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Editorial
Pois bem, chegamos ao segundo ano de nossa revista. E com
louvor, já que os leitores só aumentam. Bom sinal, minha gente. Aos
poucos, sem pressa, vamos acostumando mais e mais pessoas a exercer
o maior direito do ser humano: usar o cérebro. Sim, pois aqui não se
encontra somentes poesias embargadas de sentimentos e sofrimentos,
Revista Cultural ou contos vampirescos. Entrevistas e artigos são uma ótima maneira
de ensinar a pensar.
Novitas
Ano II Número VII
Setembro de 2010 Esta edição do que há, nada falta. Mais um ícone da música
popular brasileira, imerecidamente não lembrado quando das
discussões que vemos por aí, o grande Luiz Américo, nos concedeu
uma ótima entrevista. E temos música nova e de extrema qualidade
com Makely Ka, em texto genial do jornalista Marcelo Dolabela. Na
Literatura há David Coimbra — nossa primeira entrevista presencial
—, que embora se acredite regional, tem ases na manga para mais
de um Brasil. Há Van Luchiari, nossa nova autora embora velha
Esta é uma publicação da Editora Novitas em
conhecida. E mais artigos, resenhas (inclusive de meu livro “Contos
periodicidade bimestral, distribuída em forma
eletrônica e gratuita. que ninguém conta”), crônicas, contos, poesias. Enfim, precisamos
Todos os textos, imagens ou qualquer aumentar de 20 para 29 páginas, pois com tanto conteúdo de
outra forma de manifestação aqui publicados qualidade não houve como cortar algo.
foram devidamente solicitados a seus autores, que
autorizaram sua utilização por meio de mensagem
Na capa, para quem não sabe, há o símbolo de Libra.
eletrônica.
Imagens não creditadas a outros são
de autoria de David Nobrega, excluindo-se aquelas Eu sabia disso? Não, mas a sempre presente astróloga
que sejam relativas aos autores de artigos e de Madalena, também @ofiodavida no twitter, me elucidou e veio a
alguma maneira ligada aos entrevistados (imagens calhar. Libra, segundo ela, “fala da busca de equilíbrio da Natureza,
pessoais ou de suas obras).
renovação de ciclos, um período intermediário onde cada ser(...)” —
na íntegra, leia em fiodavida.blogspot.com — e acredito pertinente
para o momento que vivemos.
da Biblioteca Nacional.
Editora Novitas: Como é ver os teus linguagem. E achei divertido, gostei. mudar tudo que o repórter faz, porque
livros virarem peça de teatro (“Saltos Esquisito, mas tu vê aquilo que tu quer fazer do jeito dele. Mas tem coisas
de Scarpin”, baseada em “Jogo de escreveu e fica assim: “ Bah! Eu escrevi que não precisam ser refeitas, não é?
Damas” e “Mulheres”)? Tu pensas em isso!”
escrever roteiro? N: Alguns escritores gaúchos,
N: Não dá um certo ciúme de ver tuas principalmente iniciantes, tem
David Coimbra: O José Pedro que está personagens por assim dizer na mão de uma visão de que precisa sair do
fazendo um filme sobre meu romance outras pessoas? RS para fazer sucesso. Apesar desse
“Canibais” queria que eu escrevesse pensamento, se formos verificar a lista
o roteiro mas dai eu pensei: “Pô, vou DC: Não, não chega a isso. Claro que dos mais lidos (com raras exceções),
escrever o roteiro sobre um troço que mudaram um monte de coisas e tal. todos são gaúchos: Scliar, Martha
eu já escrevi, né?”. Achei demais. De Eu resisto à tentação de ficar pensando Medeiros, Lya Luft, Carpinejar e
repente, se der vontade algum dia, sei “Ah, poderia ficar melhor”, porque dai teus próprios livros. Aqui no RS o
lá.... seria de meu jeito. que nos parece é que existem ilhas de
Agora ver a peça assim, cultura, que não se misturam. Então
como quando eu vi pela primeira vez N: Aí o roteiro teria que ser teu... falta alguma coisa, porque no final
encenada, foi interessante, divertido, das contas aqui é um grande centro
porque é outra linguagem, outra forma DC: Sim, claro, assim como a direção cultural...
de comunicação. Não pode esperar que e outras coisas. Achei bacana, a gente
aquilo que tu escreveu seja parecido não pode ter esse tipo de apego. É a DC: É assim: precisa e não precisa siar
com aquilo que está sendo encenado. mesma coisa aqui no jornal, que eu daqui. Porque se você não é lido em
Outra forma de se expressar, outra sempre digo que tem editor que quer São Paulo, você fica restrito a este
[3] — setembro de 2010 — revista cultural novitas nº 7
âmbito regional. O Veríssimo pegou N: Tu é um autor de assuntos variados. de desrespeito aos direitos humanos.
no Brasil inteiro com uma situação Teus textos geram polêmica. Qual Porque ai é um Estado infringindo
especial, primeiro porque é filho do foi a crônica ou livro que gerou mais uma norma que é humanitária básica.
Erico Verissimo, já carrega esse nome polêmica? Tem uma outra coisa que as
e que, quer queira quer não, é válido. pessoas ficam bravas comigo que é
Depois criou o “Analista de Bagé”, onde DC: Várias crônicas. Teve uma que quando contesto esses ativistas, como
ele escreveu uma antologia de crônicas escrevi quando um cachorro mordeu os antropólogos, que dizem que todas
“internacional”, sabe? Independente meu filho que os defensores dos as culturas são iguais e tal. Eu digo que
de onde tu estejas se tu esta lendo animais do mundo inteiro, mundo não, que não são todas iguais. A cultura
aquele livro tu esta rindo, se divertindo. inteiro mesmo, me enviaram milhares ocidental é superior e é superior
Da maneira como ele consegue se de email´s. Tanto que eu tive que porque prega que todos são iguais,
comunicar, é um clássico. O Moacir escrever outra crônica pedindo calma, enquanto os outros não, eles pregam a
Scliar tem 80 e tantos livros escritos e porque estavam até me ameaçando. diferença. E mais do que isso, a cultura
uma atuação de escritor que é muito Recebi email dos USA, da China... ocidental atingiu — depois de vários
forte. Um cara que atua como escritor, massacres, de crueldade —, um nível
a função dele é ser escritor, se dedica a N: Da China, onde inclusive comem encontrado na Europa e na América
isso e também conquistou o apoio da cachorro... do Norte e que a gente pode chamar
mídia. A Martha Medeiros conseguiu de teoria de direitos humanos, que é
“
uma comunicação com a mulher de DC: Impressionante, de todo lugar. único na história do mundo. Nunca
classe média Pessoas me xingando. Até hoje ainda se chegou a esse ponto na defesa dos
Não sou interessante, recebo um ou outro. Escrevi outra direitos humanos, como o que existe na
corajoso, cuma onquistou
coluna no
crônica sobre, os vegetarianos. Uma
gozação, enlouqueceram, foram lá
cultura ocidental moderna, algo que na
cultura oriental não existe. Não existe
estou Rio de Janeiro, fazer manifestação no lançamento de na China, não existe no Oriente Médio,
tentando no Globo, um livro meu... Mas eu não escrevo não existe em outras partes do oriente.
ser então são casos para fazer polêmica não, viu? Tu diz No ocidente é basicamente pela cultura
particulares. que causam polêmica tal. Eu escrevo europeia e norte-americana.
honesto e a cada texto eu tento fazer o melhor Atingimos um nível onde
para dizer N: Então tu sai texto da minha vida. Porque eu gosto se defende as mulheres — que são
o que eu daqui, vai para de escrever, sou jornalista para escrever iguais aos outros —, os homossexuais
estou lá faz sucesso e e não escritor jornalista. Sempre na — que são iguais aos outros — e tu
depois volta? minha vida tudo o que sempre quis pode ter qualquer posição política,
realmente foi escrever bem. E trabalho para isso partidária, religiosa, o que nada mais
pensando. DC: Ah, mas se todos dias. Então eu sempre tento fazer é que a liberdade do ser humano
você faz sucesso lá você faz sucesso aqui o melhor texto. E tento ser sincero como indivíduo, não é? Isso é cultura
e a premissa contrária não é verdadeira. naquilo que estou escrevendo. Tento ocidental. Aí as pessoas se chocam,
Eu sou um escritor regional, quem me dar minha opinião mesmo, com porque tu está dizendo que os
conhece lá são meus colegas jornalistas. sinceridade e com honestidade. Tem europeus e americanos são superiores.
Meu nome não é um nome que tu que ser honesto naquele texto ali. Sim, porque quando uma pessoa pensa
falas lá fora e as pessoas reconhecerão Então, agora escrevi um texto assim sobre os direitos humanos, ela é
como acontece aqui, entendeu? A “Viva o Imperialismo”, sobre aquele superior. Uma pessoa que pensa assim
Lya Luft não, ela tem uma história negócio que os caras cortaram o nariz e se coloca em um outro plano. Ou tu
pregressa, mulher do Celso Pedro as orelhas da moça lá no Afeganistão. E vai me dizer que um talibã que é capaz
Luft (professor, gramático, filólogo, lingüista aí sobretudo no blog – os comentaristas de fazer aquilo tudo com uma mulher
e dicionarista brasileiro http://pt.wikipedia. de blog são muito agressivos, né? -- te é um ser superior? Ao contrário, ele
org/wiki/Celso_Luft) e ela agora, mais chamam de babaca, por exemplo. Eu se coloca abaixo da humanidade. Até
avançada, conseguiu a coluna na Veja publico tudo, não deixo que censurem estou desenvolvendo esse assunto aqui
e reconhecimento dos livros e tal. Tem nada, a não ser que falem de outras com vocês e vai virar assunto para a
grandes escritores aqui, como o Faraco pessoas, ai sim eu tiro. Mas eu não faço próxima coluna...
(Sergio Faraco http://pt.wikipedia.org/wiki/ isso para gerar polêmica. Eu penso o Por que eu estou te dizendo
Sergio_Faraco), por exemplo, que é um que escrevi, mesmo. Eu não sou um isso? Porque é algo que eu penso, eu
baita de um escritor, e vende 2000 imperialista no sentido de defender jogo com a honestidade, não é coragem.
livros. Isso aqui, no Rio Grande do Sul. os Estados Unidos, mas defendo a “Ah porque tu é corajoso”. Não sou
intervenção da ONU. São casos graves corajoso, estou tentando ser honesto
“
jornal e as pessoas gostam. Meu livro DC: Se muito...
DC: Olha, se você ficar com medo de
“Jogo de Damas” também é isso. E aí
levar pau, então é melhor não escrever
nada. Ah, tu vai ser criticado? Aí tu
resolvi fazer isso, a Historia do Mundo N: Sim, e é (...)
escreve um texto anódino, ninguém
— é claro que é uma brincadeira —.
A História do Mundo não é um livro
concentrado
em quem está
eu estou
no colégio e nas escrevendo
vai querer ler, sem sal.
histórico, mas é um livro de histórias
N: Como é tu lida com a crítica? Não a
da história, vamos dizer assim. Mas
ao mesmo tempo é história. Estou
universidades.
São livros de
agora um
crítica real, mas a agressão na internet.
curtindo isso para caramba. Agora lista, elas são livro
DC: Isso é algo novo e na imprensa, a
estou na parte dos egípcios e ai releio
todos aqueles livros que tenho que
obrigadas a ler.
Então o Brasil
modesto,
gente que escreve para jornal, tem que
aprender a trabalhar com isso. Porque
falam sobre os egípcios. Isso eu gosto não é um pais que é “A
de fazer. de leitores e História do
nunca antes houve esse acesso.
sim um país
N: E tuas anotações ainda ficam de escritores. Mundo e o
N: Alguns esquecem que do outro lado
em papel ou já migrou de vez para o Quando que Sentido da
da tela tem gente também.
computador? tu acha que as
DC: É... tua reação vai direto. “Tu é um
coisas no Brasil Vida”
DC: Ah, os dois... Eu uso as duas vão mudar?
imbecil!”.
coisas. Escrevo muito nos próprios
É aquela coisa assim, antes tu
livros. Se tu pegar meus livros vai ali ver DC: De novo, educação básica. Não tem
tinha que escrever uma carta para o
um monte de anotações. outra solução que não seja a educação
cara do jornal. Se tu ligar para o cara,
básica. Não é só para cultura, para a
ele vai te responder. Ninguém pega o
N: E o e-book? Muitos autores apostam leitura, é tudo... Segurança pública, a
telefone e te liga para xingar. Na rua? Tu
no e-book, dizendo que vai substituir educação entre as pessoas, para o
anda na rua e ninguém vem te xingar na
[5] — setembro de 2010 — revista cultural novitas nº 7
desenvolvimento do Brasil mesmo, que de Porto Alegre “Jô na estrada”, baseado Você sempre escuta aquela
é algo básico, estrutural. E educação em três folhetins que lancei no blog, história de que as editoras não
básica é aquela coisa de tu pegar a que alterei, modifiquei o final. Esse investem em escritores iniciantes.
criança, colocar no colégio o dia inteiro, livro tem uma linguagem diferente, Autor iniciante é o que é, iniciante.
valorizar a educação. E isso tinha que porque eu começo escrevendo e o Para vencer tem que deixar de ser
ser a prioridade número zero para Fraga (ilustrador de editorial do Jornal ZH iniciante. Não tem como fazer alguma
o Brasil. Como aconteceu na Coreia — http://fragacaricaturas.blogspot.com/) coisa sem tempo. Esse cara que fez
e na Alemanha. E também porque é complementa contando a mesma o Millenium, o sueco Larsson (Stieg
muito mais difícil. As Universidades e história com quadrinhos. Não é que Larsson http://www.trilogiamillennium.com.
faculdades estão todas prontas. Agora ele ilustre a história, ele continua br/), escreveu um best seller espetacular.
na educação básica, colocar professor contando a história de onde parei. E Ele terminou de escrever, lançou o livro
ali, criar bibliotecas, quadras de esporte estou escrevendo o modesto “Mistério e morreu. É um negócio espetacular,
e até dentistas, alimentação e tal, é do Mundo e o Sentido da Vida”. todo mundo leu, fizeram filme, etc,
difícil. Por isso que deveria ser antes mas isso é coisa de um em um milhão.
da prioridade um... tem que ser a zero, N: Um conselho para os autores Então não adianta, se o cara
mesmo. iniciantes? quer escrever, o que ele tem que fazer é
se tornar um não-iniciante. E ler muito!
N: Estás trabalhando em novos DC : Nelson Rodrigues tinha uma
projetos? frase assim: ”Conselho para os jovens, ***
DC: Vou lançar um novo livro na feira envelheçam”.
“Contos de Varanda”
de Maurício de Oliveira
(vencedor do I Concurso Novitas de Contos e Crônicas)
Breve!
[9] — setembro de 2010 — revista cultural novitas nº 7
se depara com a morte. A princesa finalmente, afunda
daniela blanco na água etérea da vida, que lhe recolhe na morte; a água
a recebe assim como a concebeu. Lá a vida não mais a
o tempo da espera alcançará. O tempo não tem mais a menor importância.
A espera já está terminada.
Sozinha novamente, o tempo começa a dar Falar sobre o tempo me parece paradoxal, pois
mostras de suspensões e descontinuidade. É findo o enquanto se fala, o tema do embate não para ou espera
breve período em que acreditou viver e ter controle até que se chegue a uma conclusão. Seria então o falar
sobre a vida. É finda a crença de que algo mais além do sobre o tempo, não viver?
tempo da espera lhe é possível. Seu príncipe-vida talvez Transformar estes questionamentos em imagens
nunca tenha existido, apenas se manteve na ilusão. Ela em movimento, imagens que só chegam ao seu fim
não é a única desiludida. Os personagens que circundam apoiando-se no tempo, é ainda mais extraordinário.
sua vida, também encontram, um a um, a linha do Maya Deren trás a tona estas e outras questões com
tempo; mas logo são atirados ao longe; logo se perdem seu filme Ritual in Transfigured Time. A proposta de
novamente. criar uma narrativa sobre o tempo, em um período em
O tempo expandido da dor a leva novamente que a linearidade era quase que imprescindível na arte
ao príncipe-vida. Mas este agora não a engana. Ela sabe de contar histórias, foi desafiadora. Essa linearidade,
tratar-se de uma ilusão; como um monumento, uma mesmo que difícil de ser compreendida se faz presente
Torre de Babel que pretendia alcançar o Paraíso, mas só no filme como o único meio de contar a história não-
serviu à incomunicabilidade. linear do tempo.
Agora é a vida que tenta alcançá-la, tomando Link do filme no Youtube:
para si o condutor de sua trajetória. Mas à princesa, http://www.youtube.com/
não interessa mais iludir-se; apavora-a apenas a ideia. A watch?v=xrWNXLPFz40
vida pulsa, dá saltos em seu encalço; mas para quando
Daniela Blanco é designer, ilustradora e colunista da
Revista Capitu ( revistacapitu.com )
O DESPERTAR
Flávia Braun
fbbraun.blogspot.com
Eu te amo
Você me ama
Laudanizado pela amorfa esfera epigeica Amemo-nos, então.
Fálica e acefalina, pusilânime estoico, Dias longe. Noites perto
Abre asas sobre a jocosa ética Braços e abraços
Certame infalível e verborrágico. Sonhos despertos
Faz tempo te amei
Estupefato de sua denegável aleivosia E hoje é igual
Rubra a face desmedida em verdade, Orgulho, respeito, pele,
Furta da presa a alma lealdada com coisa e tal
hipocrisia, Risos cúmplices
Funesto corteleiro da improvida Palavras desnudas.
amizade. Conheço teu olhar
Sei quando falar. Quando
Se clama ao amor o escudável calar
ludibriante, Entre estranhamentos e
Grita ao desafeto tal feita doentia. desentendimentos
Horda de palavras melotômicas adiante. os dias passam, eles passam
Nada mais natural
Da responsabilidade não se pode fugir Mar de rosas e comercial de
em quantia, margarina
No futuro aguarda a esfinge galante. não combinam com a vida real.
Jus alçada da sorte que lhe virá em
serventia.
[11] — setembro de 2010 — revista cultural novitas nº 7
MARIA JOÃO
Flávia Brito
sabe-de-uma-coisa.blogspot.com RENDEIRAS DO TEMPO
Thiago Azevedo
mangaepoesia.blogspot.com
Se há nesse mundo alguém capaz de guardar, descansodaalma.blogspot.com
Esse alguém é Maria João.
Resignada não há como Maria João.
Silenciosa não há como Maria João.
Vai a mulher rendeira,
Maria João guarda nos bolsos moedas e separar mais retalhos,
dores brancas. corta, picota e costura,
Maria João guarda no peito palavras e são restos de pano,
é colcha de trapo.
despedidas.
Cada pedaço, uma história,
Guarda nos pés a intenção dos passos. um jardim de rosas,
Guarda no corpo a intenção dos ossos. um novo botão de flor,
Guarda na boca a intenção dos risos. restos de tecido rendado
desmonta e remonta em lavor.
Guarda na alma a intenção dos riscos.
Retalhos de tempo,
Maria João enovela as vontades num colcha de memória,
carretel parte, de partes, de partes,
E guarda. passado, futuro e presente,
que formam nossas histórias.
Maria João acomoda as feridas num cesto
E guarda. Mais uma parte que se fia,
Mais um trapo que se funde,
A coragem embrulhada em papel de pão: pequenas centelhas de tempo,
Guardada por Maria João. colcha sempre incompleta,
eterno movimento, em amiúde.
O amor trancado num pingente de coração:
Guardado por Maria João. Incansável mulher rendeira,
que a vida fia e descostura,
Maria João vai guardando, e guardando, e nossos velhos e gastos pedaços,
guardando... colcha de tempo que fulgura,
somando a mais e mais restos
E guardando... de outros pedaços de trapos.
E guardando.
e em experiência directa
comunicar com a personalidade
das influências
que envaidecem o meu lado absoluto,
poder que domina.
Monica Saraiva
blogdamoni.blogspot.com
DE PALAVRA
Kiara Guedes
www.nesteinstante.com
Bruno Bossolan
tormentos.wordpress.com
Eu me enganei Emana de nós dois
Pensando E de cada um
Confiando em qualquer um Pro seu próximo
Jogando palavras a quem me foi Que está ao lado
dado Na frente
De presente Esperando pelo toque
Sendo da mesma matéria E não ser tocado
Enriquecido de carbono e potássio Pode causar
Mas pelo jeito Repulsa
Foi empobrecido
De lixo e fuga Eu fujo pra longe
De mim
Um punhado de gente fraca De tudo o que há
Gestos compressores Existindo no bafo
Atitudes especulativas Dos visionários
Saneamento intestinal Profetas
Para o enriquecimento Eruditos
Genuíno da amizade Beberrões
Soltando na cria enfurecida
E você sofre tudo isso em Gotas de complacência
silêncio
Porque seu mártir causa tanta Não é poesia
repugnância É um túnel claro
E te condenam por ser nojento Como você enxerga a sua
existência
Acordo Definhando na neblina
Desperto Piscando
Estou acomodado no chão Limpando os olhos
E daí pra frente segue a rotina Mas sem parar
Com essa bola que vai rolando Olhando pra baixo
Na mesma rua Só quando o penhasco
No mesmo sentido Estiver amontoado
Sem sentido Sobre seu corpo
www.luckyscope.com.br www.typographiabrasil.com.br
A ARTE DE PERDER
Álisson da Hora
pontispopuli.blogspot.com
Ouve, meu amor Fica aqui, dentro desse amor que não morre,
não morre, não morre.
: eis que a Vida quis inaugurar em mim uma — Oi. Como estás?
nova vida — e eu me assustei com a novidade. (Aos pedaços. É uma confusão, sabe? Eu
Preciso do tempo para fazer com que esse novo fique quero dizer-te que gostaria de ter, apenas por um
conhecido e um pouco gasto e eu possa olhá-lo com instante, esses teus olhos que me vêem assim tão
menos estranheza, e para isso é imprescindível certa diferente do que eu sei que sou por dentro. Ou não
dose de solidão. sei. Ou não tenho. Porque eu sou só esse meu abismo
buscando asas. Apenas essa fresta escancarada na
: nessa busca pungente e vital que tenho pele... ferida aberta que não sara. Essa coisa em
empreendido pela minha verdade, descobri que
metamorfose. E essa vontade de enfiar-me numa
padeço do desconhecido do amor — só sei dele o que
cápsula e perder-me desse tempo que não me
minha fantasia foi capaz de inventar. No mais, só tive
entende e me corrói. Me corrói, entende?
pistas. E descobrir que até hoje eu só havia inventado
o amor me desesperou — é como ter vertido dor em
Queria dizer-te dessa imensidão mascarada
vão, ter saudade do que nunca foi — um desperdício que eu trago escondida sob esse véu melancólico.
da vida (que é o grande pecado). Dizer-te que sou profunda, mas de uma profundeza
intragável, asfixiante.
Mas agora houve a mudança, meu amor (?), e Sou submersa. E não sei se um dia chegarei à
ela veio de onde eu menos esperava — de dentro do superfície de mim. E assim me faço porque o silêncio
mim (no mim existem coisas que o eu desconhece). me habita e sem ele eu não existo.
Eu, até aí tão inflexível na estrutura, ousei desconstruir Acostumei-me a ser essa solidão disfarçada
tanta coisa, ousei colocar a casa abaixo e visitar o de alegria. Vulnerabilidade vestida de fortaleza.
vazio da ausência dos pontos de apoio. Questionei os Também preciso contar-te como é tão melhor
dogmas que embalavam minha bonança e minha vida o meu dia quando acordo longe de mim. Ou quando
segura. Para que?, você se pergunta... Para poder me bebo café fresco ou saboreio morangos ou descubro
reerguer sozinha e nova e sã e livre. Li-vre. uma música. E como me sinto viva quando deixo-me
molhar pela chuva ou quando atravesso os minutos
E te confesso (como é bom te confessar o que sem que nada me machuque, nem eu mesma. E
está além da minha nudez óbvia!) que tais descobertas como eu gosto quando não há espinhos nas coisas,
me foram possíveis graças ao desnudamento da nas pessoas, na vida. E dos pequenos prazeres que
própria realidade (aalétheia tão desejada?): os sonhos eu tenho nessas coisinhas diárias que cabem todas
estão acordando, as expectativas vestem trajes mais tão imensas nas minhas mãos. Entende?
transparentes e a fantasia tem se me apresentado Eu queria que tu soubesses dessa blindagem
como exceção, não mais a regra. que eu carrego em mim. Dessa capa que me protege
e envolve corpo, alma, palavras, tudo. Essa casca
O que eu quero? Eu desejo que o nosso amor
impenetrável com jeito invencível, mas que por
(e a própria Vida) seja possível e tangível, sem fábula
dentro chora e se desmancha.
ou expectativas de perfeição. Não faço questão de
alardes, mas de clareza. É esse o meu desejo. Ainda É... eu queria mesmo dizer-te que essa que
que para isso a gente tenha que inventar o fim: para você vê daí da altura dos teus olhos, é, no fundo,
que o começo seja real. uma finitude. Uma substância etérea prestes a
diluir-se e ser esquecida, porque nada mais é do
É preciso reinaugurar a nossa história. que um mero desvio de si mesma.
Mas no fundo eu também queria pedir-te,
(Não sei se o que vou te dizer é invenção, mas: voraz, com todo o meu silêncio: não te desvies de
eu te amo. Se o amor fosse uma escolha, eu escolheria mim.)
te amar.) — Estou bem, obrigada.
revista cultural novitas nº 7 — setembro de 2010 — [22]
VORAZ MOTIVOS PARA ODIAR UMA MARIAZINHA
André Salviano Flávia Queiroz
confrariadostrouxas.blogspot.com relicariovazio.blogspot.com
“Toca de tatu, lingüiça e paio, boi zebú Mariazinhas... Desde pequena as encontro
Rabada com angú, rabo de saia por aí: aliciantes e astutas. Tem a perversa mania de
Naco de perú, lombo de porco com tutu aparecer na hora errada. Falam com leveza e simpatia,
E bolo de fubá, barriga d´água.” são espertas, às vezes bonitas e sempre odiosas.
Aldir Blanc, João Bosco e Paulo Emílio Pois é, admito que sou daquelas pessoas passionais
e suscetíveis. Tudo me tange. Leonina, ciumenta e
passional. Uma junção explosiva.
Eu queria comer tanto, mas sem engasgar, eu Não gosto de quase nada. Mas tenho a terrível
queria comer demais. Vivia com fome, muita fome, necessidade de me sentir amada por tudo o que
a terapeuta dizia que os amores light’s me fariam desperta meu querer.
bem Você precisa se alimentar melhor, ela dizia. E Aí elas aparecem: as Mariazinhas. Muitas se
eu querendo carne sangrando, batata frita, feijão chamam Joana, Natália, Juliana ou sei lá mais o quê...
carregado de carne salgada, pernil bem temperado: Mas todas são Mariazinhas!
alecrim, folha de louro, pimenta do reino, limão, Aquele tipo de garota que compete sem
cominho etc. Lombo de porco com tutu, torresminho, anunciar batalha (as piores!). Ligam no celular dele
rabada com agrião. O que acontece com essas meninas quando a gente tá discutindo relação ou fazendo
de hoje? A maioria só quer saber de fast-food, eu as pazes, esbarram "por acaso" e começam papos
ficava puto! intermináveis dos quais não faço nem ideia. Mandam
Naquela noite eu tinha bebido muito, alucinado recados carinhosos e dúbios. Me enlouquecem e
desci a rua da Lapa, chegando na Mem de Sá olhei pra ainda são vítimas.
lua: cheia, linda. Eu vazio, um trapo. Uma menina de É provável que eu também já tenha sido
olhos verdes se aproximou, mas pra mim eram azuis, uma Mariazinha na vida de alguma Flávia por aí.
ela disse verdes duas vezes, eu continuava vendo Mariazinhas são inimigos disfarçados em pele de
azuis. Cigana? Talvez quisesse me enganar, dinheiro, pêssego e com olhos brilhantes. Tem voz suave, e pelo
levar pra cama. Paramos um tempo na esquina com menos por um instante, balançam o coração do cara
a Gomes Freire, duas cervejas, dois Sampoerna de que a gente gosta.
menta, uma piada, dois sorrisos sem graça. Subimos Pois é, a culpa é sempre delas! Afinal, “ele” é só
até a Riachuelo, entramos no Sinuca da Lapa. Cerveja uma peça... Nunca faria por mal... O cara de quem se
de garrafa. Porra, eu com tanta fome. No dia seguinte, gosta é sempre o príncipe encantado, mesmo que caia
por volta do meio-dia, notei que minha vida precisava do cavalo branco enquanto cavalga ou que não tenha
mudar. Outros caminhos, andanças outras. um reino.
Mandei um foda-se pra minha terapeuta, Ele me ama! Mesmo que olhe pra alguma
que se dignou a dizer Você precisa de bons modos, maldita Mariazinha por aí, ou fale com ela do jeito que
menino! Mas eu preciso mesmo é de Amor. Com A eu gostaria que falasse comigo. Ele é perfeito e cheio
maiúsculo, e que não me deixe morrer de fome, e que de imperfeições (mas isso é outra história, talvez com
não me sacie apenas numa noite, ou duas. o título de "Joãozinho").
Eu quero um banquete. Cansei de migalhas.
“ O Aniversário de Bruxameixa”
de Madalena Barranco
Breve!
[23] — setembro de 2010 — revista cultural novitas nº 7
O COMPLEXO HOMEM-MACHO
Marcelo Soriano
yohoy.blogspot.com
Nós homens (machos), já nascemos com a sina talento para o futebol. Bem lembro, nas seleções da
de ter de fazer bonito na vida. Geralmente, já somos educação física (nos tempos de colégio), quando dois
recebidos ao nascer com apelidos de “Campeão”, colegas bons de bola escolhiam sistematicamente um a
“Galo Cinza”, “Terror da Vizinhança”... Não raro, um para os seus times, não raro era eu ficar por último
na porta do quarto da maternidade, pendurar-se e haver discussões, porque ninguém me queria no seu
chuteirinhas ou luvinhas de boxe. Mal nascemos e já staff. E (maldição da Lei de Murphy!), os gordinhos
nos projetam como dândis, comedores de rapaduras e sempre figuravam no time dos “sem-camisa”. Voltando
raparigas, egocêntricos e infiéis reis do puteiro. Este é a mim... Recordo que na adolescência os homens-
o estereótipo do Homem-Macho, aquele que esbanja machos começaram a despontar, ao passo que os
piadas nas rodas de amigos, o que ostenta suas homens-não-tão-machos começavam a “desapontar”.
conquistas masculinas como se fossem troféus, aquele Os machos já se ensaiavam com as garotas, enquanto
que faz do sexo um esporte sem valor sentimental, os outros tendiam ao onanismo ritualístico.
enfim, aquele que pratica obscenidades em público Interessante é que os machos crescem primeiro, já,
e os outros aplaudem. Não parece leve, pois, o fardo os outros, ficam para trás e parece que nem para
existencial que espera o Homem-Macho que acaba de crescer servem. Os machos fazem e acontecem e são
chegar ao mundo! Assustado com o cenário caótico o orgulho dos pais (machões frustrados, facilmente
que o recepciona neste mundo carnal, logo que chega, desmoralizados pela mãe ou mulher). Nós, os não-
sem saber que “homem não chora”, o recém nascido tão-machos, ficávamos lá, à cabaleira da sociedade
não resiste e põe a boca no mundo... Buáááá! hipócrita, analisando, observando, testemunhando
a ascensão alheia... Tive três amigos-machos nesta
*** época. O primeiro tornou-se operário da construção
“Meu nome é Rubens”, esta foi a frase mais civil. O segundo começou a puxar fumo e, logo
longa que o recém desencarnado ex-presidiário pôde depois, a puxar etapas na penitenciária. O terceiro,
pronunciar diante de São Pedro — O Porteiro do Céu. hoje, é flanelinha. Continuamos amigos, mas por
O engraçado é que do “Céu” (lá de dentro do tão força da contingência social e cultural, deixamos de
sonhado paraíso catolicista), cada vez que as portas conviver. Minha primeira namorada só apareceu aos
se abriam vinha um rufo de som abafado; aliás, som 21, quando eu estava por me graduar em engenharia.
abafado e ar viciado, úmido, enfumaçado e quente. Acredito que meus pais já mudaram (a contragosto)
Uma longa fila de espera se formava ali fora e São seu pré-conceito sobre o homem-macho frustrado no
Pedro, um Drag King de cabelos neon, contava os qual se tornou o seu filho. Se fosse hoje, certamente,
enfileirados e os vistoriava com uma passada de olhos pendurariam na porta da maternidade um esquadro
por cima dos escalpos... “Tu sim. Tu não. Tu sim. Tu ou — quem sabe? — uma agenda e um relógio.
não...”, assim a fila andava vagarosamente. Ali fora
fazia frio. Era uma noite molhada. “O limbo é assim.”, ***
dizia um casal que parecia já ser experiente naquela O Analista de Bagé seria o profissional ideal
situação. “Hostess! Lembra de mim?”, gritou um para terapeutizar o Homem-Macho. Depois de cinco
homem afeminado de meia idade que, pelo jeito, já minutos sendo analisado, o tratamento eficaz viria à
quarava na fila há um século. São Pedro o fitou e disse: tona como um golpe perverso: “um chute nas bolas
“Tu não!”. Lá dentro - dava para ver, cada vez que as é teu melhor remédio, vivente!”. E o homem-macho
portas se abriam, seres andróginos se movimentando pagaria a consulta com satisfação...
mecanicamente com olhos ausentes, imersos numa
atmosfera psicodélica, sincopada, minimalista e com ***
iluminação estroboscópica ofuscante; máquinas
carburadas com balinhas de Ecstasy. Sim! O Céu... A Não aconselho a ninguém, principalmente um
visão do Paraíso é uma festa rave. homem-não-tão-macho a se auto-analisar. Corre o
risco de acabar se concluindo.
***
Eu, Marcelo, não me tornei pugilista. Sequer tive ***
revista cultural novitas nº 7 — setembro de 2010 — [24]
Há que se observar uma, nem tão sutil, autocrítica, ouso relacionar algumas expressões
diferença: não confundir (confundir, neste caso, que jamais devem ser articuladas pela boca de um
equivale literalmente a “trocar as bolas”) homem-não- homem-macho complexado e legítimo:
tão-macho com macho-não-tão-homem. É evidente
que a inversão do jogo de palavras pode conduzir o ◊ Eu não bebo cerveja.
sujeito a um status de macho-floreado ou macho-
arco-íris, que, na mais amena das hipóteses do boca ◊ Prefiro novela a futebol.
a boca social, pode evidenciar complexos e rotulações
tradicionalistas, não a respeito do tamanho do pênis, ◊ A maioria das mulheres não é vagabunda.
mas quanto aos infortúnios da fase anal.
◊ Eu amo e sou fiel a minha esposa.
***
◊ Meu filho há de ser um sensível e culto escritor.
Para finalizar esta crônica conturbada e pseudo-
Breve!
REFLEXO DE MIM
Tatiana Cavalcanti
taticavalcanti.com.br
No reflexo do monitor do laptop um rosto meio cinqüenta vidas serão poucas e rasas para que eu
cansado. possa aprender que ser over é cafona para cacete e
Dois traços bem fortes dos dois lados da boca. E os humanos costumam cuspir no sapato dos cafonas
no meio da testa outra marca que parece que franziu, emocionais.
mas não franziu não. Eu acho bem mais fácil só ser. Só que não pode,
Parei o que estava fazendo, minimizei todas não cabe, é quase falta de educação ou de inteligência.
as janelas e me fixei no contorno. Tentei relaxar E eu mudo o rumo das coisas para o reflexo clarear.
os músculos entre osso do nariz, testa e tudo mais. E eu danço uns tangos que eu acho dramáticos
Estavam relaxados. demais, mas se é isso que tem, vamos lá. Dançar a
Me olhei por uns três minutos só respirando. A vida qualquer que seja a nota para celebrar a sorte
sabedoria é a arte de prestar atenção. de ter um Renato. De chão, de teto, de cobertor, de
Em mil momentos me detesto como se eu cúmplice, de parceiro de um jeito que grande parte do
fosse meu único e maior inimigo. Em alguns raros eu Universo não sabe como é ser.
me idolatro como um sobrevivente de guerra faz com É só um dia qualquer em que eu me olhei com
a liberdade. calma e atenção.
Eu não canso de viver, mas meu reflexo, esse Um dia qualquer só que com mais rugas.
aqui na minha frente me diz que é hora de parar. É só isso a vida. Um monte de boas experiências
Parar de ir tão longe e tão alto sem saber cair. Parar que viram marcas no corpo para a gente não fingir que
de querer ganhar o mundo quando tudo que se tem é possível esquecer com meia dúzia de botox e uns
é só um monte de sensações que o mundo não quer silicones espalhados por aí.
nem saber o que é e nem para o que serve. Outras
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se em algo que frequentemente ilude os incautos,
álisson da hora fazendo-os crer em uma “retidão” que as livra de todo
o “embuste” que só os que manipulam a linguagem –
repensando propostas sejam os poetas e/ou os escritores – sabem fazer.
Mas essa conversa é antiga e fatalmente nos
remeteria aos anseios republicanos de Platão. Ou ao
Italo Calvino escreve, em “Seis propostas para o “realismo socialista” ou à fala do general espanhol
próximo milênio”, que “A literatura (e talvez somente a Millan Astraya, aliado de Franco (que disse: “sempre
literatura) pode criar os anticorpos que coíbam a expansão que me falam em Cultura, dá-me vontade de pegar na
da peste da linguagem”. Escritas pouco antes de sua pistola”); a verdade é que a tal peste alastrou-se sob a
morte - como se sabe, a sexta proposta não chegou a ser forma do “politicamente correto”, da falsa liberdade da
terminada - para as Charles Eliot Norton Poetry Lecture linguagem, enfim, sem estar sob o poder dos “donos”
(também comumente conhecidas simplesmente como dela outrora – e nunca foram donos de coisa alguma,
“Conferências Norton”) da Universidade de Harvard, como diz Virgínia Celeste de Carvalho, minha amiga, a
as tais lições americanas repensam que conceitos “democracia começa na linguagem”.
literários deveriam ser cultivados (e salvaguardados) Mas, se o capitalismo cria a ilusão de liberar
não somente para o século algo, como ironiza a Marilena Chauí, cercando
XXI, como nossa mentalidade tudo com uma necessidade de
imediatista pode supor, mas O que renegamos, o que funcionalismo absurda, e de
para o milênio mesmo. certa forma concordamos que
Não sei se Calvino
aceitamos? Dentro de tal a escolha é livre, e cada um
repensaria suas posições se pensamento, sensato é, ainda busca o que realmente quer,
tivesse vivido ao menos a virada por que nos debruçamos, nos
do milênio. Em 1985, ainda
que haja alguém que julgue debatemos, nos revoltamos
vivíamos uma ordem de coisas sensato tentar arrebanhar contra aquilo que ao nosso ver
oriundas da primeira metade do é reconhecidamente nocivo
século XX que, por bem ou por
de qualquer jeito corações e e enganador? Talvez porque
mal, de forma capenga, ditava almas, quase que como um reconheçamos, ao menos nós,
condutas e pensamentos. Eu que nos propomos a escrever
creio que ele repensasse, sim,
proselitismo camuflado de e a brincar com a linguagem,
ainda que reiterasse ainda mais certa prepotência... que não adianta somente
cada um dos cinco valores que ele buscar funcionalismos ou até
arrolou para suas conferências. mesmo admitir que a literatura
Mesmo não vivendo a reviravolta que aconteceu no em si não tem finalidade alguma. Calvino tanto sabia
mundo da informação, com a disseminação da web, ele disso que imaginou uma vez um castelo de destinos
já pressentia, com essa sensibilidade inata aos artistas cruzados. Borges, os seus labirintos. Kafka, suas
em geral, o quanto a “peste da linguagem” já começava encruzilhadas. Vivemos no fio da navalha a procurar
a se espalhar. valores que delimitem e norteiem a nossa produção
E que peste é essa? O que seria forte o suficiente estética. O que renegamos, o que aceitamos? Dentro
para contaminar as pessoas e as fizesse crer que de tal pensamento, sensato é, ainda que haja alguém
viver uma pobreza de significados - disfarçada de um que julgue sensato tentar arrebanhar de qualquer jeito
suposto enriquecimento de “valores morais” ou mesmo corações e almas, quase que como um proselitismo
pessoais, em detrimento de toda a farsa camuflado de certa prepotência (“Porque Literatura É
que a ficção e a poesia produz, nos tirando ISSO que eu faço!”), viver sempre a repensar o que é o
do caminho da retidão... -, longe da leveza, fazer literário. Já recebi críticas ferozes por crerem que
da rapidez, da exatidão, da visibilidade eu queria impor uma visão academicista e tradicional
e da multiplicidade, é mais salutar do das coisas – como houve quem criticasse o Calvino
que viver a ressignificação do pelo mesmo “crime”. Não é por aí. Quando paramos
mundo? O mais irônico, para refletir verdadeiramente sobre um destes valores
e talvez fosse esse o que o escritor italiano elenca em seu livro – ou sobre
maior temor de Calvino, outras, quem sabe mais inerentes a nós – vemos que
é a capacidade de esta a questão não é um mero julgamento do que é cabível
peste, como um vírus e do que não é. É o questionamento sobre o que se
mutante, transformar- quer ver como algo programático, verdadeiro minarete
revista cultural novitas nº 7 — setembro de 2010 — [26]
a clamar pela presença das mentes deslambidas, que
ao invés de quererem fazer literatura querem mesmo gerana damulakis
é aparecer – desculpem a crueza – e do que é feito
de forma “espontânea”. Espontâneo porque não quer literatura contemporânea
criar de fato um impacto maior do que é capaz de criar.
Ninguém derruba castelo de cartas com uma granada.
O tema literatura contemporânea é muito
E o não programado, o que não se quer fazer modelar
vasto, seriam necessárias muitas páginas, seriam
salvaguarda uma das coisas mais primárias que se vê
levantados muitos debates. Refinando o tema, ainda
“líquido”, apenas para usar um termo do Zygmunt
assim, precisaríamos de muito espaço para analisar
Bauman: o indivíduo.
a literatura contemporânea, nesta altura e já agora
Ao expor suas propostas, Calvino, ainda que
restrita ao nosso país, pois também o mundo é vasto,
membro do Oulipo (a Oficina de Literatura Potencial,
como dizia o outro.
que dentre outros nomes tem consigo o Georges Perec,
Ao passar para uma região, ou para o espaço
o Raymond Queneau, o Jacques Roubaud e o Marcel
de apenas um estado — no caso, a minha Bahia —
Bénabou) – que nunca se propôs a ser modelo de nada,
posso retratar o que ocorre nos demais estados do
aliás, só a (re)pensar continuamente a literatura –
Brasil, excetuando o famoso eixo Rio-São Paulo e,
primou por lembrar exemplos individuais. Com o tempo,
talvez, o Rio Grande do Sul, pois este último tem mais
as “escolas” se desfazem ao peso da poeira e do juízo,
leitores e editoras, sendo visto como um estado que
e ficam somente as obras. A peste da linguagem tem
sabe usufruir de sua literatura.
horror ao individualismo e à autenticidade. Fugindo da
Em poucas palavras: o que ocorre na Bahia é o
planificação, dos programas, dos manifestos, que muitas
seguinte: embora se saiba que a literatura brasileira
vezes julgo ser apenas máscaras para um fascismo ou um
nasceu na Bahia com Gregório de Matos e os outros
esquerdismo manco – ou no caso, agora, de um certo
poetas da época, e se saiba igualmente de nomes
espalhafato em querer-se mostrar antenado ou mesmo
famosos como Castro Alves, Adonias Filho, Jorge
“descolado”, o que fica é o individual, aquela voz que
Amado, a verdade é que hoje não se tem conhecimento
sempre é sufocada quando se mostra crítica. Por isso
nos outros estados do que se vem fazendo de literatura
talvez, que a crítica tenha falido: ou foi calada pelas vozes
da mais alta qualidade na Bahia.
que se proclamaram autocríticas, ou justamente por
Principalmente nos últimos anos tem havido
calar vozes que criticavam essa propalada autocrítica.
uma intensa atividade literária com vasta produção de
João Cabral de Melo Neto disse sabiamente,
livros, inclusive de novos autores que, infelizmente,
ecoando o pensamento de outros grandes, que cada
por circunstâncias de distribuição, não chegam às
um tem a sua própria poética. E que dentro dela cada
livrarias do país.
um faz e refaz as suas regras, suas ideias, seus valores.
Fugindo da questão localista, procuro voltar
Talvez falte a tantas pessoas que tentem fugir da peste
e pensar em uma abordagem mais interessante.
da linguagem a qual Calvino se refere esse pensamento.
Afunilando, pois, ainda mais, vários caminhos
É ter para si – e somente para si – tais regras. Não adianta
poderiam ser tomados. É melhor conservar a mirada
mais tentar perpetuar reunismos, imaginar escolinhas
em um ponto específico e trazer apenas a problemática
ou movimentos. O movimento é do eu. Não com um
que procura localizar o lugar do escritor e o lugar do
egocentrismo bobo que não admite troca de ideias. Os
leitor nos dias atuais.
indivíduos interagem e repensam. A literatura precisa
O leitor, o grande leitor, ainda senta na
mais disso, deste repensar, menos holofotes e factóides.
poltrona, ou deita no sofá, na cama, e abre seu grande
Caso contrário, necessitaríamos de uma
livro para desfrutar do prazer da grande literatura? O
infinidade de milênios para a próxima proposta.
texto literário contemporâneo entende, ou comporta,
Bibliografia: o grande leitor, o grande livro do grande escritor, a
BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., grande literatura?
2007
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo
Atualmente, a chamada literatura produz livros
milênio: lições americanas. São Paulo: como objetos de consumo, colocados nas livrarias
Companhia das Letras, 1994. em setores bem definidos: best sellers, auto-ajuda,
Virgínia C. Carvalho: casainabitada.com.br infanto-juvenil, infantil etc, como nas gôndolas dos
supermercados, ou nas secções dos magazines. Tal
atmosfera afasta o leitor sensível — para não usar,
Álisson da Hora é Mestrando mais uma vez, a expressão grande leitor.
em Teoria da Literatura – UFPE Em linhas muito gerais, foi desse modo
que a literatura encontrou alternativas para fugir
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do esquema estanque que vinha engessando sua ganhou com a falta de preconceito em relação não
produção. Acompanhando a escalada tecnológica, a apenas ao conteúdo (ao que é assunto poético e ao que
opção tomada pela literatura foi a internet. Podem não é), ganhou, enfim, com a falta de constrangimento.
torcer o nariz para os blogs, mas E mais: em ambas, na prosa e na
é nos blogs que encontramos a Principalmente nos poesia, os modos de linguagem
produção literária contemporânea últimos anos tem havido estão totalmente de acordo
realizada pelos escritores de todo o com a cadência mais acelerada,
Brasil. A opção atende ao escritor e uma intensa atividade ou seja, com a velocidade em
ao leitor. literária com vasta frases curtas, com a comunicação
Muitos livros nasceram em breve, de forma a assemelhar-
blogs. Aqui, na Bahia, vários desses produção de livros, se com o cinema, quando até os
livros atenderam aos pedidos de inclusive de novos personagens das narrativas são
seguidores dos blogs. E posso falar formados, na mente do leitor,
da emoção que, tanto o escritor, autores que, infelizmente, pelo que realizam em ações,
quanto seus leitores, experimentam por circunstâncias de dispensando perfis psicológicos.
no dia do lançamento. Já em Poderíamos concluir que há
quatro ocasiões, os blogueiros distribuição, não chegam maior participação do leitor para
que colhem o material postado e às livrarias do país. completar o texto? Creio que
passam este material para o livro sim, mais do que nunca o leitor é
impresso, chegaram a criar outro blog, específico para coautor.
o lançamento. Em suma: blogs foram construídos Ainda assim, a literatura continua associada
apenas sobre o livro, para divulgar o lançamento, às leis do mercado econômico, o qual, contas feitas,
para informar sobre o escritor, para fazer uma pré- coloca em risco valores artísticos; contudo, é notório
venda. No dia da festa, os blogueiros se reúnem, o que ela, a literatura, quer existir e resistir às mudanças
espírito é o de um encontro de pessoas que sentem que o tempo vem velozmente impondo e segue em
algo em comum naquele instante, há muita alegria no frente, mesmo que fugindo de modismos, para
ar. A resposta, sendo tão boa, vem incrementando a permanecer com o potencial e a realização dessa
produção literária e a leitura. força, a força da arte literária.
Vale registrar que a prosa, na blogosfera, perde Procure os blogs que ofereçam literatura de
a verbosidade porque, tendo cada postagem um qualidade, separe o joio
espaço restrito para não espantar leitores (a maioria do trigo, é fácil identificar.
não gosta de ler textos longos na tela), isto acabou Depois, resta aproveitar uma
privilegiando o miniconto, o microconto. Já a poesia boa leitura.