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Capítulo 3

Kuhn: o normal e o revolucionário na reprodução da racionalidade científica

Alberto Oliva

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PORTOCARRERO, V., org. Filosofia, história e sociologia das ciências I: abordagens


contemporâneas [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1994. 272 p. ISBN: 85-85676-02-7.
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Kuhn: o normal e
o revolucionário na reprodução
da racionalidade científica

Alberto Oliva

1. KUHN E O DISCURSO EPISTEMOLÓCICO TRADICIONAL

T homas Kuhn ficou bastante conhecido entre nós por sua obra The Structure of
Scientific Revolutions (1970). Aliás, esse seu livro de 1962 é o grande best-seller da
história da epistemologia. Sua lenta gestação, envolvendo quase quinze anos de in-
tenso trabalho, representou a gradual metamorfose do físico no historiador da ciên-
cia. Malgrado toda a importância de sua reflexão para a filosofia da ciência, Kuhn
prefere se apresentar como um historiador da ciência: "Sou membro da American
Historical Association e não da American Philosophical Association" (Kuhn,
1
1977b:11). Em franca discordância com a tradição epistemológica , ele não se limi-
ta a ver na história da ciência uma fonte de exemplos respaldadores ou refutadores
de posições metodológicas previamente tomadas. Para Kuhn, o estudo da história
nos faria ver a ciência de um modo diferente daquele que é ensinada e daquele vei-
culado pelas reconstruções lógicas oferecidas nos tratados sobre método científico.
Em suma, a história da ciência se mostraria geradora de problemas especiais para
efeito de reconstrução da racionalidade científica.
A etapa decisiva de elaboração de seu The Structure of Scientific Revolutions
transcorreu quando da estada de Kuhn no Center for Study in the Behavioral
Sciences (1958-9). De sólida formação em física, Kuhn ficou particularmente
impressionado com os combates epistemológicos aí travados por cientistas so-
ciais, em torno de questões e procedimentos basilares. Chamaram-lhe a atenção

1 À diferença da esmagadora maioria dos filósofos anglo-americanos da ciência, Kuhn sofreu forte
influência da epistemologia francesa. Chegou a considerar Alexandre Koyré seu verdadeiro maître
(Kuhn, 1977b: 21).
o número e a extensão dos desacordos entre os cientistas sociais. Debatiam-se desde
os critérios que devem ser adotados para a escolha dos problemas reputados legíti-
mos até a eleição do método capaz de gerar sistemas explicativos plenamente justifi-
cáveis. Por mais que constatasse a existência de controvérsias em astronomia, física, quí-
mica, biologia etc., nada se comparava à Methodenstreit - à querela do método - , en-
dêmica nas ciências sociais. E como era fácil constatar que as disputas sobre o básico
não decorriam do fato de os cientistas sociais, à diferença dos naturais, não saberem
caracterizar convenientemente método científico, Kuhn passa a investigar donde
promanariam diferenças tão gritantes quanto aos modos de caracterizar e conduzir
cursos específicos de pesquisa.
Se os cientistas naturais não dispõem, como pensa Kuhn, de uma concepção
de método consensualmente endossada - ou até explícita e sistematicamente articu-
lada - mas desenvolvem procedimentos de pesquisa convergentes, a que atribuir a
flagrante diferença com a prática teórica das ciências sociais? Não constitui exagero
dizer que Kuhn desenvolve sua obra epistemológica como uma engenhosa tentativa
de fazer frente a esse problema. Por se assumir como um historiador da ciência e
por ter afastado a possibilidade de as diferenças entre ciências naturais e sociais po-
derem ser creditadas a razões metodológicas stricto sensu, Kuhn buscará localizar
causas que, em sua maioria, não pertencem ao campo tradicionalmente demarcado
como o da epistemologia. À diferença do que vinha historicamente fazendo a filoso-
fia da ciência, não se deve esperar encontrar em Kuhn um conjunto de cânones me-
todológicos capazes de conferir, desde que cuidadosamente seguidos, cientificidade
a um saber. Não se trata, assim, de pretender oferecer procedimentos de justificação
supostamente superiores aos que vinham sendo recomendados pela tradição episte-
mológica. Isto torna difícil fazer um enquadramento rigoroso das formulações kuh-
nianas. Afinal, são simultaneamente apresentadas como extraídas da história da
ciência, como capazes de aprender reconstrutivamente o papel cumprido por fato-
res psicossociais na (re)produção da racionalidade científica e como prenhes de con-
seqüências epistemológicas:

Muitas das minhas generalizações concernem à sociologia


ou à psicologia social dos cientistas. No entanto, pelo me-
nos algumas das minhas conclusões pertencem ao que tra-
dicionalmente se convencionou chamar Lógica ou Episte-
mologia. (Kuhn, 1970:70)

É ambicioso o projeto kuhniano: ir da história da ciência para a epistemo-


logia passando por generalizações sobre as condições psicossociais que tornam
possível o fazer ciência. Daí conferir destaque à seguinte questão: é a comunida-
de especial que congrega os cientistas, que dá unidade mínima às atividades de
seus praticantes ou é a existência de um método, ainda que tacitamente com¬
partilhado, que gera a identidade peculiar dessa comunidade? Seu modo de res-
pondê-la corresponde à busca dos pontos de interação entre as razões epistêmi¬
cas tradicionais e os fatores psicossociais que se fazem presentes no processo de
reprodução da racionalidade científica.
As correntes epistemológicas clássicas têm almejado descrever os proce-
dimentos estandardizados empregados pelos pesquisadores ou prescrever ou-
tros, pretensamente superiores aos utilizados, com vistas a identificarem ou nor¬
matizarem o que é singular na racionalidade científica. O descritivismo costuma
invocar períodos decisivos do desenvolvimento de certas ciências para transfor-
mar as máximas comportamentais aí seguidas em cânones metodológicos para
toda e qualquer investigação científica. É claro que o descritivismo não se pro-
põe a fazer um levantamento exaustivo de todas as possíveis formas até aqui
adotadas de condução da pesquisa científica. Limita-se a observar momentos
reputados decisivos, para em seguida generalizar o que foi aí constatado, como
se fossem universais e inevitáveis os procedimentos básicos aí identificados.
Consoante o descritivismo tradicional, a história da ciência deve ser estudada
com o objetivo de proporcionar evidência favorável a uma determinada pers-
pectiva epistemológica. Não há, nesse caso, a preocupação que se mostrará
fundamental no descritivismo kuhniano, de tentar, com base em exemplos his-
tóricos, alargar o conceito de racionalidade científica de modo a abrigar fatores
que tradicionalmente tinham sido vistos como objetos de investigação ou bem
da sociologia da ciência ou bem da psicologia da descoberta. Kuhn não está in-
teressado em endossar as rígidas linhas divisórias entre o domínio voltado para a
lógica da pesquisa científica e o campo preocupado com os fatores psicossociais
que se fazem universalmente presentes nos diferentes cursos de pesquisa.
Não querendo endossar velhas e rígidas contraposições entre razões lógi¬
co-empíricas e fatores psicossociais, Kuhn dá a impressão de que sua reflexão
partiu da seguinte questão: os rituais de justificação que têm sido propostos em
metaciência configuram inevitabilidades lógicas ou têm sua identidade, ao me-
nos em parte, derivada de idealizações aprioristas insensíveis a fatores extrajusti-
2
ficacionais? Até que ponto não é, pergunta-se o autor, a espartana pedagogia a

2 Poderia um defensor da epistemologia tradicional sustentar que, em virtude da patente assimetria en-
tre os procedimentos propostos respectivamente pelo verificacionismo e o falsificacionismo, só nos
restaria fazer a opção por um dos dois aparatos lógicos de avaliação de teorias (científicas). O dilema
epistemológico se reduziria basicamente a recolher ou bem evidência favorável ou bem desfavorável
a nossas construções teóricas. Nada mais poderia ser sugerido como contribuição à problemática da
estrita avaliação lógico-empírica de nossos sistemas interpretativos. Kuhn rejeita esse dilema tradicio-
nal quando declara que: "Ele (Popper) e seus seguidores compartem, com os mais tradicionais filóso-
fos da ciência, da suposições de que se pode equacionar o problema da escolha de teorias através do
uso de técnicas semanticamente neutrais" (Kuhn, 1976b:234).
que é submetido o neófito - como condição de possibilidade para que venha a
integrar uma comunidade científica - a grande responsável por sua adesão a certos
procedimentos de justificação que a tradição tende a conceber como porta-
dores de uma cogência puramente imanente? É claro que, se Kuhn não faz
mais epistemologia pura, isso se deve ao fato de que, à diferença da tradi-
ção, deixou de acreditar que os dispositivos de justificação possam se legiti-
mar apenas por sua eficácia lógica, atentando-se apenas para sua força in-
trínseca de avaliação das teorias substantivas. Quando se pergunta pela es-
pecificidade da "racionalidade científica", Kuhn não encaminha sua respos-
ta na direção da estipulação de um critério. Lança questões que envolvem,
também, nítida preocupação com aspectos psicossociais.
Pode-se dizer que o interesse maior da reflexão kuhniana é explicar as
grandes transformações por que tem passado o conhecimento científico. Mas
como são esporádicas as revoluções, Kuhn se dá conta de que precisa também
elucidar o que ocorre nos períodos em que não despontam grandes invenções
e descobertas. Seu empenho é no sentido de prover explicações para o rotinei-
ro e o extraordinário em ciência. Trata-se de saber como a pesquisa convergen-
te ou consensual pode desembocar, em última análise, em grandes reviravoltas
nos modelos de explicação da realidade - em revoluções. Com base em que
"critérios" - fatores (externos) e razões (internas) - técnicas de investigação e
teorias substantivas são abandonadas e substituídas por outras? O projeto meta¬
científico kuhniano é uma tentativa de mostrar, misturando elucidações episte¬
mológicas e análise de fatores psicossociais, que o cientista bem sucedido deve
simultaneamente ostentar as características do tradicionalista e do iconoclasta:
(Kuhn, 1977b:227, 236-7).

(...) como uma firme orientação em direção a uma tradição


aparentemente única pode ser compatível com a prática de
disciplinas que se destacam justamente pela produção per-
sistente de novas idéias e técnicas (Kuhn, 1977b:232).

Sua teoria da ciência marca nítido afastamento tanto da tradição obser¬


vacionalista/indutivista quanto da revisão crítica do ideal empirista da ciência
levada a cabo por Popper (1968). Nega-se a escolher entre o modo verifica¬
cionista e o falsificacionista de conceber a cientificidade não por detectar de-
ficiências na lógica da avaliação de teorias que propõem. Seu rechaço às con-
cepções empirista lógica e racionalista crítica é antes conseqüência de sua
convicção de que representam formas idealizadas de reconstrução da racio-
nalidade científica incapazes de apreenderem como a física, a química etc.
têm, de fato, evoluído. Por defender uma compreensão da racionalidade
científica não confinada a aspectos estritamente lógico-empíricos de avalia¬
ção de teorias, Kuhn vê no verificacionismo e no falsificacionismo uma espécie
de supressão dos aspectos dinâmicos do processo de produção de conhecimen-
to, como se representassem propostas idealizadas de procedimentos a operacio¬
nalizar nos contextos específicos de pesquisa:

A competição entre segmentos da comunidade científica é


o único processo histórico que realmente desemboca na re-
jeição de uma teoria antes aceita ou na adoção de outra
(Kuhn, 1970:70).

Seu empenho é no sentido de mostrar que fatores, normalmente encara-


dos como extrínsecos à "razão científica", são decisivos à compreensão de como
e por que as comunidades científicas impõem (estatuindo normas de endosso e
rechaço) certos modelos de produção intelectual a seus membros. Desse modo,
ao assumir esse tipo de postura, Kuhn não tem como vincular sua obra à tradição
do discurso epistemológico clássico, que só via relevância no estudo das razões
lógico-empíricas por encará-las como as únicas capazes de determinarem a acei-
tação ou rejeição de nossos esquemas explicativos.
Tendo em vista a novidade contida no enfoque kuhniano, caberia
questionar se representa a instauração de um novo (e híbrido) paradigma
epistemológico ou se configura uma reflexão que, por misturar causas e razõ-
es, não tem como ser reconhecida como enquadrável na história dos proble-
mas que a epistemologia reconhece como (os seus) legítimos. Este trabalho,
apesar de sua finalidade didático-expositiva, almeja mostrar como Kuhn se
aparta da tradição epistemológica e como tenta fundamentar o que há de
novo em sua abordagem.
Por defender a tese ousada de que a racionalidade científica não tem
como ser reduzida à utilização de critérios lógico-empíricos de avaliação de teo-
rias, Kuhn lança mão de termos e expressões que não fazem parte do jargão
epistemológico tradicional. É comum fazer alusão à habilidade, à conversão, à
expectativa profissional, ao fracasso pessoal, ao consenso etc. como forma de
tentar esclarecer como se constituem e reproduzem processos históricos de ela-
boração de conhecimento científico. Essas categorias não ocorrem de forma epi-
sódica e circunstancial em suas argumentações; cumprem função decisiva na
medida em que Kuhn estabeleceu que "não há critério que se coloque acima do
assentimento da comunidade relevante" (Kuhn, 1970:156).
A epistemologia anterior à "Nova Filosofia da Ciência" sempre deu proe¬
minência à questão de como podemos ordenar logicamente nossas teorias de
modo a, cotejando-as com a realidade, por meio de testes, podermos caracteri-
zá-las como verificadas, confirmadas (em um certo grau), falsificadas etc. Kuhn se
propõe a empreender uma via metacientífica supostamente mais abrangente:
Para descobrirmos como as revoluções científicas ocorrem,
teremos, portanto, de examinar não apenas o impacto da
natureza e da lógica, mas também as técnicas de argumen-
tação persuasiva que se revelam eficazes no interior dos
grupos muito especiais que constituem a comunidade dos
cientistas (Kuhn, 1970:156).

De um ponto de vista semiótico, fica claro que Kuhn se recusa a circuns-


crever o discurso metacientífico a considerações sintáticas (atinentes a requisitos
de consistência) e semânticas (referentes aos níveis de correspondência entre
teoria e "realidade"), uma vez que reputa fundamental, na caracterização da
cientificidade, o recurso à pragmática (aos fatores bióticos da comunicação) sob
a qual caem categorias como a de persuasão. Fazendo uma analogia com o pen-
samento de Platão, seria adequado dizer que a ciência, em Kuhn, não pode ser
entendida como pura 'episteme', já que constitui uma atividade também envol-
vida com a 'erística', isto é, com o desenvolvimento de técnicas de convenci-
mento em situações de controvérsia. Apesar de sua recusa em endossar a rígida
separação entre contexto da descoberta e contexto da justificação, conforme
proposta por Reichenbach, Hempel, Popper e outros, Kuhn não está interessado
em promover a total dissolução da problemática tradicional de como podem ser
adequadamente avaliadas nossas alegações de conhecimento. Só que não acre-
dita que análises estritamente lógico-empíricas - sintático-semânticas - sejam ca-
pazes de esclarecer plenamente como as teorizações são aceitas ou rejeitadas no
âmbito de uma comunidade especial, a científica .
Será interessante averiguar se recorrer a categorias da pragmática como as de
persuasão, conversão, consenso etc. equivale a tentar enxertar no discurso episte-
mológico elementos estranhos à sua singularidade explicativa ou se se trata de uma
necessidade - brotada a partir da crise do modelo empirista clássico de ciência - de
ampliar o raio elucidativo do discurso metacientífico de modo a vinculá-lo, interdis¬
ciplinarmente, a domínios como o da sociologia da ciência. Afinal, é a persuasão
uma categoria capaz de integrar o rol dos procedimentos de justificação ou se reduz
à mera adesão psicossocial que se acrescenta, de forma redundante, ao que lógica e
empiricamente desponta como o que cabe ou não referendar?

3 É clara a proeminência conferida por Kuhn à categoria de comunidade (ausente dos textos tradicionais
de epistemologia), quando afirma : "Um paradigma rege, antes de mais nada, não um objeto de estu-
do, mas um grupo de praticantes. Qualquer estudo sobre a pesquisa dirigida por paradigma ou destro¬
nadora de paradigma deve começar localizando o grupo ou grupos responsáveis" (Kuhn, 1970: 242 ).
A "Nova Filosofia da Ciência", da qual Kuhn é um dos mais importantes
representantes, pode ser vista como uma espécie de radicalização da crítica can¬
dente iniciada por Popper (1986) ao ideal empirista (lógico) de ciência. Parece
óbvio que Kuhn tome como ponto de partida o ataque desferido por Popper (1989)
4
contra o observacionalismo . Com o racionalismo crítico, ficara evidenciado que: 1. as
teorias científicas não têm uma inevitável gênese observacional, que podem-se originar
de intuições nascidas do ventre da metafísica, do mito etc.; 2. observações só podem
ser feitas à luz de teorias; que o que tencionamos registrar, em um campo observacio-
nal delimitado, é função de nossas expectativas, de nosso conhecimento anterior etc.
Com Popper, deixara de fazer sentido atribuir a superioridade explicativa da ciência -
frente à metafísica e às pseudociências - ao fato de se dedicar a rigorosas e meticulosas
observações por oposição ao vazio especulativismo. Abandonado o observacionalismo,
o motor de desenvolvimento da ciência passa a ser visto como a delimitação de con-
textos problemáticos acompanhada das tentativas engenhosas de gerar soluções. Em
clara sintonia com Popper, Kuhn ressaltará que, na constituição de um campo científi-
co, o fundamental é definir o que em seu interior será considerado um autêntico pro-
blema ou uma adequada solução. Mas, apesar de, junto com Popper, destacar a for-
mação de contextos problemáticos, dele diverge por não concordar que a ciência seja
praticada em consonância com o esquema P1—>TT —> EE —> P2..., segundo o qual
os problemas são formulados, teorias tentativas são propostas, a eliminação de erros
ocorre e novos problemas despontam.
No entanto, essa concordância quanto à profunda imbricação existente
entre teoria e observação se faz acompanhar de divergências quanto à força do
5
papel cumprido pela observação no processo de testagem das teorias . Como é
sabido, para Popper, um saber só é ciência quando submete suas laborações in¬
terpretativas a autênticos testes, que são sempre tentativas de refutação. Entrar
em conflito com observações é, em um bom número de casos, o bastante para
falsificar uma teoria e justificar seu abandono. Para Kuhn, testes decisivos com
pretensões de falsificar uma teoria não são a mola propulsora de desenvolvimen-
to da ciência; mesmo porque só são feitos esporadicamente em ciência e sua
força não é absoluta, na medida em que fica a depender do impacto de outros

4 O observacionalismo também sofreu ataques, neste século, desferidos por insignes cientistas. Confira-
se a respeito Einstein & Infeld (1966:31).
5 Eis, em linhas gerais, alguns dos principais pontos de concordância entre Kuhn e Popper : "Mas nem
eu nem Sir Karl somos indutivistas. Não acreditamos que existam regras capazes de nos levarem a in-
duzir teorias a partir de fatos, nem que teorias, corretas ou incorretas, sejam induzidas. Ao invés disso,
nós as encaramos como postulações imaginativas, inventadas de uma só vez para serem aplicadas à
natureza" (Kuhn, 1976a: 12). E ainda : "Ambos enfatizamos, por exemplo, a íntima e inevitável imbri-
cação entre observação e teoria científica; somos, por isso, céticos quanto à possibilidade de produzir-
se uma linguagem observacional neutra." (Kuhn, 1976a:2).
fatores que extrapolam a preocupação obcecada em constatar que determinada
teoria está em manifesta "dissonância cognitiva" com os fatos observados perti-
nentes. Na maior parte do tempo, o cientista mantém um envolvimento tão pro-
fundo com a teoria com a qual trabalha que não tem como testar crucialmente
sua proficuidade explicativa.
Todas essas considerações deixam claro que Kuhn não tem como ser apre-
sentado como um epistemólogo "ortodoxo" filiado a uma tradição que via na formu-
lação de critérios de avaliação de teorias o alfa e o ômega de toda investigação me¬
tacientífica. Por essa razão, procuraremos, agora, identificar a forma pela qual Kuhn se
posiciona frente ao problema central da epistemologia e da cientificidade.

2. CIÊNCIA: A PESQUISA SOB A BATUTA DE UM PARADIGMA

À diferença do que ambicionavam o verificacionismo e o falsificacionis-


mo, não há em Kuhn a intenção de estatuir um critério capaz de distinguir, com
alguma nitidez, o que é ciência e o que é pseudociência ou metafísica. Em mo-
mento algum, Kuhn estipula a forma a ser ostentada pelas teorias e os modos pe-
los quais se deve buscar evidência favorável ou contrária às suas pretensões de
verdade para que possam ser consideradas científicas. Sua análise se limita a
mostrar como tem sido historicamente construída a cientificidade, e não que
requisitos lógico-empíricos precisam ser satisfeitos para que uma disciplina se
converta em ciência.

Concluo, em suma, que protociências, como as artes e a filo-


sofia, carecem de algum elemento que, nas ciências maduras,
enseja as formas mais óbvias de progresso. Esse comportamen-
to não é, contudo, algo proporcionável por uma prescrição
metodológica. Diferentemente de meus críticos atuais, e nesse
caso particular incluo Lakatos, não reivindico terapêutica algu-
ma capaz de auxiliar na transformação de uma protociência
numa ciência. Tampouco suponho que se possa obter alguma
coisa nessa direção. (Kuhn, 1976b:244-5)

Apesar de não se apresentar como proponente de um critério de cientifi-


cidade, a teoria da ciência kuhniana acaba por arrolar os traços distintivos exibi-
dos por disciplinas que granjearam, de forma inconteste, o estatuto de ciência.
Sem se confinar ao campo da estrita lógica de justificação de teorias, Kuhn subli-
nha que uma disciplina se torna ciência não porque se dedica a procedimentos
de verificação ou falsificação (tentada) de suas teorizações, e sim porque funcio¬
nalmente ingressou em uma fase na qual os problemas são consensual e unifica¬
damente enfrentados com base em padrões estandardizados de abordagem. O
funcionalismo kuhniano almeja caracterizar as atividades típicas da investigação
científica em suas fases e funções e não como produtos avaliáveis à luz de tal ou
qual critério (universal).
Uma disciplina, para ingressar na etapa científica, precisa superar - na óti-
ca de Kuhn - a guerra intestina em que diferentes escolas se digladiam em seu
interior, com vistas a se tornarem a única via (reconhecida) para o genuíno co-
nhecimento. E que, vencida a fase da guerra de todos contra todos, típica da
pré-ciência, nasce a ciência propriamente dita, cuja "evolução" tenderá a obede-
cer ao seguinte esquema de tipo funcionalista:

Ciência normal => Crise => Pesquisa extraordinária =>


=» Revolução => Nova ciência normal => Nova crise ...

Durante o período pré-paradigmático, é comum brotarem tantas teorias


quantos pesquisadores há na área, porque prevalece um total desacordo e um
diuturno debate sobre o básico, tanto no nível metodológico quanto no substan-
tivo. Cada teórico vê-se como que obrigado a partir do zero, como se a começar
tudo de novo, de modo a poder justificar o tipo de enfoque que adota. Há, nes-
se caso, uma manifesta dispersão dos esforços interpretativos a impedir que a
pesquisa exiba avanços cumulativos. Os teóricos rivais no período da pré-ciência
dissentem não só sobre o que se deve caracterizar como suposição teórica fun-
damental, como também o que deve ser visto como o tipo de fenômeno obser¬
vacional relevante para a constituição de seus enredos hipotéticos:

Nenhum período entre a Antigüidade remota e o fim do sé-


culo dezessete exibiu uma única concepção amplamente
aceita sobre a natureza da luz. Havia, ao invés disso, um
bom número de escolas e subescolas em competição (...)
Cada uma dessas escolas derivava parte de sua força da re-
lação que mantinha com alguma metafísica particular e
cada uma enfatizava, como observações paradigmáticas, o
conjunto específico de fenômenos óticos que sua teoria po-
deria melhor explicar. (Kuhn, 1970:74-5)

Contrapondo-se aos que defendem a tese de que a atividade científica


deve sempre procurar desenvolver o maior número possível de teorias, Kuhn sa-
lienta que a proliferação de enfoques só ocorre nos períodos pré-paradigmáticos
da pré-ciência ou durante as crises nas quais mergulham as teorias que, por al-
gum tempo, dominaram a cena de alguma ciência, estipulando a metodologia a
ser seguida e os problemas a serem atacados como legítimos. Ora, se a pré-ciên¬
cia é concebida como a etapa em que se multiplicam improficuamente as teori¬
zações sobre um campo, então a inauguração da ciência há de ser vista como a
conquista do consenso, como a redução da multiplicidade interpretativa à unida-
de dos "modos de problematização e solucionamento" impostos pelo paradigma.
Nesse sentido, a transição da pré-ciência para a chamada ciência (normal) se
consuma quando a atividade de pesquisa desorganizada e dispersiva que antece-
de a formação de uma campo unitário de investigação passa a ser desenvolvida sob
a égide de um paradigma endossado por toda a comunidade científica. A cientifici¬
dade pode, então, ser vista como um tipo de atividade explicativa que desenvolve pes-
quisas submetidas a princípios e pressupostos organizadores de uma paradigma.
Mas como se deve entender a noção de paradigma, vital à caracterização
da cientificidade? Em The Structure of Scientific Revolutions, Kuhn não se empe-
nha em veicular uma definição unívoca. Foi desorientadoramente prolífico em
suas qualificações (Cf. Masterman, 1976:59-89; Shapere, 1964:384-5). Uma das
veiculações mais elucidativas é a que sustenta que:

Paradigmas são realizações científicas universalmente reco-


nhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e
soluções modelares para uma comunidade de praticantes.
(Kuhn, 1970:58)

A partir do momento em que uma tradição de investigação tem força sufi-


ciente para definir que problemas são legítimos e que soluções são adequadas,
cria uma territorialidade interpretativa para além de cujas fronteiras não se vai,
como se nada além existisse. Ao pôr fim à contínua e improfícua competição en-
tre diversas concepções sobre um "objeto" - por exemplo, sobre a luz, a eletrici-
dade etc. - , o paradigma dá início à fase da pesquisa convergente e unificada,
cuja eficácia residiria em seu poder de enfrentar as seguintes questões:

1. Quais as entidades fundamentais de que se compõe o universo? A res-


posta delimitará o campo ontológico pertinente:

(...) os que se dedicam a uma especialidade científica ma-


dura aderem profundamente a uma maneira de considerar
e investigar a natureza, que se baseia num paradigma. O
paradigma lhes diz que tipo de entidades povoa o universo
e os modos pelos quais se comportam os membros dessa
população (Kuhn, 1980:91).
2. Que interrogações hipotéticas podem ser legitimamente formuladas a
respeito de tais entidades?

3. Que técnicas podem ser empregadas na busca de soluções para o tipo


de problema isolado como legítimo? A resposta especificará o método adequado
para lidar com o que desponta como merecedor de explicação.

Com isso, fica claro que o método é função dos problemas acolhidos por
cada ciência, que não há um método universal - como o de conjecturas e refu¬
tações proposto por Popper - a ser empregado na escolha e equacionamento
dos contextos problemáticos. Não é o método, pela força de seus procedimentos
de avaliação, que cria o paradigma; o paradigma é que especifica as técnicas de
investigação a serem empregadas:

Homens cuja pesquisa se baseia em paradigmas comparti-


lhados estão comprometidos com as mesmas regras e pa-
drões para a prática científica (Kuhn, 1970:73).

Como não é o método que diz ao paradigma que problemas escolher, e


sim o contrário, os contextos problemáticos forjados pelos paradigmas são os
únicos suscetíveis de ter sua legitimidade reconhecida durante sua vigência:

Outros problemas, inclusive muitos dos que eram antes


vistos como estandardizados, são rejeitados como metafí-
sicos, como de interesse de outra disciplina ou como de-
masiado problemáticos para merecerem dispêndio de
tempo (Kuhn, 1970:99).

Se cabe ao paradigma definir, no âmbito de determinada disciplina, o que


deve ser considerado autêntico problema, então não há um critério de cientifici-
dade a regê-lo. O paradigma é a própria cientificidade: inaugura uma tradição
consensualmente empreendida, determina que problemas reputar legítimos, que
fatos devem se tornar objeto de reconstrução interpretativa, que outros suprimir
etc. Aliás, sem paradigma, não temos como justificar a maior ou menor relevân-
cia que atribuímos a este ou aquele fato, uma vez que cada uma das múltiplas
teorizações tenderá a destacar apenas o "conteúdo empírico" compatível com
seus pressupostos explicativos:
Na ausência de um paradigma, ou de um candidato a para-
digma, todos os fatos que possivelmente poderiam se mos-
trar pertinentes ao desenvolvimento de determinada ciên-
cia têm probabilidade de parecer igualmente relevantes
(Kuhn, 1970:77).

É interessante notar que o paradigma é, simultaneamente, uma teoria subs-


tantiva (ou de primeira ordem, isto é, sobre determinados "fatos") e uma teoria de se-
gunda ordem, relativa a critérios estipuladores de quais (e como) fatos devem ser es-
pecificados para efeito de reconstrução explicativa. Daí Kuhn afirmar que

Ao aprender um paradigma o cientista adquire teoria, mé-


todos e padrões conjuntamente, formando uma mistura
inextricável (Kuhn, 1970:171).

Se o paradigma tem o poder de estipular o que deve ser considerado


problema e soluções modelares, o que cabe observar e o que deve merecer
destaque, então é claro que fornece a moldura e a tela na qual são pintados os
conteúdos da pesquisa científica. Mas, além de prover as teorias de primeira e
de segunda ordens, o paradigma cria em torno de si um consenso especial ca-
paz de levar todos que a ele aderem a ver o mundo de maneira convergente. O
paradigma equivale a instaurar uma mundividência ou Weltanschauung (Cf.
Suppe 1977:135-50), a partir da qual os fenômenos ganham significatividade
interpretativa relacionai, tornando-se membros de um corpus teórico concebido
6
como totalidade integrada. Mas, como as diferentes escolas que se antagoni¬
zam na fase pré-paradigmática da pré-ciência também veiculam visões de mun-
do, essa não pode ser a diferença específica da pesquisa feita sob a batuta de
um paradigma. A visão de mundo contida em um paradigma tem a peculiarida-
de de ser compartilhada consensualmente como se fosse inevitável:

(...) a história fortemente sugere que, embora se possa praticar


ciência - como se faz filosofia, arte ou ciência política - sem
um firme consenso, essa prática mais flexível não produzirá o
padrão de rápido avanço científico encadeado a que os sécu-
los recentes nos acostumaram. Com base nesse padrão, o de-
senvolvimento ocorre de um consenso para outro, e enfoques

6 Kuhn faz a seguinte avaliação crítica de suas posições anteriores: "Seja lá o que for o paradigma, é
possuído por qualquer comunidade científica, inclusive pelas escolas do assim chamado "período pré-
paradigmático". Minha incapacidade de ver esse aspecto contribuiu claramente para tornar um para-
digma uma entidade ou propriedade quase mística que, à semelhança do carisma, transforma os que
são por ela contagiados. Há uma transformação, mas não é induzida pela aquisição de paradigma"
(Kuhn, 1977a:460).
alternativos não estão normalmente em competição. Exceto
sob condições bastante especiais, o praticante de uma ciên-
cia não pára para examinar modos divergentes de explica-
ção ou experimentação (Kuhn, 1977b:232).

Se houvesse uma metodologia prévia e universalmente aceita pelos que


aspiram a fazer ciência, ficaria claro que o consenso resultou da adesão a um
conjunto geral de princípios e pressupostos definidores da cientificidade. Mas se
o consenso é interior ao paradigma - e não anterior a ele - , então envolve teo-
rias substantivas, teorias do método etc, que se impõem não apenas por seu va-
lor intrínseco, mas por constituírem uma visão de mundo geradora de modos
compartilhados de ver a natureza alcançados, também, pelo emprego de téc-
nicas de argumentação persuasiva. Tanto o paradigma não é uma unidade
puramente lógico-empírica, que Kuhn chega a enfatizar que não há argumen-
tos de consistência (lógicos) ou de correspondência (empíricos) capazes de
demonstrarem a superioridade de um paradigma sobre outro. A seu juízo, há
uma variedade de fatores envolvidos no julgamento que um cientista faz dos
méritos de uma teoria científica: há desde aspectos institucionais de uso da
linguagem científica até uma análise da proficuidade explicativa. Como se
pode constatar, o paradigma desponta como uma espécie de noção absoluta,
uma vez que tem o poder de gerar, a partir de si mesmo, as teorias de primei-
ra ordem (sobre "fatos"), as de segunda ordem (sobre critérios epistêmicos) e o
consenso em torno de seus princípios e pressupostos:

O período pré-paradigmático é, em particular, regularmen-


te marcado por debates freqüentes e profundos em torno
de métodos, problemas e padrões de solução legítimos -
debates que servem mais para definir Escolas do que para
produzir acordo (Kuhn, 1970:109-110).

Desse modo, o paradigma é a imposição de um framework, dentre


muitos possíveis, com a conseqüente eliminação do confronto de óticas e da
atitude crítica permanente que constituiriam as principais caraterísticas da
pré-ciência. Nesse sentido, a criticabilidade, que Popper erigira em traço dis-
tintivo da cientificidade, desapareceria justamente no momento em que uma
disciplina ingressasse na sua fase científica.
O paradigma não é síntese das diferenças entre as escolas. A desapari¬
ção das divergências é normalmente causada pelo triunfo de uma das escolas
da fase pré-paradigmática. A vencedora, "em razão mesmo de suas crenças e
preconcepções características, enfatizava apenas alguma parte especial do
conjunto demasiado amplo e incoativo de informações" (Kuhn, 1970:79). O
paradigma se impõe às escolas da fase pré-paradigmática, não tanto por sua
abrangência, e sim por sua mundividência ter despontado a partir de deter-
minado momento, como o modo adequado de ver e problematizar um cam-
po fenomênico. Como estar uma disciplina submetida à Weltanschauung (or-
ganizadora) do paradigma é o que a torna científica, e isso significa rígido
consenso supressor da crítica, estamos condenados a só propor interpretativa¬
mente o que é compatível com a fase em que se encontra uma disciplina. Isto
quer dizer que, se desenvolvemos pesquisas em uma disciplina que se encon-
tra sob irrestrito e incondicional domínio da perspectiva paradigmática, só po-
demos nos dedicar a atividades rotineiras de tentar resolver acriticamente os pro-
blemas propostos pelo paradigma.
Por a teoria do paradigma não equivaler à proposição de um critério
por intermédio do qual são definidas as condições gerais necessárias, ainda
que não suficientes, a serem satisfeitas por uma disciplina para poder ser
ciência, Kuhn intenta fazer um inventário histórico reconstrutivo de como os
saberes têm-se convertido em ciência. Uma outra diferença capital tem a ver
com o fato de que, por não propor um critério, Kuhn está menos interessado
em definir quando uma teoria pode aspirar à condição de científica e mais
em assinalar quando uma disciplina ingressou na fase paradigmática (científi-
ca), por terem diferentes escolas "se unificado" sob a batuta de uma ótica que
daí em diante regerá esse campo de investigação.
Tudo isso deixa claro que, quando fala em pré-ciência, Kuhn não tem em
mente a pseudociência como ilusão cognitiva gerada por insuperável falta de
conteúdo empírico ou por eventuais confusões lógico-lingüísticas de expressão (à
Ia empirismo lógico); tampouco pensa em modalidades de saber que desenvol-
vem sistemas interpretativos irrefutáveis, isto é, incapazes de entrar em conflito
com a experiência (à la Popper). Como pré-ciência, Kuhn caracteriza a fase das
pesquisas em que falta unidade de propósitos investigativos por ainda não se te-
rem imposto certos tipos de problema e certos modelos de solução. Essa frag-
mentação da pesquisa em direções divergentes faz com que inexista progresso .
Daí afirmar que, durante o período pré-paradigmático, quando temos uma mul¬

7 Para Kuhn, o progresso seria conseqüência do consenso propiciador de formas convergentes de pes-
quisar, de problematizar um domínio específico de investigação, e não da aplicação de uma metodolo-
gia meliorista que nos ensinaria a construir teorias cada vez melhores (mais verossimilhantes) através
da permanente e implacável eliminação de erros: "Se duvidamos, como fazem muitos, que áreas não
científicas realizem progresso, isso se deve não ao fato de que escolas individuais não progridem.
Deve-se, isto sim, à existência de escolas em competição, cada uma delas questionando os fundamen-
tos das outras. Quem argumenta que a filosofia, por exemplo, não progrediu consegue com isso ape-
nas enfatizar que ainda existem aristotélicos e não que o aristotelismo não tenha conseguido progre-
dir" (Kuhn, 1970:224-5).
tiplicidade de escolas em competição, torna-se muito difícil encontrar provas de
progresso. Se há progresso, é relativo ao território demarcado por cada escola.
Como a cientificidade resulta da emergência de um paradigma, não faz sentido
discutir in abstracto que método especial e que tipo de depuração ideológica fa-
riam com que a sociologia progredisse como a física. Para Kuhn, o que assegura
o progresso não é o acordo sobre definições, sobre técnicas de investigação a
empregar, e sim o consenso em torno de como deve ser conduzida a prática de
pesquisa. Não se trata de concordância em torno de uma teoria da ciência, esti¬
puladora dos cânones de investigação, mas em torno de como deve ser pratica-
da uma disciplina que entra na fase paradigmática.

3. CIÊNCIA NORMAL: A REPRODUÇÃO D O CONSENSO

A existência de um paradigma, que dá origem à tradição de investiga-


ção conhecida como ciência normal, é que representa a inauguração de um
tipo de pesquisa capaz de distinguir ciência de não-ciência. A questão é que
8
ingressar na fase da ciência normal não é algo que se consegue assumindo-
se a postura de só construir teorias suscetíveis à verificação, confirmação ou
falsificação. O paradigma não corresponde a um mero conjunto de requisitos
lógico-empíricos tendentes a tornar possível fazer ciência e justificá-la. Pela
ampla gama de componentes que envolve, o paradigma que rege uma pes-
quisa impõe práticas de observação e teorização constituídora de uma tácita
visão de mundo. Nesse sentido, prescrições do tipo "envide todos os esforços
no sentido de falsificar suas teorias" soariam inócuas por ser, consoante a
perspectiva kuhniana, praticamente impossível alguém ver simultaneamente à
luz do paradigma e livre de seus óculos enquadradores.
Criticar as teorizações em torno das quais criou-se o consenso implicaria
como que desmontar um modo de fazer ciência que penosamente se consoli-
dou. Desse modo, a prescrição falsificacionista eqüivaleria, em última análise, a
uma proposta de diuturno ataque ao consenso que seria, no ver de Kuhn, a con-
dição de possibilidade do tipo de pesquisa que se faz numa disciplina que in-

8 Toulmin (1972:100) faz descrição altamente elucidativa da fase batizada por Kuhn de ciência normal: "Du-
rante os longos períodos de ciência "normal", as idéias correntes em (digamos) física são dominadas e molda-
das por uma teoria-mestra geral ou "paradigma". Ao aceitarem um paradigma, os cientistas estabelecem, du-
rante algum tempo, as preocupações intelectuais e os padrões racionais a vigorarem em seu campo específico
de investigação: que questões formular, que formas de explicação reputar aceitáveis, que interpretações reco-
nhecer como legítimas. Nesse aspecto, um paradigma tem a mesma função lógica de uma constelação de
pressuposições absolutas. Os cientistas que trabalham sob a autoridade de um paradigma formam uma es-
cola, praticamente do mesmo tipo que uma escola de artistas".
gressa em sua fase científica. Uma vez alcançado o consenso, só razões imperio-
sas (não confináveis à realização de testes cruciais) levam os pesquisadores a
questionar as bases sobre as quais apóiam seu trabalho. Mas se a pesquisa sub-
metida a um paradigma não se caracteriza apenas por sua maneira peculiar de li-
dar com a empeiria, o que a torna singular? Para Kuhn, estar uma disciplina sob a
égide de um paradigma significa que seus pesquisadores praticam o que chama
de ciência normal. A famosa imagem de Newton, retomada por B. Russel, segun-
do a qual os cientistas de hoje precisam, para que seu trabalho se torne possível,
subir nos ombros de seus predecessores, guarda muita semelhança com a ciência
normal kuhniana. Esse avançar linear e cumulativo seria a marca registrada de uma
forma de saber em que todos dirigem seus esforços para o aprimoramento dos as¬
pectos funcionais (seus modos de solucionar problemas) das explicações providas
pelo modelo adotado por uma tradição, que se cristalizou em uma disciplina
como única aparentemente possível.
Em Second Thoughts on Paradigms (1977a), Kuhn reconhece que seu
antigo uso do termo paradigma confunde duas noções bastante distintas:
exemplares, que são tipologias de solução de problemas concretos aceitas
pela comunidade científica, e matrizes disciplinares, que são os elementos
compartilhados que explicam o caráter relativamente não-problemático da
comunicação profissional e a relativa unanimidade de julgamento profissional
subsistente em uma comunidade científica:

Um sentido de paradigma é global, abrangendo todos os


compromissos compartilhados por um grupo científico; o
outro isola um tipo particularmente importante de compro-
misso e é, portanto, um subconjunto do primeiro"..."No li-
vro (The Structure), o termo paradigma tem praticamente o
mesmo significado da expressão "comunidade científica".
Um paradigma é o que os membros de uma comunidade
científica, e apenas eles, partilham (Kuhn, 1977a:460).

A semelhança do que defendera em The Structure, Kuhn não vê as


matrizes disciplinares como aprendidas por um receituário metodológico,
e sim como processo educacional por meio do qual alguém é guindado à
posição de praticante de uma especialidade científica. Diferentemente do
9
que ocorre em outras áreas, na iniciação científica, os manuais desempe-
nham um papel globalmente plasmador, vinculando o neófito a uma espé¬

9 Kuhn (1977b:228) assinala que: "A característica singular mais marcante dessa educação (nas ciên-
cias naturais) tem que ver com o fato de que é, numa extensão totalmente desconhecida em outros
campos, conduzida inteiramente através de manuais."
cie de Great Chain unitária. Não por acaso, os manuais científicos, elemen-
tares ou avançados, dão demasiada ênfase à dependência que a pesquisa
atual tem da passada. É claro que, de um ponto de vista histórico, as reali-
zações científicas proporcionam modelos, centrados em determinados
princípios e pressupostos, orientadores da prática posterior. A crença nes-
se "fio condutor" serve para dar unidade, no tempo, ao que vem sendo
desenvolvido ao longo das diversas etapas evolutivas e para propiciar a
busca de identidades:

A Física de Aristóteles, o Almagesto de Ptolomeu, Os Princí-


pios e a Ótica de Newton, a Eletricidade de Franklin, a Quí-
mica de Lavoisier e a Geologia de Lyell - esses e muitos ou-
tros trabalhos serviram por algum tempo para definir impli-
citamente os problemas e métodos legítimos de um campo
de pesquisa para as gerações posteriores de praticantes da
ciência (Kuhn, 1970:72).

Ao invés de tentar localizar as características básicas (preferencialmente ló¬


gico-empíricas) que diferentes sistemas interpretativos exibem para se credenciar
a ser ciência, Kuhn cita-os como campos fundadores de uma modalidade de
pesquisa submetida a requisitos geradores de uma tradição cumulativa de obten-
ção de resultados. Como cada ciência se desenvolve em uma mesma direção,
salvo quando ocorrem descontinuidades revolucionárias, seus praticantes podem
se dedicar à constante lapidação de soluções para problemas consensualmente
acatados como os que de fato são relevantes:

A pesquisa normal, mesmo seus melhores produtos, é uma


atividade altamente convergente baseada firmemente num
consenso alcançado através de educação científica e refor-
çado pela posterior vida profissional (Kuhn, 1977b:227).

A ciência normal é praticada por uma comunidade científica que compar-


tilha uma matriz disciplinar baseada em um estoque partilhado de exemplares. A
ciência normal constitui uma tentativa de subsumir uma classe cada vez maior de
fenômenos sob a visão de mundo básica provida pela matriz disciplinar em evo-
lução. Essa unanimidade, esse acordo profundo, característica da pesquisa nor-
mal não deve ser vista como fruto de coações externas. Resulta dos processos de
iniciação especiais que precedem a entrada de alguém para a comunidade cien-
tífica. É a educação científica que a torna possível. Os manuais redigidos para es-
tudantes por membros "experientes" da comunidade científica constituem meios
pedagógicos propiciadores da unanimidade. Mas a convergência existente na
ciência normal não significa um genérico acordo do tipo "todos pensam a mesma
coisa", e sim o que dá ensejo ao que Kuhn denomina de modalidade esotérica de
pesquisa. E é exatamente isso que constitui sinal de maturidade de uma ciência. Mas
é claro que a pesquisa esotérica seria impossível se não existisse uma longa e penosa
arte de iniciação através da qual um aspirante, sob a supervisão de um cientista, se
familiariza com os métodos, as técnicas e os padrões do paradigma. Nesse sentido,
realizar experimentos estandardizados e se dedicar a solver problemas padronizados
não é submeter-se a prescrições metodológicas, e sim inserir-se em um sistema de
educação profissional muito complexo e disciplinador, como é o caso do científico.
Nos antípodas do que sustenta Popper, para Kuhn a rotina do trabalho
científico não se caracteriza pela busca de novidades capazes de, pela derru-
bada das interpretações aceitas, levarem à ampliação de horizontes e à con-
quista de melhores teorias:

Não está entre os objetivos da ciência normal trazer à


baila novas espécies de fenômeno; na verdade, os que
não se ajustam à moldura freqüentemente nem são vistos
(Kuhn, 1970:86).

A confiança no paradigma é tanta que as anomalias não são vistas como ca-
sos refutadores da teoria, mas como quebra-cabeças a serem resolvidos por nossa
imaginatividade heurística. Isto mostra que, quando fazemos pesquisa sob um para-
digma não temos "liberdade" para testá-lo, da forma crucial apregoada pela tradição
epistemológica, em razão de nossa submissão aos seus padrões ser responsável pela
identificação dos problemas que devem ser considerados dignos de equacionamen-
to. É claro que, vivendo em um paradigma, o cientista pouco se empenha para in-
ventar novas teorias ou descobrir novos fatos, chegando até a mostrar-se intolerante
para com eventuais propostas alternativas ao seu framework.
Por ser setorial e esotérica, a pesquisa normal equivale a uma espécie de
mergulho em uma "pequena realidade", impedindo praticamente que outros do-
mínios de objetos sejam tematizados. A assunção consensual de determinados
compromissos ontológicos (o que há a investigar é isto e não aquilo) e o endosso
tácito a determinados princípios metodológicos (especificadores dos problemas
legítimos e das soluções modelares) diminuem drasticamente a importância da
atitude crítica entronizada por Popper em valor epistêmico supremo:

(...) é exatamente o abandono do discurso crítico que mar-


ca a transição para uma ciência. Quando um campo passa
por tal transição, o discurso crítico só reaparece nos mo-
mentos de crise quando as bases do campo estão nova-
mente em risco (Kuhn, 1976a:6-7).
É exatamente a falta de discordância sobre aspectos fundamentais que
distingue, para Kuhn, a ciência normal madura da atividade desorganizada da
pré-ciência. O império da crítica só se mostraria funcionalmente necessário em
uma fase em que diversos caminhos interpretativos fossem propostos sem que
ainda se tivesse chegado a um consenso em torno do que e como investigar.
Nesse sentido, a crítica só é decisiva quando uma disciplina se encontra na etapa
pré-paradigmática ou quando um paradigma longamente aceito entrou de fato
em crise. Se ver/estudar a realidade a partir de um paradigma é se deixar condu-
zir pelas veredas interpretativas que abre, então nossa força de crítica contra o
que dispõe implica em pelo menos começar a deixar de ver a "realidade" através
de suas janelas interpretativas.
Mas, ao mesmo tempo que representa uma drástica redução do que poten-
cialmente pode ser visto, o paradigma também enseja que se estudem segmentos da
realidade com um grau de profundidade e detalhamento inatingíveis se não nos le-
vasse a ciência normal a concentrar a atenção em um conjunto de problemas esoté-
ricos. Ademais, o tipo esotérico de trabalho, desenvolvido pela pesquisa normal, só é
possível porque os cientistas, quando trabalham sob a batuta de um paradigma, não
têm necessidade de dedicar boa parte de seus esforços à atividade "filosófica" preo-
cupada com a fundamentação das posições assumidas. A ausência de escolas com-
petidoras, que questionam mutuamente seus objetivos e critérios, torna viável a pes-
quisa esotérica e palpável a sensação de progresso. Durante os períodos em que
predomina a ciência normal, os pesquisadores têm a convicção de que suas investi-
gações progridem - lidam com problemas do mesmo tipo cada vez mais complexos
e sofisticam gradativamente seu arsenal de soluções.
A crítica experiencial, intensamente enfatizada por Popper, deixa de ser
decisiva, no esquema de Kuhn, na medida em que não há "fatos em si", sob for-
ma de contra-exemplos, mas só "fatos" do (e para o) paradigma. Submeter nossas
teorizações à experimenta crucis só começa a se tornar possível a partir do mo-
mento em que o paradigma deixa, por variadas razões, de se mostrar intocável.
Um paradigma não pode, portanto, ser visto como uma teoria suscetível de ser
abandonada se, por exemplo, conflita com observações. Como é o paradigma
que define e operacionaliza o modo de fazer ciência, só pode ser atacado se en-
trou em crise e principalmente se começa a emergir um outro em condições de
substituí-lo com vantagens. E isto se mostra claro quando se tem presente que a
atividade conspícua do paradigma é a pesquisa normal com sua reconhecida
aversão a novidades. Afinal, só a curiosidade em perscrutar "novos fatos", em
abrir novos horizontes interpretativos etc. poderia dar plausibilidade prática à ati-
tude epistemológica que defende, à maneira de Popper, o permanente e impla-
cável teste de nossas teorias. Ao não se interessar por novidades, a ciência nor¬
mal apenas aprimora a capacidade explicativa que tem dos tipos de problema
que classifica, com base em seus próprios pressupostos, como autênticos. Isto faz
com que, quando as coisas não se passam do modo previsto pelo paradigma, se
manifeste a tendência a considerar o fracasso em aproximar-se do resultado an-
tecipado como um "fracasso pessoal do cientista" (Cf. Kuhn, 1970:97-8).

(...) em última análise, é o cientista individual e não a teoria


corrente que é testada. Uso o termo "quebra-cabeça" para
enfatizar que as dificuldades com que normalmente se de-
param até os melhores cientistas são, como os quebra-ca-
beças de palavras cruzadas ou de xadrez, apenas desafios à
sua engenhosidade. Ele é que está em dificuldade, não a
teoria corrente. Minha posição é quase a inversão da de
Popper (Kuhn, 1976a:5).

Como se vê, antes de mais nada, se testa a capacidade solucionadora do in-


divíduo; um experimento só desponta como teste crucial de uma teoria sob circuns-
tâncias bastante especiais. Mesmo porque, se a atividade de solucionar puzzles tives-
se sempre êxito, o desenvolvimento da ciência não teria, como sublinha Kuhn,
como conduzir a qualquer tipo de inovação fundamental (Cf. Kuhn, 1970: 73). Mas
é preciso que a ciência ingresse na fase denominada por Kuhn pesquisa extraor-
dinária, para que se torne possível realizar testes decisivos com nossas teorizações.
Nesse sentido, o caráter do teste - crucial ou não - é função da fase em que se
encontra a pesquisa em determinada ciência - normal ou extraordinária - e não
da força da evidência que fala contra uma teoria. Só quando os membros da co-
munidade científica não têm mais como esquivar-se das anomalias que subver-
tem a tradição imperante da ciência normal acrítica é que têm início investigações
extraordinárias no interior das quais o contra-exemplo é, de fato, algo que pode
comprometer a teorização em questão.
E comum a ciência normal, no movimento de expansão linear de seu es-
copo explicativo, esbarrar em fenômenos anômalos que não se coadunam com
o esperado. Quando tais anomalias são identificadas, tem início um trabalho por
meio do qual se faz uma exploração mais ou menos ampla da área da anomalia,
com o intuito de enquadrá-la na moldura suprida pela visão de mundo da matriz
disciplinar. Se esse empreendimento acomodador falha, se a anomalia continua
a resistir aos ataques que intentam neutralizá-la, emerge uma crise, que cria as
condições básicas para o advento de uma revolução. A novidade que precipita a
crise só desponta para aquele que, conhecendo com precisão o que deveria es-
perar, é capaz de reconhecer que algo correu mal. Há, ainda, a acrescentar que,
em inúmeras circunstâncias, simples anomalias só se transformam em fonte de crise
a partir da influência de fatores extrínsecos ao desenvolvimento interno da ciência.
Mas se assim é, como e quando o resultado negativo de um teste pode ser consi-
derado não um fracasso pessoal do experimentador e sim como a derrocada ex-
plicativa da teoria? Não há, para Kuhn, uma resposta possível baseada na estrita
função desempenhada pelos requisitos lógico-empíricos. Tudo depende da fase
em que se encontra o paradigma sob o qual fazemos nossos exercícios interpre¬
tativos: se for a da pesquisa normal, nenhuma chance há de despontar como fal-
sificação o que aparece como evidência desfavorável, ao passo que, se está no
bojo de uma crise, pode o contra-exemplo aparecer com o poder que lhe atribui
10
Popper - o de falsificação da teoria .
Em função de o paradigma não representar a instauração de um
campo de investigação a partir da especificação apriorista de um conjunto
11
de prescrições metodológicas , Kuhn dá bastante destaque ao processo
pedagógico, através do qual alguém se habilita a se tornar praticante de
uma ciência. A educação (científica), que na epistemologia tradicional é
vista como decorrência do método abraçado, em Kuhn (1970:108) des-
ponta como modeladora dos sistemas de representação da realidade.
A atitude científica é inculcada ao longo do processo de aprendizagem do
próprio paradigma; não é a vontade obsessiva de verificar ou falsificar teorias que vai
tornar paradigmática uma investigação. Trabalhar sob um paradigma já é submeter-
se a suas delimitações substantivas, e seus rituais epistêmicos independem de o cien-
tista querer ou não imprimir esta ou aquela direção ao curso de pesquisa que em-
preende. O pesquisador não cataloga os problemas em legítimos e inautênticos em
função de poder ter para uns soluções teóricas verificáveis (à la empirismo lógico) ou
falsificáveis (à la Popper) e para outros só poder oferecer especulação metafísica. A
autenticidade epistêmica é paradigm-bound no sentido de que depende do que no
interior do paradigma emerge como genuíno puzzle passível de ser adequadamente
enfrentado nos limites de seu domínio interpretativo. Para Kuhn, o próprio fato de
os cientistas não se perguntarem pelo que torna legítimo um problema ou uma solu-
ção específica seria evidência de que não dispõem de um critério geral de distin¬

10 A tradição epistemológica sempre se reportou à necessidade de a teoria estar em correspondência com


a realidade. Kuhn sugere a inversão de direção quando afirma que a ciência normal:"...parece uma
tentativa de forçar a natureza a encaixar-se na moldura pré-formada e relativamente inflexível forneci-
da pelo paradigma" (Kuhn, 1970:86).
11 A posição de Kuhn frente as regulamentações metodológicas fica clara quando proclama: "Não há
um conjunto de regras de escolha adequada que se possa impor como comportamento individual dese-
jado nos casos concretos com os quais se defrontarão os cientistas ao longo de suas carreiras. Seja o
que for o processo científico, temos de explicá-lo examinando a natureza do grupo científico, desco-
brindo suas valorações, o que tolera, o que desdenha".(...) "Esta posição é intrinsecamente sociológica
e, como tal, configura um importante afastamento dos cânones de explicação apregoados pelas tradi-
ções que Lakatos rotula de justificacionismo e falsificacionismo (em sua versão dogmática e ingê-
nua)" (Kuhn, 1976b:238).
ção, capaz de definir autenticidade epistemológica, e sim de um conhecimento
tático dos possíveis modos de problematização aceitáveis no âmbito do paradig-
ma (Cf. Kuhn, 1970:106,110-111).
A ciência normal congrega, sobretudo, atividades de resolução de quebra-ca-
beças, lapidação de resultados, aprimoramento de técnicas de acomodação de difi-
culdades etc. A ciência madura, a que desenvolve a pesquisa normal, é obviamente
regida por um paradigma que prevê os padrões de investigação para o trabalho re-
putado legítimo e que coordena os modos de tentarmos equacionar os puzzles teó-
ricos e experimentais. Sendo assim, a ciência normal constitui um tipo de empreen-
dimento de pesquisa altamente cumulativo voltado para o aprofundamento e deta-
lhamento do que estipula o paradigma como seu itinerário de investigação: "A ciên-
cia normal não almeja descobrir novidades do tipo fatual ou teórico; quando bem
sucedida simplesmente não as encontra" (Kuhn, 1970:114).
Isto quer dizer que, se o paradigma impõe efetivamente "seus modos de ver
as coisas", pouca chance há de detectarmos novidades ou de lhes creditarmos maior
importância. Destarte, a força de um paradigma reside em não nos deixar identificar
"fatos" discrepantes com seu arcabouço empírico e em não nos levar a pensar em
teorias dissonantes, isto é, inconciliáveis com seu escopo explicativo.
O revolucionarismo meliorista de Popper (o desenvolvimento da ciência não
se dá por acumulação de resultados, e sim pelo permanente empenho revolucioná-
rio de derrubar uma teoria aceita para pôr em seu lugar outra melhor) só seria, no
entender de Kuhn, aplicável aos raros momentos em que a pesquisa normal é aban-
donada para dar lugar à emergência da crise seguida pela pesquisa extraordinária,
que normalmente deságua em revolução. Mas como, para Kuhn, o que distingue
ciência de não-ciência é a pesquisa normal, disso se segue que o critério de demar-
cação popperiano deixaria de fora justamente o traço distintivo da cientificidade: o
"conservadorismo" do acúmulo de resultados respaldadores de determinada tradição
de pesquisa historicamente ensinada como um paradigma:

(...) é a ciência normal, onde não existe o tipo de testagem


defendido por Popper, e não a ciência extraordinária, que
quase sempre distingue ciência de outros empreendimen-
tos. A existir um critério de demarcação (...) só pode-se vin-
cular justamente à parte da ciência que Popper ignora
(Kuhn, 1976a:6).

Tentando mostrar a improficuidade do criticismo popperiano, Kuhn subli-


nha que os profissionais são treinados para a prática da ciência normal, e não
para a extraordinária, como se a sugerir que os cientistas não têm como livrar-se
da camisa de força pedagógica no interior da qual se desenrolou sua formação
de pesquisadores. É claro que se o paradigma não fosse, em condições normais,
o único território interpretativo por onde pode transitar o cientista, não faria
qualquer sentido proclamar que o cientista não pode ser crítico porque não foi
preparado para ter impostação crítica. Mesmo porque poderia tê-la inde-
pendentemente de ter recebido uma educação que o doutrinou para ser "obe-
diente" ao estatuído pelo paradigma. Mas, como o paradigma não tem como ser
explicativamente manipulado como bem apraz ao cientista, então estar sob seu
domínio significa ver com seus óculos, não fazendo sentido criticar as lentes que
são - bem ou mal - o que possibilita algum tipo de ver.
Por supor que os compromissos básicos são efetivamente postos à pro-
va na fase da ciência extraordinária, Kuhn é levado a declarar que a educa-
ção científica treina seus profissionais justamente para a reprodução acrítica
da matriz disciplinar. Por estipular que pontos devem ser testados e como a
ciência normal não abre espaço para que o pesquisador possa se debruçar so-
bre seus pressupostos e fundamentos. A ser procedente esse arrazoado, a au-
têntica testagem só pode ter início quando se começa a deixar de ver tudo
com os óculos do paradigma. E quando isso ocorre, vive-se a fase da transi-
ção em que se começa a abandonar um paradigma por já se vislumbrar a vir-
tual emergência de um outro.
Opondo-se ao ponto de vista de que testes decisivos podem a todo
instante ser realizados, (Kuhn 1976a:5) salienta que episódios revolucionários
são muito raros no desenvolvimento de uma ciência. Popper teria, na visão
de Kuhn, caracterizado toda a atividade científica através de categorias epis-
temológicas que se aplicam, na melhor das hipóteses, a seus esporádicos pe-
ríodos revolucionários. O que Kuhn chama de pesquisa extraordinária é o
que mais se aproximaria da proposta popperiana que defende a realização de
diuturnas e implacáveis tentativas de derrubada revolucionária da teoria acei-
ta para que seja substituída por outra melhor:

Somente quando precisam escolher entre teorias rivais, os


cientistas se comportam como filósofos. A meu ver, esse é o
motivo pelo qual a brilhante descrição popperiana das razões
para a escolha entre sistemas metafísicos se parece tanto com
minha descrição das razões que determinam a escolha entre
teorias científicas. Em nenhuma das escolhas (...) a testagem
desempenha papel decisivo (Kuhn, 1976a:7).

O papel que Popper atribui ao contra-exemplo parece assemelhar-se


ao que Kuhn chama de experiências anômalas. No entanto, uma análise mais
acurada mostrará que são semelhantes apenas na aparência: Kuhn não acre-
dita que existam as tão propaladas experiências de falsificação. Justifica sua
descrença afirmando que: 1. Nenhuma teoria resolve todos os quebra-cabeças
com os quais se defronta em dado momento. 2. Se todo e qualquer fracasso na
tentativa de ajustar teoria e dados fosse motivo suficiente para a rejeição dos sis-
temas interpretativos, todas as teorias seriam sempre e prematuramente rejeita-
12
das (Kuhn, 1976a:208) . Ademais, é a inexistência de total acordo entre teorias
e dados que suscita muitos dos quebra-cabeças aos quais a ciência normal dedi-
ca suas mais engenhosas tentativas de solução.

4. A ROTA PARA A CRISE

A ser válido o descritivismo kuhniano, a ciência se formaria e se conso-


lidaria fazendo exatamente o contrário do que Popper apregoa ter valor epis¬
têmico universal: abandonando a atitude crítica. Afinal, a transição da pré-
ciência para a ciência representaria o fim dos debates entre escolas rumo à
"unificação" das diferenças sob a batuta de um paradigma propiciador da pes-
quisa normal, cuja principal característica é a de mostrar-se pouco sensível às
novidades e de só testar o que é instanciável no horizonte teórico-fatual de-
marcado por seus pressupostos.
Chegar à fase paradigmática corresponde à desaparição da imposta¬
ção crítica que só voltará à cena quando eclodir uma crise. Mesmo por-
que, não ter paradigma algum, ou ter muitos paradigmas e começar a fra-
cassar o paradigma que se tem, são situações bastante semelhantes no sen-
tido de que, em todos esses casos, não se impõe um modo unitário de
"nos fazer ver as coisas". E quando muitas são as vias interpretativas possí-
veis, somos levados a enfrentar a espinhosa questão dos fundamentos do
enfoque que desenvolvemos para o que isolamos como os principais "fa-
tos" e problemas de nosso campo de investigação.
A relativização da força dos experimentos, associada à maçante rotina da
pesquisa normal, torna a ciência impermeável à crítica que, na opinião de Popper,
seria o principal meio de nos desvencilharmos dos erros e produzirmos teorias
melhores. Mas, por mais que a pesquisa normal seja a prática comum e rotineira
da ciência, não é eterna sua vigência. Mudanças, mais cedo ou mais tarde, aca-
bam ocorrendo. Descobertas (novidades relativas a fatos) e invenções (novidades

12 As críticas ao empirismo crítico popperiano ficam ainda mais claras quando Kuhn relativiza o impacto da
experiência sobre nossas construções teóricas: "A observação e a experiência podem e devem restringir
drasticamente o escopo das crenças científicas admissíveis, pois do contrário não haveria ciência. Mas não
podem, por si só, determinar um corpo específico de semelhantes crenças" (Kuhn, 1970:66).
referentes à teoria) acabam sendo feitas . A metaciência kuhniana, apesar de toda
ênfase que faz recair sobre a pesquisa normal, é uma reflexão que caracteriza a ativida-
de científica como oscilando entre a rotina repetitiva do trabalho aprimorador do que
se sabe (em maior ou menor grau) e as dramáticas invenções/descobertas que desem-
bocam nas revoluções. Nesse sentido, a explicação que Kuhn dá sobre a racionalidade
científica se estriba na distinção fundamental entre ciência normal e revolução científi-
ca. Sua alegação de que, na maior parte do tempo, a ciência se dedica à pesquisa nor-
mal, levada a cabo pelos membros das comunidades científicas que se integram atra-
vés da posse comum de uma matriz disciplinar, em nada diminui a importância dos ra-
ros episódios revolucionários. A ciência normal cumpre a decisiva função "sincrôni¬
ca" responsável pelos longos períodos de pesquisa convergente, ao passo que as
revoluções configuram o desenvolvimento do conhecimento no eixo diacrônico
das grandes transformações dissonantes com tudo que até então vinha sendo fei-
to. Mas, se a ciência deve ser entendida como se produzindo entre a pachorrenta
reprodução do normal (simples atividade de resolução de puzzles) e a introdução
revolucionária de novos modos de ver a "realidade" (de problematizá-la), então
cabe identificar o que determina a subversão de uma longa tradição de investiga-
ção, isto é, o que determina a falência explicativa do time-honoured paradigma.
Para Kuhn, a descoberta começa a ser feita quando se passa a ter cons-
ciência de uma anomalia, isto é, quando se reconhece que a natureza, de algu-
ma maneira, deixou de se enquadrar no campo interpretativo delimitado pelo
paradigma que rege a ciência normal. Contudo, as primeiras identificações de
anomalias costumam ser tentativas de acomodá-las ao framework do paradigma.
As anomalias, fenômeno(s) para o(s) qual(is) o paradigma não preparou o
pesquisador, são, em princípio, desconsideradas em seu importe teórico-fatual e
creditadas a falhas dos cientistas individuais. Quebra-cabeças que resistem à so-
lução são vistos como anomalias mais do que como taxativas falsificações, mais
como um fracasso do cientista individual do que como uma inadequação do pa-
radigma. Até porque, todos os paradigmas contêm anomalias que, como se pode
retrospectivamente constatar, se faziam desde o início presentes. Exemplos disso
são a teoria copernicana e o tamanho aparente de Vênus, a física newtoniana e a
órbita de Mercúrio. Mas como o cientista mostra-se totalmente acrítico com rela-
ção ao paradigma no interior do qual trabalha, há uma tendência a subestimar a

13 Acompanhemos como Kuhn pensa a relação entre anomalia e inovação através da seguinte passa-
gem: "Qualquer que seja o grau de genialidade empregada para observá-las, a verdade é que as ano-
malias só emergem do curso normal da atividade científica quando instrumentos e conceitos se desen-
volveram o bastante para tornar provável sua emergência e para tornar a anomalia resultante reconhe-
cível como uma violação de expectativas. Dizer que uma descoberta inesperada só começa quando
algo dá errado é dizer que só começa quando os cientistas sabem bem como seus instrumentos e a na-
tureza deveriam se comportar" (Kuhn, 1977b: 173-4).
importância das anomalias. Ausente a impostação crítica na ciência normal, o
pesquisador pode-se dedicar à articulação funcional e detalhada das peças do pa-
radigma através do trabalho esotérico.
A mera existência de puzzles não-solucionados no interior de um paradig-
ma não é suficiente para desencadear uma crise de confiança no paradigma.
Mesmo porque, todo e qualquer sistema explicativo já nasce com maiores ou
menores conflitos efetivos com a experiência. Para Kuhn, aderir ao postulado
popperiano - segundo o qual devemos abrir mão de teorias que se deparam
com evidência negativa - seria inviabilizar a atividade científica, uma vez que
equivaleria a não ficar com teoria alguma o tempo todo.
Só em determinadas situações as anomalias podem assumir uma impor-
tância capaz de abalar a confiança depositada num paradigma. Só quando atinge
a estrutura básica do paradigma e resiste às mais engenhosas tentativas de remo-
vê-las - feitas pelos mais insignes membros da comunidade científica - é que sua
existência passa a ameaçar a tradição da ciência normal. A identificação de uma
anomalia pode marcar apenas o começo de uma descoberta. O que necessaria-
mente se segue, se é que algo acaba descoberto, é um período mais ou menos
longo durante o qual o indivíduo, e freqüentemente muitos membros de seu
grupo, luta por enquadrar a anomalia numa lei.
Se fica constatado que a anomalia coloca a integridade explicativa do para-
digma em sérias dificuldades, é comum ter início um período de "revisionismo intelec-
tual" e de grande insegurança profissional decorrentes do sentimento de que se está
diante do início do processo de derrocada do paradigma e de grandes alterações nos
tipos de problemas e técnicas de resolução impostos pela ciência normal. Mas, para
Kuhn, não é a economia interna da ciência a única responsável por não vermos uma
anomalia como uma ocorrência questionadora do valor explicativo do paradigma. A
anomalia é vista como séria sobretudo se relacionada a alguma necessidade pre-
mente do contexto social (Cf. Kuhn, 1970:131).
Uma nova teoria não surge porque a que existia entrou em conflito com a
experiência, e, sim, porque se configurou um fracasso, não mais do cientista,
mas da atividade normal de resolução de problemas. Metodologicamente falan-
do, só a constatação do fracasso das regras vinculadas ao paradigma desencadeia
a busca de novos caminhos epistemológicos. A prolífica atividade de invenção
de diferentes teorias só é abraçada como necessária na fase pré-paradigmática
(ou multiparadigmática) da pré-ciência e pode também ser desenvolvida quando
se está nos primeiros estágios da confecção de um novo paradigma.
Se a anomalia continua resistindo à análise (o que geralmente não acontece),
muitos cientistas podem passar a considerar sua resolução como o objeto de estudo
específico de sua disciplina. Os primeiros ataques desferidos contra o problema não
resolvido seguem bem de perto as regras estatuídas pelo paradigma. Mas se ainda
assim continua a haver resistência, podem-se, então, buscar vias cada vez menos
"ortodoxas" de lidar com a dificuldade, chegando-se ao ponto de, apesar de existir
um paradigma, não haver acordo entre os cientistas em torno de sua natureza e
identidade. Quando se chega a essa situação, mesmo os antes intocáveis padrões de
solução de problema passam a ser questionados.
Como as crises representam o relaxamento da rígida instauração interpre-
tativa promovida pelo paradigma, com o conseqüente afrouxamento das regras
que regem a ciência normal, tem origem um período similar à fase pré-paradig-
mática com a diferença de que, nas crises, o campo de divergência é menor e
menos claramente definido. Segundo Kuhn, há três desfechos possíveis para a
crise: 1. a ciência normal acaba se revelando capaz de lidar com o problema
que gerou a crise; 2. o problema resiste até mesmo a novas abordagens. Tal
constatação pode levar a duas conclusões. Os cientistas supõem que nenhuma
solução será encontrada no estado atual da área de estudo. Os cientistas propõem
que seja colocado de lado e legado a gerações futuras que talvez venham a con-
tar com instrumentos mais acurados; 3. fim da crise com o advento de um novo
candidato a paradigma e subseqüente batalha por sua aceitação.

5. A NATUREZA DA REVOLUÇÃO CIENTÍFICA:


A IRRUPÇÃO D O DISSENSO

Só quando o paradigma está enfraquecido a ponto de seus velhos de-


fensores perderem a confiança irrestrita que antes depositavam nele é que
amadurecem as condições para a revolução (científica). Durante o período
em que se dá a transição de um paradigma em crise para um novo, a partir
do qual pode emergir uma nova tradição de ciência normal, cessa o modo
cumulativo de produção de conhecimento. Opera-se, nessa fase, a reconstru-
ção da área de estudos a partir da adoção de novos princípios epistemológi-
cos e da assunção de outros compromissos antológicos, de tal modo que, ter-
minada a transição, os cientistas terão modificado amplamente a concepção
que tinham de sua disciplina porque terão alterada radicalmente sua visão da
natureza, sua mundividência:

Em dissonância com a ótica dominante, a maioria das novas


descobertas e teorias nas ciências não são meras adições ao
estoque de conhecimento científico existente. Para assimilá-
las, o cientista deve normalmente rearrumar o equipamento
intelectual e manipulativo no qual anteriormente confiou, des-
cartando alguns elementos de sua crença e prática anteriores,
descobrindo novos significados e novas relações entre muitos
outros. Em razão de o velho dever ser reavaliado e reorde¬
nado quando se dá a assimilação do novo, descoberta e in-
venção nas ciências são quase sempre intrinsecamente re-
volucionárias (Kuhn, 1977b:226).

Na ótica de Kuhn, as grandes transformações em ciência configuram a


manipulação basicamente do mesmo conjunto de dados antes considerado, só
que estabelecendo entre eles um novo sistema de relações interpretativas organi-
zado a partir de um framework diferente. Essas reviravoltas de perspectiva se as-
semelham, ao ver de Kuhn, a uma reversão gestáltica exemplificável pelo caso fa-
moso em que um desenho é visto ora como coelho, ora como pato. Mas, à dife-
rença do sujeito da gestalt, o cientista não passa constantemente de uma manei-
ra de ver para outra. Por longos períodos só vê, só pode ver, pato. É necessário
que reavalie seus princípios e pressupostos para se habilitar a ver coelho.
Fica claro, com base no funcionalismo kuhniano, que o normal da ciência só
pode ser assim caracterizado por oposição a um momento revolucionário esporádico,
e vice-versa. A racionalidade da descontinuidade é, antes de mais nada, conseqüência
da falência da continuidade, já que Kuhn não prevê a possibilidade de se propor uma
nova teoria (um novo paradigma) sem que a já aceita tenha mergulhado em crise pro-
funda capaz de minar suas principais bases de sustentação. A crise é prelúdio da emer-
gência de nova teoria que rompe com uma tradição de prática científica para introdu-
zir uma nova dirigida por regras diferentes. Esse bouleversement só ocorre quando se
percebe que a tradição anterior estava bastante equivocada. Ora, como as crises (e a
ameaça de teorias rivais à aceita) precipitam não só a mudança de paradigma como
também uma ampla redefinição de critérios epistêmicos, de compromissos ontológicos
etc., o cientista mostra tendência a desenvolver, durante o período da pesquisa ex-
traordinária, um tipo de reflexão bastante parecido com a filosófica, exibindo inclusive
preocupação em lidar com a problemática dos pressupostos e fundamentos, ausente
do seu horizonte de interesses enquanto fazia ciência normal:

Na medida em que o trabalho de pesquisa normal pode ser


conduzido valendo-se do paradigma como modelo, as re-
gras e pressupostos não precisam ser explicitados (...). Não
é por acaso que a emergência da física newtoniana no sé-
culo dezessete e da relatividade e da mecânica quântica no
século vinte foram precedidas e acompanhadas por análises
filosóficas fundamentais da tradição de pesquisa contempo-
rânea (Kuhn, 1970:150).

O recurso à filosofia, ao arsenal de questões de segunda ordem que formula,


é prova cabal de que o monolitismo da ciência normal se esboroou; o início de uma
discussão sobre regras, pressupostos e fundamentos é sintoma claro de que se con¬
sumou a transição da ciência normal para a extraordinária. A pesquisa extraordi-
nária atinge seu ápice quando enseja a transição para um novo paradigma,
quando promove uma descontinuidade de grandes proporções - uma revolução.
Kuhn denomina revoluções científicas aos episódios de desenvolvimento não-cu¬
mulativo nos quais um paradigma time-honoured é total ou parcialmente substituído
por um novo, incompatível com o anterior (Cf. Kuhn, 1970:154).
Para explicar a natureza das revoluções científicas, Kuhn lança mão de
analogias com as revoluções políticas. As revoluções políticas teriam início, para
Kuhn, com o sentimento (inicialmente restrito a um grupo) de que as instituições
existentes deixaram de se mostrar capazes de fazer frente às dificuldades e aos
desafios decorrentes das exigências de funcionalidade equilibrada entre os diver-
sos setores e segmentos formuladores de uma ordem social. Já a revolução cientí-
fica eclode quando o paradigma deixa de funcionar adequadamente na explora-
ção explicativa de algum aspecto da natureza anteriormente identificado pelo
próprio paradigma: "Tanto no desenvolvimento político quanto no científico, o
sentimento de funcionamento defeituoso que pode levar à crise é pré-requisito
para a revolução" (Kuhn, 1970:154).
Continuando o paralelo, Kuhn afirma que as revoluções políticas almejam mu-
dar as instituições de uma forma proibida por sua atual funcionalidade. Em razão de as
facções em luta dissentirem quanto à matriz institucional que deve ser usada para via-
bilizar e avaliar a mudança política, porque não reconhecem a existência de um frame-
work supra-institucional capaz de julgar suas diferenças revolucionárias, as partes envol-
vidas num conflito revolucionário devem, em última análise, recorrer a técnicas de per-
suasão de massa e até à força (Kuhn, 1970:155). No caso da revolução científica, deixa
de existir a matriz disciplinar, base e fundamento da pesquisa convergente normal, e as
diferenças interpretativas não têm como ser arbitradas com base em estritas razões ou
justificativas. Trata-se de uma luta cujo desfecho determinará o modo de ver - a visão
de mundo - vencedor. E como um modo de ver se vincula a um modo de viver, a mu-
14
dança de paradigma equivale praticamente a abraçar uma nova forma de vida:

Tal como a escolha entre instituições políticas competido-


ras, a que se dá entre paradigmas rivais se apresenta como
uma escolha entre modos incompatíveis de vida comunitá-
ria (Kuhn, 1970:156).

14 Como é sabido, o Wittgenstein II, das Philosophische Untersuchungen (§ 202 e § 241), deu grande
destaque à noção de forma de vida. Kuhn, mesmo não fazendo uso explícito de tal noção, a pressupõe:
"A visão kuhniana de ciência é descritiva. Seu conceito central, paradigma, tem muitos significados,
mas certamente o significado correspondente ao conceito wittgensteiniano de jogo de linguagem
como forma de vida é central. O conceito complementar à ciência normal, o conceito de revolução
científica, corresponde ao do uso wittgensteiniano de reversão gestáltica" (Radnitzky, 1979:109).
É interessante, a esta altura da exposição, sublinhar que, ao passo
que a tradição epistemológica se empenhava no sentido de mostrar que as
ciências sociais só conquistariam sua cientificidade se imitassem o preten-
so método utilizado pelas naturais, Kuhn se vale de inúmeras categorias
das ciências sociais com vistas a tentar elucidar a racionalidade científica
em geral. Fica-se, em certas circunstâncias, com a impressão de que pro-
cura corrigir as distorções do velho naturalismo/fisicalismo recaindo invo-
15
luntariamente num sociologismo generalista tão ou mais problemático .
Afinal, qual o estatuto epistemológico da teoria política/sociológica através
da qual pretende oferecer uma reconstrução da racionalidade das revolu-
16
ções científicas? A tentativa de elucidar o que se passa numa ciência atra-
vés de categorias pertencentes a uma outra é sempre bastante problemática.
Mais ainda quando um domínio não tem sua cientificidade consensualmente
estabelecida. Afinal, é incontroversamente científica a teoria das revoluções po-
líticas a ponto de poder ser ampla e incondicionalmente empregada no esclare-
cimento do que se passa quando da mudança de paradigma?

15 As declarações dadas por Kuhn sobre as ciências sociais se chocam frontalmente com o amplo uso que
faz de categorias pertencentes, ao menos por razões de jurisdição acadêmica, à sociologia, à política etc:
"Se ele (Popper) quer dizer que as generalizações que constituem as teorias aceitas em sociologia e psico-
logia (e em História?) são linhas muito fracas com as quais se possa tecer uma filosofia da ciência, eu não
poderia deixar de estar em total acordo com ele. Tanto meu trabalho quanto o dele não se estribam nelas.
Se, por outro lado, está pondo em dúvida a relevância que os tipos de observações coletadas por historia-
dores e sociólogos tem para a filosofia da ciência, aí já não sei como seu próprio trabalho poderá ser com-
preendido" (Kuhn, 1976a:235). Esta passagem encerra grande dose de ambigüidade. Tenciona, por um
lado, se desvincular dos conceitos e generalizações tradicionais das ciências sociais e, por outro, defender
genericamente o tipo de atividade interpretativa e sua importância para a filosofia da ciência, desenvolvi-
da por sociólogos, historiadores etc. Ademais, Toulmin conseguiu mostrar como a teoria da revolução
kuhniana se vincula a pressupostos que se revelaram controversos na teoria política no interior da qual ti-
nham sido inicialmente endossados: "Inicialmente, os pensadores liberais democratas se viram tentados a
tratar o termo (revolução) como algo mais. A seus olhos, a constante mudança constitucional representava
uma continuidade política 'racionalmente inteligível'; por contraste, as revoluções políticas configuravam
quebras da 'normalidade', que introduziam descontinuidades históricas insuscetíveis de análise em termos
normais racionais. Atualmente, no entanto, os cientistas políticos tentam evitar o contraste exagerado en-
tre "mudança normal" e "revolução". Mesmo a mudança mais inconstitucional não envolve rupturas abso-
lutas e compreensivas da continuidade política. As mais dramáticas revoluções jamais levam a um absolu-
to rompimento com o passado. Continuidades jurídicas, administrativas e de costumes sempre sobrevi-
vem..."(Toulmin, 1972:117).
16 Não podemos evitar este tipo de questão em virtude da ambivalência exibida por Kuhn em relação à natureza
do conhecimento sociológico: categorias sociológicas precisam ser usadas para se entender a constituição e a
reprodução da racionalidade científica, mas o que se tem feito em sociologia não é ciência. Não por acaso,
Kuhn descarta certas tradições de pesquisa social sem, no entanto, definir por qual opta (ou por qual se deveria
optar) no trabalho metacientífico reconstrutivo: "Examinando casos controversos como, por exemplo, a psica-
nálise e a historiografia marxista para as quais, conta-nos Popper, teria inicialmente forjado seu critério, con-
cordo que não podem propriamente ser chamadas de ciência" (Kuhn, 1976a:7).
Kuhn não só inverte o velho naturalismo como também colide frontalmente
com a tradição epistemológica quando retira dos requisitos lógico-empíricos o papel
determinante de avaliadores da veracidade das teorizações. O naturalismo e o "epis¬
temologismo" são ambos atacados com as mesmas armas: o recurso a categorias po¬
lítico-sociológicas como meio de esclarecer a sincronia e a diacronia dos processos
históricos de produção de conhecimento científico. A lógica cede muito de seu po-
der à erística, a força inapelável dos contra-exemplos é subordinada à argumentação
persuasiva, a universalidade intersubjetiva torna-se caudatária dos modos funcionais
de (re)produção de consenso nas comunidades científicas etc:

Na escolha de um paradigma, tanto quanto nas revoluções


políticas, não existe critério superior ao assentimento da co-
munidade relevante. Para descobrirmos como as revoluções
científicas ocorrem teremos de examinar, portanto, não
apenas o impacto da natureza e da lógica, mas também as
técnicas de argumentação persuasiva, que se revelam efica-
zes no interior dos grupos muito especiais que constituem a
comunidade dos cientistas (Kuhn, 1970:156).

Pouca serventia tem acrescentar técnicas de argumentação persuasiva aos


requisitos lógicos de coerência e aos imperativos empíricos de correspondência,
quando o fundamental é determinar se, e em que medida, convencer é uma cate-
goria capaz de nos levar a pensar num modelo de racionalidade totalmente distinto
daquele que se diz calcado apenas nas ações de demonstrar logicamente e compro-
var empiricamente. Kuhn chega a afirmar que os argumentos não são individual-
mente decisivos, que não há argumentos puramente lógicos nem evidência empírica
inconcussa capazes de determinar a superioridade de um paradigma sobre outro:

Não podemos recorrer a noções como as de "verdade" ou


"validade" dos paradigmas se tencionamos compreender a
eficácia especial da investigação que sua aceitação permite
fazer (Kuhn, 1980:90).

Formulações desse tipo têm sido tachadas pelos críticos de Kuhn de irra¬
17
cionalistas - "a matter for mob psychology" . Kuhn rechaça com veemência esse

17 Lakatos também faz a seguinte interessante comparação : "Para Popper, a mudança científica é racional
ou pelo menos suscetível de reconstrução facional e cai no domínio da lógica da descoberta. Para Kuhn, a
mudança científica - de um paradigma para outro - é uma conversão mística que não é e nem pode ser re-
gida por regras da razão e que cai totalmente no domínio da psicologia (social) da descoberta. A mudança
científica é uma espécie de mudança religiosa" (Lakatos, 1976:93). (...) "Mas o programa de pesquisa
kuhniano contém um novo traço: temos de estudar não a mente do cientista individual, mas a mente da
Comunidade Científica. A psicologia individual é assim substituída pela psicologia social; imitação dos
grandes cientistas pela submissão à sabedoria coletiva da comunidade" (Lakatos, 1976:178-9).
tipo de rotulação. No entanto, se a tradição epistemológica estiver certa -
não tanto pelas respostas que oferece, mas pela delimitação dos problemas
que considera legítimos - a metaciência kuhniana despontará, na melhor das
hipóteses, como fidedigna descrição da ciência até aqui produzida, mas não
como reconstrução da racionalidade científica que culmina na enunciação de
algum critério de decisão epistêmica.
Há claros indícios de que, para a metaciência pós-popperiana, um dos
problemas centrais a equacionar é o relativo à natureza da mudança científi-
ca. Pretendendo-se respaldado pela história da ciência, Kuhn caracteriza a
mudança científica como essencialmente revolucionária. Mas, à diferença da
tradição epistemológica, não acredita na existência de um conjunto de princí-
pios (lógico-empíricos) capaz de ensejar a comparação entre teorias rivais à
luz de um background evidenciai minimamente compartilhado. Nem o requi-
sito lógico da consistência e nem o da fidedignidade empírica teriam força su-
ficiente para demonstrar a superioridade de uma teoria sobre outra. Kuhn
chega a sustentar que cada grupo utiliza seu próprio paradigma para argu-
mentar a favor de sua legitimação. Se há essa circularidade, decorrente de
inexistirem princípios de comparação aplicáveis a diferentes teorizações, é
claro que vivemos na "prisão interpretativa" do paradigma. Por serem os crité-
rios sempre paradigm-bound, isto é, por terem uma validade circunscrita ao
domínio do paradigma ao qual se aplicam (e do qual retiram sua legitimida-
de) não há como utilizá-los na avaliação das escolhas feitas.
Mas se as regras lógicas e a "força da experiência" não conseguem elucidar a
transição, como poderiam fazê-lo as técnicas de argumentação persuasiva? Afinal,
com elas, ficaria quando muito demonstrado que ingressamos num outro paradig-
ma, mas não por que razões. Se os requisitos sintáticos (de coerência) e semânticos
(de correspondência) não conseguem explicar a transição, terão as categorias prag-
máticas (por exemplo, a persuasão) poder para tanto? Não se pode esquecer que es-
tas últimas pressupõem os dois outros: afinal, quem se persuade - sobretudo no
campo da pesquisa empírica - se persuade de alguma coisa (relação entre o que se
diz e o que é) veiculada através de certa roupagem argumentativa (a natureza
das inferências feitas). Ao invés de apenas conferir proeminência à esfera
pragmática - consenso, persuasão, conversão etc. - , Kuhn deveria tentar mos-
trar como se associa à sintaxe e à semântica nos processos históricos específi-
cos de produção de conhecimento científico.
Kuhn recorre a importantes exemplos extraídos da psicologia da per-
cepção, sobretudo gestaltista, em apoio à sua tese de que um cientista com
um novo paradigma vê "as coisas" de maneira diferente da que via quando
dissecava a natureza à luz de outra matriz disciplinar. Nesse sentido, a des¬
continuidade entre paradigmas se relaciona diretamente com uma gestalt
switch (reversão gestáltica) através da qual se produz uma profunda alteração
nos modos de percepção antes prevalecentes (Cf. Morick, 1980:17). Ver dei-
xa de ser mero registro do que se passa à nossa volta para se transformar
numa questão de visão de mundo. Não por acaso, Lavoisier viu oxigênio
onde Friestley vira ar desflogistizado e outros nada viram...

Guiados por um novo paradigma, os cientistas adotam novos


instrumentos e olham em novas direções (...) durante as revo-
luções os cientistas vêem coisas novas e diferentes quando,
utilizando instrumentos familiares, dirigem seu olhar para luga-
res anteriormente por eles examinados. É como se a comuni-
dade profissional tivesse sido subitamente levada para outro
planeta onde objetos familiares são vistos sob uma luz diferen-
te e a eles se juntam objetos diferentes (Kuhn, 1970:173).

Há nítidas implicações relativistas nesse ponto de vista de que podemos


18
ver coisas diferentes quando olhamos para o mesmo tipo de objeto. Afinal, o
que muda quando deixamos um paradigma para trabalharmos sob a égide de
outro? É evidente que não se pode imaginar que o mundo qua tale mude, e sim
que se alteram apenas as interpretações que os cientistas dão às observações.
Ocorre, porém, que a reversão gestáltica é muito mais que mera reinterpretação
dos mesmos dados. A tese da reinterpretação pressupõe que as observações são
sempre idênticas a si mesmas, sendo as variações resultantes da imbricação com
os quadros teóricos no interior dos quais são feitas. Nesse sentido, se pudésse-
mos fazer observações sem teoria poderíamos falar em ação puramente registra-
dora. Quando Kuhn afirma que, embora o mundo não mude com a mudança de
paradigma, mas que depois da mudança o cientista trabalha num mundo dife-
rente, parece querer se limitar a reconhecer apenas a profunda interpenetração
de teoria e observação que faz com que alterações nos quadros teóricos ocasio-
19
nem outro mapeamento da realidade . No entanto, sua teoria da percepção e

18 Toulmin afirma que o "endosso tácito a uma teoria idealista do conhecimento encoraja Kuhn a aceitar
uma teoria idealista da percepção" (Toulmin, 1972:101).
19 Toulmin faz o seguinte comentário: "Que exemplos poderíamos invocar como possíveis ilustrações des-
sas totais mudanças na visão de mundo científica? Dois candidatos promissores são a reviravolta da astro-
nomia pré-copernicana para a nova ciência de Galileu e Newton (...) e mais recente da física clássica de
Newton e Maxwell para a física relativista de Einstein e a quântica de Heisenberg e seus sucessores (...).
Em nenhum dos dois casos o esquema de completa revolução se ajusta aos fatos. Trata-se de uma carica-
tura descrever, por exemplo, a reviravolta da física newtoniana para a einsteiniana como uma completa
descontinuidade racional... Numa ciência altamente organizada como a física, toda modificação proposta
- por mais que ameace desencadear profundas mudanças na estrutura conceituai da área - é discutida
através de argumentos e razões, criticada à exaustão antes de ser endossada e incorporada ao corpo esta-
belecido da disciplina. Na verdade, quanto mais radicais e abrangentes as mudanças teóricas propostas,
mais elaborada e prolongada tenderá a ser a discussão" (Toulmin, 1972:103).
da mudança conceitual colide frontalmente com o ponto de vista de que o novo
paradigma introduz apenas uma simples reinterpretação dos mesmos dados:

O que acontece durante uma revolução científica não é to-


talmente redutível a uma reinterpretação dos dados indivi-
duais e estáveis. Em primeiro lugar, os dados não são ine-
quivocamente estáveis (...) o cientista que abraça um novo
paradigma é como o homem que usa lentes inversoras. De-
parando-se com a mesma constelação de objetos que an-
tes, e tendo conhecimento disso, ele os encontra, no entan-
to, totalmente transformados em muitos de seus detalhes
(Kuhn, 1970:183-4).

Por caracterizar de forma nebulosa a natureza do processo de mudança


científica, pode Kuhn recorrer, de forma justapositiva, a categorias da sintaxe, da
semântica e da pragmática sem especificar o tipo de papel particular desempe-
nhado por cada uma delas. Em razão de abraçar uma versão genérica da tese da
subdeterminação da teoria pelos fatos, Kuhn se vê livre para caracterizar a identi-
ficação de anomalias e a emergência de revoluções como processos determina-
20
dos tanto por razões (internas) quanto por causas (externas). Resolve-se, assim,
a velha contraposição entre história interna e história externa da ciência identifi-
cando artificialmente razões e causas. Mas que outro caminho poderia ser trilha-
do pela metaciência que defende o ponto de vista segundo o qual: "a competi-
ção entre paradigmas não é o tipo de batalha que pode ser decidido por meio
de provas" (Kuhn, 1970:210).
Daí Kuhn sustentar que a comunicação entre proponentes de diferentes
21
teorias é inevitavelmente parcial , que o que cada um considera fato depende
em parte da teoria que adota e que a transferência de lealdade de uma teoria
para outra "é melhor descrita como converso mais do que como escolha" (Kuhn,

20 Kuhn (1957, capítulos 5 e 6) caracteriza do seguinte modo a estrutura lógica de uma revolução cientí-
fica: um esquema conceituai acaba por levar a resultados incompatíveis com a observação. Como se
pode ver, nessa fase, anterior a The Structure, Kuhn está bem próximo da metaciência popperiana.
Chega, inclusive, a afirmar que a incompatibilidade entre teoria e observação é a fonte última de qual-
quer revolução nas ciências. Já na fase de The Structure, Kuhn concebe o paradigma como estipulan-
do os princípios inquestionados em torno dos quais se organizam os modos partilhados de uma comu-
nidade realizar seu trabalho de pesquisa.
21 Kuhn declara que: "Proponentes de teorias diferentes são como falantes de diferentes línguas mater-
nas. A comunicação entre eles se dá através de tradução, e isso gera todas as conhecidas dificuldades
de tradução. A analogia é, naturalmente, incompleta, pois o vocabulário das duas teorias pode ser
idêntico e a maioria das palavras funcionar da mesma maneira em ambas. Mas as mesmas palavras
dos vocabulários básico e teórico das duas teorias - palavras como 'estrela' e 'planeta', 'mistura' e
'composto', ou 'força' e 'matéria' - funcionam de modo diferente" (Kuhn, 1977b:338).
1977b:338). A relativização do valor das provas empíricas, das regras lógicas de
inferência junto com a adoção de uma teoria idealista da percepção desembo-
22
cam na controvertida tese da incomensurabilidade :

Por se tratar de uma transição entre incomensuráveis, a transi-


ção entre paradigmas em competição não pode ser feita de
forma gradual, por imposição da lógica e da experiência neu-
tra. Tal como a reversão gestáltica, a transição deve ocorrer de
uma só vez (embora não necessariamente num instante) ou
então simplesmente não ocorrer (Kuhn, 1970:212).

Para que não vejamos o enfoque kuhniano como psicologia ou sociologia da


ciência mesclada à epistemologia ou como epistemologia em clave psicológica ou
sociológica, terá a história de nos provar que os problemas epistemológicos nunca
mais serão os mesmos depois de The Structure of Scientific Revolutions. Isto porque,
por poder envolver uma autêntica revolução epistemológica, teremos de ser con-
vertidos ao paradigma descontínuo que instaura. A valer a lógica que aplica ao en-
volver normal e revolucionário da ciência, não podemos aderir à novidade de seu ar-
cabouço epistemológico sem passarmos por uma reversão gestáltica. Enquanto não
usamos os óculos epistemológicos kuhnianos, temos de nos conformar em apenas
marcar algumas diferenças com a tradição epistemológica. Quem sabe estaremos assim
nos preparando para uma mudança all at once de perspectiva...
Não há, da parte de Kuhn, interesse de propor procedimentos de justifica-
ção; há sempre uma vaga alusão a fatores externos e os fatores funcionais (inter-
nos) não chegam a configurar em momento algum uma ars probandi. Não há dú-
vida de que a história da ciência está sendo o tempo todo reconstruída, na obra
de Kuhn, a partir de um framework epistemológico tácito, ao mesmo tempo em
que é apresentada como respaldando determinada visão sobre a ciência. Kuhn
sabe que por mais que a evidência histórica referende uma imagem sobre a ciên-
cia, não pode ser usada como fundamento de cânones de investigação similares
aos propostos pela tradição. Destarte, ou a epistemologia é análise reconstrutiva
de determinado(s) estágio(s) de desenvolvimento de certas ciências ou é simples
formulação de procedimentos a-históricos idealizados. Kuhn parte desse dilema
e se inclina por inocular na epistemologia histórica o recheio psicossociológico:

22 Com relação às implicações subjetivistas/relativistas contidas no enfoque sociológico kuhniano que se


insinua recentemente no discurso epistemológico, sugerimos a leitura das críticas feitas por Scheffler,
1967:64-89.
Já devia ter ficado claro que a explicação, na fase final, pre-
cisa ser psicológica ou sociológica, isto é, precisa ser uma
descrição de um sistema de valores, de uma ideologia, jun-
tamente com uma análise das instituições através das quais
o sistema é transmitido e inculcado (Kuhn, 1976a:21).

Não se pode ser contra ou a favor a priori da mistura de categorias


epistemológicas com outras psicológicas ou sociológicas. O que se deve sem-
pre fazer é avaliar a proficuidade de tal enfoque no esclarecimento das pecu-
liaridades da racionalidade científica. Se entendermos racionalidade científica
em sentido lato, o enfoque kuhniano se mostrará extremamente fecundo; se
a confinarmos ao valor puramente intrínseco das teorizações pouco acrescen-
tará, uma vez que não faz proposta inovadora alguma no que tange aos ri-
tuais de justificação dos sistemas explicativos.
Se aplicarmos ao próprio Kuhn as categorias através das quais lê alguns
dos principais momentos da história da ciência, ficaremos com a convicção
de que, com sua reflexão, a epistemologia começa a sair da fase normal, co-
meça a reconhecer anomalias, pode estar a caminho de mergulhar numa cri-
se e já pode até estar no limiar de uma revolução. O u pode não ser nada dis-
so... Se ficar constado que as fases kuhnianas de desenvolvimento das ciên-
cias maduras - pré-paradigmática, paradigmática e revolucionária - não são
inexoráveis (ocorreram, ocorrem e ocorrerão sempre) na história da ciência,
nem por isso perderão sua importância. São tipos-ideais construídos pela ima-
ginação criadora que muito contribuíram para ajudar a esclarecer esse obscu-
ro objeto da razão chamado ciência.

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