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PARTE I:

DOS GREGOS A DESCARTES


 
 
 

CAPÍTULO 1
A ANÁLISE DOS ANTIGOS
E A ÁLGEBRA DOS MODERNOS
Descartes é suficientemente claro e incisivo, e as referências
relativamente abundantes, para que se possa hesitar sobre sua
ascendência metodológica. Nos principais momentos de reflexão sobre a
temática, ele sempre se reportou ao método de análise da geometria
antiga, enunciando sua clara intenção de “segui-lo”[1] em suas
investigações e, assim, confessando sua adesão a essa tradição. De forma
semelhante, referências à álgebra dos modernos se encontram quase que
regularmente nessas ocasiões, evidenciando sua consciência da estreita
relação metodológica existente entre as duas disciplinas e seu propósito
de filiar-se a elas. Poderemos ver a seguir que não faltarão indicativos,
nem tampouco ilustrações, a favor da tese de que Descartes se concebe,
paralelamente a algebristas de seu tempo, como descendente dos
geômetras gregos, praticantes do método de análise.
As primeiras referências ao método de análise e à álgebra se
encontram nas Regras, obra que se constitui na tentativa de uma
primeira elaboração do método cartesiano. Na Regra IV, cuja temática,
como diz seu cabeçalho, diz respeito exatamente à necessidade do
método para a procura da verdade nas coisas[2], Descartes afirma:
os antigos geômetras fizeram uso de uma espécie de análise, que estendiam à
resolução de todos os problemas, ainda que não a tenham transmitido à
posteridade. E, em nossa época, floresce um gênero de aritmética, que se chama
álgebra, que permite fazer no tocante aos números o que os antigos faziam em
relação às figuras. Essas duas disciplinas não passam de frutos espontâneos dos
princípios inatos de nosso método; e não me admiro que tenha sido nessas artes,
cujos objetos são muito simples, que eles, até aqui, cresceram com maior
facilidade que em outras, onde maiores obstáculos geralmente costumam abafá-
los, mas onde também, no entanto, se cultivados com sumo cuidado, poderão
chegar sem dúvida à perfeita maturidade (X, 373, 13-24; 1985, p. 25).
E conclui: “Foi o que me propus a fazer principalmente neste
tratado” (373, 25-26; 1985, p. 25), como que para dizer que seu método
é, ao mesmo tempo, um prolongamento dos poderes naturais da razão e
um polimento ou aperfeiçoamento do método de resolução de problemas
ilustrado pela geometria e pela álgebra, cuja abrangência irá muito além
desses campos, podendo “estender-se para fazer brotar verdades a
respeito de qualquer assunto” (374, 8-9; 1985, p. 26).
Mais adiante, na mesma regra, para não deixar qualquer sombra
de dúvida, o autor cita os nomes de Pappus e de Diofanto, matemáticos
gregos dentre os mais conhecidos nos séculos XVI e XVII, mas também
os principais divulgadores do método de análise (Pappus) e de sua
“generalização” (pelo menos aos olhos de Viète e do próprio Descartes)
para o campo da aritmética e da álgebra (Diofanto). Nesse mesmo local,
Descartes trata novamente da álgebra como prolongamento
metodológico da análise geométrica[3].
Como segundo locus de referência à filiação metodológica
cartesiana, o Discurso segue a mesma linha de raciocínio das Regras.
Com o objetivo de “procurar o verdadeiro método para chegar ao
conhecimento de todas as coisas de que meu[seu] espírito fosse
capaz” (VI, 17, 8-10; 1983, p. 36-37), seu autor afirma “ser mister
procurar algum outro método que, compreendendo as vantagens desses
três [praticados pela lógica, pela análise e pela álgebra], fosse isento de
seus defeitos” (VI, 18, 6-8; 1983, p. 37). Mais adiante, afirma que
“tomaria[rá] de empréstimo o melhor da Análise geométrica e da
Álgebra, e corrigiria[rá] todos os defeitos de uma pela outra” (VI, 20,
22-24; 1993, p. 40). Apesar de acrescentar uma terceira disciplina (a
lógica (VI,17, 12; 1993, p. 37)), em uma das duas ocasiões, Descartes
aqui também se põe abertamente como seguidor da prática analítica dos
antigos geômetras e dos que lhes seguiram[4].
Por fim, as Segundas respostas trazem um terceiro conjunto de
indicações sobre a tradição dentro da qual a metodologia cartesiana se
inclui. Perguntado sobre a possibilidade de “dispor minhas[suas] razões
segundo o método dos geômetras” (IX, 121; 1993, p. 166), Descartes
dirá como o tem seguido e pretende ainda segui-lo[5]. Depois de
distinguir, quanto ao “modo de escrever dos geômetras”, a “ordem” e a
“maneira de demonstrar”, ele procede à distinção entre a análise e a
síntese e afirma ter seguido a “via analítica” em suas Meditações[6]. Ora,
mais uma vez, Descartes é suficientemente claro, tanto quando afirma
estar “seguindo” (IX, 121; 122) os geômetras gregos em seu
procedimento analítico, como quando diz “imitá-los” (123), para
satisfazer seus opositores, em seu procedimento sintético[7].
Estas são as principais indicações de que Descartes, não só
conhecia a tradição dos praticantes do método de análise, mas também se
põe como seu membro, ao mesmo tempo continuador e revolucionário,
como veremos[8]. Alguém poderia contestar essa ascendência
metodológica cartesiana, uma vez que o método de análise foi
originariamente um método geométrico, restrito aos limites dessa ciência
dos antigos, enquanto que o método cartesiano é estendido para
disciplinas não-matemáticas e para a “nova” geometria. Mas é aí que se
encontram um dos méritos e a novidade cartesiana (em parte já realizada
pela álgebra): desvincular o método de análise do conteúdo estritamente
geométrico, por perceber que sua “lógica de descoberta” encarna a
própria lógica de funcionamento da razão humana[9]. Para Descartes, a
geometria antiga, contrariamente à lógica, foi o primeiro campo
privilegiado de manifestação dos poderes resolutivos da razão humana,
apesar das limitações que o conteúdo dessa ciência impunha.
Não se pode perder de vista, entretanto, a atitude crítica de
Descartes em relação a essa mesma tradição. Principalmente no Discurso
(mas também nas Regras (p. ex., X, 377, 2-9)), o autor apresenta
objeções à prática e à atitude dos geômetras e dos algebristas. Por isso,
como diz a Segunda Parte da primeira obra, ele pretende tomar somente
“o melhor da Análise geométrica e da Álgebra” e corrigir “os defeitos de
uma pela outra” (VI, 20, 22-24; 1983, p. 40). Segundo Descartes, o
defeito comum dessas duas disciplinas é “de se estenderem apenas a
matérias muito abstratas, e de não parecerem de nenhum uso”, uma vez
que, enquanto matemáticas puras, não são aplicáveis aos problemas
concretos da física e às artes mecânicas em geral. No que diz respeito aos
procedimentos metodológicos propriamente ditos, a “Análise dos
Antigos” “permanece tão adstrita à consideração das figuras, que não
pode exercitar o entendimento sem fatigar muito a imaginação”,
enquanto a “Álgebra dos modernos” esteve de tal modo sujeita “a certas
regras ou certas cifras, que se fez dela uma arte confusa e obscura que
embaraça o espírito, em lugar de uma ciência que o cultiva” (VI, 17,
27-18, 5; 1983, p. 37). Assim, a geometria, se apoiando excessivamente
sobre as figuras e sobre a imaginação (que as “visualiza”), acaba por
fatigar essa capacidade e por faltar em generalidade. Na verdade, a
geometria procede sempre sobre uma figura concreta e, assim, faz novos
cálculos para cada caso particular, enquanto que, se fossem consideradas
as figuras em sua generalidade, o procedimento seria comum para todos
os casos. Nesses termos, essa ciência atua sobre a representação sensível
do objeto, em sua concretude e particularidade, fatigando
excessivamente o espírito (a imaginação)[10]. Por sua vez, a álgebra, ao
perder o auxílio da imaginação e se apoiar sobre regras e sobre uma
simbologia confusa e diversificada (principalmente a cóssica)[11], ainda
que adquira certa generalidade e alivie o trabalho da memória[12],
obscurece a força do espírito, dado que os passos do cálculo são feitos
em função da aplicação cega e mecânica daquelas regras (e não em razão
do exame da configuração do problema) e a simbologia usada, pela sua
“desfiguração”, acaba obscurecendo a clara percepção das relações entre
os objetos[13].
Seja como for, parece inequívoca a filiação de Descartes a essa
tradição dos praticantes da análise. Os intérpretes, em sua grande
maioria, reconhecem não meramente a inspiração matemática da
metodologia cartesiana, mas também sua procedência analítica[14].
Entretanto, há de se assinalar um fenômeno estranho na história do
cartesianismo: não há propriamente estudos, por parte dos especialistas
de Descartes, sobre o método de análise dos geômetras gregos (e
algebristas) e sua relação com o método cartesiano, bem como não há
indicativos de que a maioria desses estudiosos (até recentemente) tenha
se beneficiado das pesquisas e dos debates realizados pelos historiadores
da matemática[15]. Em outras palavras, os estudiosos da metodologia
cartesiana parecem ter tratado dessa temática sem relacioná-la à sua
fonte de inspiração, permanecendo alheios à história do método. É ao
preenchimento dessa lacuna que se destina, em primeiro lugar, o texto
abaixo[16].
Dentro dessa perspectiva, a Parte I do presente estudo tem como
seu primeiro objetivo proceder à vinculação e à transição entre os antigos
geômetras e Descartes, de forma a construir a passagem da metodologia
dos primeiros à do segundo. Ele será efetivado em dois momentos. O
primeiro, cumprido pelo presente capítulo, consiste em examinar a
natureza e as principais características do método de análise, praticado
pelos gregos, bem como em analisar os procedimentos da ciência
algébrica nascente, enquanto extensão ou prolongamento desse método.
O segundo momento, efetivado no capítulo seguinte, pretende apresentar
o problema de Pappus, exposto na Geometria, como ilustração da
atuação da metodologia cartesiana, de sua estrutura e características, bem
como meio de “comprovação” da filiação do filósofo à tradição dos
praticantes do método de análise. Com isso, um outro objetivo é
cumprido, o de oferecer, por meio do estudo dessa última obra (de parte
dela), um primeiro quadro, razoavelmente definido, do método
cartesiano, ainda que restrito ao campo da ciência matemática. O método
de Descartes, desde já, apresenta sua filiação, bem como suas
características marcantes ou linhas distintivas.
1.1 O método de análise dos geômetras gregos
A análise, cuja origem muitas vezes é atribuída a Platão[17] e
cuja influência foi extremamente fecunda ao longo da história do
pensamento ocidental[18], é um método empregado pelos geômetras
gregos na atividade de resolução de problemas (análise problemática) e
de demonstração de teoremas (análise teorética). Sua característica
distintiva, conforme sua acepção mais geral, é a de ser um método que
procede, de alguma forma, de trás para frente ou contra a corrente, por
partir do fim (da solução do problema ou da verdade do teorema),
assumindo-o como atingido, para chegar a algo anterior, efetivamente
dado ou conhecido. Somente depois, por meio de sua etapa
complementar (a síntese), procede-se, a partir do que foi alcançado na
análise, ao estabelecimento da solução do problema ou da verdade do
teorema.
No caso da análise teorética, a etapa analítica começa por
assumir como verdadeiro o teorema que deseja provar. A partir dessa
pressuposição inicial, ela procura encontrar uma condição anterior, da
qual o teorema possa ser derivado e, sucessivamente, uma outra
condição anterior à primeira, até que se chegue a uma verdade já
demonstrada ou a um primeiro princípio. Conquistada uma tal
proposição (um axioma ou um teorema já conhecido), procede-se à
demonstração do teorema inicial, começando pelos resultados do
procedimento anterior e pela inversão de seus passos, até se ter cumprido
o objetivo (a prova do teorema). Na análise problemática, de forma
similar, começa-se por assumir o problema resolvido, isto é, sua solução
como dada. A partir dessa pressuposição, procura-se encontrar
sucessivamente etapas anteriores que possibilitem resolver o problema
inicial ou derivar a solução, até se ter encontrado um ou mais elementos
já dados ou passíveis de construção. Atingido esse estágio, será possível
proceder efetivamente à resolução do problema, pela inversão de seus
passos, começando-se pelas etapas finais do procedimento anterior, até
se chegar ao que foi pressuposto inicialmente[19].
Geralmente chamado de método de análise, na verdade, esse
método deveria ser chamado de método de análise-e-síntese, como têm
insistido HINTIKKA e REMES (1974, p. 17)[20], mas também como se
pode constatar aqui e mais adiante, pelas descrições existentes desse
método e pela própria prática dos geômetras. Uma vez que o seu
objetivo não é somente a descoberta dos elementos que supostamente
constituiriam a prova de um teorema ou a solução de um problema, mas
também a posterior demonstração de que o que foi descoberto
efetivamente prova a verdade do teorema ou soluciona o problema, o
método se constitui em um procedimento conjugado de descoberta (a
etapa analítica) e de prova (a etapa sintética). Entretanto, como foi
comum eliminar a etapa analítica[21] por ocasião da elaboração final dos
tratados (exatamente por ser um procedimento de descoberta), tem
prevalecido, dentro da história desses conceitos e de sua interpretação, a
separação das duas etapas, como se fossem dois métodos, ao invés da
manutenção da complementaridade entre elas[22]. Seja como for, será
importante ter sempre em mente, também para os propósitos da presente
pesquisa, a unidade desses dois procedimentos complementares[23].
Como é reconhecido pelos especialistas, o texto de Pappus (300
d. C.), no início do Livro VII de sua Coleção matemática, é a mais
completa e a mais informativa das descrições que chegaram até nossos
dias. Os gregos deixaram pouquíssimos textos que tratam do assunto[24].
Em razão disso, a discussão mais detalhada da natureza e das
características desse método gira em torno da compreensão e
interpretação desse texto, ao lado de ilustrações extraídas da prática dos
geômetras. Assim sendo, segue abaixo a famosa passagem do texto de
Pappus:
O assim chamado Tesouro da Análise, meu filho Hermodoro, é, em resumo, um
corpo especial de doutrinas preparado para o uso daqueles que, depois de terem
examinado os elementos comuns, desejam adquirir a capacidade de resolver
problemas teoréticos que lhe são propostos; e ele é útil somente para esse
propósito. É resultado do trabalho de três homens: Euclides, o autor dos
Elementos, Apolônio de Perga e Aristeu, o Antigo, e procede pelo método de
análise e síntese.
A análise é o caminho que parte daquilo que é procurado – considerado como se
fosse admitido – e segue, em ordem, através de seus concomitantes [akólouthon,
cuja tradução usual é “conseqüências”], até algo admitido na síntese. Pois, na
análise, supomos o que é procurado como já tendo sido feito e investigamos
aquilo do qual ele resulta, e de novo qual é o antecedente deste último, até que,
no nosso caminhar para trás, alcancemos algo que já é conhecido e primeiro na
ordem. A um tal procedimento chamamos de análise, por ser uma solução de trás
para frente. Na síntese, por outro lado, tomamos como já feito aquilo que na
análise foi por último alcançado e, arranjando em sua ordem natural como
conseqüente o que antes era antecedente e conectando-os uns aos outros,
chegamos por fim à construção da coisa procurada. E a isso chamamos síntese.
A análise é de duas espécies. Uma procura a verdade, sendo chamada teorética.
A outra serve para produzir o que se desejava fazer, e essa é chamada
problemática. Na espécie teorética, supomos a coisa procurada como existindo e
sendo verdadeira, e então passamos em ordem pelos seus concomitantes
[conseqüências], como se fossem verdadeiros e existentes por hipótese, até algo
admitido; então, se aquilo que é admitido é verdadeiro, a coisa procurada é
também verdadeira, e a prova será o reverso da análise. Porém, se chegarmos a
algo que é falso admitir, a coisa procurada também será falsa. Na espécie
problemática, supomos a coisa desejada como sendo conhecida e então
passamos, em ordem, pelos seus concomitantes [conseqüências], como se fossem
verdadeiros, até algo admitido. Se a coisa admitida é possível ou pode ser feita,
isto é, se ela for o que os matemáticos chamam de dado, a coisa desejada será
também possível. A prova será novamente o reverso da análise. Mas se
chegarmos a algo impossível de admitir, o problema será também impossível[25].
Como se pode perceber, o texto de Pappus, após se referir ao
“Tesouro da Análise” e a geômetras mais antigos que elaboraram um
corpo de doutrinas ou um conjunto de material útil para o tratamento de
problemas complexos, oferece uma caracterização geral da análise e da
síntese e, por fim, apresenta os dois tipos de análise. Não é difícil de
perceber, também, a atuação conjunta e complementar de suas duas
etapas. Tanto no caso da análise teórica quanto da análise problemática, o
procedimento analítico não representa a demonstração do teorema, nem a
resolução do problema. A etapa analítica é a procura da prova ou da
construção da solução; ela é um procedimento de descoberta, de
invenção e emprega procedimentos heurísticos antes que demonstrativos.
É à síntese, como etapa complementar, que cabe o estabelecimento da
verdade do teorema ou a efetiva resolução do problema, por meio da
inversão dos passos descobertos na análise.
A descrição de Pappus, entretanto, apresenta vários problemas,
como reconhecem os intérpretes. Dentre eles, destaca-se o problema da
natureza dos passos da etapa analítica e de seu aspecto direcional. Os
estudiosos têm tradicionalmente procurado, em suas investigações,
determinar se a análise consiste em extrair conseqüências lógicas do
pressuposto inicial (o teorema que se pretende provar ou a solução do
problema) ou, pelo contrário, se ela procura remontá-lo a suas condições
ou antecedentes e, com isso, determinar se ela é descendente ou
ascendente[26].
O debate, desde o final do século passado, tem dado origem a
posições antagônicas. Dentre elas, destacam-se quatro: a) a primeira,
amplamente dominante até pouco tempo e, como tal, denominada de
interpretação tradicional, considera a análise como dedutiva (e
ascendente somente por se opor à síntese); b) a segunda a vê como
exclusivamente ascendente e não-dedutiva; c) a terceira atribui a Pappus
a descrição de dois métodos distintos, apesar da aparência de estar
tratando de um único; d) a última considera o problema da direção da
análise um problema superficial e propõe uma alternativa à
“interpretação direcional”, comungada pelas interpretações anteriores.
Como o tema foi exaustivamente discutido ao longo desse século, ele
será apresentado através do próprio debate, travado entre os vários
intérpretes. A interpretação assumida aqui segue as linhas gerais (por
vezes, também pontuais) daquela exposta pelos defensores da última
posição e por outros que seguiram seus passos[27].
Conforme salientaram vários intérpretes, tem sido comumente
aceito, desde HANKEL e CANTOR (apud ROBINSON, 1983, p. 5, n.
1), passando por HEATH (1956, p. 137-142)[28], até estudiosos mais
recentes, que a análise é um procedimento dedutivo, cujo objetivo é
extrair conseqüências do pressuposto inicial, assumido como dado, até se
chegar a algo reconhecidamente verdadeiro ou dado. Seguindo Heath e
Robinson, pode-se caracterizá-la da forma apresentada abaixo. Se for
requerido provar que uma proposição A seja verdadeira (neste caso, seria
uma análise teorética, mas o mesmo raciocínio vale para a análise
problemática), assume-se por hipótese a verdade de A e pergunta-se o
que dela se segue. Descobre-se que, se A for verdadeira, uma outra
proposição B também o será. Considerando o que se segue de B,
descobre-se que se B for verdadeira, C também o será. Procede-se, desse
modo, até se atingir uma proposição K, que seja reconhecida como
verdadeira de forma independente. Essa proposição K pode ser tanto um
axioma, um teorema já demonstrado ou uma construção que se sabe
possível. O importante é que ela seja conhecida independentemente de
A. Feito isso, a análise dá lugar à síntese, cujo objetivo é inferir, na
ordem reversa, que A será verdadeira também, dado que K é verdadeira.
Pode-se perceber claramente que a etapa analítica é interpretada
como um processo dedutivo, da mesma forma que a etapa sintética.
Esquematicamente, a análise segue a seguinte seqüência: A®B®C®…
®K. A síntese segue a ordem contrária: K®…®C®B®A. Essa
interpretação, como reconhecem os autores, pressupõe que os vários
passos da cadeia sejam incondicionalmente convertíveis. Em outras
palavras, as implicações devem ser recíprocas, pois, como salienta
HEATH (1956, p. 139), dado que do falso é possível extrair o verdadeiro
(como dizia Aristóteles), a verdade de A só estará garantida diante da
completa reversibilidade das implicações. Dentro dessa perspectiva, a
descrição da etapa analítica tem sido geralmente traduzida de forma
distinta daquela dada na citação fornecida acima, cuja modificação
fundamental é a substituição do termo “concomitante” por “sucessivas
conseqüências”, conforme está posto entre colchetes[29].
Essa interpretação possibilita compreender também o que é dito
no final da citação de Pappus, no caso da análise chegar a algo
reconhecidamente falso ou impossível. Segundo tais autores, somente se
cada passo for incondicionalmente recíproco, pode-se assegurar que, sob
o ponto de vista lógico, diante da falsidade de K (como resultado da
análise) segue-se imediatamente a falsidade de A, sem a necessidade de a
síntese ser efetuada, conforme diz Pappus. Portanto, o pressuposto da
reciprocidade dos passos representa a garantia lógica de que, diante de
um resultado negativo da análise, a síntese é dispensada e a proposição
inicial é falsa, ou o problema é impossível. Disso se segue, conforme
alguns salientam (p. ex., ROBINSON, 1983, p. 6; HEATH, 1956, p.
140), que a reductio ad absurdum é um caso especial de análise[30].
Entretanto, essa interpretação tradicional apresenta, pelo menos,
dois grandes problemas. O primeiro diz respeito ao fato de que, a priori,
não se pode assumir que todas as proposições geométricas sejam
recíprocas. Na verdade, afirma HEATH (1956, p. 139), um grande
número de teoremas da geometria elementar é incondicionalmente
convertível e, com isso, na prática, não há grande dificuldade de se tratar
o problema. Entretanto, ninguém pode garantir que elas são sempre
convertíveis. Tais autores reconhecem o problema, mas apontam
geralmente que, se um passo não for incondicionalmente convertível, ele
poderá se tornar mediante certa condições adicionais, dentre as quais
destaca-se a função desempenhada pelo diorismos[31].
O segundo problema diz respeito à conciliação das várias
afirmações sobre a etapa analítica. Mesmo traduzindo os termos
supracitados por “sucessivas conseqüências”, ao invés de traduzir por
“concomitantes” ou mesmo por “sucessão de passos
subseqüentes” (como será o caso de Cornford), resta a conciliar essa
visão dedutivista da análise com o que vem a seguir, no meio do segundo
parágrafo do texto de Pappus. Com efeito, a segunda frase da
caracterização geral da análise, como todos admitem, afirma: “Pois, na
análise, supomos o que é procurado como já tendo sido feito e
investigamos aquilo do qual ele resulta, e de novo qual é o antecedente
deste último, até que, no nosso caminhar para trás, alcancemos algo que
já é conhecido e primeiro na ordem. A um tal procedimento chamamos
de análise, por ser uma solução de trás para frente”. Isso significa
claramente, pelo menos em uma primeira leitura, que à análise não cabe
extrair conseqüências lógicas, mas, ao contrário, a ela se atribui a busca
de antecedentes ou de premissas e, como tal, ela é verdadeiramente um
movimento ascendente e não-dedutivo.
A solução desses intérpretes, de um modo geral, consiste em
afirmar que, aqui, Pappus está descrevendo a análise em comparação à
síntese, ou seja, em relação à etapa realmente demonstrativa, que segue a
“ordem natural”. Em outras palavras, como diz ROBINSON (p. 14-15),
“A razão pela qual [Pappus] se expressa dessa forma inesperada é porque
está encarando a análise como existindo em função da síntese; isso o faz
descrever os passos da análise não como aparecem na ocasião em que
ela está sendo feita, mas como aparecem na síntese subseqüente”. Além
disso, a “não-naturalidade” da análise em contraposição à ordem natural
seguida pela síntese não significa que a primeira seja ascendente e não-
dedutiva, mas somente que, apesar de dedutiva, “partimos de uma
proposição que não sabemos se é verdadeira e a tratamos como se
soubéssemos que fosse”; e isso não é uma atitude natural. Por fim,
completa HEATH (1956, p. 140), a síntese está sempre lá para averiguar
ou confirmar a reversibilidade dos passos.
Apesar dessas tentativas para solucionar tais problemas, esta
concepção tradicional tem enfrentado resistências da parte de alguns
historiadores da matemática ou de estudiosos do pensamento grego, até
receber uma crítica mais frontal da parte de Cornford. Historiadores
como Duhamel e Zeuthen já haviam reconhecido uma certa ambigüidade
ou duplicidade na descrição de Pappus. DUHAMEL (apud SOUZA, p.
67-68; 75-76) aceitou a existência de uma análise ascendente em Pappus,
mas logo se apercebeu das dificuldades de um tal procedimento e o
reservou para casos onde a análise descendente se mostrou impossível,
por não serem os passos recíprocos. Mas, nesse caso, dificilmente poder-
se-ía chamar uma tal procedimento de metódico, pois muitas vezes ele
poderia resultar em nada. Essa idéia foi claramente expressa por
Zeuthen, quando disse que a análise ascendente, ainda que pudesse ser
fecunda, estaria acometida por uma certa incerteza (ou adivinhação) que
a desqualifica enquanto método.
A exposição mais completa da análise como movimento
exclusivamente ascendente é a de CORNFORD (1932). Segundo esse
autor, a análise não é um procedimento dedutivo, pois consiste em
investigar, não o que se segue da proposição inicial ou da solução
assumida como dada, mas em procurar saber de que proposição ela se
segue, prosseguindo para trás até se ter alcançado algo
independentemente conhecido ou dado. Em outras palavras, ao contrário
da posição anteriormente defendida, a análise não começa pela busca do
que é implicado por A, mas pergunta o que poderia implicar A. Nesse
caso, ela seguiria a seguinte seqüência: A¬B¬C¬…¬K. A síntese
continuaria como na interpretação anterior: K®…®C®B®A. Como
suporte à sua posição, Cornford argumenta que, tradicionalmente,
Pappus foi mal traduzido, quando os intérpretes entenderam se tratar, na
análise, da busca de conseqüências e traduziram por “sucessivas
conseqüências” (ver termos entre colchetes, na citação de Pappus) o que
na verdade significa apenas “a sucessão de passos subseqüentes”, sem
sentido lógico, mas apenas temporal[32]. E, assim, conclui o autor, a
análise é exclusivamente um movimento ascendente de busca de
premissas, não se constituindo em um processo de dedução. A síntese,
sim, é dedutiva e a favor da corrente; e, nesse caso, torna-se clara a
afirmação de Pappus, quando diz que a síntese arranja “em sua ordem
natural como conseqüente o que antes era antecedente”, enquanto a
análise é não-natural e atua contra a corrente[33].
O maior problema da interpretação de Cornford é que ela se
apóia sobre a completa exclusão da possibilidade dos passos
proposicionais serem recíprocos, não podendo representar, assim,
conseqüências lógicas nos dois sentidos. Sua maior fraqueza consiste em
ter afirmado (CORNFORD, p. 41, apud ROBINSON, p. 9) que “não se
pode seguir a mesma seqüência de passos primeiro num sentido, e
depois no sentido contrário, e se chegar a conseqüências lógicas nas
duas direções”. Como mostra ROBINSON (p. 9-10), “se esse princípio
fosse verdadeiro, o método de análise, tal como descrito pelos
historiadores da matemática, seria uma impossibilidade lógica; e se os
geômetras gregos realmente supunham utilizar um tal método, estavam
grosseiramente enganados”. Ora, esse “absurdo lógico” não pode ser
atribuído aos geômetras gregos, nem os historiadores poderiam ter
inadvertidamente partilhado uma tal concepção. Como mostra a prática
dos geômetras antigos (e o erro de Cornford está em não tê-la
examinado), continua Robinson (seguindo o que já dizia Heath), a
maioria das proposições são recíprocas (ou passíveis de se tornarem
recíprocas), ainda que não de forma tão evidente como na matemática
moderna[34]. Evidentemente, confessa ele, a seqüência de passos nem
sempre é exatamente a mesma na análise e na síntese, e muitas vezes
proposições auxiliares são necessárias, para funcionarem não como “elos
da cadeia”, mas como “pinos que mantém os elos unidos” (ROBINSON,
p. 12), não como a água da corrente do rio, mas como as “margens da
corrente” (p. 13). E conclui: isso não é uma objeção à interpretação
tradicional, mas mostra somente que “raciocinamos por entimemas” (p.
12). Além disso, se Cornford estivesse correto, Pappus teria cometido
um erro lógico, ao firmar que, “se chegarmos a algo que é falso admitir,
a coisa procurada também será falsa”: não sendo a análise dedutiva, ela
não poderia garantir, diante da conquista de algo reconhecidamente
falso, a falsidade de seu ponto de partida, pois premissas falsas podem
originar conclusões verdadeiras[35]. Logo, a interpretação de Cornford,
apesar de parcialmente sustentada por outros historiadores, não consegue
se tornar mais convincente que a posição dominante.
Em função da existência dessas duas interpretações
incompatíveis, cada uma apoiada sobre partes do relato de Pappus,
Gulley sustenta que Pappus descreve duas formas distintas da análise
geométrica. Para isso, ele se apóia também em evidências externas ao
relato. Não há dúvida, diz GULLEY (1983, p. 18-19), de que
ARISTÓTELES nos Segundos analíticos (78a, 10-13), entre outros
autores antigos, era consciente de que um grande número de proposições
geométricas era convertível; mas nem por isso deixou de caracterizar o
método dos geômetras, na Ética a Nicômaco (III, 1112b, 20-ss)[36],
como um movimento ascendente, quando o comparou ao processo de
deliberação de uma ação humana. De forma semelhante, Pappus está
descrevendo, na verdade, duas abordagens diferentes da análise
geométrica, uma ascendente, quando trata do sentido da análise em
geral, e outra descendente, quando descreve os dois tipos de análise e
assinala as conseqüências diante de um resultado negativo. Assim, ao
invés de um único método, diz GULLEY (p. 26-27), Pappus estaria
apresentando inadvertidamente duas formulações distintas do que
pensou ser um mesmo método.
A maior objeção à posição de Gulley, como dirão HINTIKKA e
REMES (1974, p. 13), é que ela não consegue reconciliar as diferentes
partes da descrição de Pappus e acaba por acusá-lo de inconsistência.
Por outro lado, se uma tal acusação a um matemático desse porte é
inadmissível, as conclusões de Gulley mostram que deve haver algo a
ser revisto no que diz respeito ao conjunto de todas as interpretações
anteriores, uma vez que a posição desse intérprete é, por assim dizer,
delas decorrente.
Nessa perspectiva, a interpretação de Hintikka e Remes não
parte somente da insuficiência e das dificuldades das interpretações
anteriores, como cada uma fazia com sua adversária, mas constata
também que todas elas partilham de pressupostos comuns, dentre os
quais se destaca o problema direcional do método, aquele que se
interessa em saber se a análise é descendente ou ascendente e se seus
passos formam seqüências dedutivas ou não. A demasiada preocupação
com a direção dos passos proposicionais, além de não fornecer uma
interpretação satisfatória do relato de Pappus, acabou por negligenciar
outros elementos característicos desse método, tais como seu valor
heurístico e a não-trivialidade de sua lógica (HINTIKKA e REMES,
1974, p. 2-3). Partindo de um novo estudo da terminologia, cuja
principal inovação é a tradução do polêmico termo “akólouthon”,
utilizado para caracterizar o percurso que parte da conclusão desejada
para as premissas, por “concomitante” ou “o que vai juntamente
com” (p. 15)[37], contrariamente a outros termos que descrevem o
percurso dedutivo[38] das premissas para a conclusão, tais autores
mostram que o problema direcional é um problema superficial, ou até
insolúvel, mantida sua formulação tradicional. Em outras palavras, uma
interpretação simples e dentro do quadro que vinha sendo feita se
mostrará sempre inviável[39].
Como tentativa de examinar com mais detalhes a problemática,
uma vez reconhecida sua complexidade, o primeiro ponto a considerar é
a unidade do método de análise-e-síntese. Como HINTIKKA e REMES
(1974, p. 17) salientam, tanto a descrição do método como a prática
geométrica mostram tratar-se aqui de um método conjugado de análise e
síntese. Sendo duas as etapas do método, ambas em princípio
indispensáveis, não se pode pretender entendê-lo senão em seu conjunto
e por meio da determinação exata das características e funções próprias
de cada uma delas. Elas (e suas partes) serão estudadas mais adiante[40].
Em segundo lugar, é muito importante avaliá-lo sob a
perspectiva de sua fecundidade e poder heurístico, mesmo porque foi
como procedimento de descoberta que se tornou conhecido, adquiriu
notoriedade e se tornou influente ao longo dos séculos. Dentro dessa
perspectiva, não se justifica a acusação dos partidários da análise
dedutiva de que uma interpretação exclusivamente ascendente
significaria sua descaracterização como método, pois ela seria muito
mais adivinhação e intuição[41] que um procedimento regulado ou
normatizado. Nada poderia estar tão longe da verdade, afirmam os
autores, pois as regras que dizem quando uma determinada conclusão se
segue dedutivamente de uma premissa (ou de um conjunto de premissas)
também funcionam no sentido contrário, dizendo se uma determinada
premissa (ou um conjunto delas) pode(m) acarretar uma certa conclusão
dada. Visto que, concluem eles, não há “razão objetiva” alguma para
uma tal assimetria entre as duas direções (a única diferença é que uma é
mais familiar do que a outra), o geômetra pode proceder contra a
corrente por meio do mesmo esquema se procedesse a favor da corrente.
Conseqüentemente, não há relação alguma entre o aspecto direcional da
análise e sua utilidade heurística (HINTIKKA e REMES, 1974, p. 18-19)
[42].
Nessa sentido, estes autores oferecem uma interpretação muito
mais rica e convincente, além de isenta de problemas semelhantes
àqueles enfrentados pelas outras interpretações. Como se pôde perceber
nas discussões anteriores, a análise e a síntese foram caracterizadas a
partir da perspectiva de uma via de mão dupla, cuja preocupação era a de
saber em que sentido cada uma das etapas a percorria de uma
extremidade a outra, sempre de forma linear e enfatizando os passos
proposicionais, antes de privilegiar a singularidade do método e os
mecanismos por ele utilizados, dos quais esses passos eram resultantes.
Em outros termos, o problema direcional da análise não era senão
reflexo de uma “interpretação proposicional”, caracterizada basicamente
pela linearidade de seus passos e pelo descuido para com a construção
desses mesmos passos. Em contraposição a essa interpretação, esses
autores elaboram uma outra que vê a análise como uma “análise de
configurações” (HINTIKKA e REMES, 1983, p. 39) ou, mais
propriamente, no caso específico da geometria, como uma “análise-de-
figuras” (1974, p. 32). Segundo essa nova interpretação, em resposta à
pergunta: “afinal, o que a análise analise?” (1974, p. 31), deve-se
responder que ela analisa a configuração geométrica dada (ou
ampliada), em função da descoberta da prova do teorema ou da
construção do problema. O objeto da análise geométrica é
fundamentalmente a figura, isto é, a complexidade dos objetos
geométricos envolvidos, suas inter-relações e interdependências (p. 32),
em função da questão proposta. Desse modo, os passos da análise são
passos de objetos geométricos para outros objetos geométricos, e não
entre verdades ou mesmo entre proposições geométricas[43]. O analista
não tem, portanto, sua atenção voltada para a estrutura formal que se
estabelece entre uma proposição e outra, porque atua diretamente sobre o
conteúdo apresentado; não se interessa também pela direção das relações
lógicas entre elas, pois, na verdade, a etapa analítica não tem (ou não
precisa ter) direção alguma, simplesmente porque é anterior a qualquer
ordenamento propriamente dito ou é a própria descoberta ou constituição
desse ordenamento[44].
A primeira característica da análise é, pois, sua atuação direta e
sem intermediação (de entidades lingüísticas, de regras de inferência, de
um aparato lógico-formal, etc.) sobre a figura ou sobre os objetos
geométricos que a compõem. Nesse caso, é verdade, ela se apóia sobre o
ato de “intuir”, como dizia Cornford; porém, não no sentido dado por ele
(de “adivinhar”, de confiar na sorte para encontrar uma premissa), mas
em um sentido por assim dizer cartesiano, na medida em que o analista
olha para a configuração dada, manipula seus elementos componentes e
procura ver ou intuir (e construir) as relações que ela esconde. Poder-se-
ia mesmo dizer que a análise geométrica antecipa a crítica cartesiana à
lógica, uma vez que mostra como constituir uma ciência sem o aparato
lógico, sem regras formais e com uma atuação da “razão” diretamente
sobre o conteúdo ou sobre a complexidade “material” dada.
Liga-se a essa característica a necessidade do método atuar
sempre sobre um caso concreto da configuração em exame. Conforme
diz PROCLUS (apud HEATH, 1956, p. 129-131), o primeiro passo em
toda proposição euclidiana (problema ou teorema) é sua enunciação
geral (prótasis), na qual se encontram tanto o que é dado (dedomena)
quanto o que é procurado (zetoumenon). Essa enunciação não se refere a
nenhuma configuração em particular, mas a toda e qualquer
configuração geométrica que satisfaça o enunciado. Ela não diz respeito
a este ou aquele triângulo, a este ou aquele círculo, mas a qualquer
triângulo, a qualquer círculo, isto é, a qualquer objeto do tipo referido na
proposição. Nesse caso, diante da não-disponibilidade de uma
simbologia que a capacite a atuar dentro de uma forma mais geral e
abstrata (como é o caso da geometria analítica), a geometria antiga
precisa atuar sobre um caso particular[45]. Esse segundo passo no exame
de uma proposição euclidiana é sua explicitação ou exibição particular
(ekthésis)[46]. Em termos da lógica moderna, a passagem para esse
segundo passo implica uma “instanciação” da enunciação geral
(HINTIKKA e REMES, 1974, p. 35). Essa instanciação vem
acompanhada da representação gráfica da configuração geométrica, ou
seja, da figura desenhada sobre o papel, prática geométrica que facilita
ou fortifica ainda mais a interpretação da análise como análise-de-figura,
uma vez que, desse modo, os objetos podem ser melhor examinados no
interior da complexidade dada e em função de suas inter-relações e
interconexões aí presentes (dadas e construídas)[47].
A segunda característica do método de análise é sua capacidade
de lidar com a estrutura do enunciado em questão (ou da problemática
fornecida) e de utilizá-la da melhor forma, para extrair o máximo de
informações que dispõe. A famosa frase “suponha o problema resolvido”
ou outra equivalente[48] não é um mero artifício lingüístico ou retórico,
sem conseqüência heurística. Por meio dela, a análise considera o
desconhecido como dado ou como se fosse conhecido e, com isso, utiliza
a sua “presença” e o poder heurístico que fornece. A fecundidade da
etapa analítica provém da utilização dos poderes do procurado, da sua
“força lógica”, como dizem HINTIKKA e REMES (1974, p. 35). Mas
isso não significa que se deva ir do procurado (zetoumenon) em direção
ao dado (dedomena), seja extraindo conclusões, seja buscando
premissas, como muitos pretendem. Sendo ambos dados, ainda que a
“dação” de cada um seja distinta, a análise os utiliza, como melhor lhe
aprouver. A postura do analista é a de estabelecer ou construir relações
úteis entre todas as entidades dadas ou disponíveis, no interior da
complexidade em exame, tendo sempre em mente que seu objetivo final
é a determinação do desconhecido pelo conhecido[49].
Nesse caso, pode-se dizer que a análise pretende preencher o vão
existente entre o que realmente é dado e conhecido e o que é procurado e
desconhecido, atuando indistintamente sobre os dois “extremos da
cadeia”, tanto de forma conjunto quanto separada. Assim, a descrição de
Pappus da análise como movimento de trás para frente é o
reconhecimento de que o fim desejado, estando sob os olhos do analista,
é realmente utilizado heuristicamente ao longo do processo analítico,
sem nunca perder de vista o fato de ser, na realidade, conseqüente ou
conclusão, cujas premissas devem ser encontradas. Dentro dessa
perspectiva, poder-se-ia dizer que a análise, “intencionalmente”, é um
movimento ascendente, como Pappus parece realmente afirmar.
HINTIKKA e REMES admitem que a descrição da análise de Pappus
reflete a “situação lógica” (1974, p. 18) do método, no sentido de que,
efetivamente, ela pretende buscar os passos dos quais o teorema e a
construção se seguem[50]. Entretanto, a prática geométrica é
predominantemente dedutiva, cuja razão principal é que um
procedimento rigorosamente ascendente é, se não pouco viável, pelo
menos muito limitante, uma vez que a fecundidade e o poder heurístico
do método se ampliam pela utilização conjunta, do zetoumenon e do
dedomena, bem como de todos os axiomas conhecidos e dos resultados
já demonstrados anteriormente. A tentativa de proceder, pois, somente a
partir do zetoumenon restringiria os poderes do método, como também
poderia significar a falta de critérios na escolha do caminho a seguir,
conduzindo o analista, por vezes, para mais longe do dedomena[51].
Assim, na prática, o geômetra procede dedutivamente tanto a partir do
que é dado quanto do que é procurado, apoiando-se seja em um ou em
outro, seja em ambos.
A terceira característica da análise é sua capacidade de introduzir
novos objetos geométricos e, conseqüentemente, de enriquecer a
configuração inicial. Por ocasião do exame de um teorema ou de um
problema, a configuração apresentada em sua enunciação geralmente não
é suficiente para que a análise seja conduzida com sucesso, tendo
necessidade de ampliar a figura por meio de construções auxiliares. Em
outros termos, as construções auxiliares são necessárias para o
estabelecimento de relações ou de passos intermediários entre os objetos
examinados, na tentativa de conectar o que é dado (conhecidos) com o
que é procurado (desconhecido): é comum ser preciso introduzir novos
objetos para que a cadeia de dependências entre os elementos do
problema seja construída ou exibida de forma completa e satisfatória.
Desse modo, a introdução de novos objetos afasta, ainda mais, a análise
de ser meramente linear, mas também a afasta de qualquer procedimento
totalmente previsível, dado que as construções auxiliares acrescentam
ramificações ou elementos novos, pretensamente fecundos à resolução
da dificuldade proposta.
Essa característica é, ao mesmo tempo, segundo HINTIKKA e
REMES (1974, p. 44), um dos aspectos mais importante do
procedimento analítico, pois a escolha acertada das construções
representa em geral o passo mais importante em direção à possibilidade
de se encontrar a prova do teorema ou a solução do problema, mas
também traz uma certa incerteza, pois não se sabe, de antemão, se as
construções introduzidas serão suficientes. Nesse sentido, as construções
auxiliares representam a fecundidade do método, mas também sua
“instabilidade”, pois não se pode, em geral, garantir antes da síntese que
ela tem sido bem-sucedida[52].
Existem ainda três observações a serem feitas sobre as
características da análise, antes do exame de um exemplo. A primeira diz
respeito a uma primeira versão do método, a redução (apagogé). Há
evidências de que essa concepção de análise (ou esse tipo especial de
análise) foi empregada por Hipócrates de Quios (primeira metade do séc.
V a. C.)[53] ou até pelos primeiros pitagóricos, como Teodoro de Cirene
e Arquitas de Taranto. PROCLUS (apud HEATH, 1956, p. 135) atribui a
Hipócrates a invenção do método apagógico, que consistia na redução de
um problema a outro, na redução ou recondução de um problema mais
complexo a um outro mais simples, o qual, encontrando-se resolvido,
possibilitaria a resolução do primeiro. O exemplo mais famoso desse
procedimento é o da redução do problema da duplicação do cubo ao
problema da construção de dois meios proporcionais entre duas
grandezas conhecidas[54]. Mas os outros dois famosos problemas, o da
quadratura do círculo e o da trisecção do ângulo, também foram objeto,
na época, de tratamento ou tentativas semelhantes. É importante, pois, ter
presente essa dimensão do procedimento analítico: a redução de um
problema complexo a um outro mais simples é um importante passo na
resolução de um problema, mesmo que este último também não esteja
ainda resolvido[55].
A segunda observação é referente à divisão de cada uma das
etapas do método. Tanto a etapa analítica quanto a sintética são
compostas de duas partes, com características e funções distintas, ainda
que os geômetras não lhes têm atribuído nomes e nem sempre são
claramente distinguíveis. A primeira parte da análise consiste em analisar
ou transformar, supondo dado também o procurado, as condições ou
relações iniciais, fornecidas pela enunciação da proposição (seja pelo
dedomena, seja pelo zetoumenon), em outras condições ou relações, as
quais serão necessariamente cumpridas ou dadas se as primeiras o são.
Nessa etapa, além disso, é preciso geralmente acrescentar novos objetos,
por meio de construções, à configuração dada. Essa etapa foi chamada, a
partir de HANKEL, de transformação (apud HEATH, 1956, p. 141), e
Hintikka e Remes chamam-na também de análise propriamente dita. A
segunda parte da etapa analítica é chamada de resolução (também desde
Hankel), cuja função é mostrar a independência dessas relações ou
objetos extraídos na transformação em relação à pressuposição de que o
problema esteja resolvido (portanto, em relação ao zetoumenon). Essa
etapa mostra, em outras palavras, que os passos apresentados na
transformação podem ser derivados (portanto, podem ser considerados
como dados adicionais) a partir somente do dedomena e de outras
proposições conhecidas (axiomas ou teoremas demonstrados
anteriormente). Com isso, finda a etapa analítica, cujo objetivo foi o de
mostrar que os dados iniciais (fornecidos na enunciação), acrescentados
de novos dados, deles diretamente ou indiretamente derivados, devem
poder ocasionar o que se procura. A etapa sintética, por assim dizer,
organiza em dois momentos o que foi apresentado e descoberto na
análise e prova a verdade do teorema ou a solução do problema. A
primeira parte da síntese chama-se construção e, como o termo já diz,
nela são efetivamente realizadas as construções suficientes (sem se
basear em quaisquer elementos hipoteticamente dados ou no fim que se
almeja chegar) para que a configuração esteja completa. A segunda parte
chama-se demonstração, cuja função é provar que a construção feita
soluciona o problema ou as relações apresentadas estabelecem a verdade
do teorema.
Por fim, a terceira observação é quanto ao fato de que a etapa
analítica do método não resolve a questão e, em princípio, não garante o
sucesso da síntese, ainda que o analista “saiba” ou “pressinta” quando
parar, em razão das relações construídas ou descobertas. O objetivo da
etapa analítica não é solucionar ou provar o que pede a enunciação da
proposição sob investigação. É, antes disso, descobrir ou inventar
relações entre os objetos da configuração (transformação) e mostrar a
possibilidade de construí-los ou de serem dados (resolução). A resolução
da questão decorre, depois disso, da construção efetiva do que a
resolução apresenta e da prova de que o resultado se segue
(demonstração). A construção depende do sucesso de ela retomar os
passos da resolução e reordená-los de forma que eles possam ser (e são)
efetivamente realizados e determinados a partir dos dados originais da
proposição. Como tal, ela é propriamente o contraponto da resolução e,
ainda que ambas não se baseiam em nada do procurado (zetoumenon),
elas se distinguem como a possibilidade se distingue da efetividade. Por
sua vez, a demonstração é o contraponto da transformação, e seu
sucesso depende do sucesso da inversão dos passos da transformação.
Em resumo, apesar da etapa analítica apresentar todos os elementos
suficientes para a resolução da questão, ela não a resolve porque
apresenta passos meramente possíveis e outros baseados no fim que se
procura atingir.

Uma vez apresentadas as principais características do método de


análise-e-síntese dos geômetras gregos, segue abaixo, como tentativa de
ilustrá-lo, um exemplo extraído da Coleção matemática (PAPPUS, Livro
VII, Prop. 105, p. 640-42)[56]. Pappus, depois de enunciar a proposição
já instanciada, apresenta a análise e a síntese separadamente e numa
seqüência de passos dentro de um texto contínuo, sem enumerá-los, ao
contrário do que será feito aqui. Os nomes das partes também não são
dele, como já se disse (o texto de Pappus corresponde ao que está em
itálico, além dos nomes “análise” e “síntese”). Além disso, seguindo o
que HINTIKKA e REMES fazem em relação a outro exemplo
examinado (1974, p. 22-26), bem como as observações elucidativas de
Ver Eecke dadas no texto de Pappus, as notas pretendem esclarecer e
justificar os passos mais complicados. Segue, abaixo, o exemplo.
Proposição 105 (Livro VII)
Enunciação:
I) O que é dado (dedomena):
Dados um círculo ABC e dois pontos D e E, externos a ele, traçar as retas DB e
EB, a partir de D e E até um ponto B no círculo, tais que, se os prolongamentos
de DB e de EB encontrarem o círculo novamente em C e em A, …
II) O que é procurado (zetoumenon):
… AC seja paralelo a DE[57].
Análise:
Suponhamos o problema resolvido[58] e a tangente em A traçada, encontrando
o prolongamento de ED em F[59].
I) Análise própria ou transformação:
1) Então, desde que AC é paralelo a DE, o ângulo em C é igual ao
ângulo CDE[60].
2) Mas, como FA é uma tangente, o ângulo em C é igual ao ângulo
FAE[61].
3) Portanto, o ângulo FAE é igual ao ângulo CDE; e, assim, A, B, D
e F estão sobre
o mesmo círculo[62].
4) Portanto, o retângulo AE, EB é igual ao retângulo FE, ED[63].
II) Resolução:
1) Mas o retângulo AE, EB é dado, pois é igual ao quadrado sobre a
tangente a partir de E[64].
2) Portanto, o retângulo FE, ED é dado[65].
3) E, como ED é dado, então FE é dado (em comprimento)[66].
4) Mas FE é também dado em posição, de modo que F é dado[67].
5) Agora, FA é a tangente, a partir de um ponto dado F, a um círculo
ABC, dado em posição; portanto, FA é dado em posição e
magnitude[68].
6) E o ponto F é dado; então, A é dado[69].
7) Mas E é também dado; portanto, a reta AE é dada em posição[70].
8) E o círculo ABC é dado em posição; portanto, o ponto B é também
dado[71].
9) Mas os pontos D e E são dados; portanto, as retas DB e BE são
também dadas em posição[72].
Síntese:
I) Construção:
1) Suponhamos dados o círculo ABC e os pontos D e E[73].
2) Tomemos um retângulo contido por ED e por uma certa reta EF, igual
ao
quadrado sobre a tangente ao círculo a partir de E[74].
3) A partir de F, tracemos FA tangenciando o círculo em A[75].
4) Tracemos ABE e depois DB, prolongando DB de modo a encontrar o
círculo em C[76].
5) Tracemos AC.
6) Digo, então, que AC é paralelo a DE.
II) Demonstração:
1) Desde que, por hipótese, o retângulo FE, ED é igual ao quadrado
sobre a tangente a partir de E, o qual, por sua vez, é igual ao
retângulo AE, EB, o retângulo AE, EB é igual ao retângulo FE,
ED[77].
2) Portanto, A, B, D e F estão sobre o mesmo círculo, donde o ângulo
FAE é igual ao ângulo BDE[78].
3) Mas o ângulo FAE é igual ao ângulo ACB no segmento alterno[79].
4) Portanto, o ângulo ACB é igual ao ângulo BDE.
5) Portanto, AC é paralelo a DE[80].
 
Após a exposição desse exemplo ilustrativo do procedimento
analítico-sintético, algumas observações devem ser feitas para ratificar e
complementar o que foi dito anteriormente. Um primeiro conjunto de
comentários diz respeito à determinação da entidade básica em meio à
qual o método se instala e evidencia suas características. Ainda que se
aplique tanto a teoremas quanto a problemas geométricos, poder-se-ia
dizer, entretanto, que o método diz respeito a problemas (entendidos em
um sentido amplo, incluindo, portanto, os problemas e os teoremas, em
seu sentido técnico), ou mesmo a questões, a “dificuldades”, como diria
Descartes. Nesse sentido, o método começa a se configurar a partir das
características dessa entidade básica, do que ela tem de peculiar em
oposição a outras formas de investigação científica, como a que prioriza
a relação e a subordinação entre proposições.
Em outras palavras, o método de análise e síntese é um método
de resolução de problemas (em geral). A atividade de resolução de
problemas não pretende examinar uma proposição, relacioná-la a outras
ou deduzi-la de verdades já conhecidas. Mesmo no caso de um teorema,
onde se procura demonstrar sua verdade (de uma proposição, portanto),
sua prova não é derivada de proposições anteriores, mas é inventada no
interior da configuração examinada. A prova é descoberta no interior do
problema e não em subordinação a algo exterior, sendo que axiomas e
teoremas são chamados (por vezes, mesmo, descobertos)[81] em função
desse exame interno[82]. Assim, por exemplo, o teorema que diz que a
soma dos ângulos internos de todo triângulo é igual a dois ângulos retos
(Prop. 32, Livro I dos Elementos) é provado por Euclides (HEATH,
1952, p. 19-20), não por dedução a partir de teoremas ou axiomas já
dados, mas no exame feito sobre um triângulo qualquer[83]. A prova do
teorema não deriva da sua dedução a partir de outras proposições já
conhecidas: ela é descoberta no interior dos (ou em meio aos) elementos
fornecidos pelo problema (ampliado por meio de elementos adicionais).
O exemplo acima apresentado mostra igualmente que o geômetra age
sobre a configuração dada (uma complexidade de objetos inter-
relacionados), a manipula, acrescenta dados, estabelece relações, de
modo que tais operações proporcionem a resolução do problema. Além
disso, a utilização de construções auxiliares denuncia a não-trivialidade
do método, a necessidade de introduzir novos objetos geométricos, a
possibilidade de enriquecer o problema inicial e de estabelecer relações
para além dos objeto imediatamente dados. Assim, o método não é nem
“proposicional”, nem linear, nem mecânico: ao invés de estabelecer
relações proposicionais, garantidas por um aparato lógico, ele estabelece
relações entre objetos no interior do problema examinado; ao invés de
ser linear, ele não tem direção alguma, podendo proceder de ou incidir
sobre qualquer parte da figura; ao invés de ser mecânico, ele é criativo,
inventivo, mas também, em parte, imprevisível quanto a seus resultados.
Resolver um problema é, pois, examinar a configuração inicial,
compreender as relações que ela esconde, construir outras e preencher o
que falta, a partir do que é proposto. O método analítico é uma análise da
complexidade dada em forma de problema, complexidade essa aberta ao
exterior, mas não subordinada a ele. Isso evidencia, primeiramente, que o
problema é uma entidade relativamente auto-suficiente (ainda que imerso
a um conjunto de problemas mais amplo), cuja estrutura e dinamicidade
interna possibilita o gerenciamento do método. Um problema
(lembremos sempre, em seu sentido genérico) apresenta uma
determinada estrutura constante e pede que se faça algo ou que se
determine algo a partir do que é dado. Essa estrutura característica é
denunciada em toda proposição enunciada. Toda enunciação é composta
de duas partes: o que é dado (dedomena) e o que é procurado
(zetoumenon), as quais devem estar relacionadas de alguma maneira (às
vezes, elas precisam ser delimitadas por meio de uma condição, um
diorismos), para que o problema seja bem-construído e passível de
solução.
Todo problema, portanto, é composto de “dados” ou de
elementos conhecidos e do que é “procurado” ou desconhecido.
Pertencentes a um problema, esses elementos não se encontram
desvinculados, mas estão ou devem estar relacionados, de modo que uns
podem ser determinados pelos outros. A resolução do problema consiste
na determinação dos desconhecidos a partir dos conhecidos. Entretanto,
o método de análise (mais exatamente, sua etapa analítica) não procede
conforme essa direção “natural” (do conhecido para o desconhecido). Ela
faz a pressuposição de que o problema esteja resolvido. Assim, pode
pressupor que todos os elementos necessários à sua resolução estejam
dados, bem como pode proceder de forma indiscriminada, seja a partir
do fim procurado, seja do que realmente é dado. Dessa maneira, se a
etapa analítica não estabelece uma ordem – pois, não havendo objetos
privilegiados no interior da configuração, não precisa seguir um sentido
privilegiado –, por outro lado, por fazer uso constante do fim desejado
(do desconhecido), ela é dita proceder de trás para frente. Como foi
mostrado no exemplo exposto, entretanto, não é toda a etapa analítica
que procede para trás, mas somente a análise própria, na medida em que
seus passos pressupõem o procurado (zetoumenon). Nesses termos, essa
parte da etapa analítica é sempre problemática ou hipotética, pois
repousa sobre a pressuposição de que a configuração está completa e que
se pode percorrer o caminho de um extremo ao outro, sem problemas.
Além disso, ela não se constitui efetivamente em um movimento
contrário ao da corrente (ainda que ofereça resistência a ela e, de alguma
forma, pode ser dita remontá-la), uma vez que, se ela não tem
propriamente direção, sua direção não será tampouco a da contramão.
Ela é dita proceder para trás porque utiliza o fim, como um dos
elementos dados, juntamente com os “dados”, que são realmente dados.
De sua parte, a resolução não pode basear nenhum de seus passos no
desconhecido. Ela mostra que o que foi apresentado na parte anterior
pode ser derivado exclusivamente dos dados, mesmo que não determine
efetivamente tais objetos, como fará a construção[84]. Com isso, a etapa
analítica não soluciona o problema, mas apresenta os elementos que o
analista pensa serem suficientes para tal e mostra que tais elementos
decorrem do que é dado.
Por sua vez, na etapa sintética, a construção dá existência e
determinação a todos os objetos referidos anteriormente. Para tal, ela
altera algumas relações estabelecidas na resolução, como, por exemplo,
no caso apresentado, a que diz respeito aos retângulos AE, EB e FE, ED.
Na construção, é o retângulo FE, ED (e não o retângulo AE, EB) que é
construído a partir do quadrado sobre a tangente ao círculo a partir de E,
de onde se seguem todos os outros passos. A construção não é,
entretanto, o contrário da resolução: a primeira estabelece relações, as
quais permanecem indeterminadas (pois o retângulo AE, EB pode ser
qualquer reta que corte o círculo a partir de E, permanecendo, portanto,
os pontos A e B indeterminados), enquanto a segunda efetivamente
constrói tais objetos. Por fim, a demonstração prova que os elementos
dados solucionam o problema. Ela é o contraponto da análise própria e
inverte todos os passos que, nessa parte, se basearam no fim desejado.
Assim, a síntese ordena os passos em sua “ordem natural” e mostra que o
que foi originalmente dado determina o procurado. Desse modo, ela
complementa a etapa analítica e confirma que o método é, na verdade,
composto por dois momentos, tratando-se, portanto, de um método de
análise-e-síntese.
Cabe observar, por fim, que, para os geômetras gregos, os termos
“análise” e “síntese” são usados exclusivamente no sentido acima
descrito. Eles não utilizam o conceito de síntese para significar a
exposição sistemática e ordenada de conhecimentos, caracterizada pela
utilização de definições, axiomas e postulados, seguidos pelas
demonstrações de proposições (teoremas e problemas). Dessa forma, os
Elementos de Euclides são sintéticos, não porque têm uma estrutura
axiomática, mas porque conservam somente a segunda etapa do método
de análise-e-síntese, ao contrário do que ocorrerá, no século XVII[85],
quando a síntese passa a significar, para muitos pensadores, um método
independente, caracterizado como procedimento de exposição e de prova
(por vezes, também de descoberta) de um conjunto de proposições, cujo
modelo paradigmático são esses mesmos Elementos[86].
Logo, o conceito de síntese, para os geômetras, não possui essa
ambigüidade que o acometerá mais tarde. Scholz, por exemplo, tratando
da axiomática dos antigos – e, para tal, se reporta basicamente aos
Segundos analíticos de Aristóteles –, em nenhuma ocasião estabelece
qualquer tipo de relação entre esse tema e o conceito de síntese dos
geômetras, ainda que reconheça que os gregos, com a matemática,
“produziram não apenas o primeiro paradigma de uma ciência rigorosa
no sentido ocidental, como também a primeira descrição de tal
ciência” (SCHOLZ, 1980, p. 5). A axiomática aristotélica pode muito
bem ser ilustrada pelos Elementos de Euclides, mas não se pode
simplesmente equiparar as duas características dessa última obra: a de
ser modelo de uma ciência axiomática e a de empregar exclusivamente o
procedimento sintético em detrimento do analítico. O procedimento
sintético não se vincula necessariamente a esse modelo axiomático, ainda
que um pareça clamar pelo outro.
1.2 A álgebra dos modernos
A “álgebra dos modernos” é mencionada, juntamente com a
análise dos antigos, como a segunda disciplina que contribuiu para a
formação da metodologia cartesiana. Nas Regras, Descartes cita
nominalmente Diofanto, precursor daquela ciência nascente, lado a lado
com Pappus, reconhecendo a existência de algum vínculo entre os
procedimentos heurísticos da geometria e aqueles apresentados pela
ciência dos números, já em sua fase embrionária. Mais do que isso, nessa
mesma obra, Descartes filia a álgebra moderna à geometria antiga,
quando afirma explicitamente que a primeira atua sobre os números, da
mesma forma que a análise geométrica procede em relação às figuras e,
desse modo, admite que o campo de abrangência do método de análise
tem se estendido para além das fronteiras da geometria[87]. Desse modo,
não se pode deixar de avaliar os méritos e as “novidades” metodológicos
dessa nova disciplina, ainda que ela, segundo o autor, não apresente um
novo procedimento metodológico, mas somente o aperfeiçoa e dinamiza
suas potencialidades, além de livrá-lo de algumas limitações (como
aquela ligada à presença de “inexplicáveis figuras” (X, 377,6-7))[88].
Essa idéia de “comunhão” metodológica entre as duas ciências
não é um reconhecimento exclusivamente cartesiano. Viète, tido
geralmente como o “fundador” da álgebra, se apresenta como
continuador da tradição dos praticantes do método de análise, cujos
expoentes não são somente Pappus e outros geômetras como Apolônio,
mas também o “quase-algebrista” Diofanto. Dentro desse contexto, na
tentativa de examinar a contribuição trazida pela álgebra ao método de
análise, serão examinadas abaixo algumas características da obra de
Diofanto e de Viète. Uma vez que esta ciência não apresenta um novo
método, mas somente vem acrescentar algo a um outro já existente e
“aperfeiçoar” algumas de suas características, é possível selecionar os
itens mais importantes para o presente objetivo, sem ser necessário
apresentar o complexo desenvolvimento dessa ciência, desde os gregos
(e hindus), passando pelos árabes, até os tempos modernos. Nesse
sentido, os nomes de Diofanto e de Viète parecem pertinentes ao
propósito, primeiramente porque Diofanto é citado por Descartes e sua
obra examinada detalhadamente por Viète[89], mas também porque este
último escreve um livro exatamente sobre a “arte analítica” algébrica e
explicitamente inclui sua obra matemática dentro da tradição analítica
dos gregos.
Os Aritméticos de Diofanto[90] tratam basicamente de
problemas “calculacionais” ou “aritmético-algébricos”, determinados e
indeterminados, que conduzem a equações de primeiro e de segundo
graus. Tais problemas são resolvidos por meio de técnicas particulares,
cuja tentativa de sistematização e generalização é praticamente
inexistente. Sua característica talvez mais marcante é seu caráter “quase-
algébrico”, denunciado pela presença e pela utilização das noções de
quantidade desconhecida e de “equação”, antecipando o modo de agir
dos algebristas modernos (e o dos nossos estudantes). Diofanto, contudo,
ao contrário de seus “sucessores”, faz uso de somente uma única
“incógnita”, independentemente da quantidade de números
desconhecidos que se deva determinar, designada de uma forma abstrata
pelo nome de “número” (arithmós)[91]. De forma semelhante, a noção
de equação não é claramente formulada, mas já aparece a idéia de que as
expressões (equações) devem ser comparadas umas às outras e seus
elementos componentes manipulados, segundo regras estabelecidas, com
o objetivo de reduzir à sua forma mais simples[92].
Para o presente estudo, mais importante que outras
características da obra, tais como sua independência em relação à
geometria (contrariamente aos livros aritméticos dos Elementos de
Euclides), apesar da conservação de alguns termos geométricos, bem
como a elevação dessa “arte dos números” ao nível da epistéme, é
exatamente o seu caráter “analítico”, proveniente da importância
atribuída, como se disse acima, ao elemento desconhecido e à noção de
“equação”, enquanto expressão da relação entre o que é dado e o que é
preciso determinar (e, portanto, expressão do lugar que ocupa o
desconhecido ao lado do que é conhecido), de tal forma que a presença,
o uso e a manipulação da incógnita, ao longo do procedimento de
resolução de um problema, adquirem importância fundamental, a
exemplo do zetoumenon, na geometria. Os Aritméticos de Diofanto têm
um “espírito” muito mais “algébrico” do que se fossem considerados em
função do conjunto de abreviações aí utilizado e como “antecipação” do
simbolismo moderno: a obra de Diofanto mostra seu caráter algébrico
exatamente por ser analítica e, assim, antecipa o caráter analítico da
futura álgebra. Como diz KLEIN (1992, p. 156; destaques no original),
é, depois de tudo, particularmente característico do procedimento diofantino
operar com o quaesitum, a saber, com o número procurado em cada caso, como
algo já dado ou ‘concedido’ (concessum). Construir uma equação significa nada
mais que colocar as condições de um problema sob uma forma que nos capacite
ignorar se as magnitudes que ocorrem no problema são “conhecidas” ou
“desconhecidas”. As conseqüências (consequentia) a serem extraídas de uma tal
equação, isto é, suas etapas de transformação em uma forma canônica (sua
forma padrão, como diríamos), finalmente conduzem, por meio do cálculo, à
determinação do número procurado, isto é, do número “verdadeiro”, o qual é
somente então, no fim, “concedido” (verum concessum).
É exatamente a percepção desse fato que fez o algebrista Viète se
considerar um analista, por ocasião da elaboração de sua obra. Nesse
sentido, esse autor e Descartes avaliam o método de análise e sua
posterior extensão ou reelaboração, no horizonte matemático, de forma
bastante semelhante. Mas, antes do exame do pensamento de Viète,
segue um exemplo, dentre os mais simples, de um problema (Livro I,
Prob. 4) da obra de Diofanto (VER EECKE, 1959, p. 11) e de sua forma
de resolução. Ei-lo:
Encontrar dois números em uma dada proporção, tal que seu excedente seja
também dado.
Proponhamos que o maior número seja o quíntuplo do menor e que
o excedente desses números forme 20 unidades.
Coloquemos que o menor número seja 1 aritmo; assim, o maior será 5
aritmos. Desejamos finalmente que 5 aritmos excedam 1 aritmo em 20 unidades.
Ora, seu excedente é 4 aritmos, os quais deverão ser iguais a 20 unidades. Desde
então, o menor número será 5 unidades e o maior 25 unidades, o que determina
que o maior número é o quíntuplo do menor, e que a diferença entre eles forma
20 unidades.
O problema estabelece as seguintes relações: X=mY e X-Y=a. A
solução considera as seguintes equações: i) X=5Y e ii) X-Y=20. Disso se
segue que, sendo Y=x (isto é, igual a um aritmo), então, X=5x e 5x-
x=20, ou seja, 4x=20. Logo, x=5. Portanto, Y=5 e X=25[93].
O procedimento diofantino é um pouco diferente do da álgebra
posterior e do nosso modo de resolver um problema desse gênero. A
diferença básica consiste no fato de que, sendo os dois números
procurados (X e Y) dois números determinados e únicos, eles não podem,
para o autor, ser considerados desconhecidos, mais igualados ao
desconhecido (e a seus múltiplos). Na realidade, os números a serem
determinados não são verdadeiras variáveis, mas constantes ainda
desconhecidas. Assim, por um lado, apesar do caráter algébrico do
pensamento de Diofanto, percebe-se claramente a falta de generalidade
no tratamento dos seus problemas. Como diz BOYER (1976, p. 223), a
matemática diofantina é uma “coleção de truques”, antes que uma
“forma de raciocínio”. Não se pode deixar de assinalar, por outro lado,
sob o ponto de vista metodológico, a forma analítica de resolução de
seus problemas: um problema apresenta uma configuração (no caso,
“algébrica”) que possibilita estabelecer relações entre os dados e o que
se procura determinar, de forma que a manipulação de tais relações nos
conduz à sua solução. Além disso, percebe-se a função fundamental que
desempenha o desconhecido, uma vez que ele precisa também ser
“dado”, mesmo que sua quantidade não esteja determinada. Como tal, a
exemplo do que ocorre com os geômetras e é característico do método
de análise, o procedimento diofantino assume como sua pressuposição
fundamental, como também o fará a álgebra posterior, que o problema
esteja resolvido, mas de uma forma até mais “natural” que a geometria –
e, talvez, por isso, não dito explicitamente –, como se percebe pela
própria estrutura de uma equação ou “essência” do que seja uma
equação[94].
É por isso que Viète intitula sua álgebra de “arte analítica” (ars
analytice) e, por meio dessa identificação, pretende mostrar que, no
fundo, não há diferença entre os procedimentos metodológicos
empregados na resolução de problemas geométricos e aqueles
empregados na resolução dos problemas algébricos. Viète é certamente o
primeiro matemático do ocidente que, como diz WAERDEN (1985, p.
63), põe como seu objeto de estudo “recuperar o método de análise
apresentado por Pappus em sua grande Coleção e combiná-lo com o
método de Diofanto”, de sorte que os problemas matemáticos podem ser
“representados” tanto em número quanto em linhas. Já não é tão
importante fazer geometria ou aritmética, mas apresentar uma arte geral
de resolver problemas matemáticos, uma vez que as matemáticas
parecem atuar ou raciocinar da mesma maneira, seja sobre números, seja
sobre figuras. As ciências matemáticas apresentam, independentemente
de seus objetos, uma “racionalidade inventivo-resolutiva” comum e
eficiente para qualquer tipo de problema que lhes pertença[95].
Apresentar essa “arte analítica” é a intenção central do autor, expressa na
pequena mas fundamental obra Introdução à arte analítica (VIÈTE,
1970, p. 1-12)[96], de tal maneira que o método aí apresentado (e
recuperada dos antigos) não dê conta somente deste ou daquele
problema, mas do “problema dos problemas”, qual seja, daquele que
consiste em “não deixar nenhum problema sem solução”[97].
Dentro dessa perspectiva, as duas principais características da
“arte analítica” de Viète estão em consonância e em continuidade com o
pensamento de Pappus e o de Diofanto. A primeira diz respeito à
exploração da relação entre as quantidades conhecidas e as
desconhecidas no interior de um problema matemático. Surge, com
clareza e força, a noção de equação, mas, antes disso, a idéia de que os
objetos matemáticos, no interior de uma configuração sob investigação,
mantêm relações estritas que devam ser determinadas ou estabelecidas,
haja vista que é desse modo que se resolvem problemas matemáticos, ou
melhor, é desse modo que devem ser entendidos os problemas
matemáticos[98]. Não é a idéia de equação que nasce simplesmente, mas
primeiramente a de que todo problema implica a construção de uma
equação, entendida como uma ligação ou comparação (comparatio)[99]
entre uma magnitude desconhecida e outra conhecida[100]. Nesse
sentido, esse autor introdução, pela primeira vez, a clara distinção entre
as grandezas dadas ou conhecidas (representadas pelas consoantes do
alfabeto, como B, C, D, F, G) e as desconhecidas (representadas pelas
vogais, como A, E, I)[101], ainda que seus procedimentos permaneçam
bastante inoperantes em função da inexistência de alguns símbolos para
as operações entre as grandezas, bem como em função da “lei da
homogeneidade” que elabora[102]. Com isso, Viète dá nascimento à
álgebra em seu pleno sentido, na medida em que diz operar com
“espécies” (species) e não mais com números: nasce, assim, a “logistice
speciosa” em contraposição à “logistice numerosa” de Diofanto[103].
Cresce, portanto, a partir de então, cada vez mais a noção de
generalidade do cálculo e a de matemática simbólico-abstrata[104].
A segunda característica da obra de Viète diz respeito à
recuperação e à reavaliação da estrutura do método de análise dos
geômetras. No início da obra supracitada (em seu capítulo primeiro),
esse autor apresenta a definição de análise e suas duas espécies, bem
como a definição de síntese, conforme apresentadas por Pappus[105].
Em seguida, entretanto, acrescenta uma terceira espécie, da forma como
ele mesmo a concebe e sem haver um tipo paralelo ou precedente na
história do método[106]. No caso das duas primeiras, Viète utiliza as
expressões que parecem qualificar a função ou apresentar a característica
de cada uma delas, ao invés de empregar os termos que o próprio Pappus
emprega para nomeá-los. Assim, ao lado da que ele mesmo inventa, a
análise rética ou exegética, Viète chama respectivamente de análise
zetética e de análise porística o que Pappus intitula análise teorética e
análise problemática, mas de modo que o que, para este último, diz
respeito a uma oposição de entidades (teoremas e problemas), para o
primeiro, passa a ser uma distinção de funções exercidas por etapas
complementares de um mesmo método.
Nesse sentido, a análise zetética tem o objetivo de encontrar, não
a verdade de uma proposição (a prova de um teorema), como em Pappus
(análise teorética), mas a equação ou a razão entre as grandezas dadas e
as desconhecidas. Ela corresponde à montagem ou construção da
equação, à colocação dos elementos em forma de equação, de maneira
que as várias relações que o problema apresenta são reduzidas a uma
expressão de igualdade. Em outras palavras, ela é o procedimento
responsável por transformar o problema dado em uma equação algébrica
entre quantidades conhecidas e desconhecidas. Por sua vez, a análise
porística tem como tarefa examinar e confirmar, não a construção que
satisfaz as condições do problema, como em Pappus (análise
problemática), mas a validade da equação determinada pela análise
zetética. Isto é, a análise porística examina a verdade do teorema
expresso pela equação Por fim, a análise rética ou exegética dá conta da
derivação ou exibição do número ou da construção da linha que resolve
o problema e, como tal, corresponde à resolução da equação.
Não é tarefa fácil precisar o papel de cada uma das espécies de
análise, apontadas por Viète. Seja como for, esse autor não está opondo
diferentes tipos de procedimentos, mas estabelecendo-os como
complementares, dentro de um procedimento algébrico único de
resolução de problemas[107]. Não é preciso ir além disso, contudo, para
os propósitos desse estudo. É suficiente salientar o papel de Viète, a
partir das características apontadas acima, como seguidor de Pappus e de
Diofanto e como unificador, por meio de sua “arte analítica”, do que até
então eram dois procedimentos separados e tidos como distintos. E,
nesse caso específico, ele pode ser posto numa perspectiva que se
aproxima da de Descartes: ambos se põem como pertencentes à tradição
metodológica dos matemáticos antigos, como praticantes e como
reelaboradores do método de análise, estendido agora para as diversas
disciplinas matemáticas.

CAPÍTULO II
O MÉTODO DE DESCARTES: UMA ILUSTRAÇÃO
Como primeiro passo na tentativa de compreender a
metodologia cartesiana, mostrar sua estrutura analítica (ou analítico-
sintética) e ilustrar sua atuação, será examinado abaixo o famoso
“problema de Pappus”, exposto por Descartes na Geometria[108].
Propositadamente, foi escolhida uma ilustração extraída de um dentre os
três tratados que seguem o Discurso, os quais são considerados por
Descartes como “ensaios” do método[109]. Além disso, sendo um
problema matemático, o problema de Pappus possibilita uma melhor
comparação com o método de análise dos gregos (e algebristas) e serve,
pois, adequadamente como “meio de ligação” entre este último e a
metodologia cartesiana em geral.
A Geometria é uma obra ilustrativa da metodologia cartesiana.
Apesar da inexistência de referências nominais ao método de análise dos
gregos e de indicações explícitas às regras metodológicas do Discurso e
das Regras, sua simples consideração como um “ensaio” do método,
entre outros, equivale a lhe atribuir um estatuto metodológico definido.
Na verdade, Descartes vê essa obra como uma autêntica ilustração de
seu método. Primeiramente, por que, como diz o Discurso, Descartes
estava à procura do “verdadeiro emprego” das matemáticas (VI, 7, 26),
tendo encontrado “alguns vestígios” (X, 376, 21) em meio a essas
ciências já constituídas[110]. A matemática, não há dúvida, é uma
disciplina privilegiada para o autor, pois, mesmo mal cultivada, tem
produzido bons frutos e se constituído em um manifesto em favor dos
poderes da razão. Nessa perspectiva, são abundantes as referências
(desde as Regras) quanto ao papel especial que essa ciência desempenha
dentro da reflexão metodológica do filósofo. No que diz respeito
especificamente à obra aqui examinada, além das relações estritas que,
em geral, se estabelecem entre ela e outras obras (por exemplo, entre ela
e a Segunda Parte do Discurso e entre ela e a parte final das Regras),
Descartes, em pelo menos uma ocasião, qualificou-a como o melhor
resultado do método e como prova de sua validade. É o que ele afirma
em uma carta a Mersenne, em fins de dezembro de 1637: “eu somente
me propus pela Dióptrica e pelos Meteoros a persuadir que meu método
é melhor que o ordinário, mas eu pretendo tê-lo demonstrado por minha
Geometria” (I, 478, 8-11). Não faltarão indícios em favor dessa
perspectiva de que a Geometria é um legítimo “ensaio metodológico” e
que o problema de Pappus é uma ilustração do método de análise de
Descartes.
2.1 O método enquanto arte de resolver problemas
Antes do exame propriamente dito do problema de Pappus, é
necessário considerar as reflexões feitas sobre o método utilizado por
Descartes, por ocasião da resolução dos problemas geométricos em
geral. O Livro I da Geometria apresenta, nas seções intituladas “Como é
preciso chegar às equações que servem à resolução dos problemas” e
“Como eles [os problemas planos, no caso] são resolvidos”, as duas
etapas desse método[111]. Essas são as seções da obra certamente as
mais importantes sob o ponto de vista da exposição e da descrição do
procedimento empregado por Descartes. A primeira seção apresenta a
primeira etapa do método, cujo principal objetivo consiste em
equacionar o problema, por meio fundamentalmente de recursos
algébricos, de tal forma que a “dificuldade” que ele contém possa ser
reconduzida e reduzida à mais simples estrutura ou expressão algébrica,
isto é, a uma equação da forma mais simples possível. A segunda seção
apresenta sua segunda etapa (na realidade, um de suas partes, a
“construção”, já que nos casos apresentados a “demonstração” não é
dada), cujo objetivo central é resolver a equação, isto é, construir a raiz
(ou raízes) da equação e prová-la(s). Este método, em seu conjunto, será
chamado de método de análise ou método de análise-e-síntese (análise e
síntese, sendo as duas etapas respectivas), apesar de não ser, na obra,
nomeado como tal[112]. As razões para essa nomeação serão discutidas
mais adiante[113].
A descrição que Descartes fornece da primeira etapa, a análise
(A), pode ser dividida em vários passos. Em um primeiro momento
(A1), o geômetra, se deseja resolver um problema, deve supô-lo como já
resolvido, antes de começar efetivamente a resolvê-lo[114]. Este
procedimento, típico da análise praticada pelos geômetras gregos e que
possibilita considerar o procurado ou desconhecido como se fosse dado
ou conhecido, tem conseqüências metodológicas importantes, como já se
viu. Por meio dele, é possível, em primeiro lugar, considerar a
configuração do problema como completa ou tão completa quanto
permite a consideração de todos os elementos que ele fornece[115]. Além
disso, ao contrário do procedimento (mais “natural”)[116], que parte dos
verdadeiros dados do problema (juntamente com tudo o que já é
conhecido) e deles pretende deduzir o desconhecido, a análise, por meio
desse recurso, desfaz a diferença entre estes dois tipos de entidades por
não se “preocupar”, durante o cálculo, com o estatuto cognitivo distinto
de cada um[117]. Isto não significa desfazer toda diferença entre eles,
mas colocá-los em nível de igualdade operatória, por ocasião do exame
das relações que os objetos mantêm entre si dentro da configuração dada.
Deste modo, a resolução do problema deixa de ter uma direção e um
sentido determinados (muito menos ainda do que poder-se-ia aventar na
geometria antiga), pois não se trata de ir do desconhecido ao conhecido
nem vice-versa, mas de examinar a configuração dada e de estabelecer
relações entre os objetos componentes, até preencher o “vácuo” existente
entre os dois tipos de entidades[118]. O objetivo final é, evidentemente,
uma vez o problema resolvido, a determinação do procurado pelos
dados, como em qualquer outro método. O segundo passo da análise
(A2) consiste em atribuir nomes às linhas[119] necessárias para resolver
o problema, tanto conhecidas quanto desconhecidas, conforme a
explicação fornecida na seção anterior intitulada “Como podemos
utilizar símbolos (chiffres) na geometria” (371, 4-372, 9). Descartes
introduz, nesta seção, sua simbolização (utilizada ainda hoje com
pequenas modificações): as primeiras letras do alfabeto para as
grandezas conhecidas (a, b, c, etc.) e as últimas para as grandezas
desconhecidas (x, y, z, etc.), bem como símbolos para as operações
aritméticas (a igualdade, a soma, a subtração, a multiplicação, a divisão e
a extração de raízes) e para os expoentes das grandezas (por exemplo, xx
ou x², zzz para z³, etc.).
Estes dois procedimentos (A1 e A2) possibilitam, ao mesmo
tempo, manter distintas, clara e visualmente (em qualquer momento do
cálculo), as grandezas conhecidas e as desconhecidas, mas também
desconsiderar a distinção cognitiva entre ambas. A conclusão é que a
distinção entre tais grandezas é considerada e desconsiderada ao mesmo
tempo, sob diferentes aspectos: considerada, pois a simbolismo permite
mantê-las distintas e porque o problema consiste exatamente em
determinar as grandezas desconhecidas[120] (e, assim, a equação deve
expressar as desconhecidas em função das conhecidas); desconsiderada,
pois todas as grandezas indistintamente são “dadas”, ainda que algumas
não são determinadas. Além disso, a introdução das operações algébricas
(que se segue à designação simbólica) facilita e dá novo dinamismo ao
procedimento da análise[121]. Ela possibilita não somente a
simplificação e a maior generalidade ao cálculo geométrico (bem como a
perfeita distinção de seus objetos e operações, como já foi dito), mas
sobretudo dá mobilidade e agilidade ao cálculo. Ao mesmo tempo em
que todas as grandezas (conhecidas e desconhecidas) são postas lado a
lado, se submetem às mesmas operações e podem ser determinadas
(numa equação) umas a partir de outras, elas permanecem total e
claramente distintas a partir da simbolização cartesiana, mas também
facilmente manipuláveis, sem a necessidade da consulta constante à
figura e de tê-la sob os olhos a todo o tempo. Neste sentido, o que
consistia no início em uma espécie de economia e de simplificação
gráfica, bem como em um mecanismo de auxílio à fraqueza da memória,
torna-se um instrumento fecundo e potente de manipulação dos objetos
matemáticos, mas também de generalização e de simplificação dos
problemas geométricos[122]. Como decorrência disso, também a figura
perderá, em parte, sua importância enquanto suporte do cálculo, pois a
configuração algébrica é, principalmente à medida que os problemas
crescem em complexidade, mais rica e mais geral que a configuração
geométrica, bem como auto-suficiente. Dessa forma, diz Descartes,
“freqüentemente não temos necessidade de traçar, assim, tais linhas
sobre o papel, mas é suficiente designá-las por algumas letras, cada uma
por uma só” (371, 4-7)[123].
O terceiro momento da análise (A3) consiste em, não
considerando nenhuma diferença entre as linhas conhecidas e as
desconhecidas (procedimento decorrente da etapa precedente, por
considerar o problema como resolvido), examinar o problema (a
“dificuldade”) segundo a ordem que mostra, da maneira mais “natural”,
a dependência mútua entre elas, até chegar a expressar uma mesma
grandeza em forma de equação[124]. As equações, expressão desta
dependência entre os objetos conhecidos e desconhecidos, devem
corresponder em número às linhas desconhecidas; ou então, se o número
de linhas é maior e nada é omitido no exame da questão, o problema não
é inteiramente determinado: neste caso, deve-se tomar uma linha
conhecida qualquer no lugar de cada linha desconhecida à qual não
corresponde nenhuma equação[125].
Esta terceira etapa consiste fundamentalmente na análise do
problema e na expressão das relações de dependência entre os diversos
objetos do problema. O objetivo é expressar cada objeto desconhecido
em função, se possível, somente dos conhecidos ou do menor número de
outros desconhecidos; e, assim, a cada um deles corresponderá uma
equação. Descartes fala que se deve percorrer a dificuldade
ordenadamente, de modo que se mostre o mais naturalmente possível a
dependência (a equação) de cada objeto desconhecido. A existência de
uma “ordem mais natural” parece ter em conta as várias possibilidades
de formular as equações e de escolher as “linhas principais”[126]. Na
verdade, há uma certa liberdade (ou arbitrariedade) na escolha das
“coordenadas” e, dependendo desta escolha, o cálculo pode ser mais
longo ou mais curto, mais “truncado” ou não. Isto não significa que se
altere a natureza da dificuldade, mas somente mostra que há caminhos
diferentes para sua resolução[127]. Além disso, a ordem faz com que o
geômetra “não omita nada do que, na questão, é desejado” (372, 25-26)
e, ao fazer isso, ela torna evidente as relações entre os vários objetos da
configuração. A ordem garante, assim, o exame completo da
configuração, a percepção da dependência entre seus componentes em
função do problema colocado e a escolha mais conveniente de exprimi-
la[128].
O quarto e último passo da análise (A4) consiste em reconduzir
ou reduzir todas as equações, oriundas em função de cada uma das linhas
desconhecidas, a uma única, e que esta equação tenha a forma a mais
simples possível[129]. A etapa anterior dá como resultado um certo
número de equações, correspondente ao número de linhas
desconhecidas. Se este número for maior que um, deve-se examinar por
ordem cada uma destas equações, seja isoladamente seja em seu
conjunto, até que seja possível, por um processo de comparação,
substituição e simplificação, reduzi-las a uma única[130], que pode ser
mais ou menos complexa (primeiro grau, segundo grau, etc.), mas que
deve ser a mais simples possível dentro da configuração dada e enquanto
representante da dificuldade que se pretende resolver. Tal é a ordem que
se deva seguir a fim de explicar cada uma das linhas desconhecidas.
Tanto esta etapa quanto a anterior consistem, pois, na manipulação dos
objetos conhecidos e desconhecidos com o objetivo de estabelecer
relações (dependências) entre elas, cuja expressão são as equações, as
quais, por sua vez, devem ser manipuladas e simplificadas até que se
obtenha os “mais simples termos aos quais a questão possa ser reduzida”
(374, 17-19).
 
 
 
Estrutura do método de análise
 
1) Exposição do problema:
– Enunciação do problema.
– Apresentação do que é dado e do que se procura determinar.
2) Análise:
2.1) Suposição de que o problema esteja resolvido.
2.2) Atribuição de nomes aos objetos (linhas): x, y, a, b…
2.3) Exame das relações entre os elementos do problema, com o
objetivo de
determinar uma equação para cada desconhecido.
2.4) Redução de todas as equações a uma única e que seja a mais
simples
possível.
3) Síntese:
3.1) Construção:
– Exame da equação resultante da análise.
– Construção da raiz ou resolução da equação.
3.2) Demonstração:
– Prova de que a construção satisfaz as condições do problema.
4) Resolução completa do problema:
– Todos os seus elementos estão efetivamente dados e o problema
resolvido.
– A complexidade é “completamente” compreendida.
 

 
Uma vez reduzida a dificuldade do problema à sua expressão
(equação) mais simples, a análise tem cumprido sua tarefa e, assim, dá
lugar à síntese, etapa complementar. A síntese se compõe normalmente
de duas etapas, a construção geométrica (S1) e a demonstração ou prova
(S2). Entretanto, na seção “Como eles são resolvidos” (374, 28-376, 28),
Descartes fornece somente a construção, certamente por tratar-se de
simples exemplos pertencentes à geometria ordinária, largamente
desenvolvida desde os gregos e, portanto, tida como não-problemática
(são aqueles problemas chamados de problemas planos, por poderem ser
resolvidos através de linhas retas e círculos, isto é, por meio de régua e
compasso, traçados sobre um plano). Neste caso, após as equações terem
sido reduzidas a uma única, restará no máximo uma equação de segundo
grau com uma incógnita[131].
 
 

Análise[132]:
A1) …
A2) …
A3) …
A4) z²=az+b².
 
Síntese:
S1) Construção:
a) Construamos um triângulo-retângulo NLM e um
círculo PLO, com centro em N.
b) Façamos ML= b, LN(=NP=ON)=½a (isto é,
OP=a) e OM=z, a linha desconhecida.
c) Podemos afirmar que z=½a+Ö(¼a²+b²).
S2) Demonstração: (Descartes não a fornece, mas
ela pode ser facilmente elaborada).
a) Na figura, temos (ML)²=OM.MP [cf. Elem. III, 36].
Então, b²=z(z-a), ou seja, z²=az+b².
b) Por outro lado, temos OM=ON+NM.
Isto é, z=½a+Ö(¼a²+b²), onde NM=Ö(¼a²+b²), pelo
teorema de Pitágoras [cf. Elem. I, 47].
c) Portanto, sendo a e b conhecidas, a figura acima
determina a linha desconhecida z.
 
 
 
Assim, nesta seção, Descartes mostra como solucionar as
equações de segundo grau com uma incógnita (problemas planos), mas
um procedimento semelhante será fornecido para problemas mais
complexos. Tendo obtido uma equação, Descartes mostra como construir
“facilmente” sua raiz (ou linha desconhecida). Como, por exemplo, no
caso da equação z²=az+b², ela pode ser resolvida pela construção de um
triângulo-retângulo e de um círculo, cujo raio é um dos lados do
triângulo (veja figura). A raiz ou a linha procurada z (=OM) é a soma da
hipotenusa do triângulo-retângulo com o raio do círculo, isto é,
z=½a+Ö(¼a²+b²), onde ½a é um dos lados (LN) do triângulo (igual ao
raio ON do círculo) e b é o outro lado do triângulo (ML). Supondo que a
análise tenha fornecido, como resultado, a equação z²=az+b², como
mostra o exemplo examinado por Descartes, o método teria as etapas
segundo o esquema aqui apresentado.
A síntese comporta, pois, duas etapas, a exemplo do que ocorre
na geometria antiga. A primeira corresponde à construção ou
“interpretação” geométrica da equação, de maneira que a raiz dessa
última fique determinada geometricamente[133]. Diante de várias
soluções geométricas de uma mesma equação, ainda que todas podem
ser válidas sob o ponto de vista demonstrativo, metodologicamente nem
todas são aceitáveis: é “válida”, sob a perspectiva do método, somente a
solução mais simples, aquela que utilizará os meios (objetos
geométricos) mais simples. É esta a primeira contribuição do Livro III:
ele afirma que não se deve utilizar, por ocasião da construção de um
problema, a primeira curva que se encontra, mas é preciso escolher a
mais simples dentre todas as possíveis para sua resolução, sendo simples
não somente aquelas que tornam a construção ou a demonstração mais
fáceis, mas principalmente aquelas que pertencem ao gênero mais
simples[134].
A demonstração é, como o termo já diz, a prova de que a
construção feita resolve a equação dada pela análise. De um modo geral,
Descartes não fornece a demonstração, pois ela se torna dispensável
depois da análise e da construção. Na verdade, ele nada afirma sobre tal
assunto, mas certamente a viu como uma “repetição” de algo já
efetivamente realizado anteriormente ou algo tedioso de se fazer. Como
se pode perceber em vários exemplos dados na Geometria, mesmo a
construção é por vezes dispensada e, em outras, a análise e a construção
são dadas conjuntamente[135]. É este o método apresentado por
Descartes e que será ilustrado a seguir[136].
2.2 Exame do problema de Pappus
O problema de Pappus é o problema tratado em maior extensão na
Geometria. Ele tem uma importância capital na obra, a ponto de poder se
dizer que a partir dele se determina, se não a obra como um todo, pelo
menos boa parte de seus traços principais. Ele é fundamental, em
primeiro lugar, porque por meio dele, direta ou indiretamente, surgiu a
problemática da classificação da curvas, o problema da relação entre o
grau da equação e a complexidade das curvas, enfim, a classificação das
curvas entre geométricas e mecânicas, entre outros itens. Em segundo
lugar, porque ele é um exemplo metodológico por excelência (poder-se-
ia mesmo dizer, o exemplo metodológico da Geometria), além de
mostrar as razões do entusiasmo cartesiano pelo seu modo de fazer
geometria[137].
Descartes formula este problema nos seguintes termos (379,
14-380, 24). Sendo dadas em posição três, quatro ou um número maior
de linhas retas, pede-se, em um primeiro momento, para determinar um
ponto a partir do qual pode-se tirar outras tantas retas, as quais,
formando cada uma um dado ângulo com cada uma das primeiras,
satisfazem a seguinte condição: se são três as linhas dadas, que o
retângulo formado por duas das linhas desconhecidas tenha uma
proporção dada para com o quadrado da terceira; se são quatro as linhas
dadas, que o retângulo formado por duas das linhas desconhecidas tenha
uma proporção dada para com o retângulo das duas restantes; no caso de
cinco linhas dadas, que o paralelepípedo formado por três das linhas
desconhecidas tenha uma proporção dada para com o paralelepípedo
formado pelas duas restantes e uma outra linha dada; sendo seis linhas,
que o paralelepípedo formado por três das linhas desconhecidas tenha
uma proporção dada para com o paralelepípedo formado pelas três
restantes; se são sete, que o produto de quatro das linhas desconhecidas
tenha uma proporção dada para com o produto formado pelas três
restantes e uma outra linha dada; e, deste modo, esta questão pode ser
estendida a qualquer outro número de linhas ad infinitum. Em um
segundo momento, dado que há uma infinidade de pontos que satisfazem
a condição exigida, pede-se para determinar, não mais somente um
ponto, mas a linha (isto é, o lugar geométrico) na qual se encontram
todos os pontos que a satisfazem.
O problema é dividido por Descartes, como se pôde ver acima,
em duas partes: na primeira, trata-se de encontrar um ponto (ou alguns,
se assim se desejar) que satisfaz(em) o problema; na segunda, trata-se de
encontrar o lugar geométrico formado pelo conjunto de todos os pontos
que o satisfazem. Descartes trata longamente do caso de quatro linhas
retas dadas, como ver-se-á abaixo. Suas duas partes são tratadas
separadamente, a primeira no Livro I (382, 8-386, 10) e a segunda no
Livro II (397, 20-406, 10)). Em sua primeira parte, ele mostrará que os
pontos que satisfazem a condição exigida podem ser encontrados por
meio da régua e do compasso (isto é, utilizando somente retas e
círculos). Entretanto, quando ele será tratado em toda a sua extensão e
generalidade, o lugar geométrico, solução do problema, poderá ser
construído somente por meio de seções cônicas (ou círculos e retas, no
caso de alguns termos das equações serem nulos ou em função de alguns
de seus valores). Por meio deste exemplo, afirma o autor, poder-se-á
também avaliar seu método e compará-lo ao dos antigos geômetras[138].
Seguem abaixo os principais passos da Parte I do problema, com
quatro retas dadas.
1) Enunciação do problema (382, 8-17): Sejam AB, AD, EF, GH
quatro linhas retas dadas em posição (mas não em comprimento),
encontrar um ponto C, tendo extraído outras quatro retas, como CB, CD,
CF, CH, as quais formam ângulos dados com as quatro retas dadas, por
meio do qual o produto de duas destas retas desconhecidas tenha uma
proporção dada (a igualdade, por exemplo) para com as outras duas
restantes (ou seja, CB.CF=CD.CH).
2) Análise (A):
A1) (382, 18-19) Supor o problema resolvido e, com isso, supor
como dados todos os elementos necessários à sua resolução[139].
A2/A3) (382, 19-385, 9) A fim de impor uma ordem à
confusão[140] de todas as linhas do problema, considerar duas como as
principais, AB (dada em posição) e CB (desconhecida), nomeadas
respectivamente x e y, e determinar todas as outras a partir destas. Uma
vez prolongadas todas as linhas dadas até encontrarem x e y (também
prolongadas), o exame das considerações sobre cada triângulo formado,
cujos ângulos são dados, dá origem às quatro equações correspondentes
para cada linha desconhecida. Assim, após alguns cálculos, são obtidas
as equações (ou outras com sinais distintos):
CB = y,
CD = (czy+bcx)/z²,
CF = (ezy+dek+dex)/z²,
CH = (gzy+fgl-fgx)/z².
A4) (385, 10-386, 10) Manipulação destas quatro equações até
reduzi-las a uma única: em primeiro lugar, faz-se a multiplicação de duas
equações pelas outras duas, conforme a condição do problema exige. A
equação resultante de CB.CF=CD.CH será (cf. 398, 4-10):
y² = (-dekz²y + cfglzy – dez²xy – cfgzxy + bcgzxy +
bcfglx – bcfgx²) / ez³ – cgz².
Por sua vez, fazendo y=1 (ou outro valor, pois, para determinar
um ponto C qualquer, pode-se atribuir um valor qualquer a uma das
incógnitas), a equação final será:
x² = [(bcfgl + bcgz – cfgz – dez²)x + cfglz +
cgz² – dekz² – ez³] / bcfg.
Em outros termos, sendo x a única linha desconhecida, diz
Descartes, teremos uma equação da seguinte forma: x²=+/-ax+/-b²[141].
Tendo reduzido a equação à sua forma mais simples possível, a análise
cumpriu sua tarefa[142].

3) Síntese (S): Descartes não a fornece (nem mesmo a


construção), pois, como a equação final é de segundo grau com uma
incógnita, sua solução é da forma já dada anteriormente. E, assim, pode-
se construir (determinar) o ponto C (ou vários pontos C), a partir de
diversas grandezas atribuídas à linha y na equação dada acima,
utilizando somente retas e círculos (régua e compasso).
 
 
Problema de Pappus (parte I)
 
1) Enunciação do problema: Dadas as retas AB, AD, EF, GH, em
posição, encontrar um ponto C, a partir de outras quatro retas, como
CB, CD, CF, CH, que formam ângulos dados com as primeiras, de tal
forma que CB.CF=CD.CH.
2) Análise:
2.1) Supor o problema resolvido.
2.2) Nomear as linhas e considerar duas como as principais (AB= x;
CB= y).
2.3) Determinar as equações de cada uma das retas desconhecidas:
CB=y, CD=(czy+bcx)/z², CF=(ezy+dek+dex)/z², CH=(gzy+fgl-fgx)z².
2.4) Redução de todas as equações a uma única:
y² = (-dekz²y + cfglzy – dez²xy – cfgzxy + bcgzxy + bcfglx – bcfgx²) / ez³ – cgz².
Fazendo y=1, temos: x² = [(bcfgl + bcgz – cfgz – dez²)x + cfglz
+ cgz² – dekz² –
ez³] / bcfg, que é uma equação da forma x²=+/-ax+/-b². Com efeito, bcfgx² =
(bcfgl + bcgz – cfgz – dez²)x + (cfglz + cgz² – dekz² – ez³).
3) Síntese: Descartes não a fornece, pois a equação resultante é do
tipo z²=az+b².
 
 
Como se pôde perceber, a análise apresenta exatamente os
passos descritos anteriormente, mesmo que alguns deles possam ser
postos conjuntamente (na verdade, a separação dos passos é um tanto
aleatória). Assim, Descartes começa por supor o problema resolvido,
atribui nome a todas as linhas necessárias, monta as equações para cada
linha desconhecida e reduz todas as equações a uma única. A montagem
das equações serve-se da escolha de duas linhas como as principais e
define as outras equações a partir delas.
A Parte II do problema de Pappus se diferencia da anterior a partir
do último passo da análise. Nesse caso (397, 28-399, 23), sendo seu
objetivo determinar o lugar geométrico que satisfaz a condição do
problema (e não mais somente um ou alguns pontos), não se pode
atribuir aleatoriamente valores para y, para depois determinar x. Assim, é
necessário determinar tanto x quanto y; em outros termos, permanece a
equação anterior à eliminação de y (isto é, uma equação de segundo grau
com duas incógnitas):
y² = (-dekz²y + cfglzy – dez²xy – cfgzxy + bcgzxy +
bcfglx – bcfgx²) / ez³ – cgz²,
a qual pode ser escrita, depois de abreviação e simplificação, da
seguinte forma:
y = m – nx/z + Ö(m²+ox-px²/m),
que deve representar o segmento de reta BC (pois BC=y). O
problema, pois, foi reduzido a esta equação, cuja resolução consiste em
procurar determinar a linha BC, deixando x indeterminado. Esta é a
equação mais simples que se pode encontrar para solucionar o problema
de Pappus dado em quatro linhas[143]. E, com isso, a análise cumpre seu
objetivo e chega ao seu fim.
A síntese (S), desta vez, é fornecida, não completamente e com
seus passos apresentados de forma clara, mas com detalhes suficientes
para dela serem extraídas as características essenciais dessa segunda
parte do método.
A construção (S1) é a determinação geométrica da equação dada
acima. Nesta perspectiva, ela será desenvolvida e executada a partir e em
função do exame desta equação (400, 1-404, 5). Em outros termos,
sendo y igual a m-nx/z+Ö(m²+ox-px²/m), a linha BC (=y) pode ser
construída em função de suas três partes constituintes, assim
relacionadas: y é igual à linha m diminuída da linha nx/z e somada à
linha Ö(m²+ox-px²/m). Assim, o valor de y é determinado por várias
operações envolvendo estes três componentes da equação. A construção
de y (=BC) vai consistir na determinação de cada uma destas partes,
sucessivamente, de tal forma que BC seja igual a BK-KL+LC.
Destas três linhas, as duas primeiras são fáceis a determinar (400,
1-14). Sendo m conhecida, são extraídas BK=m (sobre BC) e KI, igual e
paralela à BA. Por sua vez, nx/z (por ser, neste caso, negativa)[144] é uma
parte de m e depende de x. Descartes constrói nx/z (=KL) sobre m,
tomando um ponto L de modo que IK/KL seja igual à z/n. Se KL/IL,
proporção conhecida, for igual à n/a, segue-se que IL=ax/z.
Feito isso, resta ainda a determinar o segmento de reta
LC=Ö(m²+ox-px²/m), por meio de um procedimento semelhante, ainda
que muito mais longo e muito mais complexo. Podem ocorrer as
seguintes circunstâncias, arroladas abaixo (400, 15-401, 19).
1) Se LC=0, o ponto C se encontra na reta IL, pois y=m-nx/z.
2) No caso da raiz poder ser extraída, isto é, se m² e px²/m forem
positivos e, em adição, o²=4pm, y será igual a m-nx/z+(m+xÖ(p/m) e
o ponto C se encontrará em outra linha reta. O mesmo ocorre se m² e
ox ou ox e px²/m forem nulos.
3) Se px²/m=0 e, portanto, LC=Ö(m²+ox), ter-se-á (y-m)²+2nx(y-m)/
z+n²x²/z²-ox-m²=0, e o ponto C representa uma parábola.
4) Se houver +px²/m, a equação será (y-m)²+2nx(y-m)/z+x²(n²/z²-p/m)-
ox-m²=0, e C representa uma hipérbole. E, ainda, se a²m=pz², a
hipérbole é equilátera.
5) No caso de -px²/m, C representa uma elipse. Se, além disso, a²m=pz² e
o ângulo ILC for reto, C representa um círculo[145].
No caso (item 5), por exemplo, do lugar geométrico ser uma
elipse ou um círculo (402, 6-403, 20), deve-se encontrar primeiramente o
centro M, que está sempre sobre a reta IL, fazendo IM=aom/2pz. No
caso específico de LC²=m²+ox-px²/m (isto é, mantidos tais sinais), M e L
estarão do mesmo lado em relação a I, de modo que, se o=0, M coincide
com I. Depois disso, o latus rectum (“côté droit”) deverá ser
Ö(o²z²+4mpz²)/a (ou seja, zÖ(o²+4mp)/a, e o eixo transversal ou maior
(“côté traversant”) estará para o latus rectum como a²m está para pz²,
sendo igual a Ö(a²o²m²/p²z²+4a²m³)/pz² (ou seja, amÖ(o²+4pm)/pz).
Esse eixo estará sempre na linha IM, e LC será uma ordenada. Tomando
NM como a metade desse eixo maior e N do mesmo lado que L em
relação a M, o ponto N será o vértice e a curva pode ser construída “pelo
segundo e terceiro problemas do Livro I de Apolônio” (403, 19-20).
Assim, seguindo a exposição de SCOTT (1952, p. 109), tem-se:
NL = IL-IM+MN = ax/z-aom/2pz+amÖ(o²+4pm)/2pz,
LN’ = amÖ(o²+4pm)/2pz-ax/z+aom/2pz[146],
NL.LN’ = [amÖ(o²+4pm)/2pz+ax/z-aom/2pz] . [amÖ(o²+4pm)/2pz-ax/z+aom/
2pz] = a²m(m²+ox-px²m)/pz².
Isso posto, para toda elipse, é sempre válida a seguinte
propriedade:
latus rectum/eixo maior = LC²/NL.LN`
= (m²+ox-px²/m)/a²m(m²+ox-px²/m)/pz² = pz²/a²m.

Assim, se o eixo maior for amÖ(o²+4pm)/pz, o latus rectum será


zÖ(o²+4pm)/a. Ou seja, dados os valores de IM, do latus rectum e do
eixo transversal estipulados acima, juntamente com o de IL, sendo NM o
semi-eixo maior e NMN’ o eixo maior, LC será também dado, isto é,
estará construído.
A demonstração (S2) é dada por Descartes, somente para esse
caso da elipse (ou círculo), baseando-se nas Cônicas de APOLÔNIO
(1952)[147]. SCOTT (1952, p. 110-11) expõe a prova do modo dado
abaixo[148].
NCR é uma elipse[149], cujo eixo maior, NR, é igual a 2a. Perpendicular ao eixo,
NP é igual ao latus rectum q, e L é o ponto cuja abscissa é x, isto é, NL=x. Assim:
(i) retâng. HFPG/NL² = NP/NR = latus rectum/eixo maior = q/
2a, uma vez que RN/NP=HF/FP, isto é, 2a/q=a/FP, onde FP=qz/2a.
Assim, o retângulo HFPG = FP.FH = qx²/2a. Sendo NL²=x², segue-se a
igualdade dada acima.
(ii) CL²=retâng. LNPG – retâng. HFPG, pois, como o retângulo
LNPG=qx e o retângulo HFPG=qx²/2a, a equação acima (isto é, CL²) é
igual a (2aqx-qx²)/2a. Agora, para uma elipse (ou para um círculo), 2a/
q=x(2a-x)/CL², onde CL² = (2aqx-qx²)/2ª = retâng. LNPG – retâng.
HFPG.
No caso examinado, Descartes procede como segue. Sendo
NL=IL-IM+MN, isto é, igual a ax/z-aom/2pz+amÖ(o²+4pm)/2pz,
multiplicado pelo latus rectum zÖ(o²+4pm)/a, o retângulo LNPG será
igual a xÖ(o²+4pm)-omÖ(o²+4pm)2p+ mo²/2p+2m². Dele deve ser
subtraído o retângulo HFPG, que, segundo a relação (i), está para NL²
como o latus rectum está para o eixo maior (isto é, pz²/a²m). Sendo
NL² = a²x²/z² – a²omx/pz² + a²mxÖ(o²+4pm)pz² + a²o²m²/2p²z²
+ a²m³/pz² – a²om²Ö(o²+4pm)/2p²z²,
o retângulo HFPG resultará da multiplicação de NL² por pz²/a²m,
isto é, será igual a
px²/m-ox + xÖ(o²+4mp) + o²m/2p – omÖ(o²+4pm)/2p + m².
Dada a relação (ii), isto é, subtraindo o retângulo HFPG do
retângulo LNPG, obtém-se enfim LC² = m²+ox-px²/m, sendo LC uma
ordenada de uma elipse (ou de um círculo), aplicada sobre NL, segmento
do diâmetro NLR.
Desejando explicar tudo isso por meio de números, façamos, diz
Descartes, EA=3, AG=5, AB=BR, BS=1/2BE, GB=BT, CD=3/2CR,
CF=2CS, CH=2/3CT, o ângulo ABR igual a 60º e, enfim,
CB.CF=CD.CH. Agora, se AB=x e CB=y, y²=2y-xy+5x-x² ou
y=1-1/2x+Ö(1+4x-3/4x²), e como BK=1, KL=1/2KI, bem como o
ângulo IKL é igual ao ângulo ABR e o ângulo KIL é igual a 30, segue-se
que o ângulo ILK será reto. Portanto, como IK=AB=x, KL=1/2x e
IL=xÖ(3/4) e sendo z=1, temos a=Ö(3/4), m=1, o=4, p=3/4, onde
IM=Ö(16/3), MN=Ö(19/3). Sendo a²m=3/4=pz² e o ângulo ILC reto,
segue-se que a curva determinada, NC, é um círculo.
 
 
Problema de Pappus (parte II)
 
1) Exposição do problema[150]:
2) Análise:
2.1) …
2.2) …
2.3) …
2.4) Redução de todas as equações a uma única:
y² = (-dekz²y + cfglzy – dez²xy – cfgzxy + bcgzxy + bcfglx – bcfgx²) / ezzz-cgz².
Por simplificação e abreviação, ela se transforma em:
y = m – nx/z + Ö(m² + ox – px²/m), sendo CB=y.
3) Síntese:
3.1) Construção:
i) Descartes divide a equação em três partes:
y=m menos nx/z mais Ö(m²+ox-px²/m). Ou seja, CB = BK – KL + LC.
ii) BK é conhecido e KL é construído em função de x,
pois n/z varia em função de x.
iii) A construção de LC=Ö(m²+ox-px²/m) é mais complexa:
– Se m²+ox-px²/m=0 (LC=0), C se encontra na reta IL e y=m-nx/z.
– Se houver +px²/m e o²=4pm, C está em outra linha reta.
O mesmo ocorre se m² e ox ou ox e px²/m forem nulos.
– Se px²/m=0 e, portanto, LC=Ö(m²+ox), C representa uma parábola.
– Se tivermos +px²/m, C representa uma hipérbole. Se a²m=pz²,
a hipérbole é equilátera.
– Se tivermos -px²/m, C representa uma elipse.
E se a²m=pz² e o ângulo ILC for reto, C representa um círculo.
3.2) Demonstração: Segue a prova de algumas situações (caso 5).
 

A conclusão de Descartes, no caso do problema proposto (para


quatro linhas dadas), é a de que o lugar geométrico que satisfaz as
condições do problema pode ser tanto uma linha reta ou um círculo
(lugar plano) quanto uma das três seções cônicas (lugar sólido). Por sua
vez, fica determinado o primeiro “gênero” das linhas curvas,
correspondente a polinômios de grau dois e composto por essas seções e
o círculo[151].
2.3 A denominação do método da Geometria
Descartes não atribui nome algum ao método descrito e ilustrado
na Geometria. Contudo, principalmente em sua correspondência, há
elementos ou indícios suficientes para que se possa chamá-lo de método
de análise ou método de análise-e-síntese, a exemplo do método dos
geômetras gregos, com o qual apresenta “semelhanças estruturais”
evidentes.
Antes do exame de sua correspondência, entretanto, é possível
apontar alguns indícios existentes na própria Geometria, que auxiliam na
justificativa dessa nomeação. Por ocasião da apresentação de seu
método, como foi visto acima, Descartes apresenta suas duas etapas, a
que tem por objetivo final determinar a equação representante do
problema e a que pretende resolvê-lo efetivamente, conforme o título das
seções deixam claro (cf. as seções “Como é preciso chegar às equações
que servem à resolução dos problemas” e “Como eles (os problemas) são
resolvidos” (372-76)). Apesar de não chamar a primeira etapa de análise,
nem a segunda de síntese, o importante aqui é ter presente,
primeiramente, a divisão do método em duas etapas bem distintas e
complementares, a exemplo do método dos geômetras antigos. Além
disso, é preciso assinalar que a segunda seção deixa claro que seu
objetivo é mostrar como construir (resolver) problemas, no caso
específico, pertencentes à “geometria ordinária”, identificando-se,
portanto, se não com toda a etapa sintética (uma vez que a demonstração
não é fornecida), pelo menos com a sua primeira parte, a
construção[152]. Mais adiante, na Parte II do problema de Pappus,
Descartes se refere à última parte de sua resolução como
“demonstração”, após ter determinado a equação e a construído
geometricamente. Nessa seção, intitulada “Demonstração de tudo isso
que acaba de ser explicado”[153], Descartes prova que a construção
anteriormente executada (no caso, para uma elipse ou para um círculo)
resolve a equação[154].
O exame da correspondência parece não deixar dúvidas sobre a
atribuição do nome ao método cartesiano. Ele pode ser dividido em dois
momentos. Em primeiro lugar, ver-se-á claramente que Descartes
estabelece a distinção entre, de um lado, a análise e, de outro, a
construção e a demonstração. Em uma carta a Mersenne, de 31 de março
de 1638, diz o filósofo que, no tocante à questão de Pappus, ele expôs a
construção e a demonstração inteiras, mas não toda a análise, ao mesmo
tempo em que acusa seus opositores de não terem compreendido seu
método[155]. A mesma idéia é expressa na carta de 20 de fevereiro de
1639[156]. A distinção entre análise e construção é também clara em
outra carta, de 31 de março de 1638, escrita a de Beaune. Nessa carta, ao
falar das hipérboles que correspondem a alguns casos do problema de
Pappus (cuja paginação confirma a correspondência exata ao que foi
indicado acima como a parte construtiva do método), bem como da
determinação de tangentes e normais, Descartes afirma que, no primeiro
caso, forneceu somente a construção, mas não a análise, como foi o caso
também da maioria das regras apresentadas no Livro III, enquanto que,
para o segundo caso, apresentou somente a análise, conforme denuncia a
presença, na própria Geometria, da frase canônica que dá início à etapa
analítica (isto é, a frase “Je suppose la chose déjà faite” (VI, 413, 29))
[157].
O segundo momento diz respeito à contraposição entre a análise e
a síntese. Descartes diz a Mersenne, em 11 de outubro de 1638, que ele
apresentou a demonstração da quadratura da ciclóide (também chamada
de “roulette”, na época), em correspondências que lhe foram enviadas
anteriormente, tanto de forma analítica quanto sinteticamente[158]. A
demonstração analítica é exposta na carta de 27 de maio de 1638 (II,
135, 9-137, 8), enquanto a sintética se encontra na correspondência de
27 de julho do mesmo ano (II, 257, 6-263, 7)[159].
O problema da roulette consiste em demonstrar o espaço
compreendido por uma linha curva, descrita por um ponto da
circunferência de um círculo, quando este rola sobre um plano[160]. A
exposição analítica de Descartes é como segue. Seja AC uma dada reta
do plano e ADC a linha curva produzida, a partir de A, por um
determinado ponto da circunferência do círculo STVX, que rola sobre a
reta até C, sendo AC igual ao comprimento da circunferência. Tomemos
a reta AC e dividamo-la em inúmeras (duas, quatro, oito…) partes pelos
pontos B, G, H, N, O, P, Q, etc. É evidente, diz Descartes, que a
perpendicular BD é igual ao diâmetro do círculo e que a área do
triângulo retilíneo ADC é o dobro da área do círculo[161].
 
 

 
 
Depois disso, sendo E o ponto de intersecção do círculo com a
curva, estando o círculo em G, e sendo F outro ponto, estando o círculo
em H, os triângulos retilíneos AED e DFC, juntos, são – evidentemente,
repete o autor – iguais ao quadrado STVX inscrito no círculo. O mesmo
vale para I, K, L e M, tomados como pontos de intersecção, quando o
círculo está, respectivamente, em N, O, P e Q, de sorte que os triângulos
retilíneos AIE, EKD, DLF e FMC são, somados, iguais aos quatro
triângulos isósceles SYT, TZV, V1X, X2S, inscritos no círculo. Idêntico
raciocínio se aplica aos oito triângulos subseqüentes, e assim ao infinito.
A conclusão é a de que as duas áreas formadas pelos dois segmentos da
curva com as retas AD e DC são, juntas, iguais à área do círculo; por
conseguinte, a área total compreendida entre a curva ADC e a reta AC é
tripla à do círculo.
Por sua vez, a demonstração sintética, mais longa e mais
complexa, segue abaixo. Seja AKFGC (figuras dadas abaixo) a metade
da linha curva descrita pelo ponto a da roulette anopbz, quando esta se
move ao longo da linha AB, sendo AB igual à metade da circunferência
do círculo e CB igual ao seu diâmetro. Tracemos a reta AC, bem como
OE e DF, as quais dividem AB e CB ao meio. Consideremos, em
seguida, que, estando o ponto o da roulette ajustado ao ponto O da linha
AB, seu centro e se encontra sobre o ponto E, uma vez que, sendo
CD=½CB e DE=BO (=½AB). Da mesma forma, estando aplicado sobre
EF, o raio ea=EF, dado que, sendo AO igual a um quarto da
circunferência da roulette, os ângulos aeo e FEO são, ambos, retos e
AE=EC. Depois, tendo tomado os pontos N e P, um em cada lado e na
mesma distância de O, bem como os pontos n e p correspondentes, de
modo que o arco an=pb e também an=AN=PB, tracemos os diâmetros
ne e pe e suas perpendiculares ay e ax. Assim, o ponto n da roulette
estando sobre N, seu ponto a se encontra em K; e, sendo KM paralela à
AB, KM=NB+ay e MD=ye.
O mesmo vale para o ponto p, estando aplicado sobre P. Nesse
caso, como o ponto a está em G, GI=PB+ax e ID=xe, bem como
GI+KM=AB+az, uma vez que ax+ay=az e NB+PB=AB, sendo AN=PB.
Além disso, LM+HI=AB, pois MB=CI; e, sendo paralela à MB, LV=CI
e, conseqüentemente, HI=AV, já que os triângulos AVL e HIC são iguais
e semelhantes. Assim, LM=VB. Ora, como LM+HI=AB e
KM+GI=AB+az, segue-se que KL+GH=az, estando az na mesma
distância de e que KL e GH de FE. E porque os pontos N e P foram
tomados aleatoriamente a partir de uma mesma distância de O, o que faz
com que KL e GH estão na mesma distância de FE, isso é válido para
todo par de retas traçadas entre a reta AC e a curva AFC, desde que
paralelas à FE e igualmente distantes, uma em cada lado. Isto é, todo par
de retas é igual à reta inscrita na roulette (a exemplo de KL+GH=az),
estando cada uma delas tão distante de FE quanto essa reta do centro
e[162].
 
 
Em seguida, tracemos sobre uma reta o semicírculo adb igual à
metade da roulette e a figura jgχψω, cuja parte jgχθε seja igual e
semelhante à FGCHE e a parte εθχψω igual e semelhante à ELAKF
(construção que pode ser feita, pois AE=EC e os ângulos AEF e DEC
são iguais), de modo que as bases e as alturas das figuras serão iguais,
bem como todo par de segmentos de reta traçada paralela à base (p. ex.,
γφ=μν). Disso se segue que a área da figura jχω é igual à do semicírculo
adb, uma vez que duas figuras possuem áreas iguais, tendo a mesma
base e a mesma altura e cujas retas paralelas e equidistantes à base,
interiores a cada uma delas, sejam também iguais.
Mas, como este é um teorema que talvez nem todos admitem,
diz Descartes, sua prova pode ser dada como segue. Tendo traçado as
retas δα, δβ, χφ e χω, é evidente, repete Descartes, que os triângulos
φχω e αδβ são iguais, dado que têm a mesma base e a mesma altura. O
mesmo vale para os triângulos γχφ e ψχω, tendo traçado as retas μα,
μδ, νδ, νβ, γχ, γφ, ψχ e ψω, os quais, somados, são iguais aos
triângulos μδα e νδβ, pois, sendo φω=αβ, 12 13=10 11; e, como
γψ=μν, as bases dos triângulos γχφ e ψχω são iguais às dos triângulos
μδα e νδβ, isto é, γ12+13ψ=μ10+11ν, sendo que suas alturas também
são as mesmas. Idêntico raciocínio se aplica a outros triângulos inscritos
a partir dos pontos 4, 5, 8, 9, etc. e dos pontos 2, 3, 6, 7, etc., e assim ao
infinito, de forma que os triângulos da primeira figura serão iguais aos da
segunda e, por conseqüência, toda a figura jgχψω será igual ao
semicírculo adb[163].

 
 
Assim, sendo o espaço compreendido entre a reta AC e a curva
AKFGC igual ao semicírculo (figuras anteriores), todo o espaço AFCB é
triplo do semicírculo, pois o triângulo retilíneo ABC é igual ao círculo
inteiro (dado que AB é igual à metade da circunferência e BC igual ao
seu diâmetro)[164]. O mesmo raciocínio vale quando a reta AB é
diferente (como quando o ponto que descreve a curva está fora ou no
interior do círculo), de sorte que o espaço compreendido entre a reta AC
e a curva AFC não deixará de ser igual à metade do círculo cujo
diâmetro é BC, apesar do triângulo ABC alterar sua grandeza. Portanto,
ainda que a grandeza da reta AB seja diferente, a demonstração continua
sendo idêntica à fornecida acima.
Essas são as duas demonstrações dadas por Descartes para o
problema da quadratura da ciclóide, a primeira de forma analítica e a
segunda de modo sintético, conforme as próprias palavras do autor. É
preciso reconhecer, entretanto, que tais exposições não apresentam, à
primeira vista, pelo menos, aquela estrutura caracterizada acima por
ocasião do estudo do método e do exame do problema de Pappus. Mas é
possível remediar essa disparidade, cuja razão principal é a de que, no
caso presente, não se tratando de uma curva geométrica, mas mecânica,
a ciclóide (ou roulette) não pode ser representada por meio de uma
equação (algébrica) correspondente, de sorte que o procedimento se
altera substancialmente em termos de apresentação. Em outras palavras,
não há como determinar, pela análise, a equação que represente o
problema, uma vez que essa equação não existe: a equação
correspondente à curva em questão exige elementos da natureza
trigonométrica (em termos atuais, diz-se que a ciclóide é uma curva
transcendente), enquanto Descartes opera somente com equações que

utilizem operações algébricas (+, –, , , )[165].

Assim, não é possível, na análise, ter como objetivo final determinar a equação do
problema, nem, na síntese, partindo do que é fornecido pela análise, construí-la
geometricamente ou resolvê-la, como se fez mais acima: é preciso, no caso de
uma curva transcendente, utilizar outros recursos, os quais não serão tampouco os
do cálculo infinitesimal, pois, ao contrário de Fermat, Descartes não o aceita
como legítimo.

Em segundo lugar, como a análise é dada separadamente (pois a


síntese é fornecida somente na segunda carta), ela não termina em algo
correspondente à montagem da equação representante da “dificuldade”
do problema (por onde começaria a construção), mas acaba resolvendo-o
integralmente, quando Descartes conclui que “a área dos dois segmentos
da curva, que têm por bases as retas AD e DC, é igual à do círculo; e, por
conseqüência, toda a área compreendida entre a curva ADC e a reta AC é
tripla do círculo” (II, 136, 15-137, 1). Nesses termos, a análise aparece
como completa e independente da síntese, apesar do caráter geral e
resumido em que se apresenta, o que deu motivo para as reclamações de
Roberval[166].
Assim, a análise apresenta somente as linhas centrais do cálculo,
mas essa era a sua função também nos problemas examinados
anteriormente, quando a determinação da equação significava a
determinação e a condensação das relações básicas ou fundamentais do
problema. Em ambos os casos, ela não apresenta os detalhes de cada
passo ou os elementos que constituem “o interior” de cada um
deles[167]. Não é função da análise apresentar completa e
detalhadamente a solução do problema, nem prová-la, como faz a
síntese, ainda que, como são dadas separadamente no presente caso, a
análise é uma demonstração completa[168]. Além disso, Descartes deixa
claro que a exposição analítica diz respeito, antes de tudo, à descoberta;
por isso, afirma que, no primeiro caso, ele encontrou a demonstração,
enquanto, no segundo, ela a explicou, evidenciando o caráter inventivo
da análise e o expositivo-demonstrativo da síntese[169]. Por fim, é
preciso admitir que a exposição sintética apresenta a construção e a
demonstração de forma completa e detalhada, resolvendo
adequadamente o problema proposto, ainda que Descartes pense poder
dispensar a demonstração[170]. E, de forma contrária à análise, à síntese
cabe o detalhe e a prolixidade[171].
Portanto, apesar de algumas disparidades decorrentes do fato de
se tratar de uma curva transcendente (mecânica) e não algébrica
(geométrica), bem como em razão de a análise e de a síntese serem
apresentadas separadamente, a demonstração da quadratura da ciclóide
evidencia o procedimento analítico-sintético cartesiano. Segue-se que,
juntamente com as razões apresentadas anteriormente (primeiro
momento) – fundamentalmente a que apresenta a construção e a
demonstração enquanto partes por excelência da síntese, como sempre
foram vistas dentro da história da matemática, e leva, como decorrência,
à equiparação entre a síntese e estas duas partes, por oposição à análise –
apresenta-se como pertinente a nomeação atribuída ao método
apresentado e ilustrado na Geometria. E, assim, o exame da
correspondência cartesiana sobre a Geometria parece justificar o nome
de método de análise-e-síntese para o procedimento apresentado na
obra[172].
2.4 O método e a exposição da teoria geométrica
O estudo da Geometria enquanto um dos “ensaios” não pode se
restringir exclusivamente ao exame do método enquanto procedimento
de solução de problemas. Na verdade, o próprio método circunscreve-se
dentro de um programa mais geral do que aquele determinado por sua
atuação restrita e “repetitiva” em cada problema, cuja finalidade seria a
solução dos mesmos, pura e simplesmente. Nesse sentido, a metodologia
só pode ser bem compreendida se a ela for reconhecida uma segunda
função. Ainda que seja difícil apontar clara e univocamente quais são os
objetivos da Geometria[173], é certo, ao menos, que a metodologia, além
de ser fecunda enquanto arte de resolver problemas, serve também como
meio de exposição, de desenvolvimento e de comprovação de um novo
quadro teórico, dentro do qual se encontra a tese de que todos os objetos
geométricos se organizam e se determinam uns aos outros a partir de um
ordenamento governado pelo critério da simplicidade, onde a linha reta
ocupa o lugar de objeto mais simples e absoluto[174].
Esta tese fundamental já é exposta, ainda que de uma forma
condensada, na primeira página da Geometria (mais precisamente, é sua
primeira frase)[175]. Esta afirmação tem sido de modo geral
negligenciada por boa parte dos intérpretes ou, pelos menos, não
considerada em toda a sua profundidade. Descartes começa sua obra
caracterizando todos os problemas da geometria e não somente os
problemas planos, tratados no Livro I; isto significa que ele pretende
abarcar, com esta afirmação, toda a geometria e não somente parte dela,
e afirma que qualquer um deles pode ser reduzido a um conjunto mínimo
de termos, isto é, pode ser expresso de uma forma tal que seja a mais
simples possível[176]. Depois disso, ele deixa claro que a construção
(isto é, a solução) do problema, uma vez expresso em sua forma
reduzida, – e é este elemento que mais interessa aqui – depende somente
da determinação de algumas linhas retas. Em outros termos, todos os
problemas, mesmo os mais complexos, não dependem senão de algumas
linhas retas ou do que delas pode resultar.
Se, à primeira vista, parecer ininteligível esta tese sobre o caráter
absoluto e determinante das linhas retas (ainda mais que na Geometria
trata-se antes de tudo de curvas), há outros elementos ao longo da obra
que ajudam a esclarecê-la. O primeiro passo fundamental para
estabelecê-la (passo este que se segue imediatamente à afirmação dada
acima (369, 8-371, 3)) é a “expulsão” do domínio da geometria de todos
os objetos geométricos que não são linhas, decorrente da introdução do
conceito de unidade e da conseqüente “destruição” do conceito de
dimensão geométrica em uso desde os gregos. É por este recurso que a
multiplicação, por exemplo, de uma linha reta por outra não dá mais
origem a uma área, mas a uma outra linha reta; da mesma forma, a
multiplicação de três linhas não dá origem a um volume, mas a uma
outra linha. Assim, as operações aritméticas introduzidas na geometria,
uma vez aplicadas sobre linhas, produzem somente outras linhas e não
outros objetos geométricos. Por meio desse único passo, aparentemente
simples e ingênuo, Descartes decreta a possibilidade de uma geometria
das linhas e de suas relações.
O segundo passo importante nesta direção é a maneira pela qual
Descartes mostra como as curvas podem ser geradas a partir de linhas
retas e de seu movimento. A Geometria expõe no início do Livro II o
famoso mesolabum ou compasso de “esquadros deslizantes” (391,
1-392, 14), por meio do qual pode-se engendrar curvas, das mais simples
às mais complexas, a partir de um único movimento ou de vários
movimentos unideterminados. Tais curvas são as únicas que são aceitas
como legítimas e podem ser chamadas legitimamente de geométricas
(em oposição às mecânicas), exatamente porque determinadas por um
conjunto de movimentos comensuráveis[177]. Este instrumento produtor
de curvas evidencia a tese de que “por detrás” de uma curva existe
sempre uma ou mais retas que determinam este mesma curva. E isto
significa duas coisas: a primeira, que toda curva “mantém relações
estritas” (passíveis de serem determinadas e, portanto, de serem
conhecidas) com as linhas retas; segundo, como conseqüência, as curvas
mantém relações entre si (expressas pela teoria da proporção), o que
acaba por sugerir os diferentes graus de complexidade de cada uma
delas.
É nisto que consiste o terceiro passo – e aqui entram os recursos
algébricos – como conseqüência do exame dos resultados provenientes
da utilização deste compasso produtor de curvas. Descartes expõe nesse
mesmo local sua classificação das linhas curvas, baseada em sua
expressão algébrica, isto é, a partir dos graus das equações que as
caracterizam. Mas o que mais interessa aqui não é tanto esta
classificação em si quanto a límpida afirmação de Descartes sobre o que
representa uma equação[178]. Como se pode ver, o autor deixa claro que
todo e qualquer ponto de uma curva mantém uma determinada relação,
expressa por uma equação, com os pontos de uma linha reta dada ou
construída. Mais do que isso: toda curva é conhecida, determinada e
classificada em função desta sua relação que possui com uma linha
reta[179].
Se estes três passos representam as principais etapas pelas quais
se estabelece a relação entre as linhas retas e curvas, bem como entre as
próprias curvas entre si, mas também entre curvas e equações, é no
interior dos problemas examinados que se pode perceber como, sob o
ponto de vista operatório, este processo é efetivamente realizado. A
simbolização utilizada por Descartes joga aí um papel fundamental, pois
permite tratar os problemas em sua maior generalidade. A conseqüência
disso é que, ao lidar com uma ou duas linhas retas quaisquer, Descartes
não está lidando simplesmente com um segmento de reta determinado,
mas com variáveis cuja variação determina a linha (ou lugar geométrico)
que é solução do problema em questão. No caso do problema de Pappus,
as linhas AB e BC (as “linhas principais”, x e y) são as que comandam e
determinam o lugar geométrico do ponto C; no limite, é a linha BC que
determina as linhas-solução do problema, já que a equação de y inclui a
variável x (isto é, y é igual a m-nx/z+√(m²+ox-px²/m)). E, assim,
determinar a variável y (a linha reta BC, em sua generalidade) é
determinar a curva, solução do problema (o lugar geométrico do ponto
C).
Por outro lado, esta tese sobre a linha reta não pode ser afirmada
fora de uma contextualização e sem limites. E isto por duas razões
básicas. A primeira é que, historicamente, a linha reta sempre tem sido
considerada um objeto geométrico “privilegiado”, ainda que entre
outros. Desde os antigos sempre se pretendeu resolver os problemas
geométricos pelos meios mais simples possíveis, isto é, primeiramente
por meio de retas e círculos (o círculo não sendo gerado senão pela
rotação de uma reta sobre si mesma)[180]. Além disso – e talvez mais
importante do que isso –, todo objeto geométrico sempre foi considerado
como conhecido somente quando relacionado com retas ou com objetos
imediatamente “decorrentes” de linhas retas. Não há, desde os gregos,
como conhecer uma curva ou qualquer objeto geométrico “complexo”
senão reconduzindo-os a objetos com características retilíneas. Em
outros termos, a própria “racionalidade” da ciência geométrica repousa
sobre o caráter imediatamente inteligível e primordial dos objetos
retilíneos.
A segunda razão é que Descartes se interessa muito mais por
resolver problemas geométricos que simplesmente classificar objetos
geométricos tout court ou desenvolver uma determinada teoria sobre os
mesmos. E, com isso, se interessa menos pelos objetos que por suas
relações, descobertas no interior e no processo de resolução destes
problemas. São os procedimentos em atuação que produzem ou mostram
determinadas propriedades destes objetos, antes que um estudo direto
destes mesmos objetos. Dentro desta perspectiva, é a partir do nível
operatório (e metodológico) que deve ser compreendida esta tese; e,
neste sentido, não é propriamente e exclusivamente a linha reta que
ocupa o lugar determinante na obra de Descartes: na verdade, a reta não
é suficiente enquanto elemento essencial para a solução de qualquer
problema, mas é propriamente a equação que deve ser considerada como
tal, enquanto representa a dificuldade deste mesmo problema.
Mas esta dificuldade aparece somente quando se contrapõem dois
pontos de vista distintos sobre a Geometria: aquele que privilegia os
objetos em contraposição àquele que privilegia os procedimentos
algébrico-operacionais, perspectiva que não parece pertinente à leitura
da obra. Em outras palavras, esta contraposição parece não representar
muito bem a visão de Descartes. Por um lado, os objetos geométricos
podem ser engendrados (construídos) uns a partir dos outros por meio de
um movimento único (mesmo que composto) e preciso; além disso, estes
objetos são tanto instrumentos de solução quanto a solução mesma dos
problemas e, assim, são estudados tanto como objetos em si mesmos
quanto objetos que servem a outros fins; enfim, resolver um problema
para Descartes é construí-lo e fazer geometria é representar seus objetos
na intuição, com a ajuda da imaginação. Por outro lado, os recursos
utilizados são algébricos, a novidade cartesiana brota deste campo e a
desordem dos objetos geométricos só pode ser arrumada por meio de
critérios algébricos. Assim, os dois campos se unem. A álgebra fornece
elementos formais e organizacionais; a geometria fornece conteúdo ao
simbolismo vazio. O resultado é que toda curva é passível de ser
legitimamente construída, quando admitir uma equação algébrica e os
objetos geométricos poderem ser organizados segundo o grau destas
equações.
Assim, a metodologia da Geometria apresenta uma segunda
característica. A primeira é que ela consiste numa arte de solução de
problemas. O método, como foi visto acima, é aplicado a um problema
geométrico compreendido como uma complexidade de objetos que se
apresentam interdependentes e interdefiníveis, onde o exame desta
configuração, através dos vários passos, permite sua resolução. O
principal passo da análise consiste em reduzir o problema a uma única
equação da forma a mais simples possível e, neste sentido, ela cumpre a
função de conquistar o objeto mais simples e absoluto (como dirão as
Regras), o qual possibilita a resolução da questão. A conquista da
equação é, pois, o passo final da etapa analítica, uma etapa que pode ser
dita ir do complexo ao simples[181]. Depois disso, resta
fundamentalmente construir geometricamente a equação e, assim,
representar o problema completamente e em toda a sua complexidade
(onde todos os objetos dados e procurados são apresentados), de uma
forma clara e determinada. É este o método de análise-e-síntese.
Por outro lado, o método da Geometria não pode ser
compreendido sem um quadro teórico, que consiste principalmente na
expulsão para fora da geometria de todos os objetos que não são linhas e
na demonstração de que todas as linhas aceitáveis e passíveis de serem
conhecidas podem e devem poder ser classificadas dentro do mesmo
princípio que governa o método, isto é, o critério da simplicidade e da
complexidade. Não é por outra razão que o método pode ser aplicado a
tais objetos. Como resultado, emerge uma classificação dos problemas e
dos próprios objetos, classificação que transcende o tratamento interno
de um problema e que dá indicações de um campo organizado do saber
ou de uma disciplina.
[1] Como reconhecem as Segundas respostas: “No que concerne ao
conselho que me dais, de dispor minhas razões segundo o método dos
geômetras (…), dir-vos-ei aqui de que forma já tentei precedentemente
segui-lo, e como procurarei fazê-lo ainda posteriormente” (IX, 121; 1983,
p. 166; itálico acrescentado).

[ 2 ] D i z e l e : “ N e c e s s a r i a e s t m e t h o d u s a d re r u m v e r i t a t e m
investigandam” (X, 371, 2-3).

[3] Cf. as passagens completas dos respectivos textos. Diz o primeiro:


“Contudo, estou persuadido de que as primeiras sementes de verdades,
depositadas pela natureza nos espíritos humanos e por nós abafadas,
devido à leitura ou à audição quotidianas de tantos erros, tinham tal força
naquela rude e simples antigüidade que os homens, mediante a mesma
luz intelectual com que viam haver que preferir a virtude ao prazer e o
honesto ao útil, embora ignorassem porque era assim, também chegaram
a conhecer as idéias verdadeiras da Filosofia e da Matemática, sem
terem ainda podido alcançar perfeitamente estas mesmas ciências. Na
verdade, parece-me que alguns vestígios desta verdadeira Matemática
surgem ainda em Pappus e Diofanto, os quais, sem serem dos primeiros
tempos, viveram no entanto muitos séculos antes da nossa era. E não me
custa acreditar que, ulteriormente, os próprios autores a fizeram
desaparecer por uma espécie de astúcia perniciosa” (X, 376, 12-26;
1985, p. 27-28). Diz o segundo: “Houve, enfim, alguns homens muito
engenhosos que se esforçaram no nosso século por ressuscitar a mesma
arte, pois a que se designa com o bárbaro nome de Álgebra não parece
ser outra coisa, contanto que apenas seja de tal modo liberta dos
múltiplos números e inexplicáveis figuras que a complicam, que não mais
lhe falte aquele grau de perspicácia e facilidade extremas que, por
suposição nossa, devem existir na verdadeira Matemática” (X, 377, 2-9;
1985, p. 28).
[4] A inclusão da silogística não altera em nada a procedência da
metodologia cartesiana. Se, por um lado, não é fácil avaliar a
contribuição metodológica (caso haja alguma) dessa disciplina
comumente desprezada por Descartes, por outro lado, pode-se dizer
desde já que ela não contribui efetivamente com nenhum de seus
esquemas formais. Parece possível justificar sua inclusão
“acidental” (assinalada essa única vez), entretanto, em função do que ela
denuncia: a possibilidade de, com ou sem regras, o homem encadear ou
derivar conhecimentos corretamente. Na verdade, a crítica cartesiana à
lógica é dirigida muito mais à dialética, como é dito na Conversa com
Burman (V, 175; 1981, p. 136), bem como ao uso indevido de uma ou de
outra como procedimentos de descoberta, como as Regras afirmam
várias vezes, que à própria lógica na medida em que se mantém dentro
de seus limites. Com efeito, a lógica “permet d’atteindre dans toutes les
questions à une vérité démonstrée” (V, 175).

[5] Diz Descartes: “Pour ce qui regarde le conseil (…) de disposer mes
raisons selon la méthode des Géomètres (…), je vous dirai ici en quelle
façon j’ai déjà taché ci-devant de la suivre, e comment j’ai tacherai
encore ci-après” (IX, 121).

[6] Diz ele: “Dans la façon d’écrire des Géomètres, je distingue deux
choses, à savoir l’ordre, et la manière de démontrer”; “La manière de
démontrer est double: l’une se fait par l’analyse ou résolution, et l’autre
par la synthèse ou composition”; “Les anciens Géomètres avaient
coutume de se servir seulement de cette synthèse dans leur écrits, non
qu’ils ignoraient entièrement l’analyse (…). Pour moi, j’ai suivi seulement
la voie analytique dans mes Méditations” (IX, 121-122; 1983, p. 166-67).

[7] Cf. também essas mesmas passagens na edição latina (VII, 155-ss).
[8] Descartes se beneficiou de inúmeras traduções para o latim das obras
clássicas da geometria grega, feitas principalmente no final do século
XVI. Federigo Commandino (1509-1575) traduziu muitos autores gregos,
dentre os quais Ptolomeu, Arquimedes, Apolônio (Cônicas, em 1566),
Euclides (Elementos, em 1572) e Pappus (Coleção matemática, em 1588;
outras edições, em 1689 e 1602). Descartes conhecia muito bem as
obras aqui mencionadas de Pappus e de Apolônio (além de conhecer
Arquimedes e também Euclides). Pappus é citado não só nas Regras,
mas principalmente na Geometria. Nessa obra, Descartes cita (VI,
377-79), segundo a tradução de Commandino, um longo trecho do Livro
VII de PAPPUS (1982, p. 506-10), texto que, com nosso filósofo, vem a se
constituir no célebre “problema de Pappus”. Um outro problema do
mesmo livro da obra de PAPPUS (L. VII, Prop. 72, p. 606-08) é examinado
por Descartes no Livro III da Geometria (VI, 462-63). É interessante
observar que é exatamente nesse Livro VII que Pappus apresenta sua
descrição sobre o método de análise (e síntese), texto que será
examinado mais abaixo. O nome de Apolônio é também freqüentemente
citado (na correspondência, por exemplo) e suas Cônicas são muito
utilizadas na Geometria, enquanto Arquimedes é citado geralmente no
que se refere às artes mecânicas e ao seu método de demonstração. Na
Epístola enviada aos doutores da Faculdade de Teologia de Paris, por
meio da qual foi-lhes apresentado o texto das Meditações, Descartes cita
os três autores (VII, 4; IX, 6; 1983, p. 77).

[9] Como já dizia a Regra IV, “a mente humana tem não sei quê de divino,
em que as primeiras sementes dos pensamentos úteis foram lançadas de
tal modo que, muitas vezes, ainda que descuradas e abafadas por
estudos feitos indiretamente, produzem um fruto espontâneo. É o que
experimentamos, nas ciências mais fáceis, a aritmética e a geometria: os
antigos geômetras fizeram uso de uma espécie de análise, que
estendiam à resolução de todos os problemas, ainda que não a tenham
transmitido à posteridade” (X, 373, 7-13; 1985, p. 25).

[10] A Geometria (p. ex., VI, 376, 23-28; 378, 23-28), em razão disso,
acusa os geômetras de prolixidade e de não irem além da representação
espacial sensível (suas três dimensões).

[11] Descartes, quando ainda jovem, utiliza a nomenclatura cóssica,


apresentada por Clávius em sua Álgebra (cf., p. ex., X, 155-56; 244-45;
265-76; 294-97; 298).

[12] Cf. a Regra XVI (X, 454-ss).

[13] Cf. o comentário de GILSON (1987, p. 187-95) e a análise de


TIMMERMANS (1995, p.104-08).

[14] Dentre outros, cf. GILSON (1987, p. 187-ss), onde se encontra a


tradução latina, feita por Commandino, de parte do texto de Pappus
sobre a análise e a síntese. MARION (1977, p. 137-38) cita parte desse
texto e faz referências a Viète, mas não vai além disso. ALQUIÉ (1969, p.
35-36) fala rapidamente da análise, mas não a conecta ao método de
Descartes.

[15] Não há, por exemplo, um estudo sobre a metodologia das Regras e
sua relação com os geômetras gregos, semelhante ao que há, por
exemplo, entre essa obra de Descartes e a de Aristóteles, como é o caso
de MARION (1981). Dificilmente encontrar-se-ão estudos sobre a
Geometria enquanto “ensaio do método”, bem como sobre sua relação
com o método de análise dos gregos e seus seguidores. O mesmo
poderia ser dito em relação ao método de Descartes e a “arte analítica”
de Viète. A carência de estudos desse tipo é resultado da visão
excessivamente epistemológico-normativa e apriorística dos estudos
sobre o tema, em detrimento dos elementos prático-operacionais da
metodologia (seja a de Descartes, seja a de seus inspiradores).
[16] Até há pouco tempo, parece que só existia um breve artigo sobre o
tema, o de ROBERT (1937), ainda que outros, como HAMELIN (1911),
tratassem rapidamente do assunto. Depois dos estudos de HINTIKKA e
REMES (1974; 1983) sobre os gregos, vários autores têm tocado no
assunto, mas sem detalhes e em poucas linhas. As principais exceções
são o próprio HINTIKKA (1978), LOPARIC (1991) e TIMMERMANS (1995).
Entretanto, tais estudos ainda não preenchem a lacuna aqui detectada,
apesar de excelentes: os primeiros são breves e não pretendem discutir a
literatura cartesiana em toda a sua complexidade; o último, certamente o
mais extenso estudo sobre o tema, é uma discussão ainda bastante
“teórica”.

[17] Parece ser unânime, atualmente, a posição de que o surgimento do


método de análise se deu no interior da própria ciência geométrica,
contrariamente à tese defendida ao longo dos séculos de que coube a
Platão a invenção desse método. Dentre os primeiros a afirmarem a
origem platônica, como diz TIMMERMANS (1995, p. 9), estão Proclus e
Diógenes Laércio; mais tarde, VIÈTE, no início de sua Introdução à arte
analítica (1970, p. 1; KLEIN, 1992, p. 320), reporta-se a essa mesma
idéia; ultimamente, alguns estudos (como é o caso de Cornford e do
próprio Timmermans), mesmo reconhecendo que Platão não seja o
inventor desse método, observam que as relações entre a dialética
platônica e o método de análise são bastante esclarecedoras.
[18] Não pode haver dúvida de que a análise geométrica foi
extremamente influente ao longo dos séculos. A história dessa tradição,
para além de seus inventores e originais praticantes, parece estar
marcada por duas características gerais. A primeira diz respeito ao fato
de que, salvo em dois grandes momentos da história, o método de
análise esteve sob forte influência de “sistemas” filosóficos,
nomeadamente o de Aristóteles. Nessa perspectiva, esse método foi
muitas vezes relacionado (ou, mesmo, confundido) com a análise
silogística. Na verdade, o termo “análise” não era um termo unívoco já
entre os gregos, como mostram GILBERT (1960) e GULLEY (1983). Esse
último intérprete mostra (p. 19) que a análise geométrica aparece em
meio à elucidação do termo “análise” em seu sentido lógico,
principalmente nas ocasiões em que os comentadores gregos pretendem
explicar as razões que levaram Aristóteles a chamar duas de suas obras
de Analíticos. Nesse sentido, a análise geométrica, muitas vezes, se
torna um caso particular de um método que tem outras “aplicações”,
mas que se afasta do sentido que os matemáticos lhe atribuíam. Galeno,
por exemplo, em suas discussões sobre o método científico mais
adequado (à área médica), se refere também, como afirmam HINTIKKA e
REMES (1974, p. 91; p. 99), a outras espécies de análise, como a
estóica, a platônica, além da aristotélica e da geométrica. Na Idade
Média – e, de um modo geral, até o surgimento das primeiras traduções
latinas dos clássicos da geometria grega, dentre os quais se destaca a
obra de PAPPUS (1588), ou, coincidentemente, enquanto a filosofia
aristotélica dominou o pensamento ocidental e, dentro desta, a silogística
era vista também como um procedimento de descoberta no lugar dos
Tópicos – “análise” e “síntese” (isto é, “resolutio” e “compositio”) eram
termos interpretados aristotelicamente. Segundo alguns intérpretes
(GILBERT, 1960; HINTIKKA e REMES, 1974, entre outros), incluem-se aí
autores como Grosseteste, mesmo Zabarella, além dos escolásticos e
metafísicos que antecederam a Descartes (como, por exemplo, Eustachio
a Sancto Paulo, cujos textos são citados por GILSON (1979, p. 181-84)).
A segunda característica da história do método de análise geométrica é a
de que, em duas ocasiões, houve uma “volta às origens” e uma tentativa
de redescobrir (e desenvolver) os segredos desse método. O primeiro
momento, de âmbito exclusivamente matemático, se refere aos séculos X
e XI, no mundo árabe, onde se destacam os textos de Ibn Sinan, Tratado
sobre o método da análise e da síntese (BELLOSTA-BAYLET, 1994, p.
1-108), e de Ibn al-Haytham, A análise e a síntese (RASHED, 1991a;
1991b). O segundo momento, de âmbito mais geral, se refere aos séculos
XVI e XVII (mesmo ao XVIII), começando com Viète e Galileu, passando
por Descartes, Newton, entre outros, chegando até Kant. A influência da
análise geométrica, enfim, chega até nossos dias, por exemplo, em
POLYA (1986).

[19] A diferença entre os dois tipos de análise decorre da diferença das


entidades envolvidas, problemas e teoremas (ou, como diz POLYA (1986,
p. 104), “problemas de determinação” e “problemas de demonstração”,
respectivamente). Há uma longa discussão entre os gregos sobre a
natureza e a distinção entre tais entidades, bem como se há entre elas
uma primazia ou prioridade, sob o ponto de vista da natureza da
geometria. Geômetras de influência platônica (como Proclus), acabam
por dar prioridade ontológica aos teoremas (ou, pelo menos, diminuem a
primazia dada, por outros, aos problemas), visto que, por meio dos
problemas, o geômetra constrói ou gera entidades, isto é, dá ser ou
existência a coisas que sempre existiram e modifica objetos (quando
divide, aumenta e diminui uma figura) cuja realidade é imutável (o que é
contra o platonismo), enquanto que os teoremas exibem propriedades
essenciais dos objetos geométricos supostamente existentes. Sobre
algumas posições a respeito dessa questão, cf. HEATH (1956, p.
124-129); uma discussão mais detalhada se encontra em KNORR (1986,
p. 348-360). Descartes, é bom salientar, tem plena consciência da
distinção entre tais entidades, como mostram as Segundas respostas
(VII, 156; IX, 122).

[20] Cf.: “What is involved in his description is a method of analysis and


synthesis, not a method of analysis alone. This is true both of Pappus’
account of analysis and synthesis and of the practice of all known ancient
mathematicians”.

[21] Esta é certamente a principal razão de Descartes (X, 373, 15; VII, 156,
17-20; IX, 122), dentre outros, ter acusado os gregos de esconderem seu
procedimento de descoberta como um grande segredo e apresentarem
ao público somente seus resultados por meio de uma forma estéril (ainda
que demonstrativa).
[22] O exemplo clássico do emprego isolado do método sintético são os
Elementos de Euclides. Esse fenômeno, inclusive, deu origem a um outro
conceito de síntese (ou a um desmembramento do conceito original), do
qual tem consciência também Descartes (VII, 156; IX, 122), entendido
como método de exposição que se caracteriza pela utilização de
definições, postulados e axiomas, seguidos pela demonstração de
teoremas e pela solução de problemas. Por sua vez, a etapa sintética
poderia também ser dispensada, no caso das proposições geométricas
serem recíprocas e em outros casos onde a prova seria trivial ou óbvia. O
problema da duplicidade (ou ambigüidade) do conceito de síntese será
discutido mais adiante.

[23] Serão utilizadas, via de regra, denominações como “etapa analítica” e


“etapa sintética”, enquanto partes do método de análise (isto é, do
método de análise-e-síntese), para não serem confundidas com o todo.
Por sua vez, a denominação “método de síntese” é reservada à definição
dada na nota anterior. Por fim, os termos “análise” e “síntese” podem
adquirir tanto o sentido de partes do método de análise, quanto dos
métodos em si mesmos, dependendo do contexto.

[24] Parecem ser dois os principais textos que podem servir de


comparação com o de Pappus. O primeiro é uma interpolação no Livro
XIII dos Elementos. Ele diz: “Analysis is an assumption of that which is
sought as if it were admitted <and the passage> through its
consequences to something admitted (to be) true. Synthesis is an
assumption of that which is admitted <and the passage> through its
consequences to the finishing or attainment of what is sought” (HEATH,
1956, p. 138). O outro é de Heron em seu comentário ao Livro II dos
Elementos, existente na tradução árabe feita por al-Nairizi (Annaritius).
Cf. KNORR (1986, p. 354-55) para uma comparação entre as três
versões.

[25] Citação extraída de HINTIKKA e REMES (1983, p. 29-30), com


algumas modificações a partir de HINTIKKA e REMES (1974, p. 8-10) e
acréscimo do primeiro parágrafo. A passagem pode ser encontrada em
HEATH (1956, p. 138-39) e em MAHONEY (1968, p. 322), dentre outros.
Cf. também PAPPUS (1982, p. 477-78).
[26] Paradigmática dessa dificuldade é a tradução do texto de Pappus
feita por VER EECKE (1982, p. 477; grifo acrescentado): “L’analyse est
donc la voie qui part de la chose cherchée, considérée comme étant
concédée, pour aboutir, ao moyen des conséquences qui en découlent, à
la synthèse de ce qui a été concédé. En effet, supposant, dans l’analyse,
que la chose cherchée est obtenue, on considère ce qui dèrive de cette
chose et ce dont elle est précédée, jusqu’à ce que, revenant sur ses pas,
on aboutisse à une chose déjà connue ou qui rentre dans l’ordre des
principes; et l’on nomme cette voie l’analyse en tant qu’elle constitue un
renversement de la solution”. Como diz TIMMERMANS (1995, p. 28), “Le
mérite de la traduction de Ver Eecke est de ne pas dissimuler les
difficultés auxquelles se heurte l’interprétation de ce texte”.

[27] A obra básica dessa quarta posição é a de HINTIKKA e REMES


(1974). A exposição que segue deve muito a ela, bem como a autores
que seguiram a mesma perspectiva.

[28] Além desses e do próprio Robinson, pode-se acrescentar ZEUTHEN


(1902, p. 75-ss), CHERNISS (1951), MUGLER (1948) e MAHONEY (1968).
Alguns desses autores reconhecem, sem abandoná-la, certas
dificuldades dessa interpretação. Cf. mais adiante.

[29] Cf., como exemplo, a tradução de HEATH (1956, p. 138) da primeira


frase sobre a análise (início do segundo parágrafo, acima): “Analysis
then takes that which is sought as if it were admitted and passes from it
through its seccessive consequences to something which is admitted as
the result of synthesis …”.

[30] Assim, se K for falsa, A também o será. E, sendo A falsa, não-A é


verdadeira. Podemos provar, pois, não-A, assumindo A e mostrando que
ela acarreta K, o que é um absurdo (pois K seria verdadeira e falsa ao
mesmo tempo). Logo, não-A é verdadeira.
[31] Segundo MAHONEY (1968, p. 327-29), o conceito de diorismos diz
respeito, primeiramente, à determinação da suficiência dos dados do
problema com vistas à sua solução. Nos Elementos, I. 22, por exemplo, a
construção de um triângulo qualquer, a partir de três retas dadas, só será
possível sob a condição de que duas delas, juntas, sempre serão
maiores que a terceira. O termo se refere, contudo, também às condições
adicionais que devem ser preenchidas para que um passo originalmente
não-reversível se torne reversível na síntese. Suponhamos, diz esse
comentador (p. 328), que devamos construir uma linha x que satisfaça a
equação ax-x²=b². Uma tal construção é possível geometricamente, no
plano real, somente se a área b² for menor ou igual a ½a². Logo, o passo
correspondente, na síntese, deve satisfazer essa condição.

[32] Diz o autor (1932, p 47, apud SOUZA, 1985, p. 87): “os modernos
historiadores da matemática (…) compreenderam mal a frase ‘a sucessão
dos passos subseqüentes’ (dia tôn hexês akólouthon), interpretando-a
como ‘conseqüências’ lógicas (…). Eles têm se esforçado, então, para
mostrar como as premissas de uma demonstração podem ser as
conseqüências de uma conclusão. Tudo se esclarece quando vemos – o
que Pappus diz – que a mesma seqüência de passos é seguida em
ambos os processos – de forma ascendente na análise, da conseqüência
para as premissas implicadas nessa conseqüência, e de forma
descendente na síntese, quando os passos são revertidos para estruturar
o teorema ou demonstrar a construção ‘na ordem natural’ (lógica)”.

[33] Um dos principais pontos de apoio da argumentação de Cornford é a


íntima relação que estabelece entre o movimento ascendente e
descendente da dialética platônica e as duas etapas da análise
geométrica, a análise propriamente dita e a síntese, respectivamente.
Para um estudo sobre o tema, cf. também TIMMERMANS (1995, p. 9-31).

[34] ROBINSON (p. 11-12) fornece como exemplo a Proposição 1, do


Livro XIII dos Elementos. Fornece também (p. 10) a seguinte seqüência:
(1) 3x=4y; (2) 3x+y=5y; (3) 3x+2y=6y, onde há conseqüência lógica em
qualquer sentido dos passos.
[35] Esquematicamente, se a análise apresentar a seqüência A¬B¬C¬…
¬K, como defende Cornford, e se K for falso, então não se poderia dizer
que A seja igualmente falso. Mas é isso que Pappus diz. Logo, Cornford
deve estar errado.

[36] Diz ARISTÓTELES (1987, p. 46): “Com efeito, a pessoa que delibera
parece investigar e analisar da maneira que descrevemos, como se
analisasse uma construção geométrica (nem toda investigação é
deliberação: vejam-se, por exemplo, as investigações matemáticas; mas
toda deliberação é investigação); e o que vem em último lugar na ordem
da análise parece ser primeiro na ordem da geração. E se chegamos a
uma impossibilidade, renunciamos à busca: por exemplo, se precisamos
de dinheiro e não há maneira de consegui-lo; mas se uma coisa parece
possível, tratamos de fazê-la”.

[37] Cf. acima a citação de Pappus nos locais onde há colchetes.

[38] São utilizados, nesse sentido, termos como “apódeixis”, “hepómena”


e “symbáienin” (HINTIKKA e REMES, 1974, p. 8-10; p. 14).

[39] Dito de outro modo, a descrição geral do método, dada a tradução


sugerida acima, apresenta claramente a análise como procedimento
ascendente, em contraposição à síntese descendente. O problema é que,
se isso for rigorosamente mantido, não haveria necessidade da análise
ser seguida pela síntese, como outros autores já haviam salientado. Além
disso, restaria a conciliar a parte final da descrição (aquela que trata do
resultado negativo da análise e que sempre favoreceu a concepção
descendente) com essa concepção. Como se não bastasse, a prática
dos geômetras gregos, regida por forças operacionais antes que
teóricas, enfatiza o procedimento descendente e o problema da
reversibilidade (1974, p. 18). Assim, concluem os autores, a interpretação
da análise como movimento ascendente, apesar de representar o
“insight” pappusiano sob a perspectiva da “situação lógica” (p. 18), não
pode ser “a história toda” (p. 17).
[40] É importante ter presente esse fato de que a síntese é a segunda
etapa do método (utilizado na resolução de uma proposição), para poder
distingui-la da síntese enquanto procedimento de exposição e de
organização (e também de prova) dos resultados (de muitas proposições,
isto é, de muitos problemas e teoremas), caracterizada, como diz
Descartes, “d’une longue suite de définitions, de demandes, d’axiomes,
de théorèmes et de problèmes” (IX, 122). Nesse último sentido, a síntese
não é vista como etapa do método de resolução, mas como método
(axiomático ou quase-axiomático) de apresentação e de prova das
proposições. A síntese, no século XVII, pode ter esse duplo sentido.

[41] Diz ROBINSON (p. 8): “Segundo esse relato [defensor da análise
ascendente], a análise não seria um processo de dedução. (…) Na
análise, a atividade da minha mente não é de demonstração, mas de
intuição. O geômetra que se utiliza da análise adivinha a premissa (2) de
que se segue a premissa (1)”. Cf. também as posições de Duhamel e de
Zeuthen, expostas acima. Uma idéia semelhante é defendida por P.
TANNERY (1915, p. 163-ss).
[42] HINTIKKA e REMES, em um artigo sobre o método de análise e a
lógica moderna (1983), mostram como alguns procedimentos lógicos
usados, hoje em dia, atuam indistintamente, sem preferência e sem
prejuízo lógicos e heurísticos, em qualquer direção, como seria o caso do
método de análise. Poder-se-ia citar um exemplo extremamente simples
para mostrar isso, ainda que não se deva talvez pensar o método de
análise dentro de padrões lógicos tão rígidos. Se um estudante
desejasse provar a validade do argumento “(P&Q)®(R&S), ~~P, Q |– S”,
a seqüência poderia ser a dos sete passos dados mais abaixo. Na
descoberta dos passos intermediários (entre as premissas e a
conclusão), esse estudante poderia proceder tanto do fim para o
começo, quanto do começo para o fim, observando ao mesmo tempo os
dois extremos. Assim, dadas as premissas, ele poderia extrair
imediatamente o passo 4 do passo 2. Mas poderia se perguntar também:
de onde “S” deveria ser derivado? E a resposta seria: deve ser de
“R&S” (passo 6), único “local” onde “S” aparece. A pergunta
subseqüente seria: de onde poderia provir “R&S”? E a resposta seria: de
“P&Q” (passo 5). Mas “P&Q” é dado, diria ele, pois “P” e “Q” são dados
(passos 3 e 4). Logo, o estudante teve êxito na prova de validade do
argumento, tendo procedido ao mesmo tempo a partir dos extremos,
privilegiando ocasionalmente um ou outro dentre eles.

(P&Q) ® (R&S) Premissa

~~P Premissa

Q Premissa

P Passo 2, por eliminação da dupla negação

P&Q Passos 3 e 4, por introdução da conjunção

R&S Passos 1 e 5, por modus ponens


S Passo 6, por eliminação da conjunção

HEGENBERG, em seu livro sobre cálculo sentencial (1972, p. 95; itálicos


no original), diz o seguinte sobre esse tipo de procedimento: “Por outro
lado, não há um procedimento efetivo (no mesmo sentido) que nos
informe sobre a maneira de obter uma dedução. O processo de tabelas
de valores é totalmente mecânico. Aqui, porém, é preciso “imaginar”,
“descobrir” um ponto de partida e um encaminhamento da dedução. (…)
Dois “atalhos” são úteis: 1) com as premissas, obter um grande número
de conseqüências usando os argumentos simples, já que com elas se
vislumbrará o que fazer e 2) caminhar de trás para diante, partindo da
conclusão e buscando ver de onde ela poderia ser obtida, retrocedendo
até chegar às premissas dadas, ou – o que é mais comum – até algumas
das conseqüências obtidas por força do uso do “atalho” 1)”. Estratégias
de mesmo teor são dadas por outros manuais de lógica. Cf., p. ex., COPI
(1981, p. 268-69) e NOLT e ROHARYN (1978, p. 129).

[43] Como diz HINTIKKA (1978, p. 80), os passos da análise não são
passos entre “verdades geométricas”, mas entre “objetos geométricos”;
e, assim, a análise é uma “análise de configuração, não de provas”.

[44] Essa é também a posição de TIMMERMANS (p. 28-29): “notre


interprétation (…) consiste à voir dans la méthode par hypothèse
[analítico] une déduction ou un raisonnement préalable à
l’ordonnancement de la réalité, visant précisément à découvrir quel est
cet ordre”. Não se pode conceder à síntese (isto é, à etapa sintética),
entretanto, a função de ordenar algo mais do que os passos da prova do
teorema ou da solução do problema. O ordenamento do conjunto das
proposições, como é o caso dos Elementos, caberia, sim, à síntese,
entendida como método de exposição e, como tal, distinto da etapa
sintética do método de análise. Mas isso também não pode ser
equiparado simplesmente ao “ordenamento da realidade”. Em outras
palavras, o ordenamento de proposições ou de passos no interior de uma
proposição não pode ser confundido com o ordenamento de objetos
reais ou em si mesmos.
[45] É essa a principal razão pela qual Viète contrapõe seu novo método
de análise, a “logística especiosa”, ao método de análise dos geômetras
antigos e ao seu “prolongamento” aritmético (Diofanto), a “logistice
numerosa”. Cf. KLEIN (1968, p. 165-ss; 328).

[46] Pappus, diferentemente de Euclides, normalmente omite a


enunciação geral e expõe a proposição já instanciada. Mas isso em nada
altera essa característica da análise.

[47] A geometria cartesiana, entretanto, mesmo sendo mais geral que a


antiga, não dispensa a utilização da figura.

[48] PAPPUS utiliza no começo da análise frases como “Qu’il en soit


ainsi” (Livro IV, Prop. 4, p. 140), “Supose the problem solved” (Livro VII,
Prop. 105, p. 640, apud HEATH, p. 141), “Que la chose soit
obtenue” (Livro VII, Prop. 155, p. 705), etc.; em ARQUIMEDES, por
exemplo, na obra Sobre a esfera e o cilindro, também encontramos
expressões do tipo “suponha o problema resolvido” (Livro II, Prop 3-7, p.
437-ss), como também em outros autores. Descartes não diz outra coisa
na Geometria: “voulant résoudre quelque problème, on doit d’abord le
considérer comme déjà fait” (VI, 372); “premièrement, je suppose la
chose déjà faite” (382; 413). Mas já nas Regras esta idéia está presente:
“todo o artifício neste lugar consistirá, supondo conhecido o que é
desconhecido, em podermos assim propor uma via fácil e direta de
investigação, mesmo nas dificuldades mais embrulhadas” (X, 460, 20-22;
1985, p. 112).
[49] Visto que a análise considera todos os objetos apresentados na
configuração, inclusive a solução do problema ou a verdade do teorema,
como dados no interior da complexidade em questão, a etapa analítica
pode ser dita consistir no exame (ou análise) dessa complexidade em
direção a seus elementos componentes, até se encontrar alguma relação
cuja verdade independa da pressuposição de que “o problema esteja
resolvido”. É assim que alguns autores caracterizaram a etapa analítica
como a via que consiste em ir do complexo ao simples, como é o caso
de Philoponus (HINTIKKA e REMES, p. 94-95). Por razões semelhantes, a
análise por vezes foi descrita como o movimento de ida do efeito para a
causa e a síntese, ao contrário, da causa para o efeito. Os termos latinos
“resolutio” e “compositio” adquiriram essa acepção. Essa duas maneiras
de descrever a etapa analítica e a sintética se encontram também em
Descartes.
[50] Em outras palavras, a singularidade da análise é considerar o fim
como dado e se perguntar de onde ele poderia proceder. Ela tem uma
“intenção”, uma “lógica” de proceder para trás. A estratégia de resposta
a essa pergunta, ela sim, poder variar em função de quais elementos são
disponíveis, da familiaridade que o analista tem para com eles, da
estrutura da problemática, das indicações ou sugestões fornecida pela
própria coisa procurada, da facilidade e necessidade de se ampliar, por
meio de construções, a configuração inicial, etc. Parece que é nesse
sentido que Aristóteles a compara, na Ética a Nicômaco, ao
procedimento empregados na deliberação ou numa ação prática. POLYA
(1986, p. 106) nos fornece um exemplo que ilustra essa comparação. Diz
ele: “Um homem primitivo deseja atravessar um riacho, mas não pode
fazê-lo da maneira habitual porque o nível da água subiu desde a
véspera. Por isso, a travessia tornou-se o objeto de um problema: “a
travessia do riacho” é o x deste problema primário. O homem pode
lembrar-se de já ter atravessado algum outro riacho por uma árvore
caída. Ele procura ao redor uma árvore caída que lhe sirva, a qual se
torna a sua nova incógnita, o seu y. O homem não encontra nenhuma
nessas condições. Ser-lhe-ia possível fazer uma árvore cair atravessada
sobre o riacho? Surge uma grande idéia e uma nova incógnita: por que
meios poderia o homem derrubar a árvore por sobre o riacho? Essa
seqüência de idéias deve chamar-se análise, se aceitarmos a
terminologia de Pappus. Se o homem primitivo conseguir concluir sua
análise, ele poderá ser o inventor da ponte e do machado. Qual é a
síntese? A tradução das idéias em ação. O ato final da síntese será a
passagem do homem por sobre a árvore através do riacho. Os nossos
objetos comparecem na análise e na síntese; eles exercitam o raciocínio
do homem na análise e os seus músculos na síntese. A análise consiste
em pensamentos; a síntese, em atos. Há uma outra diferença: as
respectivas ordens são inversas. A travessia do riacho é o primeiro
desejo, do qual parte a análise, e é o último ato, com o que se conclui a
síntese”.
[51] Uma conclusão pode ser derivada de conjuntos distintos de
premissas. O exame exclusivo da sua estrutura pode conduzir a
premissas não dadas na enunciação da proposição. Isso poderia ocorrer
no caso do método de análise proceder exclusivamente a partir do
procurado.

[52] Isso quer dizer que o método analítico não é tampouco mecânico;
como todo procedimento heurístico, ele não garante de antemão o
sucesso de sua atuação: podem não ser descobertas as relações
suficientes para a resolução de um problemas ou para a prova de um
teorema.

[53] Essa é uma das razões que tornam improvável a autoria platônica do
método, pois Hipócrates de Quios é bem anterior a Platão.

[54] O problema pode ser elaborado da seguinte maneira: dada uma linha
qualquer A e, portanto, também o cubo A³, pretende-se construir o cubo
X³, que seja o dobro do anterior. Hipócrates descobre que esse problema
pode ser reduzido ao da inserção de dois meios proporcionais entre duas
linhas (em que uma é o dobro da outra). Sejam A e B tais linhas e X e Y
os meios proporcionais, de tal forma que A:X=X:Y=Y:B. Compondo as
razões (cf. Elementos, V, Def. 14 (HEATH, 1952, p. 81)), temos:
(A:X)³=(A:X)(X:Y)(Y:B), isto é, A³:X³=A:B. Assim, se B é o dobro de A,
A³:X³=1:2. Portanto, X³ é o dobro de A³. Portanto, dadas duas linhas A e
B (sendo B=2A), se inserirmos dois meios proporcionais X e Y, X³ será o
dobro de A³. Sobre o problema da duplicação do cubo, confira, entre
outros, KNORR (1986, p. 17-24), de onde a formulação acima foi
extraída.
[55] O procedimento de redução, nesse exemplo específico de
Hipócrates, estabelece a equivalência dos dois problemas, no sentido de
que, estando um resolvido, o outro também estará. Entretanto, em
princípio, poder-se-ia proceder à “redução” de um problema a outro,
mesmo que este último não solucionasse o primeiro, mas se constituísse
em um avanço considerável ou em uma de suas partes importantes.
Como tal, o procedimento de redução (sentido forte) poderia ter-se
desenvolvido juntamente com o procedimento de divisão de um
problema em subproblemas ou de recondução do problema original a um
problema relacionado (sentido fraco). Seja como for, muitos praticantes
da análise (dentre os quais Descartes) apresentam a “técnica” de
subdividir o problema e de reconduzi-lo a outro. Tal é o caso de Ibrahim
Ibn Sinan em seu Tratado sobre o método da análise e da síntese
(BELLOSTA-BAYLET, 1994). Há que assinalar as “técnicas da análise”
propostas por Ibn Sinan: “subdividir o problema”; “utilizar todas as
condições e as hipóteses do problema”; “estudar todas as configurações
possíveis” (apud BELLOSTA-BAYLET, XXXII-ss; 47-ss). Não poderiam ser
chamadas tais técnicas de cartesianas?

[56] Esse exemplo é dado por HEATH (1956, p. 141-42) e reproduzido por
HINTIKKA e REMES (1983, p. 31-2). Segue-se aqui a tradução desse
último ensaio, com pequenas alterações e a introdução dos passos. O
exemplo é examinado também por SOUZA (168-74; 197-207). Outros
exemplos são encontrados em Pappus, tais como as Proposições 54 a
58 do Livro III e as Proposições 4, 7 a 10, 12, 31, 33, 37, 40, 44 do Livro
IV, além das obras citadas por ele no início do Livro VII, conhecidas como
a “Coleção analítica dos Antigos” (VER EECKE, p. 479, n. 1), dentre as
quais podem-se citar os Dados e os Porismas de Euclides, a Secção de
uma razão, as Cônicas e as Inclinações de Apolônio. De Arquimedes,
pode-se citar as Proposições 1 e 3 a 7 do Livro II do tratado Sobre a
esfera e o cilindro (HEATH, 1952, p. 434, 437-443).

[57] Figura extraída de HEATH (1956, p. 142).

[58] Supor o problema resolvido significa supor que, potencialmente,


estão presentes todos os elementos mínimos necessários. Aqueles que
não são originariamente dados na configuração inicial são supostos
como passíveis de serem legitimamente construídos ou adicionados.
Assim, a configuração pode ser considerada suficientemente completa.

[59] Construção auxiliar, responsável pela introdução de um novo objeto


geométrico, a tangente FA. O ponto A permanece indeterminado e pode
variar em função de um ponto F qualquer que se tome sobre o
prolongamento de ED.

[60] Passo dedutivo, baseado evidentemente no zetoumenon. Cf.


Elementos I, 29 (HEATH, 1952, p. 18-19).

[61] Passo dedutivo, baseado na construção auxiliar e no dedomena, mas


não no zetoumenon. Os ângulos formados por uma tangente de um
círculo e uma reta que o corta são iguais aos ângulos formados nos
segmentos alternos do círculo; no caso, o âng. FAB (ou FAE) é igual ao
âng. ACB (ou ACD). Cf. El. III, 32 (HEATH, 1952, p. 60-61).

[62] Passo dedutivo, baseado em parte no zetoumenon (passo 1).


Introdução de um novo objeto geométrico, o círculo ABDF, que não
aparece na figura (não confundi-lo, pois, com o círculo ABC). Dado que o
âng. FAE (= âng. CDE, visto que ambos são iguais ao âng. ACB) e o âng.
BDF são, somados, iguais a dois ângulos retos e fazem parte do
quadrilátero ABDF (os outros dois ângulos sendo, pois, também iguais a
dois retos), os quatro pontos estão sobre um círculo. Cf. El. III, 22
(HEATH, 1952, p. 55).

[63] Passo dedutivo, em parte baseado no zetoumenon (passo 3). Se duas


retas quaisquer (EA e EF, p. ex.), traçadas a partir de um ponto exterior
(ponto E) a um círculo (no caso, o círculo ABDF), cortarem-no, o
retângulo formado pelos dois segmentos de uma delas (os segmentos EA
e EB) é igual ao retângulo formado pelos dois segmentos da outra (os
segmentos EF e ED), uma vez que cada um dos retângulos é igual ao
quadrado da tangente ao círculo, traçada a partir desse mesmo ponto.
Cf. El. III, 36 (HEATH, p. 64-66).
[64] Passo dedutivo, baseado somente no dedomena e na construção da
tangente ao círculo ABC a partir de E. Como o círculo ABC é dado em
posição e o ponto E é dado, a tangente é dada (ela não se encontra
desenhada e não deve ser confundida com a tangente FA). Portanto, o
retângulo EA, EB é dado (mas não os pontos A e B). Cf. nota anterior e
também Dados, 91 (EUCLIDES, 1966, p. 597-98) e El. III, 36 (HEATH,
1952, p. 64-66). Esse passo (como todos os outros da resolução) é
independente da transformação; ele se baseia exclusivamente no fato de
que o ponto E e o círculo ABC são efetivamente dados.

[65] Passo dedutivo. Pode ser, pois, construído um retângulo EF, ED igual
ao retângulo EA, EB.

[66] Cf. Dados, 57 (EUCLIDES, 1966, p. 563-64). Passo dedutivo.

[67] Cf. Dados, 27 (p. 536). Passo dedutivo.

[68] Cf. Dados, 90 (p. 596-97). Passo dedutivo.

[69] Cf. Dados, 27 (p. 536). Passo dedutivo.

[70] Cf. Dados, 26 (p. 536). Passo dedutivo.

[71] Cf. Dados, 25 (p. 535). Passo dedutivo

[72] Passo dedutivo.

[73] É isso o que diz a enunciação da proposição. Todos os passos dessa


etapa são efetivamente construídos, a partir dos elementos fornecidos
pelo dedomena ou de outros dele decorrentes. Nada na síntese pode
depender do zetoumenon.

[74] A tangente não é fornecida na figura. Ela pode ser construída a partir
do círculo e do ponto E. Cf. Dados, 91 e notas anteriores.
[75] Assim, estando o ponto F determinado, a tangente pode ser traçada
e o ponto A determinado.

[76] Dados A e E, o ponto B é determinado; logo, o ponto C também, pois


D é dado. Pode-se, assim, traçar AC.

[77] Em outras palavras, os dois retângulos são iguais, pois ambos são
iguais ao quadrado da tangente (um por construção e o outro por El. III,
36).

[78] Tais pontos formam um círculo por uma razão distinta daquela
afirmada no passo 4 da transformação. Aqui é a igualdade dos retângulos
que garante a existência do círculo ABDF. Donde se seguirá que, como
no quadrilátero inscrito ABDF os ângulos FAB e BDF formam dois retos e
como os ângulos BDF e BDE são também iguais a dois retos, os ângulos
FAB (ou FAE) e BDE (ou CDE) são iguais. Esses passos da transformação
são invertidos na demonstração.

[79] Único passo da transformação não invertido, exatamente por não


depender, mesmo lá, do zetoumenon.

[80] Cf. El. I, 28 (HEATH, 1952, p. 18).

[81] Assim, Descartes descobre no interior do procedimento analítico das


Meditações o axioma “para pensar é preciso existir”, bem como percebe
a necessidade de “aplicar” o princípio de causalidade à realidade
objetiva da idéia de Deus.

[82] Isso garante que um problema se liga a outros problemas, que eles
não se encontram isolados, dando origem a uma disciplina.
[83] Euclides não apresenta a análise desse teorema, como de nenhuma
proposição dos Elementos. Entretanto, mesmo na etapa sintética, pode-
se perceber que sua prova é elaborada tendo em conta o que a
proposição fornece e o que pode ser imediatamente acrescentado à
configuração em exame. O autor pede que se tome um triângulo
qualquer ABC, que se prolongue um de seus lados, BC, até D e que seja
traçada uma linha CE, paralela à AB. Imediatamente se “vê” que os
ângulos internos do triângulo são iguais a dois retos, visto que os
ângulos BCA+ACE(=BAC)+ECD(=ABC) = 180º.

AE

B C D

[84] É interessante notar que Euclides escreveu uma obra chamada


Dados, obra que Pappus inclui no conjunto das que nomeia de “Tesouro
da Análise”, cuja função é mostrar que, se algumas coisas são dadas,
outras também o são. A segunda parte da análise (a resolução) utiliza
enormemente essa obra, pois a função dessa etapa é exatamente
mostrar que algumas coisas podem ser determinadas a partir de outras.

[85] Contrariamente aos árabes dos séculos X e XI, como Ibn Sinan, em
seu Tratado sobre o método da análise e da síntese (BELLOSTA-BAYLET,
1994), e Ibn al-Haytham, em A análise e a síntese (RASHED, 1991a;
1991b), e a matemáticos imediatamente anteriores à época moderna,
como VIÈTE, em sua sua Introdução à arte analítica (1970, p. 1; KLEIN,
1992, p. 320), que são fiéis aos geômetras antigos. Sobre a história do
método, cf. N. W. GILBERT (1960) e HINTIKKA e REMES (1974, caps. 8 e
9).

[86] É difícil saber até que ponto Descartes não tem influenciado essa
concepção de síntese, ao caracterizá-la como o método que “se sert
d’une longue suite de définitions, de demandes, d’axiomes, de
théorèmes et de problèmes” (VII, 156, 9-11; IX, 122). Seja como for, são
os próprios autores das Segundas objeções (VII, 128, 13-19; IX, 101) que
solicitam a Descartes que faça uma exposição “more geometrico” de
suas conclusões, entendendo por esse procedimento, como Espinosa e
Pascal, aquele que demonstra a partir de definições, postulados e
axiomas, a exemplo de Euclides.

[87] Diz Descartes: “os antigos geômetras fizeram uso de uma espécie de
análise, que estendiam à resolução de todos os problemas, ainda que
não a tenham transmitido à posteridade. E, em nossa época, floresce um
gênero de aritmética, que se chama álgebra, que permite fazer no
tocante aos números o que os antigos faziam em relação às figuras.
Essas duas disciplinas não passam de frutos espontâneos dos princípios
inatos de nosso método” (X, 373, 13-20; 1985, p. 25). E, mais adiante:
“Na verdade, parece-me que alguns vestígios desta verdadeira
Matemática surgem ainda em Pappus e Diofanto, os quais, sem serem
dos primeiros tempos, viveram no entanto muitos séculos antes da nossa
era. E não me custa acreditar que, ulteriormente, os próprios autores a
fizeram desaparecer por uma espécie de astúcia perniciosa. (…) Houve,
enfim, alguns homens muito engenhosos que se esforçaram no nosso
século por ressuscitar a mesma arte, pois a que se designa com o
bárbaro nome de Álgebra não parece ser outra coisa, contanto que
apenas seja de tal modo liberta dos múltiplos números e inexplicáveis
figuras que a complicam, que não mais lhe falte aquele grau de
perspicácia e facilidade extremas que, por suposição nossa, devem
existir na verdadeira Matemática” (X, 376, 21-26; 377, 2-9; 1985, p.
27-28).

[88] Afinal, como diz o Discurso, Descartes pretende tomar de


“empréstimo o melhor da Análise geométrica e da Álgebra” e corrigir
“todos os defeitos de uma pela outra” (VI, 20, 22-24; 1993, p. 40).

[89] Viète (1970, p. 4), por exemplo, apresenta uma tabela de


correspondência entre os problemas por Diofanto e por ele examinados.

[90] Essa obra encontra-se traduzida para o francês por VER EECKE
(1959); para o inglês, existe a “tradução”/adaptação em notação
moderna, feita por HEATH (1964).

[91] Sua marca distintiva é a letra V (certamente o sigma final da palavra


grega). Traduzida por Ver Eecke pelo termo “arithme”, corresponde ao x
dos algebristas (e à res, à cosa ou coss, de onde surgiu a “linguagem”
cóssica, conhecida ainda por Descartes).

[92] DIOFANTO (1959, p. 8) afirma, por exemplo: “Aplique cela avec


adresse aux données des propositions, et, autant que possible, jusqu’à
ce qu’il reste une seule expression égale à une seule expression. Je te
montrarai plus tard comment l’on résut le cas où il reste deux
expressions égales à une seule”. A “igualação” de expressões, simples
ou não, corresponde à formação de uma equação.

[93] Essa forma de apresentação da solução dos problemas tratados por


Diofanto é extraída de Ver Eecke, em suas notas que acompanham a
tradução do texto.

[94] Se se tiver à mão uma equação ou a noção de equação, não é


preciso afirmar a pressuposição de que o problema esteja resolvido,
como faziam os geômetras. A própria equação, naturalmente, estabelece
isso, por exemplo, quando afirmamos que x²-4x+4=0 ou que x²=ax.

[95] O próximo passo é dado por Descartes: essa maneira de proceder


não se restringe à matemática, ainda que essa ciência é privilegiada no
que se refere à sua manifestação; ela é manifestação da própria
racionalidade humana.

[96] Publicada pela primeira vez em 1591, foi traduzida para o francês,
em 1630, por Vaulézard, juntamente com os Cinco livros dos zetéticos.
Cf. VAULÉZARD (1986, p. 7-66). Uma tradução inglesa se encontra em
apêndice a KLEIN (1968, p. 313-353). A Obra matemática de Viète,
publicada em 1646, foi reeditada em 1970.

[97] É assim que VIÈTE (1970, p. 12; destaques do próprio autor) finaliza
sua obra: “Denique fastuosum problema problematum ars Analytice,
triplicem Zetetices, Poristices et Exegetices formam tandem aiduta, iure
sibi adrogat, Quod est, NULLUM NON PROBLEMA SOLVERE”.

[98] BOYER (1976, p. 223-24) apresenta de forma adequada essa idéia


resgatada por Viète do método de análise, partilhada por geômetras e
“aritméticos”, ao redor da importância e do papel da “incógnita”. Diz ele:
“Viète (…) não gostava da palavra árabe “álgebra”. Ao procurar uma
outra palavra, Viète observou que em problemas envolvendo a “cosa” ou
quantidade incógnita, geralmente se procede do modo que Pappus e os
antigos haviam descrito como análise. Isto é, em vez de raciocinar a
partir do que é conhecido para o que se deve demonstrar, os algebristas
invariavelmente raciocinavam a partir da hipótese que a incógnita foi
dada e deduziam uma conclusão necessária da qual a incógnita pode ser
determinada. Em símbolos modernos, se quisermos resolver x²-3x+2=0,
por exemplo, partimos da premissa de que existe um valor de x que
satisfaz à equação; dessa hipótese tiramos a conclusão necessária que
(x-2)(x-1)=0 de modo que está satisfeita ou x-2=0 ou x-1=0 (ou ambas as
coisas), logo que necessariamente x é 2 ou 1. No entanto, isso não
significa que um, ou ambos, desses números satisfazem à equação a
menos que se possa inverter os passos do desenvolvimento do
raciocínio. Isto é, a análise deve ser seguida de demonstração sintética”.

[99] Diz VIÈTE (p. 11), no cap. VIII, 2: “Itaque Aequatio est magnitudinis
incertae cum certa comparatio”.

[100] Essa idéia é também de Descartes. A Regra XIV afirma que, “em
todo raciocínio, é apenas por comparação (per compariomem) que
conhecemos a verdade de uma maneira precisa”, que todo
conhecimento, além da simples intuição, só pode ser adquirido “pela
comparação (per compariomem) de dois ou mais objetos entre si” (X,
439, 19-21; 440, 1-5).

[101] Cf. o cap. V, n.º 5 (1970, p. 8).

[102] A lei da homogeneidade, a “suprema e perpétua lei das igualdades


e proporções” (1970, p. 2), é apresentada no cap. III. Uma equação
quadrática como bx²+dx=z é escrita assim: “B in A Quadratum, plus D
plano in A, aequari Z solido”, de sorte que “somente magnitudes
homogêneas podem ser comparadas entre si (Homogenea homogeneis
comparari)”. Assim, se A (ou x) e B (ou b) são segmentos de linha, D deve
ser uma área (plano) e Z um volume (sólido), de forma que cada uma das
três partes da equação (bx²; dx; z) é um sólido. Um outro exemplo pode
ser dado, pelo qual é possível perceber a dificuldade de Viète no uso de
uma simbologia adequada. No caso de uma equação como: a²/b+z =
(a²+zb)/b, Viète assim se expressava (KLEIN, 1968, p. 338): “And thus, in
the case of additions, let it be requered to add Z to A plane/B. The sum
will be (A plane)+(Z in B)”.

[103] Esse tema é tratado no cap. IV da obra supracitada. Diz VIÈTE


(1970, p. 4; 1968, p. 328; 1986, p. 30): “A logistice numerosa opera com
números; a logistice speciosa opera com espécies ou formas das coisas,
como, por exemplo, com as letras do alfabeto”.

[104] Não se pode deixar de salientar o avanço que houve, nessa época,
no que diz respeito à elaboração de regras algébricas e de manipulação
das equações. Descartes oferece no Livro III da Geometria um exemplo
desse esforço, onde trata, por exemplo, da relação entre o grau de uma
equação e o número de raízes dessa mesma equação (regra já conhecida
por alguns como Cardan, Girard e Harriot), da divisão de polinômios, da
determinação do número de raízes “verdadeiras” e “falsas”, de regras de
simplificação e de fatoração. Tudo isso dá dinamicidade e agilidade à
álgebra, enquanto o aperfeiçoamento do simbolismo dá mais
generalidade e “abstratidade”.

[105] Cf. o texto, na tradução de KLEIN (1968, p. 320): “In mathematics


there is a certain way of seeking the truth, a way wich Plato is said first to
have discovered, and which was called ‘analysis’ by Theon and was
definided by him as ‘taking the thing sought as granted and prodeeding
by means of what follows to a truth that is uncontested’; so, on the other
hand, ‘synthesis’ is ‘taking the thing that is granted and proceeding by
means of what follows to the conclusion and comprehension of the thing
sought’”. Cf. também VIÈTE (1970, p. 1) e VAULÉZARD (1986, p. 13).

[106] Continua ele (KLEIN, 1968, p. 320-21): “And although the ancients
set forth a twofold analysis, the zetetic (ζητητική) and the poristic
(ποριστική), to which Theon’s definition prticularly refers, it is nevertheless
fitting that there be established also a third kind, which may be called
rhetic or exegetic (ρητική η εξηγητική), so that there is a zetetic art by
which is found the equation or proportion between the magnitude that is
being sought and those that are given, a poristic art by which from the
equation or proportion the thuth of the theorem set up is investigated,
and an exegetic art by which from the equation set up or the proportion
there is produced the magnitude itself which is being sought. And thus,
the whole threefold analytical art, claming for itself this office, may be
defined as the science of right finding in mathematics”. Cf. VIÈTE (1970,
p. 1) e VAULÉZARD (1986, p. 13).

[107] Segundo FERRIER (1980, p. 138), Viète não está opondo, com suas
três espécies de análise, procedimentos diferentes e aplicáveis a casos
distintos, mas procedimentos complementares correspondentes às várias
etapas do método tradicional de análise. Segundo esse intérprete, a
análise zetética corresponde à parte da análise dos antigos chamada de
transformação ou análise própria, enquanto a porística corresponde à
resolução e a rética ou exegética, à síntese.

[108] Esse é o problema tratado com maior extensão na obra. VUILLEMIN


(1960, p. 99) o considera como o problema central da obra: “toute la
Géométrie de Descartes est destinée à résoudre, par une méthode
nouvelle, analytique et non plus synthétique, ainsi qu’à généraliser le
problème de Pappus”.
[109] Publicada em 1637, a obra tem como título: “Discours de la méthode
pour bien conduire la raison et chercher la vérité dans les sciences. Plus
la Dioptrique, les Météores et la Géométrie, qui sont des essais de cette
méthode” (VI, XIII). A Geometria é o terceiro dos ensaios (VI, 367-485).

[110] Cf. algumas passagens da Segunda Parte do Discurso: “Essas


longas cadeias de razões, todas simples e fáceis, de que os geômetras
costumam servir-se para chegar às mais difíceis demonstrações, haviam-
me dado ocasião de imaginar que todas as coisas possíveis de cair sob o
conhecimento dos homens seguem-se umas às outras da mesma
maneira e que, contanto que nos abstenhamos somente de aceitar por
verdadeira qualquer que não o seja, e que guardemos sempre a ordem
necessária para deduzi-las umas das outras, não pode haver quaisquer
tão afastadas a que não se chegue por fim, nem tão ocultas que não se
descubram”. E continua o autor: “Mas não foi meu intuito, para tanto,
procurar aprender todas essas ciências particulares que se chamam
comumente matemáticas; e, vendo que, embora seus objetos sejam
diferentes, não deixam de concordar todas, pelo fato de não conferirem
nesses objetos senão as diversas ações ou proporções que neles se
encontram, pensei que valia mais examinar somente essas proporções
em geral”. Por fim: “Mas o que me contentava mais nesse método era o
fato de que, por ele, estava seguro de usar em tudo minha razão, se não
perfeitamente, ao menos o melhor que eu pudesse; além disso, sentia,
ao praticá-lo, que meu espírito se acostumava pouco a pouco a
conceber mais nítida e distintamente seus objetos, e que, não o tendo
submetido a qualquer matéria particular, prometia a mim mesmo aplicá-lo
tão utilmente às dificuldades das outras ciências como o fizera com as
da Álgebra” (VI, 19, 6-17; 19, 29-20, 6; 21, 18-27).

[111] Os títulos e o conteúdo dessas seções são extremamente


significativos pela clareza com que resumem as duas etapas do método.
Cf., respectivamente, “Comment il faut venir aux équations qui servent à
résoudre les problèmes” (VI, 372, 10-374, 19) e “Comment ils se
résolvent” (VI, 374, 28-376, 29).
[112] Bos, em uma rápida referência feita em sua comunicação (oral)
apresentada por ocasião do XXVI Congresso da Associação das
Sociedades de Filosofia de Língua Francesa, evento destinado à
Celebração do quarto centenário do nascimento de Descartes e realizado
em Paris de 30/08 a 3/09 de 1996, é o único intérprete a nomear da
mesma forma essas etapas. Outros autores examinam as seções aqui
citadas e a metodologia nelas apresentada, mas não nomeiam as etapas
como se faz aqui.

[113] As principais são as seguintes: a primeira é porque o método de


Descartes apresenta “semelhanças estruturais” com o método de
análise-e-síntese, praticada pelos (e a partir dos) gregos; a segunda se
encontra em várias cartas de Descartes e na própria Geometria, onde
são oferecidas evidências a respeito destas duas etapas e desta
nomeação.

[114] Cf. o texto: “Ainsi, voulant résoudre quelque problème, on doit


d’abord le considérer comme déjà fait” (372, 10-11).

[115] A configuração pode ser dita completa, não no sentido de que não
haverá necessidade de introduzir outros objetos geométricos (por meio
de construções, como faziam os antigos, ou por meio de outros
recursos), mas na medida em que os objetos enunciados no problema
são todos considerados como dados, tanto os conhecidos quanto os
desconhecidos, bem como outros necessários à resolução do problema.

[116] Pappus, como foi visto acima, atribui à síntese certa naturalidade,
inexistente na análise.

[117] Isto significa que, sob o ponto de vista do cálculo e da resolução do


problema, não há distinção entre os objetos conhecidos e os
desconhecidos. A distinção entre tais objetos será garantida pela
escritura e pelo simbolismo que Descartes utilizará.
[118] A etapa analítica em Descartes, com a introdução da notação
algébrica e de suas conseqüências, perde sua dimensão antinatural
como procedimento contra a corrente, em contraposição à etapa
sintética. Serão as várias possibilidades da resolução do problema que
são ditas mais ou menos naturais, em função de sua simplicidade ou
não.

[119] Cf. o texto: “Ainsi, voulant résoudre quelque problème, on doit


d’abord le considérer comme déjà fait, et donner des noms a toutes les
lignes qui semblent nécessaires pour le construire, aussi bien a celles qui
sont inconnues qu’aux autres” (372, 10-14).

[120] A análise não altera, portanto, o objetivo final ou a natureza do


problema: determinar o que é desconhecido a partir do que é dado.

[121] Ela também elimina toda consideração sobre a problemática da


“direção da análise”, que poderia existir na geometria grega. Esse
problema nos antigos, como se viu, é menos real do que
tradicionalmente se pensava. Mesmo assim, persistiam a questão da
convertibilidade de alguns dos passos da análise e a da existência da
resolução em contraposição à transformação, ambas partes da etapa
analítica, mas com função distinta.

[122] As Regras apresentam como razões para a utilização do


simbolismo, além da sua simplicidade e pureza, a economia das palavras
e o auxílio à memória que representa. Cf. a Regra XVI (X, 454-ss).

[123] Como diz o Discurso: “a primeira [a análise dos antigos] permanece


sempre tão adstrita à consideração das figuras, que não pode exercitar o
entendimento sem fatigar muito a imaginação” (VI, 17, 30-18, 1; 1983, p.
37)

[124] Diz Descartes: “Puis, sans considérer aucune différence entre ces
lignes connues et inconnues, on doit parcourir la difficulté selon l’ordre
qui montre, le plus naturellement de tout, en quelle sorte elles dépendent
mutuellement les unes des autres, jusque à ce qu’on ait trouvé moyen
d’exprimer une même quantité en deux façons: ce qui se nomme une
Equation, car les termes de l’une de ces deux façons sont égaux à ceux
de l’autre” (372, 14-22).

[125] Afirma a obra: “Et on doit trouver autant de telles équations qu’on a
supposé de lignes que étaient inconnues. Ou bien, s’il ne s’en trouve pas
tant, et que, nonobstant, on n’omet rien de ce qui est désiré en la
question, cela témoigne qu’elle n’est pas entièrement déterminée; et lors,
on peut prendre à description des lignes connues, pour tout les
inconnues auxquelles ne corresponde aucune équation” (372, 22-373, 2).

[126] Cf. notas anteriores.

[127] Há, entretanto, um perigo aqui, segundo o que diz o início do Livro
III da obra: alguns procedimentos (decorrentes dos caminhos escolhidos)
podem não ser adequados metodologicamente, desde que utilizem
meios mais complexos dos exigidos, isto é, objetos geométricos (curvas)
de grau superior ao mínimo necessário: na resolução de qualquer
problema, há que se utilizar os meios mais simples possíveis. Cf. as duas
primeiras seções do Livro III (442-44).

[128] Ela, pois, somada às etapas anteriores, se assemelha ao que


Descartes entenderá, nas Regras, por exame completo e ordenado da
questão, bem como pelo que entende, pelo menos em parte, por
enumeração.
[129] Diz Descartes: “Après cela, s’il en reste encore plusieurs, il se faut
servir par ordre de chacune des équations qui restent aussi, soit en la
considérant tout seule, soit en la considérant avec les autres, pour
expliques chacune de ces lignes inconnues, et faire ainsi, en les
démêlant, qu’il n’en demeure qu’une seule, égale à quelque autre qui soit
connue, ou bien dont le carré, ou le cube, ou le carré de carré, ou le
sursolide, ou le carré de cube, etc., soit égal à ce quise produit par
l’addition, ou soustraction, de deux ou plusieurs autres quantités, dont
l’une soit connue, et les autres soient composées de quelques moyennes
proportionnelles entre l’unité et ce carré, ou cube, ou carré de carré, etc.,
multipliées par d’autres connues. (…) Et on peut toujours réduire ainsi
toutes les quantités inconnues à une seule, lorsque le problème se peut
construire par des cercles et des lignes droites, ou aussi par des sections
coniques, ou même par quelque autre ligne qui ne soit que d’un ou deux
degrés plus composé. Mais je ne m’arrête point à expliquer ceci en
détail, à cause que je vous ôterais le plaisir de l’apprendre de vous
même, et l’utilité de cultiver votre esprit en vous y exerçant, qui est, à
mon avis, la principale qu’on puisse tirer de cette science. Aussi que je
n’y remarqué rien de si difficile, que ceux qui seront un peu versés en la
Géométrie commune et en la Algèbre, et qui prendront garde à tout ce
qui est en ce traité, ne puissente trouver. C’est pourquoi je me
contenterai ici de vous avertir que, pourvu qu’en démêlant ces équations
on ne manque point à se servir de toutes les divisions qui sont possibles,
on aura infailliblement le plus simples termes auxquels la question puisse
être réduite” (373, 2-15; 373, 28-374, 19).

[130] Cf.: “et faire ainsi, en les démêlant, qu’il n’en demeure qu’une seule”
(373, 7-8).
[131] Diz Descartes na pequena seção intitulada “Quels sont les
problèmes plans”, que se encontra entre as duas seções que estão
sendo examinadas aqui: “Et que, si elle peut être résolue par la
Géométrie ordinaire, c’est à dire en ne se servant que de lignes droites et
circulaires tracées sur une superficie plate, lorsque la dernière Equation
aura entièrement démêlée, il n’y restera, tout au plus, qu’un carré inconnu
égal à ce qui se produit de l’addition, ou soustraction, de la racine
multipliée par quelque quantité connue, et de quelque autre quantité
aussi connue” (374, 20-26).

[132] Figura extraída da Geometria (VI, 375).

[133] Como Descartes está fazendo geometria, ele não considera


soluções aritméticas. Em outros termos, a obra de Descartes não é um
tratado sobre equações algébricas e de sua resolução. As equações
fazem parte do processo de resolução de problemas geométricos, isto é,
elas têm sua origem e sentido dentro de tais problemas e, neste sentido,
são mais meio que fim.

[134] Diz Descartes na seção "De quelles lignes courbes on peut se servir
en la construction de chaque problème": "Encore que toutes les lignes
courbes, qui peuvent être décrites par quelque mouvement régulier,
doivent être reçues en la Géométrie, ce n’est pas a dire qu’il soit permis
de se servir indifféremment de la première qui se rencontre, pour la
construction de chaque problème; mais il faut avoir soin de choisir
toujours la plus simple par laquelle il soit possible de le résoudre. Et
même, il est a remarquer que, par les plus simples, on ne doit pas
seulement entendre celles qui peuvent le plus aisément être décrites, ni
celles qui rendent la construction ou la démonstration du Problème
proposé plus facile, mais principalement celles qui sont du plus simples
genre qui puisse a déterminer la quantité qui est cherchée" (442, 4-17).
[135] As razões pelas quais o autor omite uma ou outra etapa de seu
método são várias e de ordem diversa. A primeira, evidentemente, é
decorrente da personalidade de seu autor. Ele detesta ser prolixo e ser
excessivamente detalhado, quando não é fundamental. Além disso, ele
não é amante da formalidade e, portanto, da rigidez expositiva e da
estética daí decorrente. Ao contrário, o que importa é o conteúdo, e a
forma é que é sacrificada em função dele. Assim, Descartes é o mais
breve possível (principalmente em matemática) e funde etapas quando é
possível. Uma segunda razão é que Descartes não gosta de tudo ensinar
ou expor. Isto também está ligado à sua personalidade, mas
principalmente à sua concepção de método: dado que ele consiste mais
na prática e na hábil manipulação do conteúdo que na apreensão de
algumas regras fixas que se aplique a um conteúdo sempre diferente, o
melhor a fazer é exercitar “nos neuveux”. Uma terceira razão é que
Descartes trata os problemas geométricos em sua maior generalidade.
Isto significa que os problemas têm soluções semelhantes ou podem se
submeter a um tratamento comum ou mais geral. Uma quarta razão é
que Descartes fornece uma classificação dos problemas (e soluções) e,
portanto, já sabe de antemão qual é a solução de uma equação de uma
determinado grau (ou pelo menos quais meios deve utilizar). A quinta e
última razão é que a introdução da álgebra na geometria libera esta
última do problema da “reversibilidade dos passos da análise”, como
existia na geometria antiga.

[136] É necessário, para finalizar essa apresentação, ter em mente


também alguns procedimentos que são pressupostos ou ao menos vêm
ligados à metodologia e que são fundamentais para a efetiva exploração
de todas as potencialidades do método aqui exposto. Estes
procedimentos apresentados ao longo da Geometria são notadamente de
dois tipos: o primeiro consiste na introdução e na interpretação das
operações aritméticas na geometria; o segundo diz respeito à
apresentação de regras de manipulação e de operacionalização
algébricas, enfim, à exposição de uma teoria das equações.

[137] Descartes transcreve o problema (VI, 377-79), conforme PAPPUS o


apresentou no Livro VII de sua obra (1982, p. 506-10), segundo a
tradução latina de COMMANDINO (1588). Uma tradução francesa desse
trecho da obra de Pappus (juntamente com um comentário) é dada por
Paul Tannery no final do respectivo volume da obra cartesiana (VI,
721-25). Um outro problema do mesmo livro da obra de PAPPUS (Prop.
72, p. 606-08) é examinado por Descartes no Livro III da Geometria (VI,
462-63). É exatamente no início desse Livro VII que PAPPUS apresenta
(p. 477-78) sua descrição sobre o método de análise (e síntese). Essa é a
prova material de que Descartes não somente conheceu, mas manuseou
e estudou a obra pappusiana.

[138] Descartes critica, em várias ocasiões, itens característicos dos


procedimentos empregados pelos antigos. Cf. o texto que antecede a
exposição do problema de Pappus: “Ce que je ne crois pas que les
anciens aient remarqué; car, autrement, ils n’eussent pas pris la peine
d’en écrire tant de gros livres, où le seul ordre de leurs propositions nous
fait connaître qu’ils n’ont point eu la vraie méthode pour les trouver
toutes, mais qu’ils ont seulement ramassé celles qu’ils ont
rencontrées” (376, 23-28). Isso não significa, entretanto, que o filósofo
esteja criticando o método de análise dos geômetras, mas as técnicas
utilizadas por eles na resolução dos problemas, a falta de generalidade e
de ordem, enfim, a não-percepção de que os problemas de um mesmo
nível podem ser resolvidos pelo meio dos mesmos instrumentos. Assim,
diz ele, “les problèmes de la géométrie ordinaire [podem ser resolvidos,
todos eles], sans faire autre chose que le peu qui est compris dans les
quatre figures que j’ai expliquées. Ce que je ne crois pas que les anciens
aient remarqué” (376, 20-23). Mais adiante, ele apresenta outra crítica,
pela não-utilização de meios algébricos na resolução dos problemas
geométricos: “Ou je vous prie de remarquer, en passant, que le scrupule
que faisaient les anciens d’user des termes de l’arithmétique en la
géométrie, qui ne pouvait procéder que de ce qu’ils ne voyaient pas
assez clairement leur rapport, causait beaucoup d’obscurité et
d’embarras en la façon dont ils s’expliquaient” (378, 23-28).

[139] A frase canônica do começo da etapa analítica se faz presente:


“Premièrement, je supose la chose comme déjà faite” (382, 18-19).

[140] Diz Descartes: “pour me démêler de la confusion de toutes ces


lignes” (382, 19-383, 1).

[141] Isto é, bcfgx² = (bcfgl+bcgz–cfgz-dez²)x + (cfglz+cgz²-dekz²-ez³).

[142] Figura extraída da Geometria (VI, 382).

[143] Pode acontecer que, em certos casos, alguns termos sejam nulos,
enquanto os sinais de soma e subtração podem variar bastante (399,
21-23).

[144] Descartes trata não somente deste caso particular, mas considera
todas as possíveis combinações oriundas das mudanças de sinais ou
quando determinado termo é nulo. Vê-se, pois, que Descartes, aqui, trata
do problema em toda a sua generalidade.

[145] Essa exposição organizada dos casos possíveis é extraída de


SCOTT (1976, p. 108).

[146] O ponto N’ não é fornecido por Descartes. Ele está sobre a linha
NM, do lado oposto a N, em circunstância idêntica.

[147] Descartes utiliza, em várias ocasiões, o Livro I das Cônicas de


Apolônio. Nesse caso, Scott está se referindo à Prop. 13, segundo
indicações do próprio Descartes.

[148] Cf. a seção intitulada “Démonstration de tout ce qui vient d’être


expliqué” (404, 6-406, 10). Descartes não demonstra tudo, entretanto; e
algumas frases de efeito, como: “Et les démonstrations de tout ceci sont
evidentes”, “Et on peut facilement examiner tous les autres cas en même
sorte” (404, 6; 406, 9-10), parecem querer suprir a falta delas.

[149] Figura extraída da obra de SCOTT (1976, p. 110).

[150] Figura extraída da Geometria (VI, 398).

[151] Casos com cinco linhas dadas são também examinados por
Descartes (407-411). Um dos resultados da investigação cartesiana é a
classificação das curvas, soluções do problema de Pappus generalizado
para n linhas, em gêneros e o estabelecimento de sua relação com o
grau da equação correspondente. Assim, problemas de três e quatro
linhas dadas originam equações de segundo grau e pertencem ao
primeiro gênero; problemas de cinco a oito linhas dadas originam
equações de terceiro e quarto graus e pertencem ao segundo gênero;
problemas de nove a doze linhas dadas originam equações de quinto e
sexto graus e pertencem ao terceiro gênero; e assim por diante. Cf., por
exemplo, o quadro apresentado por VUILLEMIN (1960, p. 109).

[152] Diz Descartes: “Ao reste, ces mêmes racines se peuvent trouver par
une infinité d’autres moyens, et j’ai seulement voulu mettre ceux-ci,
comme fort simple, afin de faire voir qu’on peut construire tous les
problèmes de la Géométrie ordinaire” (376, 18-21; itálico acrescentado).
Descartes está se referindo à seção “Como eles (os problemas) são
resolvidos”, com total privilégio à construção, dado que a demonstração
é totalmente dispensável, mas também porque resolver, para Descartes,
é antes de tudo construir. Na verdade, o termo “construção” é
relativamente abundante na Geometria, principalmente no Livro III. Cf.,
por exemplo, os títulos das seguintes seções: “Exemple de la
construction de ce problème en la conchoïde” (423, 17), “De quelles
lignes courbes on peut se servir en la construction de chaque
problème” (442, 4), “Façon générale pour construire tous les problèmes
solides, réduits a une équation de trois ou quatre dimensions” (464, 17),
“Que tous les problèmes solides se peuvent réduire à ces deux
constructions” (471, 11), “Façon générale pour construire tous les
problèmes réduits a une équation qui n’a point plus de six
dimensions” (476, 25).

[153] Cf. a seção “Démonstration de tout ce qui vient d’être


expliqué” (404, 6-406, 10)
[154] O termo “demonstração” aparece mais raramente na obra. Um caso,
além do já citado, aparece no começo do Livro III. Diz Descartes: “Et
même, il est a remarquer que, par les plus simples, on ne doit pas
seulement entendre celles qui peuvent le plus aisément être décrites, ni
celles qui rendent la construction ou la démonstration du problème
proposé plus facile” (442, 11-15).

[155] Diz ele: “Mais le bon est, touchant cette question de Pappus, que je
n’en ai mis que la construction et la démonstration entière, sans en
mettre toute l’analyse, laquelle ils s’imaginent que j’ai mise seule: en quoi
ils témoignent qu’ils y entendent bien peu. Mais ce qui les trompe, c’est
que j’en fais la construction, comme les architectes font les bâtiments, en
prescrivant seulement tout ce qu’il faut faire, et laissant le travail des
mains aux charpentiers et aux maçons. Ils ne connaissent pas aussi ma
démonstration, a cause que j’y parle par a b. Ce qui ne la rend toutefois
en rien différente de celles des anciens, sinon que par cette façon je puis
mettre souvent en une ligne ce dont ils remplissent plusieurs pages, et
pour cette cause elle est incomparablement plus claire, plus facile et
moins sujette à erreur que la leur. Pour l’analyse, j’en ai omise une partie,
afin de retenir les esprits malins en leur devoir” (II, 83, 5-8).

[156] Diz a carta: “il [de Beaune] a fort bien vû en ma Géométrie les
constructions et les demonstrations de tous les lieux plans et solides,
dont les autres disaient que je n’avais mis qu’une simple analyse” (II, 524,
4-7).

[157] Diz Descartes: “Et les deux constructions que j’ai données pour
l’hyperbole, page 330 et 331 [VI, 402-03], se pouvaient expliquer par une
seule. Je n’ai point donné l’analyse de ces lieux, mais seulement leur
construction, comme j’ai fait aussi de la plupart des règles du troisième
Livre. Et au contraire, pour les tangentes je n’ai donné qu’un simple
exemple de l’analyse, pris même d’un biais assez difficile, et j’y ai omis
beaucoup de choses qui pouvaient y être ajoutées pour la facilité de la
pratique” (II, 511, 13-22).
[158] Diz a carta: “Je n’ai nullement changé de medium en ma
démonstration de la Roulette, car il consiste en l’égalité des triangles
inscrits, ce que j’ai toujours retenu; mais je l’avais trouvé la première fois
analyticè; et depuis, pour ce que j’ai vû qu’il [Roberval] n’en avait sû faire
le calcul, je l’ai expliqué après syntheticè” (II, 400, 16-18). Cf. também na
mesma carta: “M. F[ermat] a fort bien trouvé la tangente de la roulette, et
elle se rapporte à la mienne; mais s’il en envoye la démonstration
analyticè et syntheticè, comme il offre, je serai bien aise de la voir” (394,
1-4).

[159] BEYSSADE (1996, p. 34-35) talvez seja o único autor que reconheça
a importância do problema da roulette para a compreensão dos
conceitos de análise e de síntese, mas, mesmo assim, não vai além de
uma rápida observação: “2) Il [Descartes] a commencé à préciser cette
opposition [entre análise e síntese] en 1638, sur le problème
mathématique de la roulette, en soutenant qu’il avait d’abord trouvé sa
démonstration analytice, puis qu’il avait exposé la même démonstration
synthetice. 3) Il a achevé d’expliciter l’opposition en 1640-1641, quand on
lui a demandé de présenter sa métaphysique à la manière des géomètres,
more geometrico”.

[160] Cf. também a carta de Mersenne, de 28 de abril, onde o problema é


apresentado (II, 116, 4-17, 5). Segundo Mersenne, Roberval demonstrou,
primeiramente, que a área da roulette é tripla em relação à do círculo,
quando o plano (a reta) é igual à circunferência (perímetro) da roulette e,
depois, estabeleceu a proporção, no caso do plano ser diferente.
Descartes discutirá especificamente o primeiro caso, mas resolverá, por
extensão, também o segundo.

[161] Figura extraída da carta de 27 de maio de 1638 (II, 136).

[162] Figuras extraídas da carta de 27 de julho de 1638 (II, 258-9).

[163] Figura extraída da carta de 27 de julho de 1638 (II, 261).

[164] Sendo, pois, AB=πr (2πr é o perímetro da circunferência) e BC=2r


(diâmetro), a área (a) do triângulo será igual à área do círculo (πr²); isto é,
a = (base x altura)/2 = (πr x 2r)/2 = πr².

[165] Outras curvas mecânicas são a quadratriz de Híppias (ou de


Dinostratus) e a espiral de Arquimedes, enquanto que a conchóide de
Nicomedes e a cissóide de Díocles são geométricas, ao contrário do que
pensavam os antigos. Para um estudo dessas curvas, cf., p. ex,
VUILLEMIN (1960, Cap. I e Notas finais IV, V e VI). Uma curva geométrica,
para Descartes, é aquela que é “precisa e exata” (VI, 389, 27), de sorte
que “podemos sempre ter um conhecimento exato de sua medida” (390,
5-6) (medida aqui entendida não numericamente, mas como grandeza
passível de ser construída). Geometricamente falando, são aceitas as
curvas, por mais complexas que sejam, desde que “descritas por um
movimento contínuo, ou por vários que se entresseguem e dos quais os
últimos sejam inteiramente determinados por aqueles que os
precedem” (390, 2-4). Algebricamente, isso significa, ainda que
Descartes não tenha estabelecido com todas as letras essa equiparação
ou equivalência, que as curvas chamadas geométricas “têm
necessariamente alguma relação com todos os pontos de uma linha reta,
a qual pode ser expressa por alguma equação, em todos por uma
mesma” (392, 23-25), de forma que a toda curva geométrica corresponde
uma equação algébrica e a toda equação algébrica corresponde uma
curva geométrica. Por sua vez, as curvas mecânicas se originam de dois
ou mais movimentos independentes entre si, cujas equações
correspondentes não são algébricas, mas transcendentes.

[166] Talvez Descartes ofereça a análise independentemente da síntese


exatamente para evitar fornecer a resolução detalhada aos “esprits
malins”, mesmo que (ou talvez porque) se trate de uma questão “tão
fácil”: “mais je ne vois pas qu’il y ait de quoi faire tant de bruit, d’avoir
trouvé un chose qui est si facile, qui quiconque sait tant soit peu de
Géométrie ne peut manquer de la trouver, pourvue qu’il la cherche” (135,
14-18). Nesse sentido, Descartes tem razão quando diz que não alterou a
natureza ou “medium” da demonstração e que é Roberval que não soube
completar o cálculo (cf. a citação abaixo) nem entender a análise: “Et ce
que j’ai mis ici [na síntese] fort au long, afin de pouvoir être entendu par
ceux qui ne se servent de l’analyse, peut être trouvé en trois coups de
plume par le calcul” (263, 4-7).

[167] Por isso – e também porque não resolve o problema –, ela é dita,
por vezes, ser uma “simple analyse” (II, 524, 7), enquanto que uma
análise completa e não meramente “simples” engloba também a síntese
ou, pelo menos, a construção, já que a demonstração pode ser
dispensada em razão da evidência (intuitiva) das outras etapas.

[168] A análise, como afirmou também a citação dada acima, tem a


característica de se resumir ao mínimo e de não se prender ao detalhe
“demonstrativo”: “Et je l’avais écrite fort succinctement, tant afin
d’épargner le temps, que pour ce que je pensais qu’ils [ceux qui en font
grand bruit] ne manqueraient pas de la reconnaître pour bonne, si tôt
qu’ils en verraient les premiers mots” (257, 9-13). Por sua vez, a
utilização da expressão “ìsso é evidente”, muito comum na análise (II,
135, 22;136, 4-5; 136, 9) e encontrada em outras ocasiões, mas mais
raramente na síntese, poderia ser vista como uma maneira de o autor se
furtar à necessidade de uma explicitação (“demonstração”) dos passos
realizados, mas é muito mais a indicação da importância atribuída à
descoberta dos passos, antes do que à sua justificação. A análise se
adapta também ao espírito cartesiano de “ne pas dire tout”.

[169] Diz ele: “Je n’ai nullement changé de medium en ma démonstration


de la Roulette, car il consiste en l’égalité des triangles inscrits, ce que j’ai
toujours retenu; mais je l’avais trouvé la première fois analyticè; et
depuis, pour ce que j’ai vû qu’il [Roberval] n’en avait sû faire le calcul, je
l’ai expliqué après syntheticè” (II, 400, 16-18; negrito acrescentado).

[170] Como em outras ocasiões da síntese, a construção é tida como


suficiente (no caso, o conjunto das várias construções), sendo a
demonstração dispensável para quem sabe um pouco de geometria, uma
vez que a construção é introdução e exibição de elementos e relações,
cuja evidência garante por si só a sua legitimidade ou a resolução do
problema. Assim, depois da construção, o autor afirma: “Ce qui prouve
assez que l’espace φχω est égal au demi cercle αδβ pour ceux qui savent
généralement (…). Mais pour ce que c’est un théorème qui ne serait peut-
être pas avoué de tous, je poursuis en cette sorte (261, 5-13). E segue a
demonstração propriamente dita.

[171] Como assinala BEYSSADE (1976, p. 391-92), as Secondae


responsiones afirmam que a síntese é mais prolixa (VII, 159, 17), de modo
a tornar tudo explícito e sem subentendidos. Espinosa dirá o mesmo na
Ética, IV, Prop. 18, Escólio. A análise é, por outro lado, mais enigmática e
mais concisa, além de exigir atenção e boa vontade do leitor (o que
parece não ser o caso de Roberval).

[172] Diferentemente do que ocorrerá mais tarde, Descartes está falando


ainda de um único método, composto de duas etapas. Percebe-se,
desde já, entretanto, que, sendo a etapa analítica e a construção os
momentos centrais e complementares entre si, a demonstração vai
sendo posta de lado. Com isso, análise e construção se aproximam e
acabam se juntando, expulsando de vez a demonstração. Começa a
nascer a análise por oposição a síntese, até esta última adquirir o sentido
ou o modelo apresentado pela axiomática euclidiana.

[173] É difícil determinar se a Geometria tem por objetivo central fornecer


um método de solução de problemas, provar uma determinada tese ou
teoria geométrica, fornecer uma classificação dos objetos geométricos
ou estabelecer os limites desta mesma ciência. Neste sentido, parece
que ela não tem uma única direção e não pode ser lida unilateralmente.

[174] Esta mesma classificação estabelece os limites e as fronteiras da


própria geometria, com a conseqüente exclusão de objetos considerados
até então como a ela pertencentes.

[175] Diz ela: “Tous les problèmes de géométrie se peuvent facilement


réduire à tels termes, qu’il n’est besoin, par après, que de connaître la
longueur de quelques lignes droites, pour les construire” (369, 4-7).

[176] Não há como não pensar aqui no procedimento da análise e em seu


principal objetivo: exprimir a dificuldade do problema pela equação mais
simples possível.

[177] Cf. a citação dada mais adiante.

[178] Diz ele: “Mais, pour comprendre ensemble toutes celles [linhas
curvas] qui sont en la nature, et les distinguer par ordre en certains
genres, je ne sache rien de meilleur que de dire que tous les points de
celles qu’on peut dire Géométriques, c’est à dire qui tombent sous
quelque mesure précise et exacte, ont nécessairement quelque rapport à
tour le points d’une ligne droite, qui peut être exprimé par quelque
équation, en tous par une même” (392, 17-25).

[179] Nesse sentido, entende-se o objetivo de Descartes ao apresentar


seu procedimento para extrair a normal de uma curva dada (413, 17-ss),
pois “pour trouver les proprietés des lignes curbes, il suffit de savoir le
rapport qu’on tous leurs points à ceux des lignes droites” (412, 25-30,
título da seção).

[180] Neste caso, praticamente todos os Elementos de Euclides tem como


objeto central a linha reta.
[181] A conquista do objeto simples, por exemplo, a equação, não
representa a solução do problema, mas seu passo fundamental. Em
geometria, deve-se construir ainda a equação.

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