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Sobre a obra:
Sobre nós:
APRESENTAÇÃO
ÍNDICE
TRAGÉDIA
ZERO – UM
RETORNO
ABISMO
RIO
LUZ
MAPA: XANGAI RAILWAY STATON
TRAGÉDIA
Ele não sabia onde estava. Acordou com um enorme dor de cabeça como se
estivesse prestes a explodir. Colocou a mão direita no topo da cabeça, de onde a
dor emanava, e sentiu um molhado, quente. Não conseguia enxergar nada -
nada, nada, nada - assim provou o molhado que retornou na sua mão para
constatar o que já desconfiava: sangue. Foi isto: algo bateu-lhe forte na cabeça,
causando o corte e desmaiando-o.
Estava deitado de bruços. Espalmou as duas mãos rente ao corpo e tentou
levantar. Conseguiu elevar o tronco mas suas pernas estavam presas. Voltou a
deitar e girando um pouco para a direita descobriu o que as prendia. Tateou e
sentiu um tecido, áspero. Parecia jeans. Empurrou e sentiu solidez, mas não
muita. "Alguém, um corpo talvez", imaginou.
- Ei, você! - gritou.
- Tem alguém aqui? Alguém me ouve?
Empurrou com a mão direita a massa que sentia pressionar seu corpo e
gritou novamente:
- Ei, me ouve?
Mas nada, nenhuma resposta. Aliás, somente ouvia silêncio. O ar do
metrô agora era pesado e quente. Sem energia elétrica não havia sistema de
ventilação. Sentia o cheiro de suor e um cheiro indescritível de medo.
Virou-se à direita o máximo que pode e empurrou a massa que jazia
sobre suas pernas ao mesmo tempo que encolhia-as em direção ao tronco.
Soltou-as.
Ao ficar de pé sentiu o mundo girar. Deu um, dois passos em falso para a
esquerda e tropeçou em algo sólido caindo de mau jeito em cima de alguma
coisa. Segurou a dor e o grito rangendo os dentes e nesta nova posição decidiu
que tinha que enxergar onde estava - e como o ambiente estava - antes mesmo
de tentar levantar-se
Sentou-se como pode. Tirou seu comunicador pessoal do bolso e ligou-o.
Primeiramente verificou se tinha sinal: tentou fazer um ligação, para a esposa,
sem sucesso. Acionou em seguida a lanterna do mesmo para examinar à sua
volta. O que viu fora mais terrível que imaginara!
Agora o medo infiltrou de fato suas entranhas. Num átimo penetrou seus
poros, ocupou toda sua alma e mente como um encantamento maligno.
Paralisou-o.
O vagão que estava encontrava-se totalmente achatado à sua frente por
enormes blocos de concreto. Viu alguns corpos inertes aprisionados neste
amálgama de aço, concreto e carne.
Atrás, um enorme rombo no teto evidenciava por onde uma placa de aço
- provavelmente da cobertura do teto do túnel - havia trespassado. Na sua
imediata frente percebeu o corpo de um homem grande, cabeça embaixo desta
placa. O corpo e pernas eram daquele que prendera suas próprias pernas. Após a
placa de aço, um amontoado de corpos. Uma pilha com talvez dez ou quinze.
Muitas crianças uniformizadas - com certeza indo à escola. Além disto, nada via.
A memória dos últimos instantes começa a retornar: acordara às 6:30,
ajudou Liu Sun - sua esposa - em arrumar Mei e Lok para a escola - seu casal de
filhos de 7 e 9 anos. Tomara seu café duplo e saíra para pegar o metrô das 8:10
na estação Linping perto de casa. Esta havia sido sua rotina nos últimos sete anos
e meio. Mas, hoje, algo diferente. Terrivelmente diferente aconteceu. Algo que
mudaria a humanidade para sempre: o Grande Terremoto de Xangai.
Quando já estava em movimento, dentro de um vagão do metrô,
cumprindo uma rotina que tanto conhecia, soou o primeiro alarme.
Primeiramente as sirenes de superfície, trinta segundos depois as rádios e TV
noticiaram a tragédia por vir, mais trinta segundos e todos, todos, os
comunicadores pessoais tocaram para seus usuários ouvirem a mensagem
padrão: "terremoto iminente. Recolham-se às plataformas aéreas ou se estiverem
em prédios seguros assim permaneçam. Evacuem o metrô e trens. Desembarquem
dos aerotranportes e outros transportes públicos. Isto não é um ensaio. Terremoto
iminente".
A preparação para infortúnios como este dita que os trens tem que parar
nas estações imediatamente a frente, todos desembarcam e saem da estação, o
trem avança para outro entrar. O maquinista seria o último a sair, na última
estação. Mas algo deu errado. O trem a frente do que ele estava parou, todos
desceram e ele assim permaneceu, não dando espaço na plataforma para o seu
encostar.
Soou o segundo alarme. Faltavam dez minutos para a primeira onda
sísmica. As pessoas tentaram forçar as portas do seu trem para correrem pelos
trilhos numa tentativa de salvação mas não conseguiram. Então, se empurraram
dentro dos vagões em direção ao primeiro, onde estaria o condutor. Ao chegar na
cabine descobriram que ele havia fugido. Da cabine uma única e pequena porta
dá acesso aos trilhos. Começaram a se empurrar e passar por esta
desesperadamente. Logo atrás muitos empurravam também esmagando os mais
frágeis, velhos e crianças. A gritaria e choro era geral e ensurdecedor. Nos
vagões atrás homens dos mais diversos tipos tentavam quebrar os vidros.
Jogavam maletas, alguns acionavam alças de segurança ejetando janelas por
onde muitos passavam - ou tentavam passar - desesperadamente. Alguns
correram para trás, outros para frente. Na verdade ninguém sabia o que fazer. E
o tremor veio.
Quando a terra rugiu pela primeira vez abriu uma fenda de 15
quilômetros nos quais sete destes atravessavam o trajeto do metrô de Xangai, o
maior metrô do mundo. Um mamute tecnológico com trens de levitação
eletromagnética, estações a prova de terremotos, inundações e incêndios. O mais
longo e de maior transporte de pessoas do mundo recebeu todo o impacto do
maior terremoto a assolar a China: 8.1 na escala Richter.
O sistema anti-pânico fora elaborado para em meia hora evacuar toda
população em situação de risco na cidade. Incluindo quem estivesse nos
subterrâneos. Mas algo deu errado. Aquele maquinista que bloqueou a estação
Hallun iniciou uma reação em cadeia que repercutiria por séculos.
A última coisa que se lembra é do barulho de aço sendo atingido por
concreto, uma dor imensa na cabeça, e mais nada. Agora, acordado e ciente de
ser o último sobrevivente de sua viagem matinal, tem quem encontrar uma saída
de onde está.
A parte frontal do vagão está totalmente destruída e o trajeto idem. Resta
caminhar pelos trilhos no sentido oposto até a primeira estação. Sair do vagão não
é tão difícil - existe um rombo enorme na lateral direita - mas caminhar nos
trilhos se mostra um desafio. Seu pequeno comunicador pode somente iluminar
poucos metros a frente e o chão encontra-se recoberto por detritos. Lentamente,
às vezes tropeçando, às vezes apenas topando em blocos de pedra e concreto, ele
consegue avançar na escuridão desta caverna. Após algum tempo indiscernível
chega à estação Hallun, sobe a plataforma, vê o vagão vazio que bloqueou a
entrada do seu e tenta achar a saída. A massa de detritos é tão impressionante que
nem consegue discernir onde começam as escadas rolantes. Sobe no entulho
enquanto sente um cheiro que só sentira na juventude.
Quando jovem um amigo que morava na mesma rua que ele, numa
típica brincadeira de mau gosto, movida a testosterona, tranco-o por longas
quatro horas no porão de sua própria casa. E, ainda, garantiu que não houvesse
luz neste porão. Sentiu frio, sentiu medo, sentiu claustrofobia. Desde então,
sempre que sente medo, sente o mesmo cheiro: odor seu, emanado pelas
suprarrenais. O cheiro do medo.
Do topo do entulho percebe que não há passagem por ali. Desce,
atravessa os trilhos, sobe na outra plataforma e, agora, de perto, percebe que lá
também há apenas rochas como portas de uma prisão, encarcerando-o naquele
porão novamente.
No canto Sul desta plataforma tem impressão de ver menos rochas.
Decide removê-las - ou tentar. Com as mãos nuas consegue tirar as menores às
custas de arranhões e cortes até que, finalmente, uma pedra maior se solta do
topo e rola em sua direção! Sem enxergar pula de qualquer forma para sua
direita e por pouco a pedra com seu nome apenas resvala no seu lado esquerdo,
rasgando sua roupa, arranhando seu tronco e braço mas deixando-o o vivo.
O homem, caído no chão, soluça de medo e raiva pela burrice dos seus
atos . Ele finalmente compreende que sem iluminação apropriada, sem
equipamentos e sem ajuda, o máximo que conseguirá com esta estratégia será
antecipar sua morte.
Cansado e amedrontado, perdido sem saber o que fazer, ele dorme.
RETORNO
Horas ou minutos se passaram. O tempo é algo etéreo quando não se tem o sol
para nos guiar. Acordado, machucado, amedrontado e com fome ele decide
retornar de onde veio para tentar reunir algo que lhe ajude a prosseguir pelos
trilhos em busca de uma saída. Precisa de comida. Precisa de mais
iluminação.
No vagão retorcido, destruído, começa a remexer os mortos. O cheiro de
corpos inertes já ocupa o espaço. Os braços e pernas começam a enrijecer.
Mesmo nesta escuridão os insetos acham seus destinos e moscas já estão fazendo
suas danças macabras por sobre as carcaças.
Ele achava que seria mais fácil - por ser um descrente - mas perturbar o
último sono de seus compatriotas afetou-o além da imaginação. Porém, o instinto
de sobrevivência é o mais forte dentre todos os nossos instintos e ele sabia que
sem água, comida e luz, não sobreviveria naquela tumba inesperada.
Do garoto adolescente pegou mochila. Esvaziou-a de seus cadernos e um
a um foi coletando os comunicadores de cada morto. Sempre, ao pegar um,
testava, ligava e se desesperava com o insucesso.
De um outro jovem conseguiu duas barras de neoproteína. Comeu uma e
guardou a outra para a viagem. Com uma senhora acho uma pequena garrafa
com um pouco de água que tratou de beber imediatamente. Guardou a garrafa.
De um senhor conseguiu um isqueiro laser. Retirou também cadarços de
tênis e alguns cintos de couro sintético pensando: "numa se sabe". Estava pronto.
Sabia para onde tinha que rumar: estação Xangai Railway Station ou além.
Ele começou sua jornada com passos firmes. De certa forma já sabia o
caminho: andar por entre os trilhos, cuidado com o entulho à esquerda, cuidado
com o buraco mais à frente, chegar na estação Hallun. Não precisava parar,
subir nas plataformas e procurar saídas porque elas não existem. Prosseguir até
estação Baoshan.
Deve ter andado meia hora, talvez mais, talvez menos. Não havia como
saber ao certo. Na verdade, através dos relógios nos comunicadores ele poderia
saber o horário correto mas não ligava para isto no momento. Ele era um
homem determinado: chegar à estação Baoshan e sair daquele ‘porão’.
Esta estação estava pior que a anterior. Entulhos cobriam inclusive os
trilhos. Por sorte não cobriam até o teto e conseguiu, com certa facilidade,
superar este obstáculo. Usava a mochila nas costas e seu comunicador como
lanterna na mão esquerda.
Do topo da pilha começou a descer em direção à plataforma sul. Teve
que andar mais cuidadosamente mas os passos que dava pareciam firmes.
Quando, de repente, ouve um murmúrio:
- Eiii! Alguém aí? – grita.
Nada. Nem o murmúrio. Grita novamente:
- Eiii! Alooooo! Alguém me ouve?
Ouve o murmúrio novamente. Fraco, baixinho, de algum lugar à sua
esquerda. Quase andando de quatro, quase rastejando, começa metodicamente a
procurar pelo som. Quem poderia ser? Alguém estaria ferido?
Felizmente ele a encontra: uma jovem moça a caminho da faculdade
debaixo de um enorme bloco de concreto. Vê-se rosto que outrora fora lindo, o
braço direito também a salvo do mamute de pedra que aprisionara-a, mas seu
tronco e pernas estavam embaixo deste mesmo bloco.
Ambas as tíbias com fratura expostas. Da cabeça escorrendo lentamente
sangue num provável trauma craniano. Ele, num desespero ineficaz, coloca seu
corpo franzino de costas para o bloco de concreto, segura com as duas mãos e
tenta em vão levantar o mesmo. Seria impossível só ao olhar mas a esperança é
talvez o mais belo sentimento humano. E, muitas vezes, o mais frustrante.
Desconsolado, ele senta ao seu lado. Segura sua mão, afaga sua cabeça
mas ela só geme. Os olhos sem aquela viçosidade da juventude. A expressão
apavorada de uma pessoa que sabe estar próxima a morte.
Sabia ele que a única coisa que podia fazer era dar um pouco de carinho
nestes momentos finais. Não havia esperança do socorro chegar tão
brevemente. Não havia como levantar o bloco, não havia como tratá-la.
Após, não se sabe quando tempo, ela começa a estrebuchar. Ele segura-a
com força e pensa “vai acabar, graças a Deus”. Seu rosto torna-se negro como a
morte, seu cheiro desaparece, seus olhos congelam como vidros opacos. Ela
cessa de debater-se. Acabou.
Por longos minutos ele apenas chora abraçado à moça que nunca
conheceu, e que nunca saberá quem é.
ABISMO
Ele levanta como pode. Juntando os pedaços de sua alma que ficaram
esparramados na dor que havia sentido. Se havia visto a morte de perto no vagão
onde acordara, agora vira a morte chegar e levar seu prêmio. Mas sabe que o
próximo será ele, se não continuar seu trajeto. Se não achar uma saída.
Lentamente continua seu périplo ao longo dos trilhos, andando entre os
dois travessões, cuidadosamente. A imagem do rosto lindo da moça, desfigurado
pela dor e medo, não lhe sai da cabeça e, assim, distraído, tropeça!
A dor dos cotovelos impactando os batentes do trilho, dos joelhos
mergulhando no cascalho só não é maior do que a sensação de que existe um
vazio no chão à sua frente. Deitado entretrilhos seu rosto encontra-se em algum
tipo de vão. Seu comunicador voa da sua mão e mergulha neste vazio. Ele
acompanha com os olhos o trajeto deste pelo buraco enorme rumo ao chão
distante. Trajeto que poderia ser dele se tivesse tido um pouco menos sorte e
caído no abismo.
Ouve o barulho do comunicador encontrando o fim do abismo, vê sua
iluminação ao longe e pensa "o quão fundo isto poderá ser?". Em pé lembra-se
das aulas de física e resolve tentar descobrir a profundidade do mesmo - afinal,
ele precisa atravessar este vazio para prosseguir em sua fuga. Tira outro
comunicador da mochila e solta no vazio tomando o cuidado de contar
mentalmente os segundos até o impacto no fundo:" um mil, dois...". Pouco menos
de dois segundos. Tentando lembrar suas aulas de física na escola - e agora
finalmente entende a importância destas - recorda que, para calcular a
profundidade do poço tem que levar em consideração a aceleração da gravidade
(aproximadamente 9,8mts/s2) e do som retornando do impacto do objeto no solo
(340 m/s). Chega a conclusão que este está a menos de 15 metros.
Ele tem dez cintos na mochila - retirados dos defuntos do "seu" vagão. Se
conectar todos terá quase dez metros de "corda". Se pendurando ao final desta
chegará a cerca de 3,5 metros do solo. Imagina que poderá saltar está altura sem
se machucar.
Primeiramente laça um dos trilhos à sua frente - ambos projetava-se
paralelos e retos à frente ignorando o chão que ruiu abaixo. Enfia o cinto na
fivela e aperta até estrangular o trilho ao máximo. Depois pega um a um os
outros e passa cada um pela fivela de anterior fixando-o no primeiro furo. Repete
o procedimento para todos os cintos e logo tem uma enorme tira de resistente
couro de aproximadamente dez metros.
Puxa bem a corda improvisada para ter certeza que esta bem compacta e
firme e inicia sua decida em rapel. Os comunicadores no chão lá embaixo
fornecem alguma iluminação e cuidadosamente, pé ante pé, ele descende até
eles. Sua corda improvisada não alcança o chão como previra mas deixa-o perto.
Salta. De mau jeito, como era de se esperar, e fica alguns segundos se
recompondo.
Ele está pronto para continuar seu trajeto na parte do chão que estava
originalmente conectada aos trilhos acima. Agora é só recolher os
comunicadores jogados, abandonar a corda improvisada e continuar.
A sua frente viu os trilhos continuarem, subindo numa inclinação provável
de 10 graus. Daria para subir meio caminhando, meio se agarrando nos
escombros. E assim ele o fez.
Deve ter levado poucos minutos mas, quando chegou ao topo, onde os
trilhos ficavam novamente na horizontal, o cansaço abateu sobre si. Forçou o
corpo e prosseguiu por esta reta que agora desvendava-se na escuridão. Após
mais uns 5, 7 minutos se arrastando no cansaço ouviu barulho de água. Em
sequência esbarrou em uma parede de escombros impedindo que prosseguisse
por este par de trilhos.
Cansado, puxou-se para cima, para a plataforma da direita. Ao
terminar, deitou por segundos para pegar fôlego enquanto ouvia - agora bem
alto - o som de água empurrando constantemente. Levantou-se, iluminou com o
comunicador o vão do trilho à frente, paralelo ao que ele vinha caminhando e
viu um rio inesperado. Um rio que não deveria existir.
Provavelmente o Hungpu rompeu metrô adentro e invadiu alguns
percursos e estações, pensou. Mas, era exatamente por este trajeto que deveria
continuar se não quisesse morrer solitariamente naquela escuridão.
Respirou fundo, deitou e dormiu exausto e mais amedrontado que nunca.
RIO