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NOTÍCIA
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FOME DE
NOTÍCIA
Evaldo Mocarzel (escrita em processo
colaborativo com o grupo V.A.G.A.)
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Apresentação
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Cineasta premiado, criador de dezenas de documentários, muitos
deles tendo como origem o registro de processos teatrais, Mocarzel
acumulou diversos parceiros. Trabalha muito e sempre movido por
uma crença de rara intensidade no poder da arte para ampliar
conhecimento e percepção do mundo e das pessoas. Fé que
investiu na criação de um projeto de jornalismo cultural ousado e
consistente nos mais de vinte anos em que atuou na imprensa diária.
Entre 1995 e 2003, trabalhamos juntos no Caderno 2, o suplemento
cultural do jornal O Estado de S. Paulo, eu como repórter, ele
como editor. Fui testemunha de seus embates. Só para não ficar
na generalidade, Mocarzel era capaz de dar como matéria de capa
uma longa entrevista com o diretor teatral inglês Peter Brook na
mesma semana em que estreava um daqueles blockbusters do
cinema americano. “Não vou me pautar pela indústria cultural”,
bradou por diversas vezes, uma delas, por bizarra coincidência, ao
lado de uma grande forca de madeira e seu inconfundível laço de
corda deixada no auditório pela equipe de um desses famigerados
programas “motivacionais”. Parecia um aviso, era um signo forte.
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ainda realizar um exercício de linguagem expressionista. Como
é comum ocorrer, o gesto criador ultrapassou intenções,
assim como o elemento forca, signo que reconheci como
memória, abriu-se a múltiplos significados no contexto da cena.
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Piglia Jr. (o casal) e Francisco Lauridsen, o criador do contrarregra
no Teatro da Vertigem, agora substituído por João Attuy.
Beth Néspoli
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CENA 1
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CENA 2
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considerado por muitos críticos a obra mais expressionista
da história do cinema. Na verdade, o filme inaugural do
movimento na sétima arte. A composição de Contrarregra
também pode buscar inspiração em outro título seminal da
arte cinematográfica, O Vampiro de Dusseldorf, de Fritz Lang,
de 1931, uma obra pós-expressionista, diga-se de passagem, o
primeiro trabalho sonoro do mestre alemão. Na interpretação de
Peter Lorre, encarnando o personagem-título, o assassino em
série na corrupta Alemanha do período entre as duas grandes
guerras, há algo trágico e, ao mesmo tempo, cômico, patético.
Um matador de menininhas sendo manipulado como uma
marionete pelo lado obscuro da própria alma. Outra fonte de
inspiração são os filmes do cineasta Roy Andersson, com suas
atmosferas de cotidiano estranhado, ora solitárias e por vezes
sombrias, ora completamente hilariantes.
Homem tira uma foto do rosto de Mulher coberto pelo véu cinzento.
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Homem tira nova foto de Mulher.
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Contrarregra entra com uma cadeira e se aproxima de Homem,
que se senta desalentado, impotente, resignado. Contrarregra se
aproxima então de Mulher e lentamente tira o véu que encobre seu
rosto. Contrarregra sai de cena.
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Mulher atinge o orgasmo.
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Homem sai. Mulher respira fundo e procura se acalmar. Ela se
espreguiça mais um pouco. Contrarregra entra em cena com uma
cadeira e a coloca no proscênio, não muito distante da cadeira em
que Homem estava sentado. Mulher se senta. Contrarregra sai.
Mulher espera ansiosa. Tempo. Homem volta.
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Homem: (astuto, mudando de assunto) Nem te contei. Meu
chefe entrou de licença. (instigando a curiosidade de
Mulher) Sem data pra voltar.
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Homem: (cético, discordando) Mais ou menos. Se for detectado
no início, a quimioterapia é uma cura real.
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Mulher: (delirando) Há uma beleza na doçura de tudo que
apodrece. (Tom veemente) As frutas, meu amor, são
muito mais saborosas quando passam do ponto.
Homem sai. Contrarregra entra com papéis nas duas mãos. Ele vai
até o meio do palco e, com sua coreografia expressionista estilizada,
subitamente joga os papéis para o alto com as duas mãos.
Iluminação muda. Homem entra com uma caixa com recortes de
jornais e se senta novamente em sua cadeira. Contrarregra vai até o
lado esquerdo do palco, senta-se numa cadeira e, com instrumentos
rítmicos, cria uma espécie de partitura acelerada para a leitura das
notícias que será feita por Homem, que pega um recorte de jornal.
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Homem: (sério) Tremores leves. Nenhum cadáver.
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Mulher: (curiosa) E o defunto?
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Com seus instrumentos rítmicos, Contrarregra cria novamente uma
partitura acelerada para a leitura das notícias.
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Homem: (discordando) A história é ótima. Inusitada. E muito
engraçada. (Tom agressivo) Seu problema é que você
não tem humor.
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Homem: (tentando animá-la) Acho que você vai gostar dessa
aqui. (lendo) Tortura pode ser aplicada para impedir o
assalto de inocentes.
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Mulher se mostra muito mais animada, até mesmo eufórica.
Homem olha para Mulher com muito carinho. Os dois ficam se
olhando com cumplicidade. Tempo. Contrarregra bate com o pedaço
de madeira no chão diversas vezes e, com seus instrumentos
rítmicos, acelera ainda mais a partitura para a leitura das notícias,
interrompendo a cumplicidade e a sintonia romântica que envolve o
casal por um breve instante.
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Mulher: (decepcionada) Chatice.
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Mulher: (curiosa) Brasileira?
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Mulher: (mimada) Só mais um pouquinho.
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passa suavemente o véu por várias partes do corpo de Mulher, seu
rosto, braços e costas, instigando o seu apetite sexual. Conforme
Contrarregra passa o véu pelo corpo de Mulher, ela vai acariciando
Homem cada vez mais forte, beija-lhe a boca com ainda mais
volúpia, Homem vai se entregando mais e mais à sua sedução.
Contrarregra se aproxima então de Homem com seu véu cinzento
e o deposita sobre sua cabeça, como se o sufocasse. Contrarregra
sai de cena. O apetite sexual de Homem vai esmorecendo,
esmorecendo, até que ele não mais corresponde às carícias de
Mulher. Ela insiste, tenta reanimá-lo, beija-o mais uma vez com
volúpia, voracidade e agora também com desespero, mas tudo é
em vão. Homem desaba sobre o corpo de Mulher, completamente
impotente, como um menino indefeso.
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Até então grudados no centro do palco, Homem e Mulher finalmente
se descolam.
Homem sai de cena. Contrarregra entra com uma câmera num tripé e
a coloca no centro do palco, apontada para Mulher. Iluminação muda
e a atmosfera sugere agora um estúdio de televisão. Contrarregra
pega uma cadeira e acomoda Mulher diante da câmera. Sentada,
Mulher encara câmera como se tentasse decifrá-la. Contrarregra sai
de cena. Entra Diretor de TV.
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proteger o seu idealismo mais sincero. Blindá-lo
do desprezo dos covardes. De todos aqueles que
têm medo de perder o emprego. Esses são os
mais perigosos. Nefastos para quem tem algo
a dizer ao mundo. Não se deixe abater. Siga em
frente. Sempre em frente. Aprenda a driblar os
interesses privados e também governamentais
das empresas de comunicação. Há sempre, lá no
fundo de você mesma, uma chama de idealismo
na crença de que você pode, sim, derrubar um
presidente corrupto. Denunciar uma falcatrua.
Fustigar, moralizando, as maracutaias de um
político filho da puta. Siga em frente. Você será
explorada. Não terá mais finais de semana. Nem
Natal, nem feriado. A ciranda frenética da mídia
vai girar nos seus olhos... Nos seus neurônios...
E o estresse talvez possa se tornar um câncer...
Uma úlcera perfurada... Uma implicância crônica
com toda a sua família, quando você toma um
uísque depois de um exaustivo dia de trabalho,
tentando relaxar um pouco. Mas o jornalismo se
repete. É uma verdade que sempre atenua essa
nossa sofreguidão que não tem fim. Seja esperta:
também ouça a fala do mercado. Deixe que seus
tentáculos se ramifiquem pelas áreas mais
escondidas do seu idealismo, que também tem
sede de glória. Você acabará colhendo frutos com
essa lógica gananciosa. Você é você, mas você é
também o próprio sistema. Você está no epicentro
do poder... Do quarto poder... E tem que tirar
proveito disso fazendo um bom trabalho.
Contrarregra entra em cena e desvia a câmera para o público. Luz
se acende na plateia. Mantendo a câmera no tripé, Contrarregra
faz movimentos com a lente na direção dos espectadores, com uma
coreografia que parece querer roubar a alma das pessoas.
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curiosidade das pessoas. Suas mesquinharias.
Volúpia por fofocas. Sacie essa necessidade
com notícias embaladas com uma pitada de
sensacionalismo. As pessoas precisam disso.
Logicamente sem comprometer a qualidade
da informação. Veja todas essas pessoas como
árvores sendo tragadas pelas rotativas dos
grandes jornais. Equipes de televisão espalhando
plástico e poluição nos santuários ambientais
de nosso planeta. (Tom professoral) As pessoas
querem se ver, mas também precisam se
rejeitar nas manchetes da mídia impressa e nas
chamadas das reportagens televisivas. É preciso
buscar alguma coisa macabra, mas sempre
muito comezinha... Trivial... Banal... Para que as
pessoas possam se identificar... Se sentir parte
da notícia. No fundo, uma experiência vazia de
vivência. Nosso trabalho é inflá-la de sangue,
catástrofes e tragédias cotidianas. Em duas
palavras: horror e identificação. Precisamos fazer
cócegas no que está escondido no fundo da alma
de todos esses infelizes sempre tão curiosos.
A informação precisa entrar pelos poros, até
provocar repulsa. Você é uma espécie de mascate
numa feira de banalidades sangrentas. Olhe bem
para essas pessoas: uma clientela faminta de
palavras... Manchetes... Headlines de impacto.
Preencha as hesitações e, principalmente, os
temores mais inconfessáveis de todas essas
pessoas. O pânico absoluto diante dos próprios
pensamentos. Arrebate a atenção de todos.
Conquiste elevados índices de audiência. Ouça
os ecos do acaso. Na mídia, o destino não tem
nada de cego. É uma besta com mil olhos. Um
oráculo pontilhado de monitores de vigilância...
Seduzindo nossa vaidade... Potencializando nosso
narcisismo... Mas depois nos atirando na vala
comum da alienação. Por tudo isso, construa
signos. Matérias exclusivas. De preferência,
assinadas por grandes nomes. O mundo quer
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grifes. Sinal dos novos tempos. Cegas serão todas
essas pessoas que não souberem decifrar suas
mensagens de desespero... De impotência... Mas
também de um idealismo que não pode morrer
jamais. É isso que nos move.
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de um lado que me falta... Sou fêmea até o fundo da
alma... E atirei tudo isso ao mar por respeito a você.
Ao nosso projeto de vida. Sem a menor esperança de
que todas essas mensagens um dia retornariam para
mim. (Tom amargo) Nunca ninguém apareceu pra me
socorrer da sua presença.
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Fodam-se todos os engarrafamentos! Fodam-se
todas as marginais! Fodam-se as enchentes! Foda-
se a poluição! Foda-se o ar seco! Fodam-se todas
as ressacas... Os assaltos... Os assassinatos... (Tom
irônico, desviando os olhos da câmera para Homem,
mas falando com o ponto eletrônico) Só preservem os
crimes passionais. Esses têm raízes profundas.
Contrarregra entra em cena com uma mesa. Sobre ela, uma imensa
faca e um bife sobre uma tábua de carne. Contrarregra começa a
picotar o bife com uma coreografia exata e ameaçadora, mas ao
mesmo tempo debochada. Tempo. Homem se aproxima de Mulher
e começa a passar suavemente as ervas sobre o seu rosto. Mulher
sente o perfume dos temperos e agarra um punhado verde com
necessidade, como se aquele aroma pudesse tirá-la do delírio em
que se encontra. Mulher leva as folhinhas para bem perto do próprio
nariz e cheira profundamente, com volúpia e prazer. Tempo. Homem
deposita delicadamente o que restou das ervas sobre o corpo de
Mulher e vai pouco a pouco se aproximando da câmera. Homem
aponta a lente para o próprio rosto. Contrarregra sai de cena e
Mulher continua cheirando as ervas com deleite e necessidade.
Homem então desvia os olhos para o público.
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fiel tradução do que todas vocês chamam de símbolo
fálico. Meu pau, um ser que me habita. Convive
comigo. Na alegria e na tristeza. E me faz flutuar com
fantasias em carne viva. (Tom repulsivo, ao público,
mas dirigindo-se à Mulher) Te conquistar pra quê?
Não se conquista o que já está sepultado no tédio e na
acomodação. Carinho e amizade. Ainda sobrevivem.
Mas isso não me move. Papai e mamãe. E aí a puta
vem em meu socorro. Com suas carícias de saunas
e cremes escorregadios. E não me pede nada em
troca. Somos somente eu e a fantasia da vez. Posse,
potência e putaria. É o tripé da minha prepotência mais
sincera. E ela geme. Geme dissimulada. Sua mentira
é explícita. Uma gema de falsidade. Escondida nas
partes íntimas de todas as prostitutas que sempre me
acolheram com tanta boa vontade.
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Mulher: (conciliadora) A gente pode experimentar. Se você
quiser, eu posso cozinhar.
Luzes se apagam.
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CENA 3
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Mulher: (bolinando Homem, irônica e, ao mesmo
tempo, sensual) Meu menininho não gosta de
fritura. Tem medo de fazer pipi na cama?
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Contrarregra entra em cena com sua coreografia expressionista
estilizada e pendura uma forca na cozinha. Homem e Mulher olham
assustados para a forca. Contrarregra sai de cena.
Mulher: (lúdica, tentando aliviar o clima pesado que se
instaurou na cozinha) Vamos fazer a nossa reunião de
pauta?
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Homem: (cozinhando) Já vi. Tá fraco. Só anúncio da casa. Se
você quiser, a gente pode derrubar.
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Homem: (sério, altivo, professoral, não querendo quebrar
o jogo, cozinhando) O jornalismo não é um só. São
muitos. Por um lado, uma maravilhosa escola da
vida. Por outro, um antro de oportunistas vaidosos.
Idealismo e arrivismo. Convivem lado a lado. Mas, com
toda certeza, um território moral regido pela ética.
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Contrarregra entra em cena com uma guilhotina. Homem olha
assustado para a guilhotina, enquanto Mulher, em seu delírio, pela
primeira vez, sente-se atraída por Contrarregra. Mulher se aproxima
de Contrarregra e tenta seduzi-lo. Homem observa a cena com
medo e perplexidade. Contrarregra observa Mulher com frieza.
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Homem: Espera. Quase ia esquecendo.
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Mulher: (ao público, oferecendo as iguarias) Meu banquete
de notícias pra saciar o apetite de todos
vocês. Mesmo que seja pelo caminho da fatalidade,
a glória atenua a fisgada da dor. Tudo isso aqui é o
meu alento de luz. Um trampolim de glamour
final. A última chama. O derradeiro olhar de
empáfia. Que só se completa no olhar de todos
vocês. (Breve pausa) Vejam esse meu gesto, não
como uma atitude desesperada, mas como uma
doação. Um impulso de generosidade. Eu me entrego
plena, como oferenda, à curiosidade de todos vocês.
Matem-me. Julguem-me. Falem mal, mas falem de
mim. Dilacerem o meu corpo com o sorriso metálico
de todas essas câmeras ocultas. E bebam a
seiva da minha vida que se apaga.
Contrarregra entra em cena empurrando Homem. Mulher se
assusta. Contrarregra ensaia para Homem uma coreografia cruel
e opressiva. Homem se encolhe amedrontado diante dos golpes
estilizados de Contrarregra. Decepcionada, Mulher caminha
pela cozinha e retira de um compartimento um rolo de amassar
macarrão. Mulher aponta e ameaça Homem com o utensílio
de cozinha. Homem se encolhe mais ainda e desaba no chão.
Contrarregra sai de cena.
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Mulher: (confusa e furiosa) Não posso mais confiar em você.
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Homem desvia o olhar para o corpo de Mulher caído no chão.
Tempo. Volta a encarar o público.
Fim.
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