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O dia em que cresci

Uma das coisas que eu disse em 2009 e foi anotada por amigos como grande
aforismo, a ser repetido em qualquer ocasião que caiba, é "o homem é um ser
eminentemente nostálgico". Referia-me, segundo lembro, às nossas
lembranças do outro tempo, onde tudo sorria. Do tempo da passada amizade,
do vida descomplicada, desse doce fardo que o tempo nos atirou no lombo e
hoje carregamos para todos os lados e sorrimos quando indentificamos uns nos
outros essas besteiras. É a nostalgia.

Somos, portanto, criaturas que criam e sustentam a nostalgia. E nada mais


nostálgico do que entrar um novo ano, do que sopesar o que passou,
arquitetar o que vem por aí. Nessa tarefa, ontem, a nostalgia levou-me a
procurar arquivos antigos, remexia uns guardados de um hd velho e
aposentado, que eu queria ver se ainda funcionava. Lá estavam algumas
anotações de quando eu tinha 14 anos, sonhava, vivia e queria mudar o
mundo, eu fui jovem um dia - naquele tempo não existiam blogues e ainda
assim eu conseguia perder tanto tempo quanto hoje defronte ao computador.

Em 1998 eu nadava todos os dias no clube, era instrutor de natação de meio


período no verão, ia para escola, tinha vida social, fazia curso de inglês,
jogava Metal Gear Solid e Gran Turismo, lia com voracidade Julio Verne.
Brincava com computadores e era capaz de algumas coisas em matéria de
programação. Foi aos 14 anos que dei meu primeiro beijo. Mesmo para os
padrões da minha geração, eu era praticamente um ancião.

A garota que beijei fazia intercâmbio aqui no Brasil, era australiana. Confesso
que não lembrava do primeiro beijo - é sério - sabia da época, mas não tinha
na memória a identidade da vítima e as condições pelas quais deu-se o
evento, sob muitos aspectos, inaugurador da minha longa carreira de
frustrações com o sexo oposto, do meu longo catálogo de desastres vinculados
a difícil arte de entregar sentimentos a pessoas que desconhecemos e que
justamente por isso são imprevisíveis. Depois da intercambista, naquele
mesmo ano, aconteceram outros beijos. Eu era foda. Talvez por isso tenha
esquecido dos detalhes desse episódio. Mas de todo jeito, não foi o registro do
beijo que me chamou atenção nessa relíquia da minha era paleozóica, e sim
umas três ou quatro linhas, que compõe o contexto da anotação, a título
apenas de registro. O que me interessou nesse artefato escavado depois de
espaná-lo e assoprar a poeira foi o assunto que falamos antes de nos beijar e
ao qual, aos 14 anos, dei pouquíssima atenção, obtuso e idiota da
objetividade que era.

Esqueci sinceramente de tudo isso - se me perguntassem meu primeiro beijo,


diria que foi numa certa Thaís alguns meses depois - e fiquei feliz em tropeçar
nas notas quase fossilizadas nos clusters do velho hd de 8 gigabytes (no meu
celular cabe mais do que isso!), onde estava tudo registrado para que a
arqueologia trouxesse a luz da contemporaneidade o que fiz naquela noite de
outubro de 1998. O nome dela era Hellen, nos conhecemos na escola, ela
tinha a mesma idade e estava na mesma série, embora em outra classe, e
tinha vindo da Austália por compensação de uma garota, com a qual estudei
antes e depois disso tudo, chamada Karen, e que fora para a Rússia.

Mentiria se dissesse que lembro de Hellen. Não lembro bem da face, da voz.
Lembro que tinha um cabelo loiro, mas mais para o castanho do que para o
loiro. Por conta do destino, não tenho mais fotos daquela época, e eu lembro
que tinha uma com ela no dia em que ela foi embora do Brasil, na despedida,
onde não houve beijo, disso lembro bem, a festa era na casa da família que a
hospedava, e de certa forma éramos crianças. A conhecera, conforme disse,
na escola, e foi o fato de frequentarmos a mesma escola de idiomas que
extendeu nosso contato e nos fez próximos o suficiente para que ela caísse na
asneira de me dar um beijo, ou vice-versa. Hellen, por suposto, não tinha
dificuldades no inglês, estudava espanhol. Quem engatinhava no idioma saxão
era eu, conversávamos um híbrido de inglês, português, espanhol e mímica.

Foi numa festinha de aniversário que nos beijamos. Registrei que


conversávamos no momento, apartados de todos, "sometimes in portunhol, y
algumas veces in portuguese". Anotei que o assunto era sobre palavras e
definições que não existem paralelos nos idiomas nativos. Um dos exemplos
mais bem acabados disso é a palavra saudade, "o charme brasileiro", que não
aparece em muitos idiomas - pra não dizer em quase nenhum que não o
português. Não posso me fiar muito no registro, mas consideremos que é o
único que eu tenho, que na época não bebia e que não considerava naquele
momento ser jornalista, o que garante ao texto alguma probidade.

Escrevi há 11 anos que tentei explicar saudade para Hellen e ela me veio com
as comparações disponíveis no inglês, onde a gente diz "I miss you", que em
libérrima tradução, conforme sabe-se, daria num "sinto sua falta". Mas não é
isso. Saudade é mais que sentir falta, saudade vai além, saudade não é
charme brasileiro, saudade é qualquer coisa metafísica, saudade é estar com
alguém, com algo, é estar em outro tempo, outro lugar, é sentir a plenitude
de algo fugidio, que não é mais, que não há mais. Saudade é uma
reminiscência, saudade é uma coisa pesada, imensa, saudade é meio pedra,
meio aço. Saudade dá em todo mundo, mas não é todo mundo que sabe como
chamá-la, porque não é todo mundo que tem nome pra isso, não é todo
mundo que fala português. Saudade é sentir as coisas ao contrário -
backwards. Não é sentir falta, sentir falta é consequência de ter saudade.
Saudade é ainda poder sentir coisas que não são do tempo, do dia, coisas que
passaram, que não são mais, que foram. Saudade é tempo verbal, é outra
dimensão do pretérito, podemos conjugar qualquer sentimento pela saudade.
Saudade é uma máquina do tempo que só volta.

Evidentemente que aos 14 anos eu não tinha essa dimensão toda do peso da
saudade, essa capacidade incrível de tantos lugares comuns sobre o assunto.
Eu sabia que saudade existia e achava que sabia alguma coisa sobre esse peso
enorme que damos o nome de saudade, quase que uma outra "insustentável
leveza do ser" - tenho muita inveja dessa frase, título do clássico de Milan
Kundera. E ainda que tivesse essa acuidade, não conseguiria dizer isso tudo
em portunhol, inglês, mímica. Diria o que disse, que o "I miss you" não é um
sentimento, é uma constatação: sinto sua falta. Saudade é um sentimento, vai
além. Paramos por aí, porque nos abraçamos e o resto é história. And
oblivion.

Não sei onde diabos Hellen está hoje, o que faz, o que fez. Até saberia onde ir
para procurar informações, mas evidentemente não farei isso. Se nada triste
lhe aconteceu, tem 25 anos como eu, deve ter colecionado uma porção de
alegrias, um pouquinho de tristeza, porque ela nos dá a consciência de existir
(ver Oscar Wilde). Mas gosto de pensar que ao lembrar de seus 10 meses de
Brasil há um espaço para pensar naquela noite de outubro, no aniversário do
Igor, de um garoto tímido e nervoso explicando uma palavra estranha ao
inglês, "saudade", que não existe na Austrália, mas que hoje, ao pensar no
menino, em toda aquela época e naquele dia, ela sabe bem o que significa.

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