A gente passa, a gente olha, a gente pára e se extasia. Que aconteceu com esta cidade da noite para o dia? O Rio de Janeiro virou flor nas praças, nos jardins dos edifícios, no Parque do Flamengo nem se fala: é flor é flor é flor, uma soberba flor por sobre todas, e a ela rendo meu tributo apaixonado. Pergunto o nome, ninguém sabe. Quem responde é Baby Vignoli, é Léa Távora. (Homem nenhum sabe nomes vegetais, porém mulher se liga à natureza em raízes, semente, fruto e ninho.) Iúca! Iúca, meu amor deste verão que melhor se chamara primavera. Yucca gloriosa, mexicana dádiva aos canteiros cariocas. Em toda parte a vejo. Em Botafogo, Tijuca, Centro, Ipanema, Paquetá, a ostentar panículas de pérola, eretos lampadários, urnas santas, de majestade simples. Tão rainha, deixa-se florir no alto, coroando folhas pontiagudas e pungentes. A gente olha, a gente estaca e logo uma porção de nomes populares brota da ignorância de nós todos. Essa gorda baiana me sorri: ? Círio de Nossa Senhora? (ou de Iemanjá?) ? Vela de pureza, outra acrescenta. ? Lanceta é que se chama. ? Não, baioneta. ? Baioneta espanhola, não sabia? E a flor, que era anônima em sua glória, toda se entreflora de etiquetas. Deixemo-la reinar. Sua presença é mel e pão de sonho para os olhos. Não esqueçamos, gente, os flamboyants que em toda sua pompa se engalanam aqui, ali, no Rio flóreo. Nem a dourada acácia, nem a mimosa nívea ou rósea espirradeira, esse adágio lilás do manacá, esse luxo do ipê que nem-te-conto, mais a vermelha aparição dos brincos-de-princesa nos jardins onde a banida cor volta a imperar. Isto é janeiro e é Rio de Janeiro janeiramente flor por todo lado. Você já viu? Você já reparou? Andou mais devagar para curtir essa inefável fonte de prazer: a forma organizada rigorosa esculpintura da natureza em festa, puro agrado da Terra para os homens e mulheres que faz do mundo obra de arte total universal, para quem sabe (e é tão simples) ver? Inocentes do Leblon Carlos Drummond de Andrade Os inocentes do Leblon não viram o navio entrar. Trouxe bailarinas? trouxe imigrantes? trouxe um grama de rádio? Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram, mas a areia é quente, e há um óleo suave que eles passam nas costas, e esquecem. Copacabana Vinicius de Moraes Esta é Copacabana, ampla laguna Curva e horizonte, arco de amor vibrando Suas flechas de luz contra o infinito. Aqui meus olhos desnudaram estrelas Aqui meus braços discursaram à lua Desabrochavam feras dos meus passos Nas florestas de dor que percorriam. Copacabana, praia de memórias! Quantos êxtases, quantas madrugadas Em teu colo marítimo! - Esta é a areia Que eu tanto enlameei com minhas lágrimas - Aquele é o bar maldito. Podes ver Naquele escuro ali? É um obelisco De treva - cone erguido pela noite Para marcar por toda a eternidade O lugar onde o poeta foi perjuro. Ali tombei, ali beijei-te ansiado Como se a vida fosse terminar Naquele louco embate. Ali cantei À lua branca, cheio de bebida Ali menti, ali me ciliciei Para gozo da aurora pervertida. Sobre o banco de pedra que ali tens Nasceu uma canção. Ali fui mártir Fui réprobo, fui bárbaro, fui santo Aqui encontrarás minhas pegadas E pedaços de mim por cada canto. Numa gota de sangue numa pedra Ali estou eu. Num grito de socorro Entreouvido na noite, ali estou eu. No eco longínquo e áspero do morro Ali estou eu. Vês tu essa estrutura De apartamento como uma colmeia Gigantesca? em muitos penetrei Tendo a guiar-me apenas o perfume De um sexo de mulher a palpitar Como uma flor carnívora na treva. Copacabana! ah, cidadela forte Desta minha paixão! a velha lua Ficava de seu nicho me assistindo Beber, e eu muita vez a vi luzindo No meu copo de uísque, branca e pura A destilar tristeza e poesia. Copacabana! réstia de edifícios Cujos nomes dão nome ao sentimento! Foi no Leme que vi nascer o vento Certa manhã, na praia. Uma mulher Toda de negro no horizonte extremo Entre muitos fantasmas me esperava: A moça dos antúrios, deslembrada A senhora dos círios, cuja alcova O piscar do farol iluminava Como a marcar o pulso da paixão Morrendo intermitentemente. E ainda Existe em algum lugar um gesto alto, Um brilhar de punhal, um riso acústico Que não morreu. Ou certa porta aberta Para a infelicidade: inesquecível Frincha de luz a separar-me apenas Do irremediável. Ou o abismo aberto Embaixo, elástico, e o meu ser disperso No espaço em torno, e o vento me chamando Me convidando a voar... (Ah, muitas mortes Morri entre essas máquinas erguidas Contra o Tempo!) Ou também o desespero De andar como um metrônomo para cá E para lá, marcando o passo do impossível À espera do segredo, do milagre Da poesia. Tu, Copacabana, Mais que nenhuma outra foste a arena Onde o poeta lutou contra o invisível E onde encontrou enfim sua poesia Talvez pequena, mas suficiente Para justificar uma existência Que sem ela seria incompreensível. Ilha do Governador Vinicius de Moraes Esse ruído dentro do mar invisível são barcos passando Esse ei-ou que ficou nos meus ouvidos são os pescadores esquecidos Eles vêm remando sob o peso de grandes mágoas Vêm de longe e murmurando desaparecem no escuro quieto. De onde chega essa voz que canta a juventude calma? De onde sai esse som de piano antigo sonhando a "Berceuse"? Por que vieram as grandes carroças entornando cal no barro molhado? Os olhos de Susana eram doces mas Eli tinha seios bonitos Eu sofria junto de Suzana - ela era a contemplação das tardes longas Eli era o beijo ardente sobre a areia úmida. Eu me admirava horas e horas no espelho. Um dia mandei: "Susana, esquece-me, não sou digno de ti - sempre teu?" Depois, eu e Eli fomos andando? - ela tremia no meu braço Eu tremia no braço dela, os seios dela tremiam A noite tremia nos ei-ou dos pescadores? Meus amigos se chamavam Mário e Quincas, eram humildes, não sabiam Com eles aprendi a rachar lenha e ir buscar conchas sonoras no mar fundo Comigo eles aprenderam a conquistar as jovens praianas tímidas e risonhas. Eu mostrava meus sonetos aos meus amigos - eles mostravam os grandes olhos abertos E gratos me traziam mangas maduras roubadas nos caminhos. Um dia eu li Alexandre Dumas e esqueci os meus amigos. Depois recebi um saco de mangas Toda a afeição da ausência? Como não lembrar essas noites cheias de mar batendo? Como não lembrar Susana e Eli? Como esquecer os amigos pobres? Eles são essa memória que é sempre sofrimento Vêm da noite inquieta que agora me cobre. São o olhar de Clara e o beijo de Carmem São os novos amigos, os que roubaram luz e me trouxeram. Como esquecer isso que foi a primeira angústia Se o murmúrio do mar está sempre nos meus ouvidos Se o barco que eu não via é a vida passando Se o ei-ou dos pescadores é o gemido de angústia de todas as noites? Rio de Janeiro Manuel Bandeira Louvo o Padre, louvo o Filho E louvo o Espírito Santo. Louvado Deus, louvo o santo De quem este Rio é filho. Louvo o santo padroeiro ? Bravo São Sebastião ? Que num dia de janeiro Lhe deu santa defensão. Louvo a cidade nascida No morro Cara de Cão, Logo depois transferida Para o Castelo, de então Descendo as faldas do outeiro, Avultando em arredores, Subindo a morros maiores, ? Grande Rio de Janeiro! Rio de Janeiro, agora De quatrocentos janeiros... Ó Rio de meus primeiros Sonhos! (A última hora De minha vida oxalá Venha sob teus céus serenos, Porque assim sentirei menos O meu despejo de cá!) Cidade de sol e bruma, Se não és mais capital Desta nação, não faz mal: Jamais capital nenhuma, Rio, empanará teu brilho, Igualará teu encanto. Louvo o Padre, louvo o Filho E louvo o Espírito Santo. Mal Secreto Waly Salomão (musicada por Jards Macalé) Não choro meu segredo é que sou rapaz esforçado fico parado calado quieto não corro não choro não converso massacro meu medo mascaro minha dor já sei sofrer não preciso de gente que me oriente Se você me pergunta como vai respondo sempre igual tudo legal Mas quando você vai embora movo meu rosto do espelho minha alma chora vejo o Rio de Janeiro vejo o Rio de Janeiro comovo, não salvo, não mudo meu sujo olho vermelho não fico parado não fico calado não fico quieto corro choro converso e tudo mais jogo num verso intitulado mal secreto e tudo mais jogo num verso intitulado mal secreto Soneto Introdutório Osvaldo Orico Depois de ver os mundos que criara, Cheios de força, cheios de esplendor, Deus, em certa manhã formosa e clara, Não bastando ser Deus, fez-se pintor. Quis dar à vida outro primor, E com as tintas que o Éden pintara, Pôs em quadro de cumes e de cor A curvatura azul da Guanabara. É assim, oh!, viandante deslumbrado!, Que vês, de longe, sobre o Corcovado, O criador em sua pintura estranha; E miras rutilante de beleza, Cristo desabrochar da Natureza, Como um lírio de luz sobre a montanha. Noite Carioca Murilo Mendes Noite da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro tão gostosa que os estadistas europeus lamentam ter conhecido tão tarde. Casais grudados nos portões de jasmineiros... A baía de Guanabara, diferente das outras baías, é camarada, recebe na sala de visita todos os navios do mundo e não fecha a cara. Tudo perde o equilíbrio nesta noite, as estrelas não são mais constelações célebres, são lamparinas com ares domingueiros, as sonatas de Beethoven realejadas nos pianos dos bairros distintos não são mais obras importantes do gênio imortal, são valsas arrebentadas... Perfume vira cheiro, as mulatas de brutas ancas dançam nos criouléus suarentos. O Pão de Açúcar é um cão de fila todo especial que nunca se lembra de latir pros inimigos que transpõem a barra e às 10 horas apaga os olhos pra dormir. E a Coisa Amada Geir Campos cidade minha quase digo e pauso e penso em verdade sou eu que a ti pertenço Poema de Copacabana Nertan Macedo (Mas há quem vele porque te ama, Praia de cinza, violentada). Copacabana de madrugada, Abandonada a um mar cinzento; Copacabana de madrugada Exala um ar de indiferença. Porque só nós estamos vendo Copacabana abandonada, Copacabana de madrugada: Cinza espalhada num mar de cinza, Cinza espalhada num mar de bruma, Cinza cobrindo arranha-céus... Copacabana está sozinha, Violentada, prostituída, Quem nesta hora te conhece Sem riso, nua como uma noiva, Lívida, triste, despenteada? Vingo momentos de vã pureza, Teu sol dourado, teu corpo branco, Tuas manhãs mistificadas. Copacabana de madrugada - Tristeza, bruma, álgidos ventos... - (Mas há quem vele porque te ama, Praia de cinza, violentada).