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FOME DE

NOTÍCIA

CENTRO CULTURAL SÃO PAULO


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Prefeitura de São Paulo
Secretaria de Cultura
Centro Cultural São Paulo

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FOME DE
NOTÍCIA
Evaldo Mocarzel (escrita em processo
colaborativo com o grupo V.A.G.A.)

Este texto veio à cena no dia 6 de setembro de


2013, na Sala Jardel Filho do Centro Cultural
São Paulo, sob direção de Maurício Perussi
e com o seguinte elenco: João Attuy, Marco
Biglia e Sofia Boito.

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Apresentação

Fome de Notícia, de Evaldo Mocarzel, é texto teatral cuja aguda


contemporaneidade temática dispensa apresentação como
chave de acesso. Diversas são as portas de entrada e veredas
para o percurso de todo e qualquer espectador/cidadão/ser
humano afetado pelas novas dinâmicas de circulação da arte e do
conhecimento neste início de século, tempo de mercantilização
de ideais e de poderes difusos. Um deles, o chamado quarto
poder, a mídia, ganha relevo nesta peça assim como os embates
de um par amoroso, temas tratados num movimento poético
expressionista e caro a Mocarzel: a criação de situações
que levam ao desvelamento de zonas sombrias do humano.

No primeiro gesto o autor levanta véus que encobrem a chamada


cozinha do jornalismo para realizar uma contundente crítica à
interferência de interesses comezinhos na produção de notícias. O
segundo gesto promove o esgarçamento da superfície para deixar
vir à tona as forças subterrâneas que controlam comportamentos
e disputas de poder seja no vínculo conjugal, seja no ambiente
corporativo, planos que por vezes se confundem na situação
engendrada pelo autor. Interessante neste procedimento de
aprofundar camadas não é o que esclarece, mas o enigma
que toca: as pulsões, base da civilização e seu mal estar, que
nos conduzem como um contrarregra silencioso e hostil.

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Cineasta premiado, criador de dezenas de documentários, muitos
deles tendo como origem o registro de processos teatrais, Mocarzel
acumulou diversos parceiros. Trabalha muito e sempre movido por
uma crença de rara intensidade no poder da arte para ampliar
conhecimento e percepção do mundo e das pessoas. Fé que
investiu na criação de um projeto de jornalismo cultural ousado e
consistente nos mais de vinte anos em que atuou na imprensa diária.
Entre 1995 e 2003, trabalhamos juntos no Caderno 2, o suplemento
cultural do jornal O Estado de S. Paulo, eu como repórter, ele
como editor. Fui testemunha de seus embates. Só para não ficar
na generalidade, Mocarzel era capaz de dar como matéria de capa
uma longa entrevista com o diretor teatral inglês Peter Brook na
mesma semana em que estreava um daqueles blockbusters do
cinema americano. “Não vou me pautar pela indústria cultural”,
bradou por diversas vezes, uma delas, por bizarra coincidência, ao
lado de uma grande forca de madeira e seu inconfundível laço de
corda deixada no auditório pela equipe de um desses famigerados
programas “motivacionais”. Parecia um aviso, era um signo forte.

Durante todo o período em que foi editor, Mocarzel enfrentou (seria


mais exato dizer afrontou) diferentes resistências, entre elas as dos
desencantados que ironizavam suas ideias como ilusão iluminista,
a tal “razão cínica”, termo que o leitor/espectador reconhecerá na
boca do Diretor de TV – convocado à cena por “Mulher”, nesta peça
em que os personagens não ganham nomes, são apenas “Mulher”
e “Homem”, o casal, e “Contrarregra”. Mas se há referências
Fome de Notícia está longe de se configurar como transposição
de experiência pessoal e/ou de retratar a queda de credibilidade
da imprensa nestes tempos já chamados de virtualidade real.

Nas palavras do próprio Evaldo, seu impulso inicial foi o de criar


uma espécie de reality show macabro para tratar a um só tempo
da crise de um casal de temperamentos opostos – ela, “tempo
de brisa”, ele, “desafiador de vendavais” – e da voracidade
com que se explora a curiosidade mórbida na mídia. Pretendia

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ainda realizar um exercício de linguagem expressionista. Como
é comum ocorrer, o gesto criador ultrapassou intenções,
assim como o elemento forca, signo que reconheci como
memória, abriu-se a múltiplos significados no contexto da cena.

A primeiríssima versão – para Mocarzel, apenas um esboço –


despertou o vivo interesse do crítico Sérgio Sálvia Coelho, que fez
uma leitura cênica em novembro de 2009 na programação cultural
do evento Satyrianas. Nesse mesmo ano Mocarzel havia escrito
em processo colaborativo o texto de Kastelo, dirigido por Eliana
Monteiro na fachada de um prédio na Avenida Paulista. No ano
seguinte, o diretor Antônio Araújo pediu um texto para integrar
um projeto de Leituras Encenadas por jovens diretores. Tive a
oportunidade de assistir na sede do Teatro da Vertigem à leitura de
Fome de Notícia dirigida por Mauricio Perussi, cuja sensibilidade
levou a sublinhar nos elementos de cena e na movimentação
dos atores a pulsão de morte que perpassa todo o texto.

Não estou autorizada à leitura psicanalítica, mas, até onde sei,


tanto curiosidade mórbida descontrolada e obsessiva quanto
repulsão extrema às imagens de morte têm origem no medo
da finitude ou, no seu oposto, no desejo de imortalidade. Em
desequilíbrio, tais pulsões levam à covardia ou aos surtos de
poder tirânico, comportamentos que podem ser detectados ora
no discurso do diretor de TV, ora nas disputas do casal. Nada
mais difícil que o tão buscado equilíbrio entre Eros e Thanatos,
fertilidade e destruição, yin e yang, opostos que sacodem
as figuras em cena e permitem ler o casal, se o espectador
assim quiser, como um único ser dilacerado por pulsões
de vida e morte ou, outra possibilidade, um ser e seu duplo.

Se tal pulsação de opostos atraiu com sua força bruta os primeiros


leitores deste texto, a versão agora publicada foi contaminada pelos
demais criadores e alterada em consequência dos diálogos entre
Mocarzel e Perussi, e ainda com os atores Sofia Boito e Marco

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Piglia Jr. (o casal) e Francisco Lauridsen, o criador do contrarregra
no Teatro da Vertigem, agora substituído por João Attuy.

Fome de Notícia não é fruto de processo colaborativo, tampouco de


criação isolada. A autoria aqui é de outra ordem, uma singularidade
burilada na experiência cênica, o que deve ter ocorrido com muitas
dramaturgias tidas como autorais, dos gregos a Shakespeare e
Molière. Mas se a análise minuciosa das gêneses desmonta o
mito do ato de criador como atributo do gênio solitário, também
não se pode deixar de sublinhar a diferença entre um texto
que amalgama inquietações de um coletivo daquele que surge
da pulsão criadora de um indivíduo, da busca pela expressão
singularizada da experiência de estar no mundo e em sociedade.

Por fim, gostaria de saudar a iniciativa da Curadoria de Centro


Cultural São Paulo de editar textos teatrais inéditos de autores
brasileiros cuja montagem inaugural se dê em uma das salas da
instituição. Ensaio Sobre a Queda, de Carlos Canhameiro, foi o
primeiro da série que tem continuidade agora com Fome de Notícia
e, espera-se, seja longeva, pois se trata de prática relevante para
diversificar e ampliar o potencial de efeitos da proposta teatral. Em
tempos de acesso virtual facilitado, a concretude da publicação em
papel tem o poder do recorte, promovendo uma espécie de pausa
no veloz fluxo virtual de informações para fruição mais detida.

Os que receberam o presente volume após a apresentação


podem revisitar a experiência vivida em sala de espetáculo que,
certamente, será reconfigurada no percurso e no tempo singular
da leitura. Mas seja qual for o horizonte de expectativas do leitor –
termo da estética da recepção que define a soma de experiências,
informação e conhecimentos que cada receptor investe sobre a
obra –, a brochura que tem agora nas mãos lhe dá a oportunidade
de conhecer uma versão muito próxima à montagem dirigida
por Mauricio Perussi e de modificá-la em múltiplas interações.

Beth Néspoli

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CENA 1

Sala de estar de apartamento de classe média. Homem e


Mulher com os rostos cobertos por véus cinzentos estão
parados diante do público como duas estátuas expressionistas.
Da cintura para cima, os figurinos expressam certa formalidade,
como se estivessem vestidos para uma noite de gala; da cintura
para baixo, os trajes são informais, prosaicos, cotidianos, roupas
puídas pela ação do tempo e muito confortáveis para se ficar em
casa nos dias de folga.

Os dois personagens encarnam estátuas expressionistas, mas


há algo patético, por vezes cômico e ainda carinhoso, com
a condição humana nessa primeira imagem cênica que vai
deflagrar a ação e a rotina de vida dos dois personagens. Tempo.
Pouco a pouco, escurecimento da cena, como um flash de uma
máquina fotográfica que esmorece em desalento.

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CENA 2

Contrarregra entra em cena com coreografia estilizada inspirada


em filmes expressionistas do cinema alemão, mas matizada
com momentos por vezes patéticos, até mesmo humorísticos,
talvez buscando algum tipo de referência na combustão poética
e na atmosfera agridoce dos últimos espetáculos de Pina
Bausch, a última remanescente do expressionismo alemão nas
artes cênicas e que enveredou por uma visceralidade mais leve,
não menos poética e, por vezes cômica, em suas últimas obras,
realizadas após residências artísticas em países como Cabo
Verde e Brasil. Na peça Fome de Notícia, estamos no território
de um cotidiano estranhado, em que as pulsões expressionistas
estão capilarizadas no tédio e no patético da rotina de vida de
um casal que vampiriza as tragédias da mídia para se sentir
mais vivo e mais pulsante, o que é por vezes risível. Por tudo
isso, a coreografia expressionista do personagem Contrarregra
tem algo dolorido e, ao mesmo tempo, humorístico; um títere
sendo manipulado nos bastidores pelas mãos de um encenador
que tem carinho e compaixão por seus personagens, mas, ao
mesmo tempo, os manipula como fantoches, e Contrarregra é
justamente esse elo entre o diretor e o casal em cena.

A gestualidade de Contrarregra talvez possa ter um parentesco


com a do personagem Cesare, de O Gabinete do Dr. Caligari,
o sonâmbulo que cometia os crimes orquestrados pelo
personagem-título do filme de Robert Wiene, de 1919,

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considerado por muitos críticos a obra mais expressionista
da história do cinema. Na verdade, o filme inaugural do
movimento na sétima arte. A composição de Contrarregra
também pode buscar inspiração em outro título seminal da
arte cinematográfica, O Vampiro de Dusseldorf, de Fritz Lang,
de 1931, uma obra pós-expressionista, diga-se de passagem, o
primeiro trabalho sonoro do mestre alemão. Na interpretação de
Peter Lorre, encarnando o personagem-título, o assassino em
série na corrupta Alemanha do período entre as duas grandes
guerras, há algo trágico e, ao mesmo tempo, cômico, patético.
Um matador de menininhas sendo manipulado como uma
marionete pelo lado obscuro da própria alma. Outra fonte de
inspiração são os filmes do cineasta Roy Andersson, com suas
atmosferas de cotidiano estranhado, ora solitárias e por vezes
sombrias, ora completamente hilariantes.

Trágico, cômico, patético, oprimido, mas, ao mesmo tempo,


cruel e opressor, títere e capataz do encenador fora de cena,
Contrarregra vai lentamente se aproximando de Homem e
Mulher, que permanecem como estátuas expressionistas no
meio do palco. Tempo. Contrarregra tira o véu que encobre o
rosto de Homem, que suspira aliviado, como se por fim voltasse
a respirar mais uma vez. Contrarregra dá a Homem uma câmera
fotográfica. Homem pega a câmera e Contrarregra sai de cena.

Homem encara o público por alguns instantes e depois começa


a fotografar os espectadores. Tempo. Homem se volta para
Mulher, que continua imóvel como uma estátua expressionista e
com o rosto coberto pelo véu cinzento.

Homem: (falando diretamente ao público, mas dirigindo-se à


Mulher) O princípio de tudo é um sentimento
de saudade.

Homem tira uma foto do rosto de Mulher coberto pelo véu cinzento.

Homem: (falando diretamente ao público, mas dirigindo-se à


Mulher) No brilho leitoso dos meus olhos fechados,
vejo uma nesga de céu. Que se abre. É desbastada pelo
pincel de um artista tomado pelo momento da criação.

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Homem tira nova foto de Mulher.

Homem: (falando diretamente ao público, mas dirigindo-se à


Mulher) O coração do pintor bate acelerado. A imagem
é por fim esgarçada. Revela um vazio de luzes. Só que
a ausência se transforma em abismo. E eu começo a
despencar lá de cima.
Homem tira várias fotos do corpo de Mulher. Barulho amplificado dos
sucessivos disparos da câmera, com cadência de uma queda vertiginosa.

Homem: (falando diretamente ao público, mas agora desviando


os olhos para o rosto de Mulher, encarando-a com
extremo carinho) Mentalizo a sua presença como parte
de meu corpo. Você surge, então, na pontinha das
lágrimas que deslizam.

Homem tira várias fotos do rosto de Mulher. Barulho amplificado dos


sucessivos disparos da câmera, mas agora com cadência mais lenta:
no ritmo de pálpebras que piscam sem parar.

Homem: (falando diretamente ao público, mas, de quando em


quando, encarando Mulher com extremo carinho) No
lusco-fusco do precipício de meus olhos que piscam.
Homem tira mais e mais fotos do corpo de Mulher. Barulho
amplificado dos disparos da câmera.

Homem: (falando diretamente ao público, de quando em


quando, encarando Mulher com extremo carinho e, ao
mesmo tempo, tirando fotos) No topo
da grande cachoeira da minha memória.
Homem para de fotografar.
Homem: (falando diretamente ao público, de quando em
quando,encarando Mulher, só que agora com desalento
impotência) No entanto, você irrompe turvada de sal.
Osal de uma saudade em secreções vitais.
(Esmorecendo ainda mais) Mas não consigo. Por algum
motivo, não consigo.
Sinto-me vazio de tudo. (Resignado) E tudo se dissipa
numa manhã que não tem fim.

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Contrarregra entra com uma cadeira e se aproxima de Homem,
que se senta desalentado, impotente, resignado. Contrarregra se
aproxima então de Mulher e lentamente tira o véu que encobre seu
rosto. Contrarregra sai de cena.

Mulher: (falando diretamente ao público, mas dirigindo-se a


Homem; ela acaricia o próprio corpo) O princípio de
tudo é uma necessidade de apego. Preciso me
segurar. Acho que vou cair. Mas não tem mais volta.
O abismo se abre debaixo de meus pés e eu começo a
deslizar. Bem devagar.

Mulher toca o próprio sexo e começa a se masturbar.

Mulher: (falando diretamente ao público, mas dirigindo-se a


Homem; masturbando-se) Um enjôo sobe à garganta.
Sinto que chegou a hora de devolver tudo o que a
natureza me deu. Começo a me esvair. Sumo de mim.
Perco-me de vista. E me sinto mareada num barco
que atravessa mares violentos.

Masturbação de Mulher ganha ritmo e vai crescendo.

Mulher: (falando diretamente ao público, mas dirigindo-se a


Homem; masturbando-se) As ondas batem no casco
do navio. Reviram as minhas entranhas. Sou uma única
golfada. Que se espraia e me dissipa num vazio tépido.

Masturbação de Mulher se intensifica ainda mais, como se ela


tivesse encontrado o ritmo exato, o ponto exato, o caminho ideal e
ilusório para levá-la ao orgasmo naquele momento.

Mulher: (falando diretamente ao público, mas dirigindo-se a


Homem; masturbando-se) Preciso desesperadamente
reunir meus pedaços. Espalhados naquelas águas.
(breve pausa) Um prazer de dominó invade o
meu corpo. Reação em cadeia. O quebra-
cabeça esboça então uma imagem. A minha imagem.

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Mulher atinge o orgasmo.

Mulher: (falando diretamente ao público, mas dirigindo-se a


Homem; masturbando-se) E eu finalmente gozo o vazio
dos exilados. A ausência de todas as carícias que me
prometeram em vida. E que me foram negadas.
(breve pausa) Sou uma plenitude de cacos. Minha
própria imagem estilhaçada. Um espelho de lunetas
que avistam terra firme. Meu lar mais íntimo. Minha
face mais gloriosa.

Mulher goza e geme de prazer. Tempo. Suspira aliviada, como se


tivesse tirado um peso dos próprios ombros.

Luz muda completamente e invade o palco com a textura dos


primeiros raios da manhã. Mulher se espreguiça. Trilha musical com
cadência de bossa nova.
Mulher: (a Homem, espreguiçando-se) Bom dia.

Homem sai do torpor em que se encontra sentado na cadeira.

Homem: (à Mulher, carinhoso) Bom dia, minha querida.

Mulher: (ainda se espreguiçando) Já pegou os jornais?

Homem: (apreensivo em dar a notícia à Mulher) Não


vieram. (Tom confuso) Será que venceu a assinatura?

Mulher: (irritada) Não pode ser. Logo hoje?! (Tom desesperado


e, ao mesmo tempo, de necessitada) Não consigo mais
viver sem minhas tragédias no café da manhã.

Homem: (inseguro, com medo da reação de Mulher, mas


solidário) Vou lá ver de novo.

Mulher: (impaciente, agoniada e, ao mesmo tempo, ávida) Vai.


Por favor. Vai.

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Homem sai. Mulher respira fundo e procura se acalmar. Ela se
espreguiça mais um pouco. Contrarregra entra em cena com uma
cadeira e a coloca no proscênio, não muito distante da cadeira em
que Homem estava sentado. Mulher se senta. Contrarregra sai.
Mulher espera ansiosa. Tempo. Homem volta.

Homem: (chateado, impotente e resignado) Nada. Acho que não


vem mais.

Mulher: (inconformada) Pagamento em dia. (Tom desconfiado)


Será que alguém roubou?

Homem: (também desconfiado, mas confuso) Quem faria isso?

Mulher: (ardilosa) Pega do vizinho. (necessitada) É a única


solução.

Homem: (Surpreso) Ficou maluca?

Mulher: (ávida) Então vai à banca.

Homem: (preguiçoso) Ah, não. Vai você.

Mulher: (decepcionada) Pensei que pudesse contar com


você. (falando com ela mesma, como se conversasse
com uma amiga; exagerada, fazendo drama) Os jornais
não chegam e eu descubro um estranho em minha
cama... (Tom, desafiando Homem) Marido serve pra
quê?

Homem: (acuado, tentando dissuadi-la da ideia) Tá muito frio lá


fora.

Mulher: (tentando não perder a esperança) Será que não vem


mesmo?

Homem: (sem muita convicção) Às vezes atrasa. Final de


semana...

Mulher: (desconfiada) Tá dizendo isso pra me acalmar.

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Homem: (astuto, mudando de assunto) Nem te contei. Meu
chefe entrou de licença. (instigando a curiosidade de
Mulher) Sem data pra voltar.

Mulher: (muito curiosa) Câncer?

Homem: (mórbido) Metástase. Por todos os órgãos. Até mesmo


no cérebro. (Tom piedoso) E ele não tava sentindo
nada...

Mulher: (apavorada e, ao mesmo tempo, excitada) Esse silêncio


é que me tira o sono. Pode estar acontecendo agora...
Uma célula começa a crescer... Crescer... Sem parar.
E vai tomando conta de tudo. No
mais completo silêncio. Sem pedir licença. Na
calada da noite. Na surdina de uma brisa de
verão. (Tom triste e resignado) E nossa chama
de vida se apaga.

Homem: (sincero e com medo) Nos últimos meses, o que mais


me apavora tem endereço certo: diabetes.

Mulher: (fazendo pouco caso) Não tá na minha lista.

Homem: (apavorado) As feridas não cicatrizam. E a gente


perde completamente o apetite sexual. Os membros
vão gangrenando... (Tom professoral) Você já
viu as fotos?

Mulher mexe o corpo, arrepiada de horror e excitação.

Homem: (deprimido) É muito triste a putrefação do nosso corpo.


(Tom novamente professoral) E a cegueira é inevitável.
(Tom solene) Silêncio e escuridão.

Mulher: (segura) Mas dá pra controlar. Alimentação sadia.


Atividade física. (Tom com medo) Diante de
um câncer em estado de metástase,
não tem solução. Todos os medicamentos
são inofensivos.

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Homem: (cético, discordando) Mais ou menos. Se for detectado
no início, a quimioterapia é uma cura real.

Mulher: (vaidosa) Você consegue me imaginar careca?


Vomitando em cima de todo mundo? (Tom decidido)
Melhor morrer.

Homem:(ponderando) É uma questão de ponto de vista. Já


morri de medo de enfarte. Pressão alta e colesterol.
Mas agora eu tomo remédio.

Mulher: (repreendendo e desmascarando Homem) Você


nem mede sua pressão. Não faz check-up há um
tempão. (Tom sádico) Como é que você sabe que uma
veia sua não está se entupindo neste exato momento?
A gordura de seus churrascos como um funil
sufocando uma artéria e aí você começa a sufocar... Vai
ficando roxo como aquelas flores de velório... Sua vista
vai ficando escura e... tibum!

Homem: (asfixiado) Tibum o quê? (Tom indignado) Você tá


pensando que morrer é dar um mergulho no mar?
Esse papo é sério. Você tá fazendo isso só pra
me sacanear.

Mulher: (desmascarada e carinhosa) Tô brincando, amor. Você


não tem espírito esportivo.

Homem: (chateado e arengando) Falta de respeito. Eu


praticamente já tinha vencido meu medo de enfarte.
(Tom indignado e vingativo) Tibum?! Você merecia
levar um “caldo” na praia. Uma soca daquelas bem
furiosas. Até ficar entalada de água salgada. No meio
de uma ressaca.

Mulher: (mudando o rumo da conversa, advertindo) Não brinque


com coisa séria. (Tom sincero) Você sabe que eu quero
morrer no mar. Nada de flores no meu caixão. Quero
ser enterrada com uma trança de algas envolvendo
meu corpo.

Homem: (debochado) Ninguém vai aguentar o cheiro.

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Mulher: (delirando) Há uma beleza na doçura de tudo que
apodrece. (Tom veemente) As frutas, meu amor, são
muito mais saborosas quando passam do ponto.

Homem: (repugnado) Ai, que nojo.

Mulher: (sensual) Adoro o cheio do teu corpo quando você chega


exausto de um dia de trabalho. (Tom enfático) No verão.

Homem: (carinhoso) Gosto de você cheirosinha. Saindo do


banho. Com os perfumes de todos aqueles cremes
contra o envelhecimento.

Mulher: (orgulhosa) Eu me cuido, meu filho. Senão você vai


perder o interesse em mim.

Homem: (seguro) Nunca. Você é a mulher que eu escolhi pra


envelhecer junto comigo.

Mulher: (excitada) Vamos fazer uma loucura?

Homem: (desviando a conversa, sem apetite sexual) Sua coleção


de jornais. Vou pegar.

Mulher: (decepcionada) Não demora.

Homem sai. Contrarregra entra com papéis nas duas mãos. Ele vai
até o meio do palco e, com sua coreografia expressionista estilizada,
subitamente joga os papéis para o alto com as duas mãos.
Iluminação muda. Homem entra com uma caixa com recortes de
jornais e se senta novamente em sua cadeira. Contrarregra vai até o
lado esquerdo do palco, senta-se numa cadeira e, com instrumentos
rítmicos, cria uma espécie de partitura acelerada para a leitura das
notícias que será feita por Homem, que pega um recorte de jornal.

Homem: (sério, como um apresentador de televisão) América do


Sul sofre mais de mil tremores em menos de 24 horas.

Mulher: (fingindo estar curiosa e tentando entrar no jogo)


Vítimas?

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Homem: (sério) Tremores leves. Nenhum cadáver.

Mulher: (tentando potencializar o jogo) Tornados? Tsunamis?

Homem: (sem graça) O planeta tá calmo nas últimas semanas.

Mulher: (necessitada) Encontra alguma coisa. Por favor.

Homem: (sincero) Você sabe que não gosto. Fico impressionado


com catástrofe.

Mulher: (frustrada, interrompendo o jogo) Não vai dar certo.


(Tom ainda com uma ponta de esperança) Tem mesmo
certeza de que os jornais não chegaram?

Homem: (seguro) Acabei de ver. Não quer ler na internet?

Mulher: (irritada) Minha vista embaralha. Você sabe disso. (Tom


de necessitada) Gosto de tocar a notícia. Espremer o
sangue das páginas policiais.

Homem pega outro recorte de jornal.

Homem: (lendo) Prostitutas atacam executivos no centro


da cidade.

Mulher: (curiosa, tentando entrar no jogo novamente) Alguém


morreu? Foi internado?

Homem: (sem graça) Não. Só estão rodando bolsinha na


hora do almoço.

Mulher: (indignada) Coisa mais sem graça.

Homem: (lendo outro recorte) Ladrões fuzilam motorista


de ônibus.

Mulher: (mais animada) Detalhes. Riqueza de detalhes.

Homem: A polícia bloqueou o carro roubado via satélite. Mas


conseguiram fugir com o dinheiro.

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Mulher: (curiosa) E o defunto?

Homem: (irônico) Presunto, meu amor. Esse é o típico. Um cara


da periferia. Ninguém foi reclamar o corpo.
Vala comum.

Mulher: (desconfiada) Essa não é a minha coleção.

Homem: (sem graça, pego em flagrante) É a minha.

Mulher: (mimada) Ai, amor, pega a minha. Você guarda umas


coisas que não fazem o menor sentido.

Homem: (ofendido) Pra você. Gosto de histórias de perseguição.


São espetaculares.

Mulher: (séria) Cadê a minha coleção?

Homem: (tenso) Não achei.

Mulher: (firme) Tá dentro do armário.

Homem: (impotente) Revirei tudo. (com medo da reação


de Mulher) Acho que a empregada jogou fora. São
umas desmioladas.

Mulher: (furiosa) Não acredito. (breve pausa, tom desconfiado)


Por que só a minha e não a sua?

Barulho de pedaço de madeira se chocando contra o piso do palco.


Luz mais forte sobre Contrarregra no canto esquerdo, que continua
sentado em sua cadeira. Contrarregra bate com o pedaço de
madeira no chão agressivamente, mudando o rumo da conversa do
casal, os intimidando e ao mesmo tempo os obrigando a continuar a
leitura dos recortes de jornais.

Homem: (apreensivo e acuado, à Mulher) Vamos continuar?

Mulher olha para Contrarregra com raiva, mas também intimidada e


obediente. Ela logo desvia o olhar para Homem.

Mulher: (resignada, mas sempre com olhar astuto)


Manda outra.

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Com seus instrumentos rítmicos, Contrarregra cria novamente uma
partitura acelerada para a leitura das notícias.

Homem: (lendo outro recorte) Menina de cinco anos é aprovada


em curso de Direito.

Mulher: (irritada) Tédio.

Homem: (lendo) Rabino cleptomaníaco é acusado de


assédio sexual.

Mulher: (entediada) Besteirol.

Homem: (lendo) Faxineiro homicida tatua nome da vítima no


próprio pênis.

Mulher: (mais animada) Tá começando a melhorar. Mas matou?

Homem: (sem graça) A polícia descobriu a tempo.

Mulher: (irritada) Tédio.

Homem: (lendo com entusiasmo) O cara também tatuou um


caixão na virilha.

Mulher: (inconformada) Se não matou, não tem graça. (Tom


veemente) Adoro crimes passionais. Mas tem
que matar.

Homem: (lendo) Cafetina brasileira derruba governador


do Alaska.

Mulher: (desconfiada) Você adora notícia com prostituta. (Tom


ciumento) Tô de olho em você.

Homem: (lendo e desconversando) Mulher dada como morta


espirra dentro do caixão e ressuscita.

Mulher: (jrônica) Acho melhor você ler o obituário.

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Homem: (discordando) A história é ótima. Inusitada. E muito
engraçada. (Tom agressivo) Seu problema é que você
não tem humor.

Mulher: (debochada) Pensei que você tivesse mais imaginação.


(Tom carente) Onde foi parar o meu marido?

Homem: (irritado, mas tentando ser carinhoso) Tô aqui.


Tentando te agradar.

Mulher: (puxando pelos brios de Homem) Então encontra


alguma coisa mais forte. Mais passional.

Homem: (lendo, sem muita convicção) Justiça manda soltar


hackers, mas obriga leitura de textos clássicos.

Mulher: (decepcionada, desanimada, mas tentando se mostrar


curiosa) Quais?

Homem: Crime e Castigo, de Dostoievski.

Mulher: (indignada) Coisa mais sem graça.

Homem: (lendo no piloto automático) Comerciário é encontrado


morto em rave.

Mulher: (irritada de tédio) Overdose. Todo mundo sabe.

Homem: (impotente, mas agressivo) O que você quer que


eu faça?

Mulher: (tentando melhorar o astral do jogo) Surpresa.


Ação. (sequiosa) Quero que você me dê um chacoalhão.
Uma sacudidela bem forte.

Homem: (implicante, mas amoroso) Vou te dar é um beliscão.

Mulher: (arrependida, desabafando) Desculpe-me. Hoje acordei


muito angustiada.

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Homem: (tentando animá-la) Acho que você vai gostar dessa
aqui. (lendo) Tortura pode ser aplicada para impedir o
assalto de inocentes.

Mulher: (séria, argumentando) Não deixa de ser uma


medida inteligente. (Tom de sincera, carente) Mas
preciso de algo mais forte, tipo: Top model é trucidada
por matilha de poodles. (Tom sádico) Adoro ver essas
mulheres lindas envelhecendo. Caquéticas. Cheias de
estrias e celulite.

Homem: (surpreso, tentando animá-la) Hoje você


acordou inspirada.

Mulher: (ávida) Gosto de notícia de churrascaria. Espirrando


sangue. (Tom autoritário) Leia mais.

Homem: (lendo) Guia turístico oferece conversa com traficante


em favela no Rio.

Mulher: (aborrecida) Tédio.

Homem: (lendo) Mortos na América Central chegam a 30 mil.

Mulher: (desinteressada) Sei tudo sobre esse terremoto. Não


tem mais novidade pra mim.

Homem: (lendo) Policial é sequestrado e morto após visitar


amigo em favela.

Mulher: (debochada e cruel) Sujeito burro. Teve o fim


que merecia.

Homem: (lendo) Monstro da Sibéria, enfim, atrás das grades.

Mulher: (entusiasmada) Essa história é incrível. Vai virar filme.


Escuta o que estou dizendo.

Homem: (lendo) Mais de 20 mil mortos, sendo 15 mil


muçulmanos. E ainda se tornou líder de uma seita.

22
Mulher se mostra muito mais animada, até mesmo eufórica.
Homem olha para Mulher com muito carinho. Os dois ficam se
olhando com cumplicidade. Tempo. Contrarregra bate com o pedaço
de madeira no chão diversas vezes e, com seus instrumentos
rítmicos, acelera ainda mais a partitura para a leitura das notícias,
interrompendo a cumplicidade e a sintonia romântica que envolve o
casal por um breve instante.

Homem: (lendo) Maníaco confessa homicídios pelos quais 10


pessoas foram condenadas.

Mulher: (exagerada) Adoro maníacos. Sou tarada. Louca.


Alucinada. (Tom desinteressado) Mas essa reportagem
é muito chata. O jornalista só fala do processo
na justiça. Não detalhou os crimes.

Homem: (lendo) Policiais fazem reconstituição de assassinatos


em série.

Mulher: (excitada) Será que a gente consegue acompanhar


na televisão?

Homem: (cauteloso) A apuração já acabou.

Mulher expressa decepção.

Homem: (lendo) Massacre anunciado na internet.

Mulher: (curiosa) Mas e aí?

Homem: Um estudante irlandês matou dez na Inglaterra.

Mulher: Com requintes de crueldade?

Homem: (sem graça) Metralhou todo mundo. Tudo muito rápido.

Mulher: (frustrada, mas tentando não desanimar, agora mais


educada e menos autoritária) Continue lendo. Por favor.

Homem: (lendo) Juiz condena amante a indenizar marido traído.


(com entusiasmo) Dessa eu gostei!

23
Mulher: (decepcionada) Chatice.

Homem: (lendo) Ladrões vestidos de mulher assaltam joalheria


na Inglaterra.

Mulher: (grosseira) Esses ingleses são todos uns enrustidos.

Homem: (debochado) Preconceituosa.

Mulher: (impaciente) Procura aí alguma coisa politicamente


incorreta. (Tom excitado) Adoro.

Homem: (lendo) Fiscal do trânsito é suspeito de ser o “maníaco


da marginal”.

Mulher: (cruel e sádica) Morte a todos os marronzinhos. Tem


que prender e colocar em cela com estuprador.

Homem: (surpreso e assustado) Mas o que é isso? O trânsito de


São Paulo é um caos. Pior sem eles.

Mulher: (delirando, em tom de brincadeira) Pena capital. Prisão


de segurança máxima. Tudo isso é pouco para as
multas que eu levei.

Homem: (implicante) Você não dirige nada bem.

Mulher: (controlando-se, autoritária) Continua.

Homem: (lendo) Dado como morto, bebê sobrevive.

Mulher: (entediada) Lugar-comum.

Homem: (lendo) Estudante é espancado durante trote.

Mulher: (aborrecida) Clichê total.

Homem: (lendo) Grávida é atacada por skinheads na Alemanha


e aborta.

24
Mulher: (curiosa) Brasileira?

Homem: Não. Boliviana.

Mulher: (cética) Isso tem cara de armação.

Homem: (lendo) Índios canibais matam garimpeiros e comem


seus órgãos.

Mulher: (debochada) Tá vendo por que eu não gosto de índio.

Homem: (lendo) Policiais militares esquartejam bandido


em favela.

Mulher: (convicta e veemente) Você é contra, mas eu sempre


vou defender o esquadrão da morte. A pena máxima. É
uma questão de segurança pra todos nós.

Homem: (lendo com repugnância) O rapaz foi degolado e depois


partiram o corpo em cinco pedaços. A machadadas.

Mulher: (Curiosa e excitada) O que mais?

Homem: (lendo) Os quatro membros e a cabeça foram atirados


aos porcos. (Tom vingativo) Mas o cara mereceu. Além
de traficante, também era estuprador. (Tom
raivoso e levemente excitado) Estupro não tem
perdão. (Tom voltando a ler) Essa é boa:
político, e apresentador de televisão,
encomendava assassinatos para garantir audiência.

Mulher: (excitada) Parece filme de Hollywood.

Homem: (lendo) Celebridade australiana vende sobrevida a


reality show.

Mulher: (aprovando, eufórica) Tá garantindo o futuro de toda


a família.

Homem: (cansado) Quer que eu leia mais?

25
Mulher: (mimada) Só mais um pouquinho.

Homem: (lendo) Prefeitura promove palestra antirracismo


a policiais.

Mulher: (irritada) Não. Marketing social, não. Pelo amor


de Deus!

Homem: (lendo) Senador esconde mansão de R$10 milhões da


Receita Federal.

Mulher: (sádica) Pega, mata e come. Manda para os índios.

Homem: (lendo) Novas tecnologias. Pombo-correio leva celular


a presídio.

Mulher faz careta, não se mostrando muito entusiasmada com a


notícia, além de cansaço com a leitura dos recortes de jornais.

Homem: (lendo) Mais tecnologia. Mulher morre em centro de


tratamento para vício em internet.

Mulher: (cansada do jogo) Acho que por hoje tá bom.

Homem: O que vamos fazer agora?

Mulher: (sensual e faminta) Essa leitura me deu fome.

Homem: (animado) Vou preparar um café da manhã reforçado.


Omelete?

Mulher: (excitada) Daqui a pouco. Agora fica bem quietinho aí.

Desconfiado, Homem permanece parado na cadeira em que está


sentado. Mulher se levanta, aproxima-se de Homem e o pega
pela mão direita, conduzindo-o ao centro do palco. Tempo. Mulher
beija a boca de Homem e tenta excitá-lo, lambendo seu pescoço.
Homem vai pouco a pouco se entregando às carícias de Mulher.
Os dois começam a fazer amor. Tempo. Contrarregra entra em
cena com um véu cinzento e se aproxima de Mulher. Contrarregra

26
passa suavemente o véu por várias partes do corpo de Mulher, seu
rosto, braços e costas, instigando o seu apetite sexual. Conforme
Contrarregra passa o véu pelo corpo de Mulher, ela vai acariciando
Homem cada vez mais forte, beija-lhe a boca com ainda mais
volúpia, Homem vai se entregando mais e mais à sua sedução.
Contrarregra se aproxima então de Homem com seu véu cinzento
e o deposita sobre sua cabeça, como se o sufocasse. Contrarregra
sai de cena. O apetite sexual de Homem vai esmorecendo,
esmorecendo, até que ele não mais corresponde às carícias de
Mulher. Ela insiste, tenta reanimá-lo, beija-o mais uma vez com
volúpia, voracidade e agora também com desespero, mas tudo é
em vão. Homem desaba sobre o corpo de Mulher, completamente
impotente, como um menino indefeso.

Contrarregra entra novamente em cena com expressão cínica,


até mesmo sádica, com cartelas com frases e perguntas curtas.
Homem e Mulher permanecem imóveis no centro do palco.
Contrarregra se aproxima dos dois e exibe diretamente para o
público a seguinte cartela: “Curtiu?”. Em seguida, Contrarregra
exibe uma outra cartela diretamente para os espectadores: “Ela
curtiu?”. E mais: “Ele curtiu?”; “Vocês curtiram?”. Contrarregra
insiste com a cartela “Vocês curtiram?”, exibindo-a diretamente para
todos os lados da plateia, para diferentes espectadores.

Barulho de dedos digitando sobre teclas de computador.


Contrarregra exibe nova cartela diretamente para o público:
“Autonotícias”. Em seguida, uma outra: “Fui ao restaurante japonês
e o sushi estava uma delícia”. Contrarregra exibe a cartela para
diferentes pontos da plateia. E mais uma: “Adorei a festa surpresa.
Amo os meus amigos”. Outra: “Parei de fumar há um mês.
Comentários são bem-vindos”. Contrarregra guarda as cartelas e
se aproxima de Homem. Retira lentamente o véu que encobre sua
cabeça. Assim que Contrarregra termina de tirar o véu, Homem
respira fundo e começa a tossir, como se estivesse sufocado, como
se voltasse à vida após um prolongado afogamento. Mulher se
espreguiça entediada. Contrarregra sai de cena.

Homem: (à Mulher) Você quer sucrilhos?

Mulher: (a Homem, gulosa) Vai à horta e pega umas ervinhas


pra gente colocar no omelete.

27
Até então grudados no centro do palco, Homem e Mulher finalmente
se descolam.

Homem: (carinhoso) Já volto.

Mulher: (afetada) Não demora.

Homem sai de cena. Contrarregra entra com uma câmera num tripé e
a coloca no centro do palco, apontada para Mulher. Iluminação muda
e a atmosfera sugere agora um estúdio de televisão. Contrarregra
pega uma cadeira e acomoda Mulher diante da câmera. Sentada,
Mulher encara câmera como se tentasse decifrá-la. Contrarregra sai
de cena. Entra Diretor de TV.

Diretor de TV: (à Mulher, profissional) Pronta?

Mulher movimenta a cabeça em sinal afirmativo.

Diretor de TV: (didático, mas delirando) Em primeiro lugar,


você vai passar por uma alcateia de editores-
executivos. São falsos reis. Sem equipe.
Sem verba. Sem orçamento.
Sem a nobreza de um reinado de quem
realmente manda.

Mulher concorda com a cabeça.

Diretor de TV: (didático, mas delirando) Todos vão rosnar


pra você, mas não se deixe intimidar. A baba em
todas aquelas bocarras não é mera ironia. Mas
razão cínica em seu estado mais puro. Fruto da
impotência e da ilusão de um poder que eles
não têm. No fundo, sabem disso. Explosões
no Oriente Médio convivem diariamente com
essas abomináveis matérias de comportamento
que infestam o jornalismo contemporâneo. É
preciso aprender a fazer humor com cabeças
de criancinhas sendo chutadas como bolas de
futebol em atentados terroristas. O antro de
razão cínica vai continuar espumando à sua volta.
Sempre e sempre. Mas você precisa aprender a

28
proteger o seu idealismo mais sincero. Blindá-lo
do desprezo dos covardes. De todos aqueles que
têm medo de perder o emprego. Esses são os
mais perigosos. Nefastos para quem tem algo
a dizer ao mundo. Não se deixe abater. Siga em
frente. Sempre em frente. Aprenda a driblar os
interesses privados e também governamentais
das empresas de comunicação. Há sempre, lá no
fundo de você mesma, uma chama de idealismo
na crença de que você pode, sim, derrubar um
presidente corrupto. Denunciar uma falcatrua.
Fustigar, moralizando, as maracutaias de um
político filho da puta. Siga em frente. Você será
explorada. Não terá mais finais de semana. Nem
Natal, nem feriado. A ciranda frenética da mídia
vai girar nos seus olhos... Nos seus neurônios...
E o estresse talvez possa se tornar um câncer...
Uma úlcera perfurada... Uma implicância crônica
com toda a sua família, quando você toma um
uísque depois de um exaustivo dia de trabalho,
tentando relaxar um pouco. Mas o jornalismo se
repete. É uma verdade que sempre atenua essa
nossa sofreguidão que não tem fim. Seja esperta:
também ouça a fala do mercado. Deixe que seus
tentáculos se ramifiquem pelas áreas mais
escondidas do seu idealismo, que também tem
sede de glória. Você acabará colhendo frutos com
essa lógica gananciosa. Você é você, mas você é
também o próprio sistema. Você está no epicentro
do poder... Do quarto poder... E tem que tirar
proveito disso fazendo um bom trabalho.
Contrarregra entra em cena e desvia a câmera para o público. Luz
se acende na plateia. Mantendo a câmera no tripé, Contrarregra
faz movimentos com a lente na direção dos espectadores, com uma
coreografia que parece querer roubar a alma das pessoas.

Diretor de TV: (didático, mas delirando, só que agora mais


raivoso; à Mulher, mas dirigindo-se ao público,
apontando para os espectadores) Repare bem
esse horizonte de expectativas. Entenda a

29
curiosidade das pessoas. Suas mesquinharias.
Volúpia por fofocas. Sacie essa necessidade
com notícias embaladas com uma pitada de
sensacionalismo. As pessoas precisam disso.
Logicamente sem comprometer a qualidade
da informação. Veja todas essas pessoas como
árvores sendo tragadas pelas rotativas dos
grandes jornais. Equipes de televisão espalhando
plástico e poluição nos santuários ambientais
de nosso planeta. (Tom professoral) As pessoas
querem se ver, mas também precisam se
rejeitar nas manchetes da mídia impressa e nas
chamadas das reportagens televisivas. É preciso
buscar alguma coisa macabra, mas sempre
muito comezinha... Trivial... Banal... Para que as
pessoas possam se identificar... Se sentir parte
da notícia. No fundo, uma experiência vazia de
vivência. Nosso trabalho é inflá-la de sangue,
catástrofes e tragédias cotidianas. Em duas
palavras: horror e identificação. Precisamos fazer
cócegas no que está escondido no fundo da alma
de todos esses infelizes sempre tão curiosos.
A informação precisa entrar pelos poros, até
provocar repulsa. Você é uma espécie de mascate
numa feira de banalidades sangrentas. Olhe bem
para essas pessoas: uma clientela faminta de
palavras... Manchetes... Headlines de impacto.
Preencha as hesitações e, principalmente, os
temores mais inconfessáveis de todas essas
pessoas. O pânico absoluto diante dos próprios
pensamentos. Arrebate a atenção de todos.
Conquiste elevados índices de audiência. Ouça
os ecos do acaso. Na mídia, o destino não tem
nada de cego. É uma besta com mil olhos. Um
oráculo pontilhado de monitores de vigilância...
Seduzindo nossa vaidade... Potencializando nosso
narcisismo... Mas depois nos atirando na vala
comum da alienação. Por tudo isso, construa
signos. Matérias exclusivas. De preferência,
assinadas por grandes nomes. O mundo quer

30
grifes. Sinal dos novos tempos. Cegas serão todas
essas pessoas que não souberem decifrar suas
mensagens de desespero... De impotência... Mas
também de um idealismo que não pode morrer
jamais. É isso que nos move.

Contrarregra entra em cena com um bife sangrento e o coloca


sobre o rosto de Diretor de TV, como uma venda em seus olhos.
Dois filetes de sangue escorrem pelo rosto de Diretor de TV, que,
perplexo, tenta encarar novamente o público em sua cegueira
sanguinolenta. Em vão. Tempo. Contrarregra conduz Diretor de TV
para fora de cena, que caminha como um cego. Tempo. Contrarregra
e Diretor de TV desaparecem. Mulher encara o público.

Mulher: (ao público, fazendo uma espécie de confissão) Acordo.


Finalmente acordo. Você sempre me desperta com
seu hálito de alho. Eu me levanto e contemplo minha
glória no espelho do banheiro.
Penso em me maquiar, mas ainda é muito cedo.
Vou ficar me sentindo com cara de múmia.
Tenho certeza disso. A água da torneira espuma como
as ondas do mar. Sempre gostei de praia.
Preciso do sol pra me sentir viva.
Sinto-me bela e feliz bronzeada.
Por que uma simples peixada no litoral é um programa
tão menor pra você? Por que a vida e a morte não
podem ser apenas um paninho de crochê sendo
desfiado pelas brisas do tempo? Meu tempo é brisa.
Não vim ao mundo pra desafiar vendavais.

Homem entra em cena com um punhado de ervas colhidas na horta.

Mulher: (ao público, dirigindo-se a Homem, fazendo uma


espécie de confissão) Leveza. Isso não te pertence. Não
faz parte da sua natureza. Da sua
prepotência intelectual. No fundo, a verdadeira
máscara da sua impotência. Lembro de tantos
sorrisos... Bocas de machos que me estenderam
tapetes vermelhos com seus desejos sinceros...
Desejos explodindo de tanta virilidade... Uma potência

31
de um lado que me falta... Sou fêmea até o fundo da
alma... E atirei tudo isso ao mar por respeito a você.
Ao nosso projeto de vida. Sem a menor esperança de
que todas essas mensagens um dia retornariam para
mim. (Tom amargo) Nunca ninguém apareceu pra me
socorrer da sua presença.

Homem ouve o depoimento de mulher com tristeza e impotência.

Mulher: (ao público, dirigindo-se a Homem e fazendo uma


espécie de confissão) Sua rejeição a mim... Toda vez
que o seu estresse se deixa inflamar pelo álcool... E eu
tentando conciliar as coisas... Engolindo a amargura
em pílulas de medicamentos que jamais irão me
acalmar. Minha natureza é simples. Não tenho nada a
ver com você.

Contrarregra entra em cena e exibe cinicamente duas cartelas para


o público: “Ninguém curtiu” e “Audiência zero”. Contrarregra sai
de cena.

Homem: (à Mulher, preocupado) Tá precisando de alguma


coisa? Perdeu o apetite? (Tom exagerado, tentando
animá-la) Tô faminto.

Mulher suspira fundo, engole a tristeza e tenta se reanimar.


Tempo. Subitamente, Mulher desvia a câmera na direção do próprio
rosto e a encara.

Mulher: (irritada, à câmera) Por que um final de semana no


litoral não pode ser notícia?

Mulher coloca a mão esquerda na orelha esquerda, ouvindo uma


resposta de um ponto eletrônico.

Mulher: (encarando a câmera, mas falando com um ponto


eletrônico, com a mão na orelha) Por que não pode?
(Breve pausa, raivosa) Dane-se a audiência! (Breve
pausa) Por que as coisas não podem ser mais
simples? (Breve pausa) Por que você quer agora
transmitir a previsão do tempo? (Breve pausa, furiosa)

32
Fodam-se todos os engarrafamentos! Fodam-se
todas as marginais! Fodam-se as enchentes! Foda-
se a poluição! Foda-se o ar seco! Fodam-se todas
as ressacas... Os assaltos... Os assassinatos... (Tom
irônico, desviando os olhos da câmera para Homem,
mas falando com o ponto eletrônico) Só preservem os
crimes passionais. Esses têm raízes profundas.

Contrarregra entra em cena com uma mesa. Sobre ela, uma imensa
faca e um bife sobre uma tábua de carne. Contrarregra começa a
picotar o bife com uma coreografia exata e ameaçadora, mas ao
mesmo tempo debochada. Tempo. Homem se aproxima de Mulher
e começa a passar suavemente as ervas sobre o seu rosto. Mulher
sente o perfume dos temperos e agarra um punhado verde com
necessidade, como se aquele aroma pudesse tirá-la do delírio em
que se encontra. Mulher leva as folhinhas para bem perto do próprio
nariz e cheira profundamente, com volúpia e prazer. Tempo. Homem
deposita delicadamente o que restou das ervas sobre o corpo de
Mulher e vai pouco a pouco se aproximando da câmera. Homem
aponta a lente para o próprio rosto. Contrarregra sai de cena e
Mulher continua cheirando as ervas com deleite e necessidade.
Homem então desvia os olhos para o público.

Homem: (encarando o público, mas dirigindo-se à Mulher,


fazendo uma espécie de confissão, machista)
A manhã persiste num tesão de mijo que faz com
que eu me sinta mais uma vez
adolescente. Somos sempre jovens ao despertar, mas
não tenho vontade de oferecer essa potência a você.
Prefiro me masturbar, como um menino, no banho.
Sonhar com a puta que mora escondida debaixo da pia.
E que me faz o boquete da maneira que eu gosto. Só
ela consegue me relaxar debaixo do chuveiro. (Tom,
filosofando, ao público, mas dirigindo-se à Mulher)
Virilidade é posse. É conquista. É entrar rasgando.
Sem pedir licença. É egoísmo. Prazer solitário. Sem
nenhum tipo de preocupação com o seu orgasmo
múltiplo. Foda-se seu ponto G! Meu desejo é uma
glande exposta. Um totem de superioridade. A mais

33
fiel tradução do que todas vocês chamam de símbolo
fálico. Meu pau, um ser que me habita. Convive
comigo. Na alegria e na tristeza. E me faz flutuar com
fantasias em carne viva. (Tom repulsivo, ao público,
mas dirigindo-se à Mulher) Te conquistar pra quê?
Não se conquista o que já está sepultado no tédio e na
acomodação. Carinho e amizade. Ainda sobrevivem.
Mas isso não me move. Papai e mamãe. E aí a puta
vem em meu socorro. Com suas carícias de saunas
e cremes escorregadios. E não me pede nada em
troca. Somos somente eu e a fantasia da vez. Posse,
potência e putaria. É o tripé da minha prepotência mais
sincera. E ela geme. Geme dissimulada. Sua mentira
é explícita. Uma gema de falsidade. Escondida nas
partes íntimas de todas as prostitutas que sempre me
acolheram com tanta boa vontade.

Contrarregra entra em cena com mais uma cartela: “Broxou ou


não broxou?” Ele a exibe para o público. Tempo. Homem desvia os
olhos do público e olha novamente a câmera. Mulher o observa e, de
quando em quando, cheira as ervas. Homem coloca a mão esquerda
na orelha esquerda, agora também falando com um ponto eletrônico.

Homem: (à Câmera, mas falando com o ponto eletrônico) Não


gostaram?! Como não gostaram?! (Breve
pausa) A audiência caiu?! (Tom, concordando)
Tudo bem. Não vai acontecer mais. (Breve pausa)
Não, não posso aceitar. Não é uma questão de grana.
(Breve pausa) Já deu o que tinha que dar. Por favor, não
insista! (Breve pausa) Não tem mais volta para mim.

Homem encara a câmera como se contemplasse a própria imagem


na lente do equipamento. Tempo. Contrarregra pega a câmera
e o tripé, e tira da frente de Homem, que fica encarando o vazio.
Contrarregra sai de cena com a câmera e o tripé.

Mulher: (simpática e graciosa, a Homem) Vamos fazer com


alecrim?

Homem: (surpreso, à Mulher) Será que fica bom?

34
Mulher: (conciliadora) A gente pode experimentar. Se você
quiser, eu posso cozinhar.

Homem: (carinhoso) Vou preparar um café da manhã


maravilhoso pra você. Deixa comigo.

Mulher: (cúmplice) Vamos fazer um brunch? Com tudo o que a


gente tem direito?

Homem: Uma vez, na França, comi ovos com caviar. Uma


delícia. Era o charme do hotel: salgar os ovos com
caviar de esturjão do mar Cáspio. Inesquecível.

Mulher: (afetada) Ai, amor, tô ficando com água na boca. Vamos


fazer waffle? Ou você prefere panqueca? Tem corn
syrup na despensa.

Luzes se apagam.

35
CENA 3

Barulho de televisão e rádio ligados. Locutor narra notícias quase


sempre ininteligíveis, como um mantra de manchetes e reportagens
invadindo a cena. Projeção de imagens extraídas de páginas de sítios
jornalísticos na internet. Tempo. Luzes vão se acendendo pouco a
pouco e vemos Homem e Mulher na cozinha da casa, preparando
um banquete. Homem está fritando ovos no fogão e Mulher corta
temperos sobre uma tábua de madeira com um imenso facão.
Tempo. O barulho de televisão e de rádio esmorece, permanecendo
bem baixinho no fundo da cena, e as projeções de imagens extraídas
da internet desaparecem. Mulher para de cortar os temperos, ergue
o facão e encara a lâmina afiada.

Mulher: (transmitindo uma notícia, raivosa e debochada)


Extra! Extra! Parem as máquinas! Mulher traída
decepagenitália do marido com um serrote.

Homem: (transmitindo uma notícia, provocando Mulher


respondendo à altura; cozinhando) Ninfomaníaca
assassina agia como “viúva negra” de maridos
milionários.

Mulher volta a cortar os temperos como se decepasse o membro


de Homem.
Mulher: (transmitindo uma notícia, provocando Homem e
cortando temperos) Diretor de redação é demitido por justa
causa. (Tom debochado) Um escândalo. Fritaram o pobre coitado
sem piedade.

Homem olha para a frigideira e depois encara Mulher com raiva.

Homem: (interrompendo o jogo, aborrecido e raivoso) Não gosto


desse tipo de brincadeira.

Mulher para de cortar os temperos, larga o facão e se aproxima de


Homem, que continua cozinhando. Mulher começa a
acariciar Homem.

36
Mulher: (bolinando Homem, irônica e, ao mesmo
tempo, sensual) Meu menininho não gosta de
fritura. Tem medo de fazer pipi na cama?

Carente e necessitada, Mulher começa a acariciar o pênis de


Homem, tentando excitá-lo.

Homem: (cozinhando e tentando se esquivar, sério) Para com


isso. Não é o momento.

Mulher se afasta furiosa e volta a cortar temperos com o facão.

Mulher: (sádica) Mundo cão. Qual é a manchete do dia? O que


você tem a me oferecer pra chamada de capa?

Homem: (debochado e também sádico) Envelhecimento precoce


atinge a maioria das mulheres. Esclerose múltipla.
Lúpus. Reumatismo crônico. Arteriosclerose. Mal de
Alzheimer. Numa única palavra: velhice.

Mulher pega um imenso pepino, coloca sobre a tábua de madeira


e faz uma espécie de coreografia com o facão, como se fosse um
sushi-man, com uma cadência quase que masturbatória.

Mulher: (cortando o pepino, sensual e debochada) Ponto G.


Clitóris. Grelo. Vulva. Trompas de falópio. Ovário.
Endometriose. (Breve pausa) Pau. Glande. Saco
escrotal. E, principalmente, uma consulta urgente ao
proctologista. O teste do dedo gigante.

Mulher provoca um estrondo com o facão sobre a tábua de madeira.


Homem se encolhe como se tivesse levado uma dedada no ânus.
Subitamente, para de cozinhar.

Homem: (irritado e incomodado) Ai! Para com isso!

Mulher larga o facão e se aproxima de Homem.

Mulher: (arrependida e carinhosa) Vamos parar com isso?

Homem: (chateado, como um menino) Você que começou.

37
Contrarregra entra em cena com sua coreografia expressionista
estilizada e pendura uma forca na cozinha. Homem e Mulher olham
assustados para a forca. Contrarregra sai de cena.
Mulher: (lúdica, tentando aliviar o clima pesado que se
instaurou na cozinha) Vamos fazer a nossa reunião de
pauta?

Homem: (brincando) Mas eu sou o chefe de reportagem.

Mulher: (contrariada) E eu vou ser o quê? Estagiária? Vou ter


que fazer rádio-escuta? (Tom, reclamando) Você é
sempre o chefe e eu, repórter Z. Não é justo. (Tom
veemente) Hoje sou eu que vou fazer a edição. Quero
escolher as fotos. Fazer a diagramação. Os títulos. As
chamadas de capa.

Homem: (carinhoso) Tá bom. Eu deixo. (Tom professoral,


advertindo) Mas só hoje. Você ainda não tem experiência
suficiente pra assumir cargo de chefia.

Mulher: (ofendida) Não precisa humilhar. (Tom seguro) Sempre


tive faro pra notícia. Tenho animalidade jornalística. Já fiz
muito plantão de sequestro. Sei tudo sobre todas as principais
chacinas de nosso País. É a minha especialidade. Mundo cão.
Vida real. (Tom, gabando-se) E tenho os meus contatos na
polícia. Um bom jornalista jamais revela as suas fontes.

Homem: (altivo) Você aprendeu muito comigo. Tem que admitir.

Mulher: (desconversando) Vamos ao trabalho!

Homem: (entrando no jogo, autoritário) O deadline tá próximo.


Pra ontem. Tá me entendendo? Aqui tudo é pra ontem.
Homem e Mulher pegam panelas, tigelas, temperos, legumes, ovos,
linguiças, salsichas, apetrechos de cozinha, abrem a geladeira e
começam a preparar diferentes pratos e iguarias.

Mulher: (cozinhando, autoritária) Você agora é meu


subordinado. Vai lá na publicidade e vê o que tem de anúncio.

38
Homem: (cozinhando) Já vi. Tá fraco. Só anúncio da casa. Se
você quiser, a gente pode derrubar.

Mulher: (entusiasmada, cozinhando) Então derruba tudo. Capa


limpa. Vamos rasgar uma manchete de cabo a
rabo na página.

Homem: (advertindo, cozinhando) São os anúncios que pagam o


seu salário. Não devia comemorar.

Mulher: (entusiasmada, desconversando e cozinhando) Como


vamos abrir a edição?

Homem: (cozinhando) Você é que está editando.

Mulher: (séria e decidida, cozinhando) Não tem saída. As


pessoas gostam de histórias trágicas. Isso vende. Atrai
os anunciantes.

Homem: (ponderando, cozinhando) Você não prefere abrir com


uma matéria de comportamento? As pessoas também
gostam de se ver na mídia. É uma questão de
identificação.

Mulher: (indecisa e irônica, cozinhando) Não acha meio sem


graça? Abrir a nossa edição com gente civilizada
recolhendo cocô de cachorro com saco plástico? O
politicamente correto está acabando
com o jornalismo. Uma praga. A mídia é o alarme da
sociedade. Precisa ser explosiva.

Homem: (professoral, cozinhando) O jornalismo é uma reserva


moral desse mundo corrupto em que vivemos.

Mulher: (carinhosa, cozinhando e rompendo o jogo por


instantes) Amor, adoro quando esse seu idealismo
vem à tona. Você fica tão macho. Tão charmoso. Você
tem tanto talento.

39
Homem: (sério, altivo, professoral, não querendo quebrar
o jogo, cozinhando) O jornalismo não é um só. São
muitos. Por um lado, uma maravilhosa escola da
vida. Por outro, um antro de oportunistas vaidosos.
Idealismo e arrivismo. Convivem lado a lado. Mas, com
toda certeza, um território moral regido pela ética.

Mulher: (pouco se lixando, cozinhando) Amor da minha vida,


tudo é marketing. Principalmente na mídia. Você
acabou de dizer: quem paga o nosso
salário é a publicidade. Tá tudo misturado.
(Tom autoritário) E hoje aqui quem manda
sou eu. Não quero nenhuma matéria
de comportamento na minha edição. Quero jogar fora
todos os chavões do marketing social, do marketing
ambiental... (Tom delirante) Quero editar a vida nua e
crua. Em carne viva. Como uma mulher menstruada
escorrendo como fonte de vida. Uma vida interrompida
que precisa ser noticiada. Vou abortar todos esses
cronistas... Todas essas grifes e todos esses
especialistas que infestam as páginas dos
nossos jornais. Quero a notícia em seu estado mais
puro. (Tom: transmitindo uma notícia, delirando e
provocando Homem novamente) Extra! Extra! Mulher
degola o marido que a trocou por uma punheta no
banheiro da suíte do casal.

Homem para de cozinhar.

Homem: (assustado, mas tentando se controlar) Pega leve. Você


é quem manda, mas pega leve. (Tom irônico e ardiloso)
Humilha, mas com carinho.

Mulher para de cozinhar e pega punhados de sal com as duas mãos.


Ela ergue os braços e deixa o sal cair lentamente por entre os dedos.

Mulher: (delirando, cruel) O sangue é a essência da vida. É o


sangue que bombeia as fantasias do teu pau.
É o sangue que te mata de pressão
alta. Enfarte. Derrame.

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Contrarregra entra em cena com uma guilhotina. Homem olha
assustado para a guilhotina, enquanto Mulher, em seu delírio, pela
primeira vez, sente-se atraída por Contrarregra. Mulher se aproxima
de Contrarregra e tenta seduzi-lo. Homem observa a cena com
medo e perplexidade. Contrarregra observa Mulher com frieza.

Mulher: (sensual, a Contrarregra) Nós já vamos fechar a edição.


Não precisa se preocupar. Somos profissionais.

Contrarregra não esboça nenhuma reação. Homem continua


observando a cena com medo e perplexidade.

Mullher: (sensual, a Contrarregra) Já fizemos a diagramação.


Já escolhemos as fotos. Só estávamos discutindo como
abrir a edição. Debate saudável.

Breve pausa. Mulher olha para Contrarregra como se o filmasse em


detalhes.

Mulher: (carinhosa, carente, a Contrarregra) Seja você quem


for, preciso da sua companhia. Em tantos momentos,
meu único parceiro na solidão.

Homem: (interrompendo, profissional, à Mulher) Pra ontem.


Não temos mais tempo.

Mulher vai lentamente saindo do delírio e do torpor com que encara


Contrarregra e volta a cozinhar. Contrarregra sai de cena. Homem
pega um copo d’água, coloca um pouquinho de açúcar e mexe com
a colher. Mulher continua cozinhando, desolada, mas o observa com
o canto dos olhos. Homem se aproxima e oferece o copo d’água
açucarada à Mulher.

Homem: (carinhoso, oferecendo o copo d’água à Mulher) Toma.


Tudo vai dar certo. Vamos conseguir fechar a edição
a tempo.

Mulher para de cozinhar e pega o copo. Quando ela quase começa a


beber, Homem grita, interrompendo-a.

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Homem: Espera. Quase ia esquecendo.

Homem pega uma garrafa de groselha e derrama um pouquinho


dentro do copo. Mulher bebe a água avermelhada com uma volúpia
vampiresca.

Mulher: (aliviada, saindo do delírio) Ai, que delícia! Já tô mais


calma. Pode ficar tranquilo.

Homem: (entrando no jogo novamente) Pronta pra manchete


principal?

Mulher: (mais animada, brincando) Demorou.

Homem: (animado) Decidiu?

Mulher: (profissional, séria) Já verificou se morreu alguém


importante? Não quero editar com o maior carinho e
depois ter que mudar tudo em cima da hora.

Homem: (surpreso) Necrológio? É isso que você quer?

Mulher: (autoritária) Mandei você verificar.

Homem: (debochado) Minha querida, eu sempre te disse: o


jornalista só é solidário na morte. (Tom profissional)
Não posso fugir das minhas obrigações. Já volto.

Homem sai de cena. Mulher se aproxima dos espectadores e se


dirige diretamente a eles.

Mulher: (melancólica e, ao mesmo tempo, profissional, ao


público) Por fim, a despedida. Agora só me
resta o adeus. Por uma boa causa.

Mulher se afasta e caminha pela cozinha, retirando as iguarias já


prontas de diferentes compartimentos: um bolo macabro, um peru
assado em sangue, panquecas que mais parecem pedaços de peles
enrugadas, pavês de pelos que transbordam de seus recipientes.

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Mulher: (ao público, oferecendo as iguarias) Meu banquete
de notícias pra saciar o apetite de todos
vocês. Mesmo que seja pelo caminho da fatalidade,
a glória atenua a fisgada da dor. Tudo isso aqui é o
meu alento de luz. Um trampolim de glamour
final. A última chama. O derradeiro olhar de
empáfia. Que só se completa no olhar de todos
vocês. (Breve pausa) Vejam esse meu gesto, não
como uma atitude desesperada, mas como uma
doação. Um impulso de generosidade. Eu me entrego
plena, como oferenda, à curiosidade de todos vocês.
Matem-me. Julguem-me. Falem mal, mas falem de
mim. Dilacerem o meu corpo com o sorriso metálico
de todas essas câmeras ocultas. E bebam a
seiva da minha vida que se apaga.
Contrarregra entra em cena empurrando Homem. Mulher se
assusta. Contrarregra ensaia para Homem uma coreografia cruel
e opressiva. Homem se encolhe amedrontado diante dos golpes
estilizados de Contrarregra. Decepcionada, Mulher caminha
pela cozinha e retira de um compartimento um rolo de amassar
macarrão. Mulher aponta e ameaça Homem com o utensílio
de cozinha. Homem se encolhe mais ainda e desaba no chão.
Contrarregra sai de cena.

Mulher: (decepcionada e cruel, a Homem) Você ia fugir?


Não posso acreditar. A sua covardia não tem
limites. A sua impotência é esse medo que congela as
suas partes baixas. E turva a sua visão, te
afastando dos seus compromissos de marido.
(Devastada e furiosa) Mais uma vez, você não cumpriu
o nosso trato.
Mulher caminha pela cozinha e encontra o facão com o qual cortava
temperos. Pega o facão e se aproxima de Homem, que continua
caído no chão assustado.
Homem: (assustado e humilhado) Não precisamos fazer
necrológio de ninguém importante. O espaço
da notícia é todo nosso. Sem concorrência. A
divulgação será imensa. Nada vai ofuscar o
nosso brilho.

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Mulher: (confusa e furiosa) Não posso mais confiar em você.

Homem se ergue e subitamente se apruma, mostrando-se novamente


altivo e decidido. Encara Mulher e oferece os pulsos a ela.

Homem: (desafiando Mulher) Acaba logo com isso.

Mulher corta os dois pulsos de Homem com o facão e duas imensas


fitas vermelhas caem do teto do teatro, cada uma de um dos lados
do palco. Iluminação muda completamente. Homem se contorce
de dor. Tempo. Mulher larga o facão no chão, ao mesmo tempo,
horrorizada e fascinada. Contrarregra entra em cena com duas
outras fitas vermelhas, só que bem menores, costuradas a dois
elásticos também vermelhos, e os coloca ao redor dos punhos de
Homem. Homem vai lentamente deixando de se contorcer de dor e
pouco a pouco se apruma furioso. Luz muda e se acende na plateia.
Homem encara os espectadores ao mesmo tempo em que chicoteia
o chão com as duas fitas vermelhas acopladas aos seus punhos,
como um domador diante de feras selvagens no picadeiro de um
circo. Homem chicoteia várias vezes o chão, sempre encarando o
público com fúria, desprezo e indignação. Assustada, Mulher cai
desmaiada no chão.

Homem: (ao público, de quando em quando, chicoteando o chão)


Eu deploro a curiosidade de todos vocês. Deploro
esse olhar pornográfico, sempre ávido por
“barracos” e baixarias. Vocês são a verdadeira
favela do mundo em que vivemos. A indigência moral.
A miséria ética. A espiadela covarde.
A torcida pelas picuinhasue fustigam e destroçam
nossas maiores virtudes. (Breve pausa) Mesquinharias
e frivolidades. É disso que vocês gostam? Quanto
mais baixo, maior a audiência? É isso? (Breve pausa)
Deploro a vilania dessa passividade fútil. Deploro todo
esse interesse momentâneo pela vida alheia.
O que restou dos sonhos de todos vocês?

Homem encara o público com raiva e desprezo.

Homem: (ao público, como um mestre de cerimônias num circo,


debochado) Sorriam, vocês estão sendo filmados!

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Homem desvia o olhar para o corpo de Mulher caído no chão.
Tempo. Volta a encarar o público.

Homem: (ao público, apontando o corpo de Mulher, carinhoso


e numa espécie de lamento) Ali jaz um corpo que
um dia amei com todas as minhas forças. Amei
essa mulher como uma parte de
mim. Só que ela se perdeu em mensagens. Com
limitação de caracteres. Uma escola de desatenção pro
nosso amor.

Homem se aproxima de Mulher, ajoelha-se ao lado do corpo e


cobre o seu rosto com as fitas vermelhas acopladas aos próprios
braços. Mulher vai, pouco a pouco, despertando. Os dois se
abraçam e se deitam no chão. Mulher se acomoda sobre corpo
de Homem. Começam a fazer amor. Tempo. Contrarregra entra
em cena com dois véus pretos e os coloca sobre os rostos de
Homem e de Mulher, sufocando-os lentamente. Contrarregra
sai de cena. Os movimentos do ato sexual de Homem e Mulher
vão pouco a pouco esmorecendo como gestos involuntários
dos dois corpos, que mais parecem espasmos, até que os dois
morrem, como num orgasmo final compartilhado.

Iluminação muda. Começamos a ouvir tambores marciais,


como num fuzilamento. O som dos tambores vai crescendo,
crescendo, e Contrarregra entra pela última vez em cena,
com uma câmera na mão, como se fosse uma metralhadora,
apontada para o público. Contrarregra faz uma panorâmica
(em movimento horizontal) bem lenta dos espectadores.
Tempo. Palco em trevas. Barulho de metralhadoras disparando,
diversas vezes, rajadas e mais rajadas de tiros. Tempo. Os
disparos vão esmorecendo e começamos então a ouvir edição
de som com ruídos extraídos de computadores, sonoridades da
internet, locuções radiofônicas e televisivas, além de barulho
de rotativas de grandes jornais e revistas. Edição de som com
ruidagens de veículos de comunicação vai crescendo, crescendo,
até chegar a um paroxismo que culmina num tiro, um estrondo,
a explosão de uma bomba.

Fim.

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