essa ambiciosa proposta foi
denominada de "Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico-Social:
1963-1965", tendo sido elaborada pelo economista Celso Furtado
(ministro do Planejamento), com a colaboração de San Tiago Dantas
(ministro da Fazenda). A concepção e a execução do Plano Trienal —
bem como as reações dos diferentes setores sociais e políticos a
ele — contribuem de forma significativa para entendermos o que foi
o governo Goulart.
A análise da composição do primeiro ministério
presidencialista, bem como o exame crítico do Plano Trienal,
anunciavam muito expressivamente o estilo conciliador que iria
predominar durante o governo Goulart — autêntico "governo de
trapézio", segundo o julgamento de um jornalista político. No
Ministério encontravam-se políticos conservadores do PSD (Antônio
Balbino e Amaral Peixoto), petebistas do grupo "fisiológico" (San
Tiago Dantas e José Ermírio de Moraes — um dos expoentes da
chamada "burguesia nacional"), um petebista do "grupo compacto" ou
"ideológico" (Almino Afonso), técnicos "apartidários" como Celso
Furtado e militares "duros" como o gal. Amaury Kruel. Por outro
lado, o Plano Trienal, na sua formulação teórica, julgava poder
harmonizar e satisfazer interesses contraditórios — de patrões e
empregados, de proprietários e trabalhadores assalariados. Quais
os principais objetivos e propostas do Plano?

Plano Trienal: "combater a inflação com desenvolvimento"

Diante das duas mais importantes tendências do comportamento


da economia brasileira no início dos anos 60 — "aceleração
inflacionária" (37% em 1961 e 51% em 1962) e "desaceleração do
crescimento"-(taxa de 7,3% em 1961 e 5,4% em 1962) —, o Plano
trienal pretendia compatibilizar o combate ao surto inflacionário
com uma política de desenvolvimento que permitisse ao país retomar
as taxas de crescimento do PIB (em torno de 7%) alcançadas durante
o período de 1957 a 1961. Como reconheciam os setores de esquerda,
o Plano constituía-se num avanço em relação às teses ortodoxas
dominantes, pois buscava combater o processo inflacionário "sem
sacrifício do desenvolvimento". Paralelamente a estes dois obje-
tivos principais, o Plano pretendia contribuir para uma melhor
distribuição dos frutos do desenvolvimento econômico, juntamente
com "a redução das desigualdades regionais de níveis de vida".
Enfatizava, porém, o Plano Trienal, que se o processo
inflacionário não fosse reduzido a limites toleráveis, o País —
com uma iminente hiperinflação (prevista em 100% para fins de
1963, caso o plano de estabilização falhasse) — teria toda a sua
atividade econômica paralisada e, conseqüentemente, passaria a ser
o palco de perigosas lutas sociais.
Tanto a análise feita pelo Plano sobre as causas do processo
inflacionário, como as soluções ali apontadas, não deixariam de
ser objeto de intensas polêmicas. Do lado do setor externo,
admitiam as esquerdas que era correta a afirmação segundo a qual a
inflação era provocada pela drenagem de recursos de recursos para
o exterior (através da "deterioração das relações de trocas") e
pela transferência de renda (na forma de subsídios governamentais)
para o setor exportador. Contudo, os "remédios" propostos — "refi-
nanciamento da dívida externa" e "entrada de recursos externos"
para a amortização de empréstimos anteriormente contraídos — eram
praticamente ineficazes como medidas antiinflacionárias; além do
mais, amortizar dívidas com a entrada de capitais estrangeiros
agravaria ainda mais o nosso endividamento no exterior. Para as
esquerdas, o Plano constituía-se numa nova capitulação ao
latifúndio e ao imperialismo: não se propunha a eliminação dos
subsídios ao setor latifundiário-exportador nem se reconhecia o
papel inflacionário representado pelas remessas ao exterior de
"juros, lucros e royalties, e a entrega de enorme soma de recursos
públicos às grandes companhias estrangeiras, diretamente e através
de isenções de impostos e favores cambiais" (H. Hoffmann, "O Plano
Trienal e a Inflação", in Estudos Sociais, nº 16).
Em relação ao setor público, a estratégia adotada para reduzir
a pressão inflacionária consistia num "conjunto de medidas de ação
convergente". Destacava, contudo, a "redução do dispêndio público
programado" como o mais importante fator responsável pela inflação
no País. Contra esta perspectiva, críticos à esquerda advertiam:
"(...) o nível de gastos públicos não pode ser comprimido se se
quer que a economia se desenvolva" (Paul Singer, Análise Crítica
do Plano Trienal). Como se verá mais adiante, a realidade não
deixará de dar razão a esses críticos.

Um plano antipopular e capitulacionista

Para o ministro da Fazenda, San Tiago Dantas, o êxito da


política econômico-financeira passava a depender da "compreensão
geral das áreas oficiais e não oficiais" acerca da "dramática
situação" que enfrentava o País. Era voz corrente, nos círculos
oficiais, que "o País não suportaria, no momento, nem
reivindicações salariais nem a pressão por maiores lucros, e as
medidas que se adotam para evitar que à conjuntura desemboque num
colapso financeiro devem ter a compreensão e a colaboração dos
dirigentes das classes produtoras e dos sindicatos de
trabalhadores" (Carlos Castello Branco, Introdução à Revolução de
1964). Na perspectiva do governo, nivelavam-se, assim, as "boas
vontades": de um lado, a dos empresários que deveriam moderar,
provisoriamente, o apetite por lucros crescentes; de outro, a dos
trabalhadores assalariados, que deveriam deixar de pressionar —
adiando, pois, suas greves e reivindicações — por salários mais
elevados. Ora, bem se sabia que tais reivindicações visavam, sim-
plesmente, recompor para a classe trabalhadora um nível de
participação menos deteriorado na renda nacional. (Como mostrou um
economista, a partir de 1958, com a única exceção de 1961, houve
uma acentuada deterioração do salário mínimo real.) (Francisco de
Oliveira, "Crítica à Razão Dualista", in Estudos Cebrap.) Apesar
da sua formulação teórica não considerar os salários como fatores
inflacionários, na prática, no entanto, o Plano pedia aos traba-
lhadores — como sempre o fazem os planos de "salvação nacional" —
"colaboração", "paciência" e "patriotismo". Mas, acima de tudo,
que (novamente) "apertassem os cintos"...
O entusiasmo governamental começou a se esboçar em fevereiro e
março, em virtude do apoio que o Plano recebia de associações das
"classes produtoras" (a Confederação Nacional da Indústria, CNI),
de governadores de estados etc; contudo, ele sofreria seus
primeiros e fortes abalos com as críticas vindas de setores
sindicais e das organizações políticas nacionalistas e de
esquerda. Logo nos primeiros dias de fevereiro um manifesto do CGT
revelaria que seria tormentosa a administração do presidente Gou-
lart. Nesse documento combatia-se a política financeira do Plano
Trienal, pois enquanto este deixava intactos os lucros fabulosos
do capital estrangeiro, dos latifundiários e dos grandes grupos
econômicos nacionais, impunha, por outro lado, maiores sacrifícios
às classes populares e trabalhadoras. Um crítico de esquerda
assinalaria: "(...) o Plano Trienal visa a combater a inflação sem
reduzir o crescimento econômico do país, no que se manifesta,
tipicamente, a inspiração da burguesia nacional. Do ponto de vista
dos defensores do Plano esta seria uma razão suficiente para que
os trabalhadores o apoiassem. A verdade é, porém, que esta não é
uma razão suficiente, mas uma razão burguesa e, portanto, inacei-
tável para os trabalhadores" (Jacob Gorender, "O Plano Trienal e o
Combate à Inflação", Novos Rumos, fevereiro de 1963).
As críticas avolumaram-se e se intensificaram a partir do
momento em que as conseqüências da política de eliminação de
subsídios ao trigo e ao petróleo (uma das medidas prioritárias no
combate à inflação) começaram a ser sentidas pelos setores popu-
lares. Em fevereiro, calculou-se que o fim da política de
subsídios aumentaria o custo do transporte em 40% e o preço do
trigo e do pão em 177%. Nos três primeiros meses de 1963, o índice
geral dos preços subiu 16%, enquanto no mesmo período de 1962 o
índice de aumento foi de 8%. A condenação ao Plano, unânime por
parte dos setores sindicais e populares e das organizações
políticas de esquerda (CGT, PUA, FPN, UNE, "grupo compacto" do
PTB, etc), iria ter repercussões dentro do próprio Ministério, na
medida em que a "diretriz de Almino Afonso no Ministério do
Trabalho, ao fortalecer as direções operárias mais independentes,
como o CGT, PUA, etc, colidiu com os interesses de Goulart" (Moniz
Bandeira, op. cit.). Do lado dos empresários (particularmente da
poderosa indústria automobilística concentrada em São Paulo) havia
"queixas generalizadas de falta de crédito". Diante das "violentas
críticas" destes setores — encampadas pela própria CNI — haverá,
no segundo trimestre de 1963, o relaxamento da política monetária
que fará os meios de pagamento crescerem de 179,4 bilhões de cru-
zeiros contra a expansão projetada de 74,1 bilhões, "o que afetou
definitivamente o esquema do Plano Trienal" (C. Lessa, op. cit.).
Os aspectos antinacionais da política econômico-financeira do
governo Goulart ficariam também evidenciados quando das
conversações entre Brasil e EUA acerca da negociação da
assistência econômica norte-americana e refinanciamento da dívida
externa. Em março de 1963, San Tiago Dantas viajava a Washington
com um forte argumento para convencer o governo norte-americano a
fornecer assistência financeira ao Brasil: o Plano Trienal era a
decisiva prova de que o País passava a se enquadrar dentro do
receituário econômico-financeiro propugnado pelo governo dos EUA e
pelo FMI. Mas- os EUA, além de exigirem um compromisso formal por
parte do governo brasileiro de que o plano "não ficaria apenas no
papel", impuseram ainda uma nova condição para a concessão do
empréstimo solicitado: o governo Goulart deveria resolver com a
máxima urgência a questão da desapropriação da AMFORP (American
Foreign Power, subsidiária da Bond & Share). Duas cartas de
Goulart foram entregues a Kennedy por intermédio de San Tiago Dan-
tas: nelas o governo brasileiro comprometia-se a cumprir as duas
exigências norte-ameri-canas. (Entre os políticos norte-americanos
circulava a versão de que a chamada "ajuda externa" dos EUA era
freqüentemente desperdiçada pela má administração aos governos
latino-americanos. No caso brasileiro, deixava, pois, de ser
informado que, "na verdade, o que ocorria não era uma
transferência de capitais dos EUA para o Brasil e, sim, ao
contrário, um escoamento de recursos do Brasil para os EUA". Entre
1947 e 1960 entraram (empréstimos e investimentos) US$ 1.814
milhões e "saíram no mesmo período.... US$ 2.459 milhões sob a
forma de remessas de lucros e juros, deixando um saldo negativo da
ordem de USS 645 milhões" que, "acrescidos de US$ 1.022 milhões,
sob a rubrica Serviços, ou seja, remessas de lucros clandestinas,
perfaziam um total de USS 1.667 milhões. Em suma, num período de
13 anos, um volume considerável de dólares foi transferido do
Brasil para os EUA. Rigorosamente, exportávamos muito mais
capitais do que recebíamos" — Moniz Bandeira, op. cit.)
Para tornar ainda mais complicada a situação do governo
brasileiro nas negociações de Washington, um porta-voz do
Departamento de Estado — baseado nos relatórios de Mr. Gordon
enviados regularmente da embaixada norte-americana no Brasil —
alertava a opinião pública de seu país sobre a "perigosa atuação
de comunistas" dentro da assessoria técnica de Goulart. Apesar das
duas cartas do governo brasileiro (onde se garantia o acatamento
às exigências norte-americanas) e de uma solene declaração oficial
que negava a existência de "esquerdistas" na assessoria
governamental, os EUA aprovaram um empréstimo de apenas USS 84
milhões, prometendo USS 314,5 milhões para o ano fiscal de 1964,
caso as medidas de contenção inflacionária fossem efetivamente
aqui aplicadas; antes, contudo, deveriam elas ser aprovadas por
uma comissão do FMI, cuja visita ao Brasil estava prevista para
meados de 1963. Embora os "brios nacionalistas" do governo
brasileiro fossem feridos — noticiou-se que San Tiago Dantas
ameaçara abandonar as negociações com os EUA —, "razões
pragmáticas" fizeram com que as imposições norte-americanas fossem
aceitas, conforme se verificou através do acordo Dantas/ Bell.
O caso da compra da AMFORP — o "escândalo da AMFORP" como
ficou conhecido na imprensa da época — transformou-se em grave
problema político para a administração Goulart. Enquanto retirava
os subsídios para o trigo e o petróleo e cortava alguns
investimentos públicos, sob o pretexto de combater a inflação, o
governo brasileiro anunciava, em fins de abril, que se ultimavam
os entendimentos para a compra da AMFORP (que congregava 12
empresas de serviços públicos). San Tiago Dantas e Roberto Campos
(que a esquerda nacionalista ironicamente chamava de "Bob Fields",
por ser ele um "refinado entreguista") tinham acertado com os
representantes da empresa norte-americana o valor da transação:
188 milhões de dólares. Na mesma ocasião, um grupo de trabalho
integrado por técnicos brasileiros (CONESP) — dissolvido logo a
seguir por Goulart — avaliava os bens da AMFORP em torno de 57 mi-
lhões de dólares. Para os setores nacionalistas, estava-se diante
de uma imensa negociata, pois, além do preço extorsivo, as 12
usinas norte-americanas estavam obsoletas, constituindo-se em
verdadeiro "ferro velho". Tais denúncias tiveram ampla repercussão
Política. Goulart recuou, protelando a realização da compra, para
desagrado do governo norte-americano. (Em outubro de 1964,
demonstrando eloqüente "boa vontade" para com os empresários e
governo dos EUA, o governo do mal. Castelo Branco adquiria a
AMFORP.)
O prestígio político de Goulart foi seriamente abalado neste
episódio; inclusive os setores conservadores não lhe pouparam
duras críticas, ao ser conivente com negociações que os grupos
nacionalistas classificavam de autêntico "crime de lesa-pátria". O
plano, antes de completar 6 meses de duração, inviabilizava-se
política e economicamente. Nem os emprésários, nem os
trabalhadores lhe ofereciam qualquer apoio. Em maio, o Ministério
da Fazenda, diante das fortes pressões dos assalariados, tomava
uma decisão inteiramente contrária às projeções do Plano, ao
conceder um aumento de 70% aos funcionários civis e militares,
quando estava previsto apenas 40%. De outro lado, como já foi
mencionado, o governo — face às reivindicações de setores indus-
triais — voltaria atrás em suas medidas de contenção do crédito.
O malogro do Plano se revelou de forma completa ao se proceder
ao balanço do ano de 1963: nem desaceleração da inflação, nem
aceleração do crescimento foram alcançadas. Houve, sim, inflação
sem desenvolvimento. Razão, pois, tinham os críticos de esquerda
quando — denunciando a retórica progressista do Plano — advertiam
para os aspectos recessionistas, antipopulares e antinacionais das
medidas concretas ali propostas.

As reformas: como garantir a propriedade


e impedir a "convulsão social"

Outra batalha política que esteve em pauta durante todo o


governo Goulart foi a das Reformas de Base (Agrária, Bancária,
Administrativa, Fiscal, Eleitoral, Urbana, etc). Recorde-se que
esta problemática fazia parte dos programas dos três gabinetes
parlamentaristas e agora aparecia como um dos objetivos básicos do
Plano Trienal. (Como se encarregavam de divulgar os confidentes e
cronistas palacianos, Goulart queria notabilizar-se na história
política do Brasil como o "presidente da Reforma Social".)
Reconhece-se, no entanto, que a bandeira das Reformas passou a ser
empunhada pelo governo, de forma mais enérgica, no período
presidencialista, apenas a partir do instante em que se começou a
perceber o malogro do Plano Trienal. Logo nos primeiros meses do
ano, análises feitas pelas esquerdas não apenas denunciavam o
"cozimento em água fria das reformas" — amplamente agitadas por
Goulart durante a campanha do Plebiscito —, como também passavam a
duvidar do conteúdo efetivamente transformador de que poderiam se
revestir as propostas governamentais (Caio Prado Jr., Revista
Brasiliense, nº 44). Qual seria, enfim, a perspectiva oficial
acerca das Reformas de Base?
Assinala um sociólogo que, na visão dos governantes, "se não
houvesse Reformas de Base (...) não se criariam as novas
'condições institucionais' para o desenvolvimento de outra etapa
da economia brasileira" (Octavio Ianni, Estado e Planejamento
Econômico no Brasil); significava isso — conforme o reconhecimento
do próprio Plano Trienal — que as Reformas de Base eram
indispensáveis, ao lado do planejamento, a fim de que o
capitalismo industrial brasileiro pudesse alcançar um nível de
desenvolvimento superior. Afirmava o Plano, por exemplo, que as
reformas fiscal e agrária eram essenciais se se pretendesse a
"eliminação de entraves institucionais à utilização ótima dos
fatores de produção". Razões econômicas e sociais impunham a
urgente realização das reformas, dentre elas a que mais debates
provocou naquele período: a Reforma Agrária.
De um lado, era preciso aumentar a produção agrícola
(alimentos que suprissem as demandas da população urbana em
crescimento; matérias-primas para a expansão industrial etc), ao
mesmo tempo que se buscava criar um mercado interno mais amplo
para os bens manufaturados. De outro lado, prevendo-se situações
incontroláveis de tensões e distúrbios sociais, propunha-se uma
melhor redistribuição da terra (em mãos de um reduzido número de
latifundiários e freqüentemente mantida de forma improdutiva). É
exemplar a este respeito o testemunho de um dos mais íntimos
colaboradores de Goulart, acerca da concepção que este defendia de
Reforma Agrária: "(...) o que Jango tentava fazer não tinha nada
de muito ousado nem de radical. Ele dizia sempre que, se o número
de proprietários rurais fosse elevado de 2 para 10 milhões, a
propriedade seria muito melhor defendida, e simultaneamente
possibilidades maiores seriam abertas a mais gente de comer mais,
de se educar melhor, de viver mais dignamente. Por isso é que
Jango, latifundiário, queria fazer a Reforma Agrária para defender
a propriedade e assegurar a fartura, evitando o desespero popular
e a convulsão social" (Darci Ribeiro, "Governo Goulart caiu por
suas qualidades, não por seus defeitos", in A História Vivida II —
O ESP, grifos nossos).
Apesar de não ter nenhum sentido revolucionário,
correspondendo, pois, de um lado, às necessidades da consolidação
do capitalismo industrial e, de outro lado, à estratégia da
dominação social burguesa, a Reforma Agrária proposta por Goulart
será objeto de intensa e constante oposição por parte dos
proprietários rurais e seus setores políticos, de setores da
Igreja Católica, etc. (Recorde-se que, no período parlamentarista,
idêntica foi a reação desses grupos. A diferença estava no fato de
que naquele momento Goulart não tinha ainda formulado oficialmente
a sua proposta de Reforma Agrária e de Reforma Constitucional.)
Tais setores não admitiam, por exemplo, a alteração dos preceitos
constitucionais sob a alegação de que — caso isso viesse a ocorrer
— corria-se o risco de ser invalidado o estatuto da propriedade
privada no Brasil... Além do mais, conforme assinalou um
historiador, as demais reformas propostas (eleitoral, educacional
etc.) poderiam implicar a "alteração do equilíbrio político" e
permitia até então a hegemonia das forças conservadoras e de
direita, particularmente no Legislativo. A preocupação política
maior das classes dominantes diante das possíveis mudanças no
campo são ressaltadas por uma estudiosa: "Havia, sem dúvida, o
incontrolável temor de se ver ingressar na cena política camadas
sociais constituídas em 'clientelas políticas' que pudessem ser
enquadradas, tal como o fora a classe operária com Getúlio Vargas.
Tais temores eram, sem dúvida, realimentados pela aceleração da
eclosão de conflitos rurais, que cada vez mais se orientavam para
a ocupação de terras" (Aspásia Camargo, op. cit.).
Enquanto setores do PSD — apesar dos fortes compromissos do
partido com os proprietários rurais — chegaram, num primeiro
momento, a aceitar a discussão do anteprojeto do Executivo, a UDN
fechava a questão contra qualquer alteração constitucional. Mas, a
posição do PSD será outra a partir da Convenção da UDN realizada
em abril de 1963. (Na cronologia do golpe de 64, esta reunião da
UDN teve um papel decisivo: nela, ilustres figuras do partido
defenderam a intervenção das Forças Armadas e dos EUA a fim de
porem termo ao "comunismo legal" de Goulart.) Influenciado pelas
manifestações das chamadas "bases" da UDN, o PSD recuará
definitivamente face às suas primeiras conversações com o governo.
Tal fato mostrou-se de forma evidente na votação da "emenda
Bocaiúva" (emenda constitucional, apresentada pelo PTB, que
buscava tornar financeiramente viável a Reforma Agrária). Por 7
votos (PSD, UDN e PSP) contra 4 (PTB e PDC), a emenda seria
rejeitada na Comissão Especial da Câmara, no mês de maio. Em
Plenário, a emenda foi derrotada, em outubro, graças à aliança PSD
e UDN — após intensa mobilização dos proprietários rurais,
comandados principalmente pela Confederação Rural Brasileira(CRB).
Como ainda observaria a autora acima, a partir do veto na
Comissão Especial, os setores nacionalistas desencadeariam uma
campanha de pressão nacional sobre o Congresso para a imediata
aprovação das reformas. Através de comícios, passeatas, mani-
festos, os setores nacionalistas e populares exigem "reformas
já!", ao mesmo tempo que denunciam o reacionarismo do Congresso
controlado pelo PSD UDN e pelo "milionário IBAD". (Brizola diria
que o PSD e a UDN, ao exigirem o pagamento prévio e em dinheiro,
tornavam a questão agrária em autêntico "negocio agrário".)
De outro lado, após ter sido batido na Comissão Especial,
Goulart — apesar das fortes críticas vindas dos grupos
nacionalistas e de esquerda — volta-se novamente para o PSD. Em
busca de apoio, aceita mudanças no anteprojeto de Reforma Agrária
do executivo, a fim de torná-lo "menos radical" e, assim,
aceitável para o conservadorismo do PSD. Para isso, afastou toda a
"assessoria gaúcha", vinculada politicamente a Leonel Brizola, que
não concordava em fazer "concessões programáticas" no anteprojeto.
Porém, serão infrutíferos os esforços do novo ministro da Justiça,
Abelardo Jurema, figura de relevo do PSD, a quem foi atribuída a
específica tarefa de articular a antiga aliança PSD/PTB. (Jurema
sintetizaria a visão conciliadora do governo através de uma famosa
frase: "O PSD sem o PTB irá para a reação; o PTB sem o PSD irá
para a Revolução".) Idêntica missão foi confiada a Tancredo Neves
(PSD) ao ser indicado líder da bancada do Governo na Câmara.
Porém, o fosso entre o PTB e o PSD aprofundava-se na razão direta
da aproximação deste com a UDN, os quais se alarmavam com a
"agitação social", a "desordem" e a "comunização crescente do
país" promovidas — segundo estes — por Goulart, pelo PTB e pelas
"forças subversivas" (CGT, UNE, FMP, etc).
De outro lado, os setores nacionalistas e de esquerda,
criticavam Goulart pela sua indecisão e indefinição em relação a
uma série de medidas concretas de caráter nacionalista e popular
que poderiam ser tomadas pelo governo, independentes de qualquer
reforma constitucional. Entre essas medidas — algumas delas
defendidas pelo próprio presidente em seus discursos — ressaltavam
as seguintes: regulamentação da Lei de Remessa de Lucros (aprovada
pelo Congresso, mas "engavetada" pelo Executivo); nacionalização
das concessionárias de serviços públicos, moinhos, frigoríficos e
indústria farmacêutica; intervenção no mercado de gêneros
alimentícios; monopólio das operações de câmbio pelo Banco do
Brasil; monopólio das exportações de café pelo IBC; ampliação do
monopólio estatal do petróleo, etc.
Administrativamente pouco se realizava, pois o governo se
consumia em sucessivas crises políticas. Como assinalavam os
observadores políticos, havia — do ponto de vista administrativo —
"uma pasmaceira geral contaminando todas as hostes governistas";
da mesma forma, o Congresso apresentaria em 1963 um dos seus
períodos de maior improdutividade legislativa. Esta realidade dava
munição aos setores de direita que alardeavam a "incompetência
administrativa" do Executivo e a "crise de autoridade".

O isolamento e debilidade política do governo

A sucessão de crises políticas advinha das contradições em que se


debatia o governo: ao mesmo tempo que agitava a bandeira do
nacionalismo e das Reformas — solicitando, pois, o apoio das
massas populares e dos setores políticos de esquerda — Goulart,
por outro lado, protelava indefinidamente a realização de medidas
populares, afastava colaboradores ideologicamente progressistas,
combatia os setores independentes (não pelegos) do movimento
sindical, condenava abertamente iniciativas políticas de esquerda
(em abril de 1963, na cidade de Marília, SP, usou a típica
linguagem de direita ao proibir um congresso "comuno-fidelista").
As concessões à reação não se reduziam a estes fatos, pois o
governo reservava os cargos mais importantes da administração
federal (particularmente aqueles responsáveis pelapolítica
econômico-financeira) apenas para os representantes das classes
dominantes, indicava também "duros" das Forças Armadas para
estratégicos postos de comando e mantinha compromissos com o
conservador PSD.
Sob a permanente desconfiança da direita e da esquerda, o
governo Goulart acabaria isolando-se politicamente. A ambigüidade
e a debilidade política do governo se mostrariam de forma
definitiva no episódio do Estado de Sítio. No dia 4 de outubro, o
presidente da República encaminhava ao Congresso mensagem
solicitando a decretação do Estado de Sítio em todo o território
nacional, pelo prazo de 30 dias. A justificativa do Ministério da
Justiça esclarecia que o Executivo necessitava de poderes espe-
ciais para impedir "grave comoção intestina com caráter de guerra
civil" que punha em "perigo as instituições democráticas e a ordem
política". Explicitamente eram indicadas algumas das situações in-
ternas que perturbavam a ordem institucional: "manifestações
coletivas de indisciplina" nas polícias militares de alguns
estados; "sublevação de graduados e soldados" (Revolta dos
Sargentos) que punha em risco a disciplina e hierarquia militares;
as freqüentes reivindicações salariais que passavam a "ser fatores
de agravamento da crise político-social" (na ocasião ocorria a
greve dos bancários em São Paulo e o PUA anunciava a decretação de
uma greve geral caso aquela paralisação fosse julgada ilegal por
parte da justiça trabalhista) e, por fim, o fato de existirem
governadores de importantes estados "conspirando contra a Nação".
A ira de Goulart e de seus ministros militares voltava-se
particularmente contra o governador da Guanabara que, em
entrevista a um jornal norte-ameri-cano (Los Angeles Times), havia
ridicularizado a autoridade do presidente da República, além de
insinuar que os militares brasileiros estavam confusos e
desorientados diante de uma administração inteiramente
"desastrosa" para o país. Coerente com a "vocação golpista" de seu
partido, Carlos Lacerda conclamava o Departamento de Estado a
deixar de lado sua "passividade" face à grave situação em que se
encontrava o Brasil, presidido por um "totalitário à moda sul-
americana" e que "descambava para a esquerda". Não havia dúvida de
que o Estado de Sítio objetivava, imediatamente, a intervenção na
Guanabara e a conseqüente derrubada do conspirador-mor da UDN.
(Carlos Lacerda afirmaria, posteriormente, que havia escapado,
naqueles dias, de um atentado por parte de um comando pára-
quedista a mando de Goulart. Embora a denúncia fosse negada por
oficiais militares, a UDN e o PSD conseguiram aprovar a
constituição de uma Comissão Parlamentar de Inquérito a fim de
apurar a denúncia de Lacerda.) Logo a seguir, caso manifestasse
solidariedade ao seu aliado da Guanabara, poderia "rolar a cabeça"
do governador de São Paulo, Adhemar de Barros — acusado de
fornecer armas (contrabandeadas da Bolívia) a grupos paramilitares
("milícias patrióticas"). Mas, indagavam os setores de esquerda:
quem garantiria que Miguel Arraes também não fazia parte da "lista
de saneamento" elaborada pelos militares, com a inteira complacên-
cia de Goulart? Idêntica pergunta faziam as lideranças sindicais e
populares de todo o País acerca do destino que viriam a ter as
organizações em que militavam.
Embora por razões distintas, todos os grupos políticos e
associações de classe — à direita e à esquerda — opuseram-se à
concessão do Estado de Sítio (apenas os setores "pelegos" do
movimento sindical e fração do PTB tradicionalmente fiel a Goulart
tentaram o apoio inútil à medida de força). Os setores
nacionalistas e de esquerda viam no Estado de Sítio uma grave
ameaça às liberdades democráticas e aos movimentos progressistas.
Afirmava, por exemplo, uma nota do CGT: "Somos, por princípio,
contrários ao Estado de Sítio porque entendemos que a manutenção e
ampliação das liberdades democráticas são meios insubstituíveis e
necessários às lutas contra os inimigos do Brasil e aos interesses
da povo". A direita, por seu lado, via no Estado de Sítio uma
tentativa de golpe tramada por Goulart a fim de permanecer no
poder, tal como o fizera Getúlio Vargas em 1937. Diferentemente da
ditadura estadono-vista, estaríamos, então, face a uma "ditadura
esquerdizante", proclamavam os setores de direita.

Quem dará o golpe?

Nos meses seguintes ao frustrado pedido de Estado de Sítio —


retirado pelo governo tão logo se deu conta da fragorosa derrota
que sofreria no Congresso —, ressurgiria, mais vigorosamente ainda
na cena política, o fantasma do golpe de Estado. Na visão da
direita era Goulart quem o articulava através de seu "dispositivo
militar" e com a colaboração de setores de esquerda. Enquanto a
direita promovia uma sistemática campanha alarmista, verberando o
"golpe de Jango", as esquerdas — que não deixavam de denunciar a
trama golpista da direita — levantavam suspeitas e desconfianças
face ao governo. Ainda no mês de outubro, como assinalou um
cronista político, as esquerdas se sentiriam "abandonadas por
Goulart".! Alguns fatos pareciam comprovar essa observação:
substituição de Bocaiúva Cunha ("grupo compacto") . por Doute1 de
Andrade; contactos com o PSD; autorização da chamada "operação
Arraes" (treinamento o IV Exército, cujo objetivo foi o de fazer
uma "clara advertência" ao "governador esquerdista" de Pernambuco)
e a condenação, por parte do governo, de um congresso das forças
populares e de esquerda programado para fins de outubro em Recife.
Embora criticassem o governo, em virtude de suas constantes "idas
e vindas", as esquerdas entendiam que não lhes convinha romper
politicamente com Goulart. Levavam em conta, para tal decisão, o
avanço golpista da direita. Novamente a esquerda nacionalista
buscaria convencer Goulart de que a sua única "saída", diante do
seu crescente isolamento político, era vincular-se de forma
inequívoca e definitiva com os setores populares e progressistas.
Esta também seria uma condição fundamental, argumentavam os
setores de esquerda, para a efetiva realização das Reformas de
Base e para se impedir o golpe.
Uma longa entrevista de Goulart, concedida em novembro a uma
revista de ampla circulação em todo o País, ao mesmo tempo que
provocava contundentes críticas da direita (os líderes da UDN
identificavam no depoimento do presidente um "esforço de prepa-
ração de ambiente subversivo"), ia, por outro lado, reforçar as
expectativas das esquerdas de influírem sobre a composição de um
novo Ministério e de um novo programa de governo. No depoimento,
em tom pessimista e quase patético, Goulart reiterou a urgência
das reformas ("desejo evitar que a crise caminhe para um desfecho
caótico e subversivo"); denunciou as "forças reacionárias" anti-
reformistas; responsabilizou a "deterioração das relações de
trocas" como principal causa das dificuldades cambiais do País e
defendeu enfaticamente a "intervenção dos trabalhadores na vida
pública". Interpretando recente decisão política da Frente de
Mobilização Popular, Miguel Arraes, após se referir ao importante
depoimento de Goulart, iria expressar o programa das forças
populares face ao governo. A certa altura, afirmava a nota do
governador de Pernambuco: "(...) se o presidente da República,
fiel à sua formação política e aos compromissos que tem com as
massas trabalhadoras, deseja superar nossa aguda crise interna e
manter nossa política externa independente, ele precisa apoiar-se
nas 'forças populares' e com elas estabelecer um novo governo,
capaz de elaborar e executar um programa democrático, nacionalista
e progressista". Mais abaixo era esclarecido que, no "novo
governo", deveria estar garantida a "participação de
representantes das 'forças populares' em (seus) setores
fundamentais".
Durante o mês de dezembro, a FMP — particularmente o seu setor
"brizolista" — acalentou a esperança de ver Brizola ocupar o cargo
de ministro da Fazenda, em substituição a Carvalho Pinto. Para a
direita, que se alarmava com a intensa mobilização popular (um dos
slogans dizia: "Contra a espoliação, Brizola é a solução"), a
nomeação teria o sentido inequívoco de uma "provocação" e seria a
prova definitiva da consolidação da esquerda dentro do governo.
(Afirmavam os "brizolistas" que o novo ministro, logo após a sua
posse, decretaria a "moratória no plano internacional".)
Governadores de Estado (com a exceção de Pernambuco, Sergipe e
Piauí), PSD e UDN ameaçaram com represálias imediatas. No plano
internacional, os EUA — através da embaixada no Brasil —
declaravam que suspenderiam todas as operações de financiamento e
assistência, além de bloquearem suas relações comerciais com o
país (Carlos Castello Branco, op. cit.). Depois de alimentar, por
algumas semanas, as ilusões das esquerdas, o próprio Goulart — que
tinha ainda vivo na memória o episódio da desastrada indicação de
"Bejo" (Benjamim Vargas) para a chefatura de polícia do Distrito
Federal em 1945 — encarregou-se de "jogar água fria" na febril
agitação dos brizolistas. Para o Ministério da Fazenda foi
designado um banqueiro, Nei Galvão. Segundo era voz corrente,
tratava-se de um burocrata "despreparado para o cargo"; um "homem
de centro-direita" (Brizola diria que, com este ato, Goulart
afastava as forças populares da "ante-sala do Ministério da
Fazenda"). Igualmente tal decisão desagradou frações das classes
dominantes, pois Carvalho Pinto — tido como um eficiente
administrador — vinha, segundo esses setores, tentando revitalizar
algumas medidas de estabilização propostas pelo Plano Trienal. A
demissão de Carvalho Pinto representou, assim, o rompimento de um
dos últimos elos que a burguesia brasileira ainda mantinha com o
governo de Goulart.
O balanço do ano de 1963 revelaria de forma dramática o
fracasso da política econômica do governo: o índice geral dos
preços alcançou 78% (previa-se 25%); a taxa do PIB chegou ao ponto
mais baixo que se conhecia nos últimos anos, 1,5%; o déficit da
caixa do Tesouro Nacional atingiu 500 bilhões de cruzeiros
(previa-se 300 bilhões); os meios de pagamentos cresceram de 65%
(previa-se 34%). Sem crescimento econômico e com uma vertiginosa
inflação, o descontentamento passa a ser generalizado: nunca o
País assistiu, num curto período de tempo, ao surgimento de tantos
movimentos reivindicatórios. Os "tempos de Goulart" singularizam-
se dentro da história política brasileira: neles, a política
deixou de ser privilégio do parlamento, do governo e as classes
dominantes, para alcançar de forma intensa a fábrica, o campo, o
quartel.
A POLITIZAÇÂO DA SOCIEDADE — ESQUERDA E DIREITA MOBILIZAM-SE

O recrudescimento da luta de classes no início dos anos 60 foi


responsável por uma intensa politização de inúmeros movimentos
sociais, além de implicar transformações no sistema partidário e
na vida parlamentar.
Uma das dimensões da crise do sistema partidário brasileiro
residiu no fato de que os partidos políticos legais — em número de
13 nas eleições de 1962 — mostravam-se incapazes de refletir, em
toda a sua extensão, a correlação de forças existentes no interior
da formação social. Igualmente era reconhecido que tais
agremiações políticas reproduziam com pouca fidelidade a
diversidade das tendências e dos conflitos ideológicos que
perpassavam a realidade social do País (O. Brasil de Lima Jr., O
Sistema Partidário Brasileiro).

A crise do sistema partidário: FNP versus ADP

A "crise de representatividade" dos partidos políticos


evidenciava-se por alguns sintomas característicos; nas duas
últimas eleições, verificou-se tanto um aumento do número de votos
em branco e nulos ("votos de protesto"), como o número de alianças
e coligações (em alguns estados, assistiu-se à formação de
"esdrúxulas" alianças entre o PTB e UDN; 47% dos eleitos pela
Câmara Federal vieram de coligações).
A luta ideológica de classes — que se expressava pelo
confronto entre diferentes orientações acerca das reformas sociais
("radical", "modernização-conservadora", anti-reformismo) e acerca
do nacionalismo (antiimperialismo, nacionalismo moderado,
entreguismo) implicará na divisão dos grandes partidos em alas e
facções, cujos pontos de vista sobre aquelas questões eram,
freqüentemente, irreconciliáveis.
Neste sentido, os dois maiores partidos conservadores do País
(PSD e UDN) — em 1962 detêm, juntos, 54% da representação na
Câmara Federal — refletiram em suas fileiras a polarização
ideológica que ocorreu no período de Goulart. O PSD — partido que
sempre se beneficiou da máquina administrativa do Estudo (no nível
federal e estadual) — não deixou de ter os seus "dissidentes", a
"ala moça". contrariamente às perspectivas da maioria dos membros
do partido — comprometida com a defesa dos grandes proprietários
rurais e dos "industriais tradicionais" —, este pequeno núcleo do
PSD condenava o anti-reformismo visceral de suas "elites" e
apoiava as Reformas de Base e algumas propostas nacionalistas. A
UDN também teve a sua ala progressista: a "Bossa Nova", que
defendeu as Reformas (inclusive a reforma constitucional), a
política externa independente, a lei de remessa de lucros, a
democratização do ensino, etc. — teses a que se opunha
energicamente a ortodoxia reacionária dos setores dirigentes do
partido (Maria Victoria Benevides, A UDN e o Udenismo). O PTB —
que, ao contrário dos outros dois partidos, teve um significativo
crescimento em todo o período liberal-democrático —, igualmente
se encontrava fraccionado. O partido — cujos quadros provinham
principalmente do Ministério do Trabalho — apresentava-se dividido
em duas grandes facções: o "grupo compacto" (ou "ideológico") e o
"grupo fisiológico". Enquanto o primeiro procurava manter uma
linha de independência face ao comando populista de Goulart, o
segundo aceitava, sem a menor restrição, a política de conciliação
do presidente da República, que acumulava também a função de
presidente nacional do PTB. Esta facção do partido postulava a
realização de reformas sociais "não radicais" e, para isso,
defendia uma maior aproximação com o PSD. Na formulação de San
Tiago Dantas, tratava-se de uma "esquerda positiva" —
"construtiva", pragmática, "não ideológica". Por seu lado, o
"grupo compacto" destacou-se por uma negação da tradicional
política clientelística desenvolvida pela "velha guarda" petebista
que controlava a burocracia sindical e a máquina da Previdência
Social. Contra o "fisiologismo", entendia este grupo que o PTB
deveria ter uma atuação política que correspondesse a uma
orientação ideológica mais nítida e mais definida. Ao defender a
realização de reformas de base de cunho radical e propugnar
medidas político-econômicas de caráter anti-imperialista, o "grupo
compacto" identificava-se com os demais setores da esquerda
nacionalista brasileira.
A Frente Parlamentar Nacionalista (FPN) e Ação Democrática
Parlamentar (ADP) surgirão na cena política com o propósito de
articular, respectivamente, "progressistas" e "conservadores" que
atuavam nos diferentes partidos políticos. Tais organizações
suprapartidárias constituíam-se, assim, na demonstração eloqüente
do aguçamento das contradições sociais e da conseqüente
intensificação da luta ideológica de classes no seio da formação
social brasileira. O chamado "realinhamento do sistema par-
tidário", nos anos 60, realizava-se, pois, através desses dois
"superpartidos" dentro do Congresso. Os mais importantes projetos
e discussões que passavam pelo Legislativo tinham, na verdade,
suas decisões encaminhadas por estas duas entidades. Nas votações
em plenário, a fidelidade dos parlamentares era dada, em muitas
ocasiões, não aos partidos aos quais pertenciam, mas a uma
daquelas organizações. Esta situação levava algumas lideranças
políticas conservadoras a lamentar a debilidade dos partidos e a
"desordem" da vida parlamentar: "(...) estas duas frentes
parlamentares, FPN e ADP, em muito concorreram para a balbúrdia
que se instalou no Congresso, principalmente na Câmara, durante
todo o governo Goulart. Quase que os partidos desapareceram e as
lideranças, de governo e de oposição, passaram a ter existência
nominal (...)" (Abelardo Jurema, Sexta-feira 13). Enquanto a FPN
reunia a maioria dos deputados federais do PTB e do PSB (mais os
setores "nacionalistas" do PSD, UDN e PDC), a ADP tinha seu núcleo
básico proveniente da aliança PSD/UDN/PSP e dos demais pequenos
partidos. Até mesmo alguns deputados do PTB — de uma diminuta "ala
direita" — alinhavam-se com o reacionarismo e o entreguismo da
ADP.
A politização à esquerda

A luta política e a luta ideológica, no entanto, não estiveram


reduzidas à esfera político-institucional; pelo contrário, elas
alcançaram seus mais significativos desdobramentos a partir do
momento em que envolveram outros setores da sociedade brasileira.
De um lado, estariam os trabalhadores urbanos e rurais, os
soldados, os estudantes; de outro, os empresários, os militares, a
Igreja, etc.
O sindicalismo brasileiro, no triênio 61/63, alcançou um dos
seus momentos de mais intensa atividade (de 1958 a 1960, no
governo Kubitschek, tinham ocorrido no País cerca de 177 greves,
enquanto nos três anos seguintes foram deflagradas um total de 435
paralisações); o que mais distinguiu o movimento sindical nestes 3
anos, porém, foi o seu crescente engajamento nas lutas partidárias
dessa conjuntura de crise. "O envolvimento dos sindicatos nas
lutas políticas tornou mais urgente a necessidade de unificar a
ação dos sindicatos cujas direções seguiam a mesma orientação
política. Deste modo, na medida em que as disputas ideológicas
envolviam o sindicalismo brasileiro, assistiu-se à formação de
diferentes organizações de coordenação que agrupavam sindicatos de
tendências diferentes" (L. Martins Rodrigues, Sindicalismo e
Classe Operária).
Foi assim que surgiram, em fins dos anos 50 e início de 60, o
CPOS, o PUA, o PAC, o Fórum Sindical de Debates de Santos (SP),
etc. Da mesma forma que as demais uniões sindicais, o Comando
Geral dos Trabalhadores (CGT) nasceu de movimentos grevistas: em 5
de julho de 1962, lideranças comunistas e trabalhistas que
apoiavam o governo de Goulart criaram o Comando Geral de Greve a
fim de coordenar uma greve nacional em defesa de um "gabinete
nacionalista". No mês seguinte, por ocasião do IV Encontro
Sindical Nacional, três mil trabalhadores propuseram a
transformação do CGG em CGT. Embora contrariasse a legislação
sindical brasileira — que ainda hoje proíbe a criação de
organizações sindicais horizontais — o CGT funcionou até abril de
64; houve, inclusive, em abril de 63, uma tentativa no final
frustrada pela Justiça — do então ministro do Trabalho, Almino
Afonso, no sentido de legalizar esta central sindical nacional,
apesar dos veementes protestos das classes dominantes.
No triênio 61/63, o CGT e outros organismos de alianças
intersindicais tiveram uma intensa atuação política. Diversos
acontecimentos e circunstâncias políticas levaram o CGT e estes
órgãos a decretarem (ou ameaçarem) greves políticas. Algumas das
razões dessas decisões foram: defesa da posse de Goulart em,
agosto de 1961, pressão para convocação do Plebiscito, defesa da
Revolução Cubana, ameaçada pelos EUA por ocasião da "crise dos
mísseis", pressão sobre o Congresso para a aprovação das Reformas
de Base, apoio aos sargentos, negação do Estado de Sítio, etc.
Para afronta dos setores de direita, os líderes do CGT eram
freqüentemente reconhecidos como interlocutores do presidente da
República e de importantes lideranças políticas do País. Daí a
fama que passaram a ter de "Quarto Poder" da República...
Não obstante tenha demonstrado uma relativa independência face
ao comando de Goulart e de sua assessoria sindical —
particularmente por ocasião de algumas crises políticas e durante
a realização de algumas greves —, o CGT colaborou estreitamente
com o governo, apoiando-o publicamente na maioria de suas
iniciativas políticas. Tal compromisso era justificado pelo fato
de a ideologia nacional-reformista elaborada pelo PCB e hegemônica
dentro do CGT ser convergente com as propostas reformistas do
governo Goulart. Contudo, o controle político da entidade por
parte de comunistas e petebistas de esquerda sempre foi aceito com
muitas reservas por parte de Goulart; tentativas foram feitas pelo
governo para "criar a sua própria base no meio sindical" – foi o
caso, por exemplo, do apoio de Goulart à fracassada UST e ao
arquipelego Ari Campista por ocasião da eleição para a renovação
da diretoria do CNTI, em 1963.
Razão parece ter um estudioso quando observa: "o CGT foi mais
uma organização política das lideranças comunistas e
nacionalistas, destinada a ampliar seu poder de pressão na
coligação nacional-populista, do que um organismo sindical
propriamente dito" (L. Martins Rodrigues, op. cit.). Como com-
provação desta última afirmativa, cita-se, entre outras, a
preocupação secundária do CGT com o fortalecimento dos sindicatos
no interior das empresas. Ou seja, absorvido pelas grandes
batalhas nacionais — lutas pelas reformas estruturais, pela
limitação do capital estrangeiro espoliativo, pela defesa das
liberdades democráticas, pela ampliação do papel do Estado na
economia, etc. —, o CGT deixou de realizar um trabalho permanente
junto às bases sindicais. De outro lado, deve ser observado que as
greves políticas deflagradas pela organização tiveram êxito apenas
junto às empresas estatais ou controladas pelo governo, sendo
praticamente nula a participação do operariado de São Paulo
(empresas privadas, nacionais e estrangeiras) nessas paralisações
de caráter político. Ressaltou um pesquisador que a maioria das
greves políticas alcançou sucesso quando obteve o "apoio tácito
dos militares". Igualmente é sublinhado o fato de tais greves
coincidirem com períodos onde ocorria um pronunciado declínio do
salário real, pois "a inflação predispunha os trabalhadores a sair
às ruas" (K. Erickson, Sindicalismo no Processo Político do
Brasil). A debilidade político-organizativa deste chamado "Quarto
Poder" (ou "V Exército", como a ele se referia Jango) ficou
definitivamente evidenciada quando, em abril de 1964, a classe
operária brasileira assistiu — sem nenhuma resistência — à
preparação e ao desfecho dó golpe antipopular e antioperário.
A politização dos movimentos de trabalhadores do campo
igualmente se constituiu numa realidade nova dentro da história
política brasileira. "No final dos anos 50, a amplitude que assume
a proletarização da força de trabalho e suas repercussões na
conjuntura política do momento permitiram que se manifestasse uma
reação massiva dos foreiros e dos trabalhadores rurais, dando
origem ao que se chamou globalmente de 'movimento camponês'" (M.
Nazareth Wanderley, Capital e Propriedade Fundiária). As Ligas
Camponesas nasceram da resistência — muitas vezes armada — dos
foreiros (pequenos agricultores e não proprietários) contra a ten-
tativa de expulsão das terras onde trabalhavam, movida pelos
proprietários; de 1959 a 1962, as Ligas tiveram uma acelerada
expansão em todo o Nordeste. As Ligas contestavam, abertamente, a
dominação política e econômica a que estavam secularmente
submetidas as massas rurais. Em algumas localidades, ocorreram
conflitos armados entre "camponeses" e proprietários de terra;
lideranças camponesas serão perseguidas e assassinadas a mando dos
latifundiários, alarmados com a politização das massas rurais.
Para Francisco Julião, deputado federal por Pernambuco, cuja
legendária fama advinha da liderança que exercia sobre as Ligas, a
luta é contra o latifundiário: "não vemos inimigo no soldado, no
padre, no estudante, no industrial, no comunista; o inimigo é o
latifundiário". Neste sentido, a principal bandeira empunhada
pelas Ligas foi a Reforma Agrária Radical. Na luta pela Reforma
Agrária, as Ligas associam-se às demais organizações políticas de
todo o País que, através de comícios, passeatas, manifestos,
pressões diretas sobre o Congresso, clamam pela realização das
Reformas de Base. (Julião e as Ligas Camponesas, durante muito
tempo, foram objeto de extensas reportagens em conhecidas revistas
semanais do País e do exterior [Time, Look etc]). O Nordeste
faminto e sedento, tal como era caracterizado nessas matérias —
onde se enfatizava também a Presença de "perigosa literatura
subversiva" no seio das Ligas —, estava a um passo de uma "guerra
camponesa".)
Paralelamente, os trabalhadores rurais organizam-se através de
sindicatos. Embora, de início, tais organizações tivessem uma
orientação distinta à das Ligas — partindo do pressuposto de que
no campo predominavam relações capitalistas, os sindicatos
buscavam reforçar a "consciência proletária" dos trabalhadores
rurais, estimular as greves, etc. —, a atuação concreta de ambas
tornou irrelevantes as suas diferenças ideológicas. Como observou
a autora acima, progressivamente os sindicatos incorporam em suas
reivindicações a luta pela Reforma Agrária. Após a promulgação do
Estatuto do Trabalhador Rural (março de 1963) — do qual um dos
significados é a tentativa do Estado de exercer, à maneira da CLT,
um controle mais direto sobre as atividades sindicais dos
trabalhadores rurais —, Julião propõe que as Ligas se constituam
na vanguarda política dos sindicatos rurais. "Quem faz parte da
Liga, entre no Sindicato, e o que entra no Sindicato permaneça na
Liga(...) O Sindicato pedirá o aumento dos salários, o 13º mês, as
férias, as indenizações, a escola, o hospital, a maternidade, uma
casa decente (...) A Liga, que não depende do Ministério do
Trabalho, irá na frente, abrindo o caminho e lembrando a todos que
nem o salário, nem o 13º mês são suficientes; são migalhas. O
essencial é a terra" (M. N. Wanderley, op. cit., grifos nossos).
No entanto, deve-se reconhecer que, a partir de 1962, diante da
expansão do sindicalismo rural, diminuiu consideravelmente a
importância política das Ligas. O vanguardismo que Julião a elas
pretendia conferir, igualmente não se concretizou.
Com orientação ideológica antagônica à dos movimentos
populares de tendência esquerdizante, setores da Igreja católica
fomentam a criação de sindicatos rurais "democráticos". Condenando
Julião e as lideranças de esquerda, postulam que os trabalhadores
rurais apenas devem defender os seus direitos trabalhistas;
combatem, assim, qualquer envolvimento dos sindicatos na luta por
uma Reforma Agrária radical posto que, afirmam, a "propriedade
privada é um dos pilares da civilização democrática e cristã". Ao
lado das federações e sindicatos "democráticos", criam-se outros
sob a direção dos nacionalistas (PCB) e da "esquerda católica"
(Ação Popular). Em dezembro de 1963, 26 federações de todo o País
se reúnem para a fundação da Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Agricultura (CONTAG). Graças a uma aliança entre
a AP e o PCB, os "democratas", que contavam com o controle de 8
federações, saem derrotados. A primeira diretoria da CONTAG passou
a ser constituída por 4 membros do PCB, 3 da AP e 2
"independentes". Uma das primeiras decisões da CONTAG foi a de se
filiar à CGT, integrando-se, assim, às mobilizações conduzidas pe-
las forças nacionalistas (S. Amad, op. cit.).
À frente antilatifúndio e antiimperialista também esteve
vinculado o Movimento Nacional dos Sargentos. Além de
reivindicarem melhores condições salariais, alterações dos rígidos
regulamentos disciplinares etc, as camadas subalternas das Forças
Armadas manifestavam-se contra a manutenção do Art. 138 da Carta
de 1946, que lhes vedava um direito elementar da "cidadania": o
direito de serem eleitos. As associações de sargentos de todo o
país — muitas delas vinculadas à liderança brizolista — uniam-se
aos trabalhadores rurais e urbanos, aos estudantes, aos
parlamentares nacionalistas na luta pelas reformas e na denúncia
da espoliação imperialista. (Ficou célebre uma declaração pública
de um líder do movimento: "Se os reacionários não permitem as
reformas, usaremos, para realizá-las, nosso instrumento de
trabalho: o fuzil".)
As manifestações dos setores subalternos das Forças Armadas —
severamente contestadas pela maioria da oficialidade — culminaram
com um grave acontecimento: a fim de protestarem contra a decisão
do STF, que denegou o recurso de dois sargentos eleitos no ano
anterior, 650 sargentos da Marinha e da Aeronáutica, na madrugada
do dia 12 de setembro de 1963, rebelaram-se em Brasília. Apode-
raram-se de vários edifícios militares, equipamentos de rádio,
serviços de telefonia e telegráficos. Pouco mais de 12 horas foram
suficientes para tropas militares dominarem os sublevados. O CGT,
a UNE, a FPN solidarizaram-se com o movimento dos sargentos; o CGT
ameaçou decretar greve geral, caso o governo solicitasse o Estado
de Sítio, reivindicado por altos comandos das Forças Armadas.
Apesar de terem sido "exemplarmente punidos" — os líderes do
movimento foram transferidos para as mais longínquas guarnições do
País —, prosseguiriam até abril de 1964, os atos de
"insubordinação" e de "rebeldia" à hierarquia militar, por parte
dos politizados setores subalternos das Forças Armadas.
Era conhecida a tradição política do movimento estudantil
brasileiro. Em décadas recentes, empunhou as bandeiras da
redemocratização, do nacionalismo, da defesa do ensino público, da
anistia aos presos políticos, etc. Embora tivessem a Reforma
Universitária como reivindicação específica, os estudantes,
através de sua entidade nacional, a UNE, integraram-se também na
frente antilatifúndio e antiimperialista. Postulam, como tarefa
política imediata e decisiva, a formação de uma "aliança operário-
estudantil-camponesa" (Constituição da UNE, 1963). Como observou
um estudioso, para os estudantes que militam na UNE, a Reforma
Agrária e a Reforma Universitária são simples momentos da
"dialética social". Argumentava, assim, um documento da entidade:
"A aliança com os operários, camponeses, intelectuais
progressistas, militares, democratas e outras camadas da vida
nacional deve ser incrementada na certeza de que, entrelaçando
nossas reivindicações, torná-las-emos infinitamente mais fortes.
Esta aliança implica em fazer da reforma agrária bandeira dos
estudantes, do mesmo modo que as transformações em nosso ensino
possam ser objetiva e subjetivamente aspiração de operários e
camponeses; e assim por diante" (Octavio Ianni, O Colapso do
Populismo no Brasil, grifos nossos). Na UNE defrontavam-se, neste
momento, diferentes tendências da esquerda brasileira: PCB, PC do
B, AP, Política Operária (POLOP), Quarta Internacional e outros
grupos menores. Na luta ideológica que aí se trava, todos combatem
o PCB. O apoio político que este oferecia ao governo —
excepcionais foram os seus desacordos com a "política de conci-
liação" de Goulart — bem como a sua subordinação aos estreitos
limites da ideologia nacional-reformista, foram algumas das duras
críticas que o PCB sofria das demais correntes de esquerda. Todas
estas tendências — que se autoproclamavam de "esquerda
revolucionária" — condenam a estratégia, oficialmente propugnada
pelo PCB, de aliança do proletariado com a "fração progressista"
da burguesia brasileira como "exigência histórica" para a consoli-
dação da "revolução democrático burguesa" — etapa prévia e
necessária para a passagem ao socialismo. Algumas dessas correntes
de esquerda, postulando o marxismo-leninismo, propõem uma "frente
de esquerda" — e não uma "frente única" como defendia o PCB — a
fim de libertar a luta de massas do "reformismo" e da "política
pequeno-burguesa da colaboração de classes".
Embora aquelas tendências pouco ortodoxas fossem encontradas
no interior do movimento estudantil, a UNE não deixou de
participar ativamente da ampla frente antilatifúndio e
antiimperialista coordenada pela Frente de Mobilização Popular
(FMP). À FMP vinculavam-se o CGT, as Ligas Camponesas, a FPN, a
UNE, o movimento dos sargentos. Em certa medida, o "radicalismo"
do movimento estudantil, onde o confronto entre as diversas
correntes de esquerda era bastante visível, contribuía para UNE
pressionar o governo de Goulart e a FMP mais para a "esquerda".

A contramobilização de direita

Não foram apenas os setores populares e progressistas que


politicamente se mobilizaram nesse período. Os empresários — bem
como os militares e setores da Igreja Católica — organizaram-se
para defender seus interesses e para combater o avanço político
dos movimentos sociais de orientação nacionalista e de esquerda.
Num estudo recentemente publicado, documenta-se, ampla e
exaustivamente, a atuação político-ideológica dos empresários,
aglutinados em torno do complexo IPES/IBAD, o qual teve um papel
decisivo na contramobilização de direita. (Todo este item se
baseia no trabalho de R. Armand Dreifuss, 7964: A Conquista do
Estado.)
O Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), criado em fins
da década de 50, propunha-se o "ambíguo propósito de defender a
democracia"; durante os "tempos de Goulart" sincronizou suas
atividades às de organizações paramilitares e anticomunistas, tais
como o Movimento Anticomunista (MAC), a Organização Paranaense
Anticomunista (OPAC), a Cruzada Libertadora Militar Democrática
(CLMD) etc. Intimamente associado à Aliança Democrática
Parlamentar, o IBAD financiou generosa e ostensivamente os
candidatos apoiados pela ADP nas eleições de 1962 (cerca de 650
que postulavam as Assembléias Legislativas, 250 a Câmara Federal e
vários governos estaduais). Em julho de 1962, o IBAD uniu-se ao
Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), pois seus
objetivos programáticos eram plenamente coincidentes.
O IPES é fundado em fins de 1961; seus criadores são
empresários — particularmente aqueles vinculados ao "bloco de
poder multinacional e associado" — que "visavam a uma liderança
política compatível com sua supremacia econômica e ascendência
tecnoburocrática". Tal objetivo era buscado, pois se afirmava que
a "direção do país não podia mais ser deixada somente nas mãos dos
políticos". Com essa proposição, os empresários pretendiam dizer,
pelo menos, duas coisas: a) o país não deveria ser dirigido por
políticos de "esquerda"; b) diante do crescente debilitamento
político e ideológico dos partidos conservadores e de direita, não
deviam as classes dominantes confiar apenas nos mecanismos tra-
dicionais de representação junto ao Estado burguês. O complexo
IPES/IBAD procurou desempenhar, assim, o papel de "verdadeiro
partido da burguesia — a vanguarda das classes dominantes — e seu
estado-maior para a ação política, ideológica e militar". Entre os
objetivos perseguidos pela organização, destacavam-se: impedir a
solidariedade da classe operária; conter a sindicalização dos
trabalhadores rurais e a mobilização dos camponeses; apoiar as
facções de direita dentro da Igreja Católica; dividir o movimento
estudantil; bloquear as forças nacional-reformistas no Congresso e
nas Forças Armadas; mobilizar a alta oficialidade militar e as
"classes médias" para a desestabilização do regime "populista". A
tarefa "construtiva" do IPES/IBAD estaria na sua proposta de uma
nova ordem sócio-política sob a hegemonia do capital multinacional
e associado.
A ação política do complexo IPES/IBAD se fazia através de
inúmeros grupos de trabalho — constituídos por intelectuais,
burocratas e especialistas — que tinham acesso direto às Forças
Armadas, ao Executivo, ao Congresso, às associações de empre-
sários, aos sindicatos, à Igreja, aos partidos políticos, aos
meios de comunicação, etc. O IPES/IBAD igualmente financiou ativos
grupos "democráticos" e "anticomunistas" que atuavam nesses
diferentes setores, tais como o Movimento Sindical Democrático, a
Frente da Juventude Democrática, o Grupo de Ação Patriótica, o
Movimento de Arregimentação Feminina (MAF), a Campanha da Mulher
pela Demorada (CAMDE), o Serviço de Orientação Rural de Pernambuco
(SORPE), a Federação dos Círculos Operários, etc.
A ação ideológica do complexo direitista fez-se de múltiplas
formas: financiamento de importantes ornais da "grande imprensa" e
revistas que se alinhavam na luta anticomunista e anti-Goulart; na
edição de livros, jornais, revistas, panfletos, com ou sem a
chancela do IPÊS; realização de ciclo de conferências e estudos,
seminários, fórum de debates; patrocínio de programas de rádio e
de TV;produção de filmes, slides, cartuns, histórias em
quadrinhos; financiamento de centros de pesquisa, etc.
O complexo IPES/IBAD intensificava sua "ação conspiratória" à
medida que a crise econômica e a mobilização nacional-popular
aprofundavam-se; contando em sua fundação com cerca de 80 membros,
esse número, em meados de 1963, saltou para 500 empresários. Em
São Paulo, 70% da liderança da Federação das Indústrias do Estado
de São Paulo (FIESP) faz parte da organização de direita. Os
recursos financeiros do complexo IPES/IBAD provinham de
industriais brasileiros e estrangeiros, de banqueiros nacionais e
multinacionais, de proprietários rurais (cafeicultores, usineiros,
pecuaristas etc), de companhias de segurança e de publicidade,
etc. Miguel Arraes demonstrou com documentos que o IBAD recebeu
contribuições da Texaco, Shell, Ciba, Schering, Coca-Cola, IBM,
Esso, Cigarros Souza Cruz, Hanna Mining Corp., General Motors,
etc. O IPES conseguiu ajudas financeiras de 297 corporações norte-
americanas; contribuições também vieram da Alemanha Ocidental,
Inglaterra, Bélgica, etc. Recursos da Central Intelligence Agency
(CIA), agência governamental norte-americana, foram igualmente
canalizados para as campanhas do IBAD.
Diante das denúncias de deputados da FPN, criou-se uma
Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar o envolvimento
do IBAD e do IPES na "corrupção eleitoral" ocorrida em 1962. Como
assinala o autor em cujo estudo nos apoiamos: "O IBAD foi fechado
por haver sido considerado culpado de corrupção política. O IPES
foi absolvido com base no fato de que não havia sido realizada
pelo Instituto nenhuma atividade incomum que infringisse os seus
objetivos publicamente declarados (...) em sua Carta". O IPES,
pois, agia "sem aparecer", enquanto o IBAD era a sua "tropa de
choque". Esta estratégia da direita golpista foi sintetizada por
Raul Pilla — venerável liberal que saudou com entusiasmo a
derrubada do regime constitucional — ao observar que "duas
instituições muito úteis foram organizadas, uma visando estudos
doutrinários para disseminar idéias e esclarecer os cidadãos, a
outra para a ação política, levando-as a cumprir seus deveres
patrióticos" (grifos nossos). Nesta "feliz associação" entre
ciência e ideologia "iluminista", por um lado, e ação política,
por outro, ficava, pois, sintetizada a práxis golpista.
Em abril de 1964, cumprindo seus "deveres patrióticos",
setores da chamada "sociedade civil" e do Estado, com o apoio do
Departamento de Estado norte-americano, "salvariam" a Nação.
Através de um movimento político-militar, os "revolucionários" —
como afirmou um de seus líderes, na comemoração do 18º aniversário
do golpe de 64 — buscavam repudiar um conjunto de realidades,
ditas "perversas": "as greves políticas que duravam meses, a de-
sorganização econômica, a inversão dos valores, a subversão dos
princípios da hierarquia e da disciplina, a incompetência
administrativa, o oportunismo político e, em suma, a anarquia".
O GOLPE POLÍTICO-MILITAR

Analisando a política econômica brasileira nos últimos seis


meses do governo Goulart, um autor assinalou que o "governo vagava
quase sem rumo no mar tempestuoso das dificuldades da situação
econômico-financeira do País". Como foi anteriormente observado,
as medidas econômico-financeiras adotadas pela administração
federal — a partir do reconhecimento do fracasso do Plano Trienal
— passaram a se revestir de um sentido praticamente errático.
Contudo, o caráter transitório e instável dessas medidas não se
devia apenas a uma "incompetência administrativa", como
proclamavam os críticos conservadores. Numa certa medida, as
vicissitudes e dificuldades da política econômico-financeira — a
desaceleração do crescimento econômico e a aceleração do ritmo
inflacionário — advinham de circunstâncias que escapavam
parcialmente ao controle governamental. De um lado, fatores de
ordem estrutural contribuíam decisivamente para neutralizar o
combate às pressões inflacionárias; de outro, o reduzido
crescimento econômico — que se expressava pela diminuição do nível
de inversão — deitava também as suas raízes na polarização
política que caracterizava a conjuntura brasileira nos anos
1962/1963. Como formulou um estudioso, a inversão caiu "não porque
não pudesse realizar-se economicamente, mas sim porque não poderia
realizar-se institucionalmente" (F. de Oliveira, op. cit., grifos
do autor).
A incontrolável alta do custo de vida, tendo como conseqüência
uma drástica redução do poder aquisitivo dos salários, foi
responsável pela eclosão de sucessivas greves durante todo o
período — greves que não mais se limitavam aos centros urbanos.
Incentivada pelo governo Goulart, cresceu a sindicalização no
campo (calculava-se que o número de sindicatos rurais, 300 em
meados de 1963, atingia o expressivo número de 1500 em março de
1964). Em 1963 ocorreram em todo o país 172 greves de
trabalhadores. Era igualmente significativo que as paralisações, a
partir dos anos 60, deixavam de acontecer predominantemente no
eixo Rio—São Paulo. Em 1963, por exemplo, 65% das greves foram
deflagradas fora dos dois maiores centros industriais do País. O
ano de 1964 prenunciava ser também bastante agitado em termos de
movimentos reivindicatórios: em apenas 15 dias do mês de janeiro,
ocorreram 17 greves na Guanabara. Em fevereiro e março, as
paralisações de trabalhadores rurais no Nordeste foram intensas;
em Pernambuco, cerca de 300 mil trabalhadores em engenhos e usinas
desencadearam uma greve política. Diante do lock out, aventado
pelas classes patronais, os trabalhadores — a fim de evitar a
intervenção federal no estado governado por Miguel Arraes —,
suspenderam a greve de protesto. Na Paraíba, Pernambuco, Minas
Gerais e Goiás as invasões de terras eram denunciadas com grande
alarde pelos meios de comunicação.

A direita "fecha o cerco".


As esquerdas apóiam Goulart, desconfiando.
As classes dominantes tinham, assim, motivos para verem
aumentadas as suas apreensões: seus lucros e suas propriedades —
tal como apregoavam seus propagandistas — estavam sendo ameaçados
e os trabalhadores em greve não eram reprimidos pelas forças
federais. Em meados de janeiro, sob intensas críticas de setores
da burguesia associada ao capital multinacional e dos credores
estrangeiros, Goulart regulamentou a Lei de Remessa de Lucros que
tinha sido aprovada pelo Congresso há mais de 16 meses. Algumas
semanas atrás, para forte desagrado dos investidores estrangeiros,
o presidente Goulart emitiu um decreto que implicava a "completa
revisão de todas as concessões governamentais na indústria de
mineração".
Para a direita brasileira e para a embaixada norte-americana,
não cabiam mais dúvidas quanto à "esquerdização" do governo
Goulart. Duas graves denúncias passavam a circular com insistência
nos meios políticos, tendo ampla cobertura da imprensa em geral.
Bilac Pinto, presidente da UDN e porta-voz político do chefe do
Estado-Maior do Exército, gal, Castelo Branco, com grande alarde,
divulgou um documento onde se declarava que estava em curso no
país uma "guerra revolucionária"; mais especificamente, a "guerra
revolucionária" já teria alcançado a sua terceira fase — a da
"subversão da ordem e obtenção de armas". Ou seja, o país estava
prestes a assistir à "tomada do poder pelos comunistas".
Denunciava a direita que o governo Goulart insuflava as invasões
de terra, as greves operárias e de trabalhadores do campo, além de
"distribuir armas a sindicatos rurais e marítimos". Na verdade,
tratava-se do início da intensificação da "guerra psicológica"
contra o governo constitucional, pois nenhuma prova concreta foi
oferecida quanto à veracidade dos fatos denunciados. O liberal
Bilac Pinto assim justificaria a completa ausência de provas: "em
caso de fatos notórios, a lei dispensa até mesmo as provas. Os
tribunais diariamente condenam na base da notoriedade dos fatos".
A outra denúncia dizia respeito às "manobras continuístas" do
presidente da República. Afirmava-se que, com a proposta de
Reforma Constitucional, Goulart visava a alteração do dispositivo
legal que vedava a reeleição do presidente da Republica. Calculava
a direita que, com a extensão do voto aos analfabetos, com a
realização das reformas sociais e com o apoio das forças populares
e de esquerda, Jango seria imbatível nas eleições previstas para
1965. (Esta possibilidade levou importantes políticos — com os
olhos voltados para a presidência da República — a se afastarem ou
hostilizarem Goulart. Entre eles estavam Juscelino Kubitschek,
Magalhães Pinto e Leonel Brizola.)
Se a direita "fechava o cerco" sobre o governo federal, nem
todos os setores de esquerda apoiavam incondicionalmente o
presidente da República. Embora tivessem tido um comportamento
unânime, ao aplaudirem as medidas nacionalistas do início do ano,
as esquerdas consideravam inadmissível, por exemplo, que o governo
mantivesse em vigência a Instrução 263 da SUMOC; esta, ao liberar
o câmbio, provocou forte desvalorização do cruzeiro, bem como uma
elevada alta do custo de vida. Igualmente, causava "viva
desconfiança nos meios progressistas a abertura de negociações
para o reescalonamento das dívidas do Brasil com seus credores em
bases confusas". Setores da FMP — particularmente os "brizolistas"
que aí tinham hegemonia — também levantavam suspeitas quanto às
intenções "continuístas" de Goulart que, segundo aqueles grupos,
teria o apoio da direção do Partido Comunista Brasileiro.
No dia 15 de janeiro, um experiente jornalista político
escrevia, com todas as letras, em sua bem informada coluna: "Março
passou a ser o mês do golpe" Direita e esquerda acusam-se
reciprocamente quanto à a autoria desse possível "ato contra a
democracia". Mas, enquanto os grupos de direita, civis e
militares, aglutinavam-se e passavam à ofensiva contra o governo
Goulart, este nem tinha o pleno apoio das esquerdas nem estas
conseguiam superar suas divergências internas para uma ação comum
antigolpista. (A rigor, nunca passou de arma propagandística,
forjada pela direita, o "golpe tramado pelas esquerdas".)
Incumbido por Goulart, San Tiago Dantas, em princípios de
fevereiro, tentaria unificar os setores políticos progressistas
através de uma Frente Ampla — que iria do PSD ao PCB. O "programa
mínimo" da Frente incluía emendas constitucionais concedendo voto
aos analfabetos, elegibilidade dos praças e sargentos, revisão do
art. 141 da Constituição (que impunha o pagamento à vista e em
dinheiro nos casos de desapropriações de terra), legalização do
PCB e negociação de uma moratória da dívida externa. Como
objetivos imediatos, pretendia-se garantir a aprovação das
reformas e o fortalecimento político do governo diante das ameaças
golpistas vindas da direita. Com a exceção do PCB, todos os demais
grupos de esquerda rejeitavam a inclusão do PSD numa possível
frente de "forças progressistas".

O comício do dia 13, sexta-feira

As desconfianças de setores da esquerda face ao governo


Goulart ainda eram muito intensas; a proposta de aliança com o PSD
contribuiu para aumentarem as suspeitas quanto à persistência da
política de conciliação de Jango. A efetiva "guinada para a
esquerda" do governo Goulart, na visão das esquerdas, apenas
ocorreria com o "Comício de 13 de março" — o comício das Reformas.
Organizado pelo CGT e pela assessoria sindical de Goulart (Gomes
Talarico, Crockat de Sá e outros), o comício da Guanabara — ao
qual deveriam seguir-se outros nos maiores centros urbanos do País
— visava demonstrar o apoio popular às propostas de Reformas de
Base do governo. Além disso, o Executivo pretendia também
pressionar o Congresso Nacional no sentido de que este aprovasse
rapidamente os projetos a ele encaminhados.
Na história da chamada "democracia populista" brasileira,
poucos atos públicos tiveram tanto impacto e repercussão política
quanto o comício daquela sexta-feira 13. Com amplo apoio oficial e
sob a proteção dum rigoroso esquema de segurança montado pelo I
Exército, cerca de 200 mil pessoas demonstraram de forma muito
significativa o elevado grau de politização que começava a atingir
diferentes setores da sociedade brasileira. No extenso mar de
cartazes e de faixas empunhados pela massa popular, liam-se alguns
slogans que inquietariam as classes dominantes e atemorizariam as
classes médias: "Reformas ou Revolução"; "Forca para os gorilas!";
"yankees, go home"; "Defenderemos as Reformas à bala!";
"Legalidade para o PCB"; "Reeleição de Jango!". No palanque,
ministros de Estado, militares, governadores de estado, deputados,
dirigentes S1ndicais, lideres estudantis comprimiam-se ao lado do
presidente da República. Após 3 horas de inflamados discursos,
Goulart encerrou o ato anunciando a promulgação de dois decretos:
o da nacionalização das refinarias particulares de petróleo e o da
desapropriação das propriedades de terras (com mais de 100
hectares) que ladeavam as rodovias e ferrovias federais e os
açudes públicos federais. Prometeu também enviar ao Congresso
outros projetos de reformas (agrária, eleitoral, universitária e
constitucional); anunciou ainda que nos próximos dias decretaria
algumas medidas urgentes "em defesa do povo e das classes
populares" (tabelamento de aluguéis, controle dos preços etc). No
seu discurso, Goulart atacou "democracia dos monopólios nacionais
e internacionais", as "associações de classes conservadoras", a
"mistificação do anticomunismo", a campanha dos "rosários da fé
contra o povo", os "privilégios das minorias proprietárias de
terras", etc. Contudo, o radicalismo esquerdizante ficou por conta
do líder nacional dos "Grupos de Onze", Leonel Brizola. Pouco an-
tes da fala de Goulart, Brizola, através de um eloqüente discurso,
defendeu o fim da "política de conciliação" e postulou a
emergência de um "governo nacionalista e popular". Criticando
severamente o Legislativo ("controlado por uma maioria de
latifundiários, reacionários e ibadianos"), o líder nacionalista
propôs a "derrogação do atual Congresso"; pediu, assim, a
convocação de uma Assembléia Constituinte (nos dias seguintes, a
palavra de ordem do brizolismo seria: "Constituinte sem golpe!").
A rigor, os dois decretos emitidos pelo governo tinham efeitos
bastante limitados: o da nacionalização das refinarias não atingia
senão as empresas nacionais (a lucrativa distribuição dos produtos
petrolíferos continuava com a Esso, Shell, Texaco, etc); de outro
lado, o decreto da SUPRA — como o próprio Goulart reconheceu em
seu discurso — não era senão o "primeiro passo" na direção da
Reforma Agrária. As esquerdas, no entanto, comemoraram com
entusiasmo o significativo comparecimento popular ao comício;
alguns setores destacaram, com grande regozijo, o "radicalismo das
manifestações populares". Neste sentido, um dos líderes
brizolistas comentaria: "Perante cerca de 200 mil pessoas, foi
sepultada, na praça da República, a política de conciliação". Mas,
um pouco mais adiante, o mesmo político advertiria para as
possíveis vacilações de Jango: "O presidente João Goulart — como
disseram Arraes e Brizola — conta com o povo para a grande
transformação. Mas é preciso não esquecer que, na Legalidade e no
Plebiscito, o povo também se mobilizou e tudo parecia encaminhar-
se para as decisões almejadas. O governo vacilou, perdeu-se numa
teia de pequenas manobras (...). O momento exige, além de
palavras, decisões audazes e rápidas e o reconhecimento de que o
dia 13 foi a iniciação de uma nova etapa da história brasileira"
(Neiva Moreira, in Paulo Schilling, op. cit., grifos nossos).
Entre as "decisões audazes e rápidas", esses setores nacionalistas
exigiam: "ministério nacionalista e popular"; "afastamento dos
militares suspeitos e golpistas"; "revogação da Instrução 263";
"congelamento dos preços"; "intervenção federal na Guanabara, São
Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul", etc.
De fato, 13 de março de 1964 pode ser considerado um marco
decisivo na recente história política brasileira. Para grande
decepção das esquerdas, o dia 13 significaria não a emergência de
um governo nacionalista, democrático e popular mas, sim, o último
ato da chamada "democracia populista". A partir do dia 13 de março
— enquanto as esquerdas se dividiam em discussões acerca da compo-
sição da frente ampla —, a direita passava inteiramente à ofensiva
do movimento social.

A ofensiva golpista

Desde o início de março, setores das classes médias e da


burguesia, sob a bandeira do anticomunismo e da defesa da
propriedade, da fé religiosa e da moral, saíram às ruas em
diversas capitais a fim de Pedir o impeachment do governo federal.
Entre estas manifestações civis, destacou-se a "Marcha da Família
com Deus pela Liberdade", realizada em São Paulo, no dia 19 de
março, reunindo cerca de 500 mil Pessoas. Organizada por
movimentos femininos — com a inteira colaboração do governo do
estado de São Paulo, de setores da Igreja Católica, da FIESP, da
Sociedade Rural Brasileira —, a Marcha foi encerrada com
eloqüentes discursos de deputados do e da UDN contra o governo de
Goulart. Como observou um estudioso, tais demonstrações públicas
tinham o propósito de "criar clima sócio-político favorável à
intervenção militar, bem como de incitar diretamente as forças
armadas ao golpe de Estado" (Décio Saes, "Classe Média e
Política", In: Brasil Republicano, vol. 3). Estas manifestações
civis — onde praticamente era inexistente a presença popular e
operária — nunca foram "espontâneas"; além de se inspirarem em
campanhas anticomunistas realizadas em outros países, sempre foram
estimuladas e incentivadas pelos conspiradores na área militar.
Apesar de ter sido precipitada pelo comício do dia 13, a
intervenção das Forças Armadas, na verdade, vinha sendo preparada
desde os primeiros dias em que Goulart tomara posse no regime
parlamentarista. Se naquela ocasião era reduzido o número dos
"conspiradores de primeira hora", vários acontecimentos ocorridos
no período, envolvendo as forças armadas (Revolta dos Sargentos;
Estado de Sítio; atritos entre oficiais e setores políticos
nacionalistas; freqüentes substituições de ministros militares no
governo etc), contribuíram para aumentar o quadro dos
descontentes. Na perspectiva da alta oficialidade militar, no País
e no interior da corporação vinham sucedendo-se "situações
intoleráveis": "quebra da disciplina e da hierarquia", "subversão
da lei e da ordem", "crise de autoridade", "caos administrativo".
A conspiração nos meios militares, inicialmente desarticulada e
dispersa em várias "células de oficiais", conseguiu unificar-se
mediante a liderança do gal. Castelo Branco, empossado na chefia
do Estado-Maior do Exército em setembro de 1963.
Uma semana após o comício do dia 13, num memorando de caráter
reservado à alta hierarquia do Exército, o gal. Castelo Branco
faria graves considerações sobre a situação político-institucional
do país. Neste documento advertia-se para o perigo representado
pela convocação de uma Constituinte ("a ambicionada Constituinte é
um objetivo revolucionário pela violência com o fechamento do
atual Congresso" que implicaria a "instituição de uma ditadura
síndico-comunista") e para o desencadeamento de "agitações
generalizadas do ilegal poder do CGT". A retirada do apoio militar
ao governo Goulart foi sintetizada no seguinte trecho: "os meios
militares nacionais e permanentes não são propriamente para
defender programas de governo, muito menos a sua propaganda, mas
para garantir os poderes constitucionais, o seu funcionamento e a
aplicação da lei". Aqui estava a senha para o início da ofensiva
na área militar. No entanto, a data para a deflagração do
movimento visando à derrubada do governo Goulart ainda não tinha
sido decidida pelos altos comandos militares. Nesta altura,
julgava-se que o consenso quanto à "solução cirúrgica" ainda não
tinha sido conseguido no interior da alta oficialidade. Além dos
"moderados" ou "legalistas", falava-se na existência de um "sólido
dispositivo militar" de sustentação do governo.
Uma nova revolta no seio dos setores subalternos das Forças
Armadas contribuiu para que o problemático consenso fosse
imediatamente alcançado. Foi a chamada "Revolta dos Marinheiros".
No dia 26 de março, mais de 1000 marinheiros e fuzileiros navais
reuniam-se no Sindicato dos Metalúrgicos (Guanabara), a fim de
comemorar o segundo aniversário da proibida Associação dos
Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil. Um contingente de
fuzileiros navais, enviado para prender os manifestantes,
insubordinou-se e solidarizou-se com seus camaradas revoltosos.
Tendo como intermediário o , CGT, o governo convenceu os rebelados
a se entregarem, levando-os presos a um quartel. Contudo, em
poucas horas estes sairiam livres, anistiados pelo novo ministro
da Marinha. (Comentou-se que este oficial tinha sido escolhido por
Goulart, algumas horas antes, a partir de uma lista elaborada pelo
"ilegal CGT".) A sublevação dos marinheiros, a anistia e a
nomeação do novo ministro atingiram a alta oficialidade das forças
armadas como uma "verdadeira bomba". O Clube Militar e o Clube
Naval denunciaram com veemência o "ato de indisciplina acobertado
pela autoridade constituída, destruindo o princípio da
hierarquia". Estava, assim, selada a sorte de Goulart.
Segundo um historiador, naqueles dias, "o gal. Castelo Branco
dissera aos conspiradores civis que a demissão do ministro da
Marinha seria o sinal para a deposição de Jango". A partir de
agora, o golpe tinha data marcada: dia 2 de abril. Neste dia
estava prevista outra "passeata-monstro" de oposição no centro da
Guanabara. Calculava-se que esta "manifestação civil" daria a
suficiente "cobertura política para a intervenção militar (T.
Skidmore, op. cit.).
Apesar dos evidentes sinais da trama golpista, Goulart
surpreenderia os seus mais íntimos e diretos assessores ao decidir
comparecer a uma reunião no Automóvel Clube, no dia 30 de março.
Comemorava-se, na oportunidade, o aniversário da Associação dos
Suboficiais e Sargentos da Polícia Militar da Guanabara. No
discurso que pronunciou, transmitido por rádio e televisão, Jango
denunciou as pressões que vinha sofrendo da direita. Para ele, a
tentativa de golpe contra o seu governo estava sendo financiada
pelo imperialismo e pela burguesia associada. Como vários autores
comentaram, o dramático pronunciamento de Goulart tinha
ressonâncias semelhantes às da carta-testamento de Vargas. "(...)
O discurso não passou de uma justificativa para a História, por
parte de quem já tinha decidido, não o suicídio físico como
Vargas, mas o suicídio político" (Paulo Schilling, op. cit).

O golpe vitorioso: nem resistência, nem "guerra civil"

Dois dias antes da data marcada pela alta oficialidade


golpista, o gal. Mourão Filho (comandante da IV Região Militar,
MG), na madrugada do 31 de março, ordenou às suas tropas que se
movimentassem em direção ao Rio de Janeiro. Esta iniciativa tinha
sido aprovada pelos governadores de São Paulo e de Minas Gerais
que incentivaram a antecipação da ação militar. Os golpistas
vindos de Minas aguardavam, no entanto, a decisão do comandante do
II Exército, gal. Amaury Kruel, que até aquele momento vacilava em
aderir a uma ação conjunta contra o I Exército, sediado no Rio.
Julgava-se até aquele momento que, além do I Exército, o III
Exército (extremo sul do País) se posicionaria ao lado da defesa
da ordem constitucional. Relata a "crônica do golpe de 1964" que,
antes de tomar a sua "grave decisão", o gal. Kruel telefonou para
o presidente da República instando-o para "abrir mão de suas bases
políticas". Em outras palavras, Kruel exigia que Goulart proibisse
o CGT, o PUA, a UNE e todas as demais "entidades subversivas". Em
troca, prometia o militar, teria ele garantido o seu mandato
presidencial. Diante da recusa de Jango, o gal. Kruel teria
"lavado as mãos" e ordenado que as tropas de São Paulo se movessem
para o Rio de Janeiro a fim de se unir às do gal. Mourão.
De outro lado, os soldados do I Exército, ainda leais ao
governo, sob o comando do gal. Âncora, encaminhavam-se para um
confronto, no Vale do Paraíba, com as tropas do gal. Kruel. No
entanto, a luta armada que parecia ser iminente foi rapidamente
afastada. Diante da notícia de que Goulart havia abandonado o Rio
rumo a Brasília e informado ainda das "intenções pacifistas" do
presidente da República, o gal. Âncora — reunido com o gal. Kruel
na Academia Militar de Agulhas Negras — desistia do combate. Na
tarde de 1º de abril, passava com suas tropas para o lado dos
golpistas.
Setores militares dispostos a defender a "legalidade" foram
dissuadidos por Goulart a não se envolverem numa "luta
fratricida"; outros, porém, fariam ainda algumas tentativas de
resistir ao golpe, mas a completa falência do comando do gal.
Assis Brasil, chefe do "dispositivo militar", fez frustrarem-se
rapidamente esses esforços isolados. Algumas horas depois de
chegar a Brasília, Jango voaria para Porto Alegre. Tendo na
memória a "crise de agosto de 1961", os setores democráticos
esperavam, mais uma vez, que a "salvação" viesse do Sul.
Os tempos eram outros. Apesar dos veementes apelos de Brizola,
que tentava convencer Goulart acerca da necessidade de uma
resistência armada, o presidente da República, informado sobre
importantes defecções dentro do III Exército, recusou a última
cartada em defesa da legalidade democrática. Novamente Goulart
invocou a inutilidade dos gestos heróicos que implicariam no
"derramamento do sangue inocente" (Moniz Bandeira, op. cit.). No
dia 4 de abril, Jango rumava para o exílio no Uruguai.
Três dias antes, a direita conseguia no Congresso Nacional
aprovar a declaração de vacância da Presidência da República. Na
madrugada do dia 2 de abril, o presidente da Câmara dos Deputados,
Ranieri Mazzilli, era empossado como presidente da República.
Poucas horas depois, estando João Goulart ainda em território
nacional, o presidente dos EUA, Lyndon Johnson, através de um
telegrama, saudava calorosamente o novo governo brasileiro.

O golpe político-militar: made in Brazil?

Este telegrama, contudo, não poderia causar muita surpresa.


Durante todo o período, foi intensa a atuação da embaixada norte-
americana no combati político ao governo constitucional de
Goulart. (Tal era a intervenção do seu embaixador, Lincoln Gordon,
nos assuntos de exclusivo interesse do governo brasileiro, que o
humor popular criou e difundiu o seguinte slogan: "Basta de
intermediários: para Presidente, Lincoln Gordon!"...) Gordon era
assíduo freqüentador do palácio presidencial. Sugeria nomes para
compor os Ministérios, censurava as escolhas de "esquerdistas"
para as assessorias do presidente, criticava abertamente projetos
e iniciativas governamentais. Militares, governadores de estado,
deputados, empresários e dirigentes sindicais, eram convidados
permanentes do ativo embaixador.
Entidades políticas e sindicais que faziam sistemática
oposição a Goulart foram generosamente contempladas com recursos
financeiros do governo norte-americano. Tudo que visava a minar o
poder do Executivo federal era incentivado pelos EUA. Thomas Mann,
secretário de Estado para Assuntos Interamericanos, declarou a
respeito: "quando assumi o cargo, até mesmo antes, estávamos
conscientes de que o comunismo estava corroendo o governo do
Presidente João Goulart, de uma forma rápida, e antes de chegar ao
cargo já tínhamos uma política destinada a ajudar governadores de
certos estados". Tal política ficou conhecida com o significativo
nome de "ajuda às ilhas de sanidade administrativa". Consistiu ela
na liberação de verbas da Aliança para o Progresso apenas para
aqueles estados cujos governadores eram hostis ao governo federal.
Desta forma, foram beneficiados, entre outros, os estados da
Guanabara, São Paulo e Minas Gerais. Não havia, pois, nenhuma
coincidência no fato de seus governadores serem notórios e
importantes "conspiradores civis" — respectivamente, Carlos
Lacerda, Adhemar de Barros e Magalhães Pinto.
Documentos do Departamento de Estado norte-americano,
recentemente revelados à opinião pública, evidenciam o grau de
participação e de envolvimento dos EUA na conspiração e execução
do golpe de abril de 1964. Examinemos aqui apenas o caso da
chamada "Operação Brother Sam". No dia 31 de março aprovou-se,
numa reunião no Departamento de Estado um plano militar que
consistia no envio às costas brasileiras de um porta-aviões de
ataque pesado (o Forrestal), destróieres de apoio, petroleiros
bélicos, navios de munições e navios de mantimentos; aviões
transportando armas e munições (110 toneladas), aviões de caça,
aviões-tanques e um posto de comando-transportado deveriam se
deslocar para o Rio de Janeiro. O objetivo de toda esta aparatosa
operação era a de fornecer "apoio logístico, material e militar"
aos golpistas.
Contrariando os próprios prognósticos da CIA, que previa uma
"guerra civil" prolongada no Brasil, os "revolucionários de abril"
não precisaram disparar praticamente um só tiro para derrubar o
governo de Goulart. Alguns telefonemas foram suficientes para que
o golpe fosse vitorioso. Desta maneira, a sigilosa "Operação
Brother Sam" pôde ser cancelada, antes mesmo de ser efetivada.
Este fato permitiu ao solerte embaixador norte-americano proclamar
com muita alegria, mas com idêntica solenidade, que a "revolução
de 1964" tinha sido um "produto 100% brasileiro"! Três dias após o
golpe, Carlos Lacerda ouviria de Mr. Gordon a seguinte declaração:
"Vocês fizeram uma coisa formidável! Essa revolução sem sangue e
tão rápida! E com isso pouparam uma situação que seria
profundamente triste, desagradável e de conseqüências
imprevisíveis no futuro de nossas relações: vocês evitaram que
tivéssemos que intervir no conflito" (Carlos Lacerda, Depoimento).
Não obstante todas estas evidências demonstrem o envolvimento
norte-americano no processo de derrubada de Goulart, não se deve
concluir — como insistem certas interpretações mecanicistas — que
o "golpe começou em Washington" ou que a "CIA esteve por detrás de
tudo". Nessa versão, os agentes internos — decisivos na preparação
e no desencadeamento do golpe político-militar — não passariam de
meros instrumentos da política do Pentágono...

As esquerdas: uma derrota inevitável?

Parte das razões que explicam a tranqüila e rápida vitória da


direita, residiu no comportamento político das esquerdas
brasileiras durante os "tempos do populismo". Analisando o
"fracasso das esquerdas" em 1964, um autor, assim, comentou: "na
pior das hipóteses, a derrota era provável. Em qualquer caso, não
era inevitável. Sobretudo, não era inevitável que fosse tão
rápida, arrasadora e desmoralizante (...)" (J. Gorender, "64: o
Fracasso das Esquerdas", in Movimento, nº 299). Avaliação incor-
reta da correlação de forças existentes, isolamento político em
relação às grandes massas, radicalização apenas no nível da
retórica, subordinação política ao reformismo populista, foram
algumas das razões da "arrasadora derrota" sofrida pelas esquerdas
em 1964.
Em virtude do CGT ter tido uma intensa e ativa participação
nas diferentes crises políticas do período, passou-se a acreditar
que ele teria uma força política capaz de barrar o caminho de
qualquer ação golpista de direita. O acesso fácil das suas cúpulas
dirigentes aos corredores e gabinetes palacianos — realidade
possível em algumas "democracias populistas" — e a retórica
radical de seus pronunciamentos confundiram as esquerdas acerca do
"poderio do CGT". Nem sempre estar próximo do governo,
constatariam amargamente as esquerdas, significa estar junto ao
poder político real. De outro lado, desconsiderava-se que o
sucesso de algumas greves políticas — o "grande trunfo" do CGT —
deveu-se, em parte ao apoio oficial; igualmente, como se viu, a
maioria dessas paralisações pouco êxito obteve junto aos operários
das empresas privadas. A greve geral, brandida tantas vezes
ameaçadoramente contra os setores de direita, fracassou; no dia 31
de março, apenas a Guanabara teve paralisados os seus serviços de
transporte (a repressão militar caiu imediatamente sobre a
liderança sindical, impedindo-a, assim, de comandar a greve
geral). Não obstante a classe operária brasileira não tenha
participado do golpe nem aderido aos "vitoriosos", deve-se
ressaltar que ela se manteve indiferente aos insistentes apelos
feitos pelo CGT em defesa da greve geral antigolpista. Este
acontecimento, no fundo, traduzia uma inquestionável realidade:
durante todo o período 1962/1963, foi reduzido o trabalho do CGT
junto às bases sindicais; longe de desqualificar a importante
atividade desenvolvida pela organização, no breve período em que
existiu, deve-se, no entanto, reafirmar aqui que o CGT constituiu-
se mais num organismo político — controlado pela esquerda
nacional-reformista — do que num organismo propriamente sindical.
A "força revolucionária" das Ligas Camponesas igualmente
revelou-se numa decepcionante realidade para as esquerdas
brasileiras. No golpe, somente uma pequena resistência foi tentada
por alguns líderes populares junto aos trabalhadores rurais e
foreiros do Nordeste. Todas essas tentativas foram rapidamente
vencidas pelo forte aparato repressivo. Apesar de as Ligas, a
partir da sindicalização rural, terem entrado numa fase de
declínio, mantinha-se ainda uma elevada expectativa política em
relação a elas. Para isso contribuíam as freqüentes declarações de
seus líderes. Era o caso, por exemplo, de Francisco Julião. No dia
31 de março de 1964, abrigado no Congresso Nacional, o líder
nacional das Ligas Camponesas faria uma solene declaração: "Senhor
presidente, senhores deputados, deixo esta tribuna prometendo
ocupá-la mais vezes, pois resolvi que este ano há de ser para mim
o ano parlamentar; resolvi freqüentar mais esta Casa, porque a
minha no Nordeste já está arrumada. Se amanhã alguém tentar
levantar os 'gorilas' contra a Nação, já podemos dispor — por isso
ficamos no Nordeste o ano todo — de 500 mil camponeses para a
responder aos 'gorilas' " (in M. de Nazateth Wanderley e outros,
Reflexões Sobre a Agricultura Brasileira). No dia seguinte, os
"gorilas" do IV Exército davam ordem de prisão ao governador de
Pernambuco, Miguel Arraes, sem que os camponeses — desarmados e
desorganizados — nada pudessem fazer diante da bem armada e bem
organizada repressão militar.
De semelhante radicalismo verbal padeceu também a liderança de
Leonel Brizola. Seus famosos Grupos de Onze, criados a partir de
fins de 1963, revelaram-se frágeis demais para se anteporem a
qualquer ação golpista. Embora a direita denunciasse
sistematicamente o perigo representado por esses grupos, não foi
observada nenhuma atuação significativa dos brizolistas durante o
movimento golpista. A rigor, os adeptos de Brizola limitaram-se,
através das ondas da Rádio Mayrink Veiga, a conclamar o povo a
lutar contra os "gorilas".
Talvez uma das maiores fantasias construídas pelas esquerdas
nacionalistas tenha sido a de crer no "legalismo das forças
armadas". Na época falava-se freqüentemente nos "generais do povo"
que constituíam o inquebrantável "dispositivo militar" do gal.
Assis Brasil. Voltava-se também a difundir o velho chavão:
"militar é o povo fardado". Igualmente acreditou-se no chamado
"sargentismo"; como advertiu um autor, julgava-se que "segurança
do regime democrático, em geral, e do governo Goulart, em particu-
lar, repousava nos sargentos" (N. Werneck Sodré, Memórias de um
Soldado). Desconsiderava-se, assim, a "questão militar", tal como
foi interpretada por Gorender: "por sua coesão institucional
essencialmente conservadora e antidemocrática, as forças armadas
tinham de reagir com violência às ameaças à sua estabilidade
hierárquica e ideológica. Ameaças advindas da formação de uma ala,
pequena porém influente, de oficiais nacionalistas e, sobretudo,
do surgimento de um movimento explosivo de sargentos e marinheiros
(...) As precipitações infantis desse movimento (...) só fizeram
enrijecer a reação conservadora da instituição militar" (Jacob
Gorender, op. cit.).
Superestimando as suas forças (CGT, Ligas Camponesas, Grupos de
Onze, movimento dos sargentos, "dispositivo militar" constituído
de "oficiais nacionalistas e democráticos", etc.) e, conseqüen-
temente, minimizando o poder dos adversários, as esquerdas não
conseguiam enxergar o golpe de direita "virando a esquina". Numa
autocrítica recente, um ex-militante brizolista, num trecho de seu
depoimento, com sabor de anedota, observou: "sim, esperávamos o
golpe e estávamos preparando-nos febrilmente, com todas as forças,
para enfrentá-lo. Acreditávamos, porém, que o golpe, seguindo a
tradição brasileira, viria no segundo semestre (...)" (Paulo
Schilling, op. cit.). Numa palestra pronunciada na ABI, Rio de
Janeiro, a 4 dias do desencadeamento do movimento militar, o
secretário-geral do PCB, Luiz Carlos Prestes — conforme o
depoimento de um ex-membro do CC do PCB à época do golpe de 1964
—, "enfatizou que (...) Goulart tornava-se o porta-bandeira da
revolução brasileira e que não havia condições para um golpe
reacionário. Se este ocorresse, 'os golpistas teriam as suas
cabeças cortadas'" (Jacob Gorender, op. cit., grifos do autor).
Fragmentadas em diferentes correntes ideológicas e isoladas
das grandes massas rurais e urbanas, foram as esquerdas e os
setores populares que tiveram as suas "cabeças cortadas". Se, na
retórica do líder comunista, as "cabeças cortadas" tinham um valor
simplesmente metafórico, tragicamente, porém, na prática dos
"vencedores de abril", a expressão ganharia um significado real e
concreto.
Desta forma, o imobilismo das esquerdas, em geral, se
explicaria em virtude de uma incorreta, pois idealista, avaliação
da correspondência de forças existentes nos meses anteriores a
abril de 1964; de outro lado, subordinadas e vinculadas ao
"populismo janguista", não conseguiram as esquerdas nacionalistas
visualizar e implementar uma ação independente em relação à
política capitulacionista de Goulart. Como um "castelo de cartas"
desmoronou o frágil e incipiente poder das organizações e
entidades que buscavam representar as classes populares e tra-
balhadoras.
Conclusões

No período de 1961 a 1964, verifica-se a emergência, no


interior do Estado burguês, de um Executivo que se distinguiu
fundamentalmente pela tentativa de realizar um amplo programa de
Reformas (econômicas, sociais e políticas). Tais Reformas, no
entanto, constituíram-se em simples consignas políticas, pois
nunca conseguiram ser implementadas — seja pela negativa do
Congresso Nacional (que expressava a oposição de expressivos
setores da chamada "sociedade civil"), seja pela ambigüidade ou
incapacidade política do governo (no parlamentarismo e no
presidencialismo). Como se viu, quando o governo Goulart passou a
demonstrar um maior empenho na aprovação das Reformas, teve seu
caminho barrado pelo golpe.
Estas reformas visavam, basicamente, a resolver alguns dos
impasses enfrentados pelo capitalismo brasileiro no início dos
anos 60. Não tinham, assim, nenhum caráter transformador; muito
menos revolucionário, como apregoavam setores das classes do-
minantes. Elucidativo a este respeito foi o caso da proposta mais
polêmica e mais intensamente defendida pelo governo: a Reforma
Agrária. Tal reforma buscava responder às necessidades de expansão
do capitalismo industrial brasileiro ao mesmo tempo que atendia
aos imperativos da preservação da ordem burguesa.
Se o governo Goulart não podia senão prever a oposição dos
grandes proprietários rurais — o que de fato ocorreu durante todo
o período —, supunha-se, no entanto, que teria ele o respaldo da
burguesia industrial brasileira para a consecução de seu programa
reformista. Em outras palavras, julgava-se que a chamada burguesia
nacional — cujos interesses o Executivo pretendia representar —
não podia senão se integrar na defesa da política nacional-
reformista. Ficou comprovado, posteriormente, para igual decepção
de setores da esquerda nacionalista — que postulavam a estratégia
da aliança de classes —, que nunca foi politicamente significativo
o compromisso da burguesia brasileira com a realização das
reformas. Conclusão análoga pode ser retirada acerca da questão do
nacionalismo. O nacionalismo da burguesia brasileira sempre teve
um caráter pragmático; ou seja, dependendo das circunstâncias e
das suas conveniências, setores da burguesia brasileira se opõem
ou se associam ao capital multinacional.
A propósito do chamado nacionalismo do governo Goulart, deve
se afirmar que foi ele muito mais retórico do que uma efetiva
realidade. Em contrapartida, a conciliação com o imperialismo
constituiu-se numa constante durante os "tempos de Goulart". A
mais importante medida de caráter nacionalista tomada pelo governo
— a promulgação da Lei de Remessa de Lucros — somente se efetivou
depois de intensas manifestações dos setores populares. Recorde-se
que o projeto tinha sido aprovado pelo Congresso e aguardou mais
de 16 meses para ser sancionado, pois o Executivo aceitou e se
submeteu às pressões contrárias vindas do governo dos EUA e da
burguesia brasileira associada ao capital multinacional.
Reconheça-se, contudo, que — apesar de não poder ser considerado
um governo eminentemente nacionalista — o Executivo denunciou
freqüentemente a "espoliação imperialista" e sempre manteve
estreitas relações com os setores nacionalistas e populares.
Esta aproximação com as organizações políticas das classes
populares e trabalhadoras fazia-se através do reconhecimento da
legitimidade de suas reivindicações, do apoio às entidades ditas
ilegais (CGT, PUA, etc), da não repressão às greves políticas, da
extensão da legislação trabalhista ao campo, do respeito às
liberdades políticas, etc. As medidas populares e nacionalistas,
tomadas no início de 1964 e que culminaram com o Comício do dia
13, aprofundaram a chamada "guinada popular e de esquerda" do
governo populista de Goulart. Esta vinculação com os movimentos
populares e de esquerda, no entanto, somente ocorre de forma mais
intensa quando o governo verifica que não lhe resta nenhuma
alternativa de sustentação política. Mas esta relação não se deu
sem dificuldades e sem problemas.
Durante todo o período, as desconfianças, por parte dos
setores populares e de esquerda, em relação ao governo Goulart,
sempre foram muito fortes. Foi ressaltado, por exemplo, que o mais
importante documento produzido pelo governo (Plano Trienal) tinha
um inegável sentido antipopular e antioperário. A "guinada para a
esquerda" foi, inclusive, interpretada com muitas reservas, pois
se desconfiava das "manobras continuístas" de Goulart. Desta
forma, o governo Goulart nem conseguia o pleno respaldo das
classes populares e trabalhadoras, nem se legitimava face ao
conjunto das classes dominantes.
Até o momento em que se constata o malogro do Plano Trienal, o
governo conseguiu um relativo apoio político de expressivos
setores da burguesia industrial brasileira (na posse, no
Plebiscito, na execução inicial do Plano Trienal etc). Mas, diante
da incapacidade do Executivo — de um lado, em reverter a tendência
de estagnação da economia e, de outro, em pôr fim às crescentes
reivindicações e greves das classes trabalhadoras —, a quase
totalidade da burguesia nacional passou a conspirar ativamente
contra o governo. A crise econômica e o avanço político-ideológico
das classes populares e trabalhadoras passavam a ser encarados
como realidades sociais inaceitáveis. No limite, difundiam os
ideólogos da direita, as classes subalternas buscariam impor
soluções não burguesas à crise econômico-social. Tal ameaça —
embora objetivamente remota, como se tentou mostrar — provocou a
unificação política das classes dominantes.
A crescente radicalização política do movimento popular e dos
trabalhadores, pressionando o Executivo a romper os limites do
"pacto populista", levou o conjunto das classes dominantes e
setores das classes médias — apoiados e estimulados por agências
governamentais norte-americanas e empresas multinacionais — a
condenar o governo Goulart. A derrubada do governo contou com a
participação decisiva das forças armadas, as quais — a partir de
meados de abril de 1964 — impuseram ao país uma nova ordem
político-institucional com características crescentemente
militarizadas. As reformas exigidas pelo capitalismo brasileiro
seriam agora implementadas. Repudiando o nacional-reformismo, as
classes dominantes, através do Estado burguês militarizado, op-
tariam pela chamada "modernização-conservadora", excluindo, assim,
as classes trabalhadoras e populares da cena política e pondo fim
à democracia populista.

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Revisão: Argo – www.portaldocriador.org


Indicações para leitura

I. Abordando os diferentes aspectos (econômicos, políticos e


sociais) do governo Goulart existe apenas uma obra na literatura
política brasileira:

Moniz Bandeira, O governo João Goulart: As Lutas Sociais no


Brasil. Do ponto de vista documental, o livro de Thomas Skidmore,
Brasil: De Getúlio a Castelo, constitui-se numa interessante
introdução para o conhecimento dos fatos relevantes no período
Goulart; documentos esparsos sobre o governo e sobre o período em
questão encontram-se em Edgard Carone, A Quarta República; uma
visão jornalística das principais questões políticas: Mário
Victor, 5 anos que abalaram o Brasil. Um relato jornalístico
comentado do período que vai de meados de 1962 a abril de 1964 é
oferecido em Carlos Castello Branco, Introdução à Revolução de
1964.

II. Processos políticos e movimentos sociais no período:

Francisco Weffort, O Populismo na Política Brasileira; Octavio


Ianni, O Colapso do Populismo no Brasil; idem e outros, Política e
Revolução Social no Brasil; Caio Prado Jr., A Revolução
Brasileira; S. Amad Costa, CGT e as Lutas Sindicais no Brasil; L.
de Almeida Neves, CGT no Brasil; K. Paul Erickson, Sindicalismo no
Processo Político Brasileiro. Recentemente foi publicado o 3º
vol., tomo III de O Brasil Republicano, contendo importantes
ensaios sobre o período.

III. Economia brasileira no período:

Carlos Lessa, 75 Anos de Economia Brasileira; Francisco de


Oliveira, "Crítica à Razão Dualista", in Seleções, Cebrap; Maria
Conceição Tavares, Da Substituição de Importações ao Capitalismo
Financeiro; Octávio Ianni, Estado e Planejamento Econômico no
Brasil; Cibilis Viana, As Reformas de Base e a Política
Nacionalista de Desenvolvimento;

IV. Sobre o golpe político-militar:

R. Armand Dreifuss, 1964: A Conquista do Estado; Paulo


Schilling, Como se coloca a direita no poder (I e II); Marcos Sá
Corrêa, 1964: Visto e Comentado Pela Casa Branca; Phyllis Parker,
1964: O Papel dos Estados Unidos no Golpe de Estado de 31 de
Março; Hélio Silva, 1964: Golpe ou Contragolpe?; Jacob Gorender,
"64: O Fracasso das Esquerdas", in Movimento, nº 299. Há um
elevado número de relatos jornalísticos e de memórias sobre os
eventos de março/abril de 1964. Citam-se aqui apenas alguns deles:
Alberto Dines e outros, Os Idos de Março; Abelardo Jurema, Sexta-
feira, 13; Edmar Morei, O golpe começou em Washington.

V. Revistas com artigos sobre o período e sobre o golpe de


1964:

Revista Brasiliense; Estudos Sociais; Revista Civilização


Brasileira.

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