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Curso Integral - Uma Genealogia Das Psic
Curso Integral - Uma Genealogia Das Psic
Curso Integral - Uma Genealogia Das Psic
1
Esta literatura é extensa e tem seu momento fundador, entre outros em FOUCAULT, Michel; Histoire
de la folie .Gallimard, 1962. Para desdobramentos contemporâneos ver, principalmente, KINCALD,
Harold e SULLIVAN, Jacqueline: Classifying psychopathology: mental kinds and natural kinds, MIT
Press, 2014, assim como ZACHAR, Peter; A metaphysics of psychopathology, MIT Press, 2014,
COOPER, Rachel; Classifying madness: a philosophical examination of the Diagnostic and Statistical
Manual of Mental Disorders, Springer, 2005 e MURPHY, Dominic; Psychiatry in the scientific image,
MIT Press, 2012
como do seu impacto na produção dos objetos que deveriam descrever. Pois
devemos nos perguntar se as orientações que guiam perspectivas hegemônicas
de intervenção clínica são neutras em relação a valores. Se elas não são neutras,
então é o caso de se perguntar se a gênese de tais valores que dirigem nosso
horizonte de cura não exigiria uma perspectiva ampliada de análise na qual
modalidades de orientação clínica são compreendidas no interior de sistemas de
influências compostos por discursos de forte teor normativo advindos de
campos exteriores à práticas terapêuticas como, por exemplo, a cultura, a moral,
a estética, a política e a racionalidade econômica. Trata-se, nestes casos, de não
fornecer às questões clínicas o estatuto de problemas autônomos, mas de
reinscreve-las no interior do sistema de circulação de valores que compõem as
várias esferas da vida social como um sistema de implicação constante.
Neste sentido, gostaria de utilizar a discussão a respeito dos destinos e
mutações de uma categoria clínica central, a saber, a esquizofrenia para avaliar a
possibilidade de recusar tentativas de pautar problemas epistemológicos do
saber psiquiatrico-psicológico a partir de descrições realistas que tendem a
compreender categorias clínicas em chave naturalista. Tal recusa será feita, neste
caso, em nome da tentativa de explorar a produtividade de perspectivas capazes
de compreender como categorias clínicas são influenciadas pela circulação de
sistemas de valores produzidos fora do campo da clínica. Uma destas
perspectivas, que gostaria de apresentar para vocês já em nossa próxima aula é
conhecida por “nominalismo dinâmico”. Ela deriva da compreensão de que o
campo de intervenção clínica diante do sofrimento psíquico seria animado pela
instauração de categorias classificatórias com força performativa, ou seja,
categorias que não apenas descrevem entidades presentes no mundo natural,
mas que, de certa forma, criam performativamente entidades (daí vem seu
nominalismo). Mas o campo de intervenção clínica as cria de forma tal que tais
entidades adquirem a capacidade de organizar retroativamente fenômenos no
interior de quadros descritivos que servem não apenas como quadros de
produção de sentido para as experiências singulares de sofrimento, mas também
como quadro indutor de efeitos posteriores (por isto, a ideia de um nominalismo
“dinâmico”).
Neste sentido, vale as considerações de um importante filósofo da ciência,
Ian Hacking, para quem uma patologia mental não descreve uma espécie natural
como talvez seja o caso de uma doença orgânica como câncer ou mal de
Parkinson. Ela cria performativamente uma nova situação na qual sujeitos se
veem inseridos2. Fato compreensivo se aceitarmos que categorias clínicas ligadas
à descrição do sofrimento psíquico são objeto de elaboração reflexiva por parte
dos próprios sujeitos que elas visam descrever.
Esta é uma característica diferencial importante própria à clínica do
sofrimento psíquico, a saber, suas categorias são reflexivas. Os objetos que elas
2Este é um importante ponto defendido por HACKING, Ian; Historical ontology, , p. 106, para
quem, no que se refere a classificações de doenças mentais, “um tipo (kind) de pessoa vem à
existência ao mesmo tempo que a própria categoria clínica (kind) foi inventada. Em alguns casos,
nossas classes e classificações conspiram para aparecer uma suportada pela outra”. A respeito
deste nominalismo dinâmico, ver também DAVIDSON, Arnold, The Emergence of Sexuality:
Historical Epistemology and the Formation of Concepts. Cambridge: Harvard University Press,
2004.
descrevem (no caso, o sujeitos que portam sintomas, transtornos, angústias,
inibições) apreendem tais categorias, identificam-se a elas e se modificam a
partir delas. Contrariamente a fenômenos físicos, que são determinados a partir
de categorias não-reflexivas (uma pedra não muda seu comportamento quando
sua queda é descrita a partir da lei da gravidade), fenômenos mentais são
determinados por sujeitos que produzem um nível significativo de reorientação
de ações e condutas, sejam elas conscientes ou involuntárias, quando se
identificam com certas categorias. Pois estar doente é, a princípio, assumir uma
identidade com forte força performativa. Ao compreender-se como “neurótico”,
“depressivo” ou portador de “transtorno de personalidade borderline”, o sujeito
nomeia a si através de um ato de fala capaz de produzir performativamente
efeitos novos, de ampliar impossibilidades e restrições. O ato de nomeação da
doença produz efeitos por si, reorienta a compreensão de fenômenos anteriores,
instaura uma nova realidade.
A gênese da esquizofrenia
3
AMERICAN PSYCHIATRY ASSOCIATION; DSM – V, p. 87
período de ocorrência (por exemplo, um mês para produções delirantes, caso
contrário, teremos um “transtorno psicótico breve”).
No entanto, podemos nos perguntar sobre o que tais anormalidades
teriam em comum para serem organizadas no interior de uma mesma categoria.
Por que não estaríamos, na definição da esquizofrenia, diante de uma descrição
como aquela que encontramos no relato de uma famosa enciclopédia chinesa
descrita por Jorge Luiz Borges: "os animais dividem-se em : a) pertencentes ao
Imperador, b) embalsamados, c) enjaulados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g)
cães em liberdade, j) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como
loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de
camelo, l) etc., m) que acabam de quebrar o bebedouro, n) que, de longe,
parecem moscas".
Pois por que estas cinco dimensões e não outras? Lembremos como a
psiquiatria contemporânea não define a esquizofrenia a partir de uma etiologia
que lhe seria própria, ou seja, não há uma reflexão sobre a estrutura de suas
causas, tal como, por exemplo, do que dizíamos da histeria de que uma
experiência traumática ligada à sexualidade era sua causa necessária (mesmo
que não suficiente). Também não encontraremos discussões a respeito da
dinâmica necessária de seu desenvolvimento e cura. Sendo assim, faz-se
necessário que exista alguma forma de relação interna entre os critérios
diagnósticos para que possamos compreender melhor a identidade da categoria
clínica.
No entanto, o que encontraremos na definição contemporânea de
esquizofrenia é uma condição ligada à duração (ao menos 6 meses de
persistência de signos do transtorno), outra ligada à inserção social do paciente
(os “níveis de funcionamento” de uma ou mais áreas como: trabalho, relações
interpessoais e auto-cuidado, devem estar claramente abaixo de uma expectativa
média4) e, por fim, uma condição ligada a presença de ao menos um destes três
sintomas (delírio, alucinação e fala desorganizada), acrescido de mais um
sintoma (que também pode ser sintomas negativos ou comportamento
catatônico ou desorganizado).
Esta definição aproximativa leva a esquizofrenia a ser determinada,
atualmente, como uma “síndrome clínica heterogênea” cujo diagnóstico envolve:
“o reconhecimento de uma constelação de signos e sintomas associados a
debilidades ocupacionais e de funcionamento social”5. No entanto, não há clareza
a respeito do fundamento dos critérios de avaliação de debilidades ocupacionais
e de funcionamento social nas áreas do trabalho, das relações interpessoais e do
auto-cuidado. Muito menos do que deveríamos entender por “constelação de
signos e sintomas”. Seriam tais critérios de avaliação ligados à incapacidade que
o próprio paciente sentiria na sua tentativa de realizar expectativas em tais áreas
da vida ativa, incapacidade vivenciada por ele como sofrimento? Ou estariam
eles ligados ao sofrimento que o comportamento do paciente acarretaria ao
4
O que levou o psiquiatra Thomas Szaz a afirmar que: “a exigência de que algumas pessoas tem uma
doença chamada esquizofrenia (e que outras pessoas presumidamente não a tenha) não foi baseada em
descoberta médica alguma, mas apenas na autoridade médica, em outras palavras, ela não foi o
resultado de um trabalho empírico e científico, mas de uma decisão ética é política” (SZAZ, Thomas;
Schizophrenia: the sacred symbol of psychiatry, p. 3)
5
DSM – V, p. 100
vínculo social, já que “o desconhecimento da doença é um sintoma típico da
esquizofrenia”6?
Neste sentido, notem que mesmo se encontrássemos uma correlação
estrita entre marcadores biológicos e estados da doença, criando assim uma
simetria entre estados cerebrais e estados mentais, não teríamos ainda
respondido ao problema da etiologia da doença. Ninguém nunca negou a
existência de paralelismos entre estados mentais e estados cerebrais, mas isto
não implica a necessidade de aceitar um reducionismo materialista que vê nos
estados mentais apenas uma maneira metafórica de descrever estados cerebrais.
Se o mundo humano é composto de quiasmas entre normatividades vitais e
normatividades sociais, podemos nos perguntar se a compreensão da estrutura
de nossas formas de sofrer não exigiria o esclarecimento do impacto de
normatividades sociais, com seus sistemas de valores, no desenvolvimento de
normatividades vitais.
Por esta razão, faz-se necessário lembrar que categorias clínicas devem
ser analisadas não apenas por aquilo que elas expressam de maneira explícita,
mas também por aquilo que elas pressupõem de maneira implícita. Dimensões
importantes de sua natureza normativa não estão explicitamente presentes, mas
poderão vir à luz através de uma reconstrução genealógica de seu
desenvolvimento e de sua história. É isto o que gostaria de propor neste
semestre através do estudo da esquizofrenia. Trata-se de afirmar que a definição
atual que encontramos é apenas a dimensão explícita de uma construção
implícita resultante da sedimentação de um processo extenso de
desenvolvimento.
Por exemplo, voltemos por um instante aos fundamentos do
aparecimento da esquizofrenia. Sabemos como a categoria aparece em 1911,
cunhada pelo psiquiatra Eugen Bleuler. Sua consolidação era resultado de um
desconforto da chamada Escola de Zurique com a estratégia de Kraepelin,
psiquiatra responsável pela mais influente nosografia psiquiátrica do final do
século XIX e começo do século XX, de elevar a demência precoce à condição de
estrutura fundamental para a compreensão das psicoses. A demência precoce,
como veremos no decorrer do curso, vinculava a compreensão da doença mental
a uma forma de degenerescência, o que submetia o horizonte de normalidade às
coordenadas próprias a uma síntese evolutiva. Dentro desta perspectiva, a
psicose fazia o caminho inverso do processo de maturação individual.
Contra tal forma claramente evolutiva de compreensão da doença mental,
Bleuler construía uma categoria que se definia funcionalmente a partir da noção
de dissociação (Spaultung). Em seu Lehrbuch der Psychatrie, organizado por seu
filho Manfred Bleuler, encontraremos definições da esquizofrenia como
vinculada a um distúrbio elementar de “unidade deficiente, de fragmentação e
dissociação do pensamento, do sentimento e do querer, assim como do
sentimento subjetivo de personalidade”7. Desta forma, a esquizofrenia indicava a
falta de unidade e ordem de todos os processos psíquicos, o que necessariamente
nos levava a: “uma imagem do mundo construída pela própria essência
contraditória e pelos próprios desejos e medos contraditórios”8 do paciente. Esta
estrutura contraditória da vida psíquica que se expressava na afetividade, no
6
Idem, p. 101
7
BLEULER, Eugen; Lehrbuch der Psychiatrie, p. 407
8
Idem, p. 408
pensamento e na identidade pessoal era a expressão maior da quebra da
normatividade definidora do comportamento normal, assim como o
enfraquecimento da capacidade de síntese do Eu.
Neste sentido, é importante perceber como tal estrutura contraditória
marcava, na maioria dos casos, a presença da perda do unidade funcional da
pessoa e suas expectativas de autonomia. Em 1919, o psicanalista Victor Tausk
chegava a comparar a esquizofrenia à presença de uma “máquina de influenciar”
(Beeinflussungsapparate), como se o sujeito fosse guiado em suas ações e
emoções por uma máquina dissociada do Eu e capaz de produzir imposição de
pensamentos, sugestão, sensações que expressam a presença de uma profunda
alteridade no sujeito. Mais ou menos na mesma época, psiquiatras como Gaetan
de Clerambaud insistiam de associar a esquizofrenia a um “automatismo
mental”, sublinhando mais uma vez a dissociação no interior da unidade sintética
do Eu9.
Notemos, por outro lado, como se tratava aqui de uma escolha clara na
reconfiguração do quadro das psicoses, pois ela abria o campo para a
secundarização paulatina de outras categorias ligadas à psicose, como a
paranoia, que acabarão por serem dissolvidas com o passar do tempo. De fato, a
definição funcional fornecida pela esquizofrenia permitia uma distinção clara e
operacional entre normal e patológico. Ela passava pela distinção, fundadora da
psiquiatria moderna, entre autonomia e alienação. Ou seja, se quisermos
entender com a esquizofrenia se constitui, teremos que ter em vista a circulação
de valores sociais e morais ligados à autonomia, à unidade, ao controle e à
coerência da conduta.
Esta distinção clara era algo que, por exemplo, a categoria de paranoia e
seu uso extensivo no interior da psicanálise não permitia. Correntes posteriores,
como a psiquiatria fenomenológica de Binswanger e Minkowski, fortaleciam a
natureza normativa da esquizofrenia ao ver: “o transtorno inicial da
esquizofrenia não em um enfraquecimento das associações mentais [como
muitos admitiam], mas em um perda de contato vital com a realidade”10. Esta
ausência de contato vital, forma de se servir de conceitos advindos da filosofia de
Henri Bergson, seria expressa na ausência da intuição de medidas e limites, de
um certo fluxo de processos e reações, o que faria a vida do esquizoide: “uma
linha quebrada, irregular, em zigue-zague, cheia de ângulos pontiagudos, linha
que cansa o olho muitas vezes, mas que marca no espaço uma direção bem
precisa”11.
Tal clareza de distinção era muito diferente, por exemplo, da estratégia
psicanalítica de aproximar o desenvolvimento da paranoia dos processos de
constituição do Eu. Neste sentido, lembremos como Freud acreditava que a
conduta patológica expunha, de maneira ampliada, o que estava realmente em
jogo no processo de formação das condutas sociais gerais. É desta forma que
9
Já encontrávamos esta compreensão da centralidade do problema da alienação na definição
kraepeliana de demênica precoce: “Creio não estar enganando ao considerar a ausência de distúrbio
primário da vontade na paranoia como estreitamente relacionada com a ausência de delírio de
possessão corporal. A ideia de haver forças estranhas atuando, como o faria a telepatia, no organismo,
nas sensações, nos pensamentos e nos atos voluntários não é, para mim, outra coisa senão a expressão
do mesmo disturbio de vontade que se reconhece em todas as manifestações externas dos dementes
precoces” (KRAEPELIN, Emil;
10
MINKOWSKI, Eugène; La schizophrénie, Payot, p. 31
11
Idem, p. 61
devemos interpretar uma metáfora maior de Freud: “Se atiramos ao chão um
cristal, ele se parte, mas não arbitrariamente. Ele se parte, segundo suas linhas
de clivagem, em pedaços cujos limites, embora fossem invisíveis, estavam
determinados pela estrutura do cristal”12. O patológico é este cristal partido que,
graças à sua quebra, fornece a inteligibilidade do comportamento definido como
normal. Neste sentido, a paranoia aparecia como a patologia que permitia a
ampliação dos processos normais de constituição do Eu a partir de
identificações. Uma aproximação entre patologia e gênese do Eu que ganhará
consequências maiores com o desdobramento da psicanálise, principalmente
através de Jacques Lacan. Neste sentido, vemos como a definição a respeito do
eixo de compreensão das psicoses determina, necessariamente, o modo de
relação aceita entre normal e patológico. Ë a identificação de tais modos que
teremos em mente em nossa discussões sobre a genealogia da esquizofrenia.
Tendo em vista esta genealogia da esquizofrenia, o curso irá se estruturar
da forma que se segue. A primeira aula será dedicada ao debate epistemológico a
respeito das categorias clínicas como espécies naturais. A partir daí utilizaremos
a reconstrução proposta por Foucault em A história da loucura para dar conta do
processo de transformação da experiência da loucura em doença mental até o
momento em que um setor fundamental da doença mental será definida por Emil
Kraepelin como demência precoce.
A partir daí, discutiremos a polaridade entre a psiquiatria de Emil
Kraepelin e a proposta da Escola de Zurique. Ou seja, veremos a natureza do
embate entre demência precoce e esquizofrenia, suas distinções e a modificação
do próprio conceito de doença mental que o advento da esquizofrenia implicou.
Em seguida, discutiremos a teoria psicanalítica das psicoses, centrada na
paranoia como paradigma central, principalmente tendo em vista os trabalhos de
Freud e Lacan, contrapondo-a com a compreensão da esquizofrenia no interior
da psiquiatria fenomenológica de Binswanger e Minkoviski, que se desenvolve
mais ou menos à mesma época. Depois, veremos o movimento de crítica à
esquizofrenia levado à cabo pela anti-psiquiatria, assim como trabalhos com a
esquizofrenia dentro das práticas de análise institucional, como os que podemos
encontrar em Félix Guattari e suas teorias, juntamente com Gilles Deleuze, de
relação entre esquizofrenia e modos de socialização no interior do capitalismo.
Por fim, estudaremos o processo de consolidação da hegemonia crescente da
esquizofrenia a partir do DSM III até os dias de hoje.
12
FREUD, Sigmund; Gesammelte Werke, v. XV, Frankfurt: Fischer, 1999, p. 64
Uma genealogia das psicoses
Aula 2
Podemos começar por descrever o que seria uma perspectiva realista sobre
categorias clínicas. Partamos da definição operacional de que o realismo baseia-
se em dois princípios fundamentais: acessibilidade epistêmica e autonomia
metafísica.
Acessibilidade epistêmica significa afirmar que não há nenhum limite de
direito ao saber. Posso ter limitações técnicas que me impedem atualmente de
saber quais os circuitos neuronais específicos do transtorno de personalidade
borderline, mas tais limitações técnicas não são limitações ontológicas. Não há
nenhuma limitação de direito, apenas limitações de fato.
Autonomia metafísica significa que o mundo não é uma entidade
dependente da maneira com que eu o descrevo. Não é o mundo que se constitui a
partir de meus modos de descrição. É meu modo de descrição que
paulatinamente se ajusta ao mundo tal como ele é. Alguns autores chegam a usar
a metáfora do conceito que “pega o mundo pelas juntas” a fim de insistir como a
bases naturais forneceriam os princípios de individuação daquilo que nossas
teorias devem descrever. Autonomia metafísica significa ainda que o fato de eu
chamar “estrela” um conjunto de objetos do mundo vem do fato destes objetos
terem características comuns, eles tem propriedades intrínsecas fixas e
partilhadas que os definem como naturalmente pertencendo a uma mesma
família.
Este realismo é o pressuposto de visões clínicas para as quais o
desenvolvimento de nossas categorias clínicas segue a lógica da descoberta e do
aprimoramento progressivo, que a história de nossas categorias segue um ritmo
semelhante aquele que encontraríamos no desenvolvimento de categorias
utilizadas para a descrição do mundo físico. Lembremos, por exemplo, da leitura
realista da modificação de categorias químicas através da passagem do flogisto
ao oxigênio. No século XVIII, acreditava-se que os corpos combustíveis
possuiriam uma matéria chamada flogisto, liberada ao ar durante os processos
de combustão (material orgânico) ou de calcinação (metais). No final do século
XVIII, Lavoisier foi capaz de mostrar que não existia algo como flogisto, pois os
processos de combustão e calcinação não eram provocados pela liberação de um
elemento dos metais e materiais orgânicos, mas pela combustão de um elemento
que representa 20% do ar, a saber, o oxigênio. Ou seja, a passagem de uma
categoria a outra teria sido feita a partir da aproximação entre nossas teorias e a
configuração exata de espécies naturais.
Neste sentido, a esquizofrenia e a depressão, por exemplo, seriam
individualizadas a partir de sua estrutura de doenças orgânicas. Não haveria algo
como doenças mentais, apenas doenças orgânicas que teriam consequências
mentais. Por exemplo, a depressão seria, na verdade, apenas o nome que damos
para a alteração química no nível dos neurotransmissores envolvendo,
principalmente, a serotonina, a noradrenalina e, em menor grau, a dopamina.
Todas as formas de depressão que conhecemos, como Transtorno disruptivo de
desregulação de humor, o Transtornos depressivos maiores, a distimia, o
Transtorno disfórico pré-menstrual, os Transtornos depressivos induzidos por
medicamentos e outras substâncias, os Transtornos depressivos não-
especificados, teriam em comum um mesmo conjunto de traços distintivos.
Teríamos marcadores biológicos, que determinam a base causal comum dos
transtornos e que permitiriam a aproximação ontológica entre sistemas de
classificação psiquiátrico e espécies biológicas.
Aqui começa, de fato, nossas questões. Pois mesmo admitindo o realismo
de nossas categorias utilizadas para a descrição do mundo físico (o que não é
uma proposição desprovida de controvérsia), poderíamos dizer que ele serve de
paradigma para a descrição do mundo humano, em especial quando estamos
diante das distinções entre saúde e doença?
Esta questão ganha importância por nossa definição de saúde e doença
mental sofrerem continuamente profundas mutações. Vemos, normalmente, essa
continua mutação dos padrões de definição da doença mental como a
consequência natural do aprofundamento do conhecimento sobre estruturas
neuronais e modelos de intervenção medicamentosa.
Talvez exista um realismo ingênuo nessa descrição. Por exemplo, o
abandono da neurose histérica como categoria e sua subdivisão em entidades co-
mo “transtornos somatoformes” e “transtorno de personalidade histriônica” não
é apenas resultado da compreensão da histeria como inadequada por
pretensamente colocar em relação problemas que deveriam ser analisados de
maneira separada e, com isto, criar estruturas inexistentes de relações (entre,
por exemplo, problemas somáticos e sexualidade, comportamento teatralizado e
conflitos familiares). O abandono deu-se devido, entre outras coisas, a uma
mutação do que estamos dispostos a contar por saúde. Esta mutação não é
independente das mutações em um conjunto mais amplo de valores sociais. Pois
podemos, por exemplo, definir a constituição de categorias de patologias não
pela partilha de traços biológicos característicos, mas pela mesma disfunção
pragmática ocasionada13. Neste sentido, mais do que uma espécie natural, a
doença aparece como a descrição de uma limitação de ação. Kurt Goldstein tem
um definição precisa desta perspectiva ao afirmar que estar doente é “não estar
em estado de atualizar a capacidade de rendimento que lhe pertence
13
« Numerosas pesquisas e trabalhos experimentais descobriram que a aceitação de explicações
biogenéticas de transtornos mentais tendem a estar associada ao desejo social de tomar distância de
pessoas portadoras de tais transtornos” (HASLAM, Nick; Natural Kinds in psychiatry, p. )
essencialmente”14. A doença não é resultado de uma coerção externa, mas de
uma impossibilidade interna ao organismo de atualizar seus possíveis,
obrigando-se assim a “viver em contrariedade”. O que não a coloca mais em
relação ao mundo natural, mas ao sistema social de expectativas de agência.
Neste sentido, contrariamente a uma noção de doença determinada a
partir da possibilidade de localização orgânica, temos um conceito de doença,
herdado da medicina grega, marcado por um certo dinamismo relacional que
insiste no aspecto determinante das relações entre organismo e meio ambiente.
Como dirá o filósofo da ciência Georges Canguilhem: a natureza, (physis) tanto no
homem como fora dele, é harmonia e equilíbrio. A perturbação desse equilíbrio,
dessa harmonia, é a doença. Nesse caso, a doença não está em alguma parte no
homem. Está em todo o homem e é toda dele.
A doença aparece assim como um acontecimento que diz respeito ao
organismo vivo encarado na sua totalidade. Quando classificamos como
patológico um sistema ou um mecanismo funcional isolado, esquecemos que
aquilo que os torna patológicos é a relação de inserção na totalidade indivisível
de um comportamento individual. Canguilhem chega mesmo a afirmar que ser
doente é, para o homem, viver uma vida diferente. Notemos ainda que tal
estratégia de vincular o normal a partir de uma relação normativa de
ajustamento ao meio implica afirmar que não há fato algum que seja normal ou
patológico em si. Eles são normais e patológicos no interior de uma relação entre
organismo e meio-ambiente. Mas é neste ponto que algumas questões devem ser
complexificadas. Pois devemos levar ao extremo a compreensão de que o meio-
ambiente vital do ser humano não é um meio natural bruto, mas um meio social,
construído através de valores reguladores que internalizamos e que guiam a
maneira com que estruturamos o sentido e a orientação das relações a si, assim
como das relações ao corpo.
Tais valores são fundamentais na determinação geral dos padrões de
saúde e dos vetores de orientação dos processos de cura. Mas, se assim for,
temos todo o direito de nos perguntar: como tais valores interferem na
determinação do que é uma doença mental, qual sua estrutura e característica?
Seriam tais valores derivados de valores estéticos (basta pensarmos na natureza
sobredeterminada de termos como “harmonia” e “equilíbrio”), políticos
(pensemos o mesmo para “capacidade de controle e decisão”), entre outros?
Colocar tais questões nos permite tentar recuperar uma articulação perdida nos
últimos 40 anos. Ela diz respeito às articulações entre sofrimento psíquico e
estrutura social de valores, ou seja, como conjuntos de valores sociais nos fazem
sofrer.
Nominalismo dinâmico
14
GOLDSTEIN, Kurt; La structure de l’organisme
natureza, mas uma construção que produz pessoas que, a partir de então,
apreenderão reflexivamente tais categorias, produzindo efeitos até então
inexistentes. Como dirá Hacking: “um tipo de pessoa vem à existência ao mesmo
tempo que um tipo é inventado”15. Neste sentido, classificações de sofrimento
psíquico não são “espécies indiferentes”, como são aqueles usadas para
descrever fenômenos do mundo físico, mas “espécies interativas”, ou seja, há
uma interação entre categorias e objetos através da apropriação auto-reflexiva e
da posterior modificação dos objetos.
Boa parte desta discussão nasce do uso que Michel Foucault fez do
conceito de “sexualidade”. Foucault queria mostrar como um certo regime de
organização, de classificação e de descrição da vida sexual foi fundamental para a
constituição dos indivíduos modernos. Não por outra razão, “sexualidade” é
aquilo produzido por um discurso de aspirações científicas, seja vindo
normalmente da psiquiatria, da psicologia ou da medicina. Foucault parece
querer mostrar, com mais detalhes, qual é esta experiência sexual própria aos
indivíduos que encontram no discurso da ciência seus padrões de normalidade e
de patologia. Isso quer dizer: ter uma sexualidade é algo fundamental para que
eu possa ser visto como um indivíduo normal, um indivíduo normalizado.
Notem uma inflexão importante. Não se trata de afirmar que pelas vias da
sexualidade nós poderíamos descobrir uma história, um corpo e uma identidade.
Trata-se de dizer algo mais forte, a saber, que constituiríamos um corpo, uma
história e uma identidade. Compreender-se como sujeito de uma sexualidade
equivaleria a uma construção que não seria simplesmente fruto de, digamos, um
projeto individual, mas da internalização das categorias do discurso de uma
ciência. Uma ciência que não apenas descreve, mas que também, e
principalmente, produz. Uma ciência que, de forma muito peculiar, produz seus
objetos: “O que acabamos por chamar de ‘sexualidade’ é o produto de um
sistema do conhecimento psiquiátrico que tem seu estilo muito particular de
raciocínio e argumentação”16. Ou seja, assim o problema da sexualidade não se
encontra na identificação de uma espécie de libido natural que deve se fazer
sentir. O problema da sexualidade se transforma na descrição de modos de
produção de corpos, histórias e identidades a partir das categorias de um
discurso social fortemente normativo como a ciência.
O que isto significa de maneira concreta? Tomemos como exemplo a
invenção da homossexualidade como categoria clínica. Um fato que ocorre
apenas em meados do século XIX com o estabelecimento do quadro das
perversões através destes grandes tratados psiquiátricos como o
Psychopatologia sexualis, de Krafft-Ebbing. De certa forma, nós podemos dizer
que não era possível ser homossexual antes de meados do século XIX. Nós
podemos mesmo dizer que não havia homossexuais antes de meados do século
XIX. Claro que práticas homossexuais existiram antes e sempre existirão, mas
não a concepção, tão evidente para nós, de que elas, por si só, definem uma
identidade social em toda sua extensão, fazendo com que o conjunto dos atos, de
modos de percepção sejam atos de um homossexual, modo de perceber de um
homossexual. Por exemplo, havia práticas homossexuais na Grécia antiga, mas
elas não eram uma questão em si, não estávamos em um mundo no qual
15
HACKING, Ian; Historical ontology, p. 106
16
DAVIDSON, Arnold; The emergence of sexuality, Harvard University Press, p. 32
classificava-se o comportamento de alguém a partir de suas preferências por
pessoas do mesmo sexo ou do sexo oposto. A verdadeira questão definidora na
Grécia era se alguém desempenhava ou não o papel de um agente passivo, se
alguém era ou não capaz de ser senhor de seus desejos. Daí porque alguém como
Foucault dirá:
17
FOUCAULT, Michel; Histoire de la sexualité – II, Paris: Gallimard, 1984, p. 244
18
HACKING, Ian; idem, p. 107
dizer que a criação de categorias clínicas obedece uma certa arbitrariedade ou há
fatores externos ao universo clínico que influenciam a permanência e o
desaparecimento de certas categorias?
É certo que muitas delas são criadas a partir do que é evidente para o
olhar clínico. O psiquiatra é capaz de enxergar imediatamente distúrbios na fala,
no julgamento, na percepção, na motricidade. Mas a boa questão aqui é: como o
olhar clínico se constituiu e se constitui? Vale aqui o que dizia Foucault a respeito
do olhar médico:
Só a grande dor, esta longa e lenta dor na qual queimamos como madeira
verde nos obriga, a nós filósofos, a descer em nossas profundezas e a nos
desfazer de toda confiança (...) Duvido que tal dor nos deixe melhor, mas
eu sei que ela nos aprofunda20
Durante vinte anos, você terão tomado nota sobre afecções do coração,
dos pulmões das vísceras gástricas, de manhã e de noite, diante do leito
do doente. Tudo será para vocês apenas confusão a respeito de sintomas
que, não se relacionando a nada, vos oferecerão apenas fenômenos
incoerentes. Abram alguns cadáveres: vocês verão rapidamente
desaparecer a obscuridade que apenas a observação poderia dissipar21.
19
FOUCAULT, O nascimento da clínica, pp. 59-60
20
NIETZSCHE, A gaia ciência - introdução
21
BICHAT, Anatomie générale, p. XCIX
Tal recomendação era clara em seus pressupostos. A escuta do relato da doença
pelo médico contribui em muito pouco para o saber clínico. A fala do doente não
é fiável, é insegura e movediça, não porta objetividade alguma. O médico pode
ouvi-la, mas apenas para tentar acalmar o paciente, ou seja, sua escuta tem um
efeito terapêutico que em nada contribui para a compreensão da verdadeira
doença. Na verdade, o saber clínico é um saber de objetos que podem ser
descritos sempre na terceira pessoa. A compreensão do sofrimento orgânico
pede uma submissão da clínica à fisiologia. Por isto, Bichat pode comparar seu
objeto a um cadáver, a uma coisa na qual eu não me reconheço. O corpo
fisiológico é um corpo como coisa.
Genealogia das psicoses
Aula 3
22
FOUCAULT, Histoire de la folie, p. 80
23
WEBER, A ética protestante e o espírito do capitalismo, p. 56
24
idem, p. 102
ciência, em especial desta ciência que chamamos atualmente psicologia e
psiquiatria é devedor de uma moral que aparece como fundamento para os
modos de reprodução de formas hegemônicas de vida?
Dito isto, Foucault tem em mãos os elementos para expor qual o sentido
das práticas de internação na Idade Clássica. Sua ideia fundamental consiste em
defender que a internação não podia ser compreendida como uma prática
médica, até porque: “no século XVII, a loucura transformou-se em questão de
sensibilidade social, aproximando-se desta forma do crime, da desordem, do
escândalo”25. Não é por outra razão que a experiência clássica da loucura funda-
se na constituição de uma unidade indecisa entre uma análise filosófica das
faculdades e uma análise jurídica da imputabilidade. É a experiência jurídica da
alienação que irá aos poucos configurar a sensibilidade médica, isto até que a
alienação jurídica do sujeito do direito possa coincidir com a loucura do homem
social. Não é por outra razão que a decisão da internação era, normalmente,
resultado de uma decisão jurídica, e não médica. Foucault é claro a respeito desta
premência da experiência jurídica:
25
FOUCAULT, idem, p. 170
26
FOUCAULT, Michel; O poder psiquiátrico, p. 135
figura da neurose e a psicose, faz-se necessário que a sociedade instaure uma
barreira intransponível entre o passado e o presente, entificando uma
linearidade do tempo que é figura de uma certa noção de progresso. Da mesma
forma, para que o delírio religioso seja estrutura privilegiada da paranoia com
seus delírios de grandeza e fim do mundo, faz-se necessário que a laicização da
cultura aproxime a religião de um delírio sistematizado. Foucault descreve
claramente como ele compreende as relações entre loucura e retorno a uma
certa animalidade:
27
FOUCAULT, Histoire de la folie, pp. 201-202
diagnóstico. Neste sentido, nada melhor do que o uso deste elemento que é, ao
mesmo tempo, o mais sólido, o mais resistente e o mais dócil e flexível à
habilidade humana: o ferro. A absorção direta de linhaça de ferro é recomendada
tendo em vista uma certa forma de comunicação possível, no interior do corpo,
entre as qualidades dos elementos.
Já a purificação aparece como remédio para uma noção de doença dos
nervos vinculada a maus humores que corrompem as vísceras, o cérebro e o
sangue. Transfusões sanguíneas, produção de sangramentos, ingestão de sabão,
aplicação de vinagre são apenas algumas das técnicas usadas nestes casos.
A imersão e as doses sequenciais de ducha fria são resultantes de um
duplo tema: de um lado, os ritos de purificação e de renascimento, de outro, a
impregnação que modifica as qualidades essenciais dos líquidos e sólidos do
corpo. Lembremos ainda como a água fria pode combater o aquecimento e a
secura das fibras nervosas que resultam na mania e o frenesi.
Por fim, a necessidade de regulação do movimento, necessidade que
sustenta práticas de intervenção médica como a viagem, os exercícios físicos
regulares, a roda, o uso medo enquanto afeto que produz a fixação da atenção,
será descrita por Foucault nos seguintes termos:
28
idem, p. 402
Não é possível, com todo o rigor, utilizar, enquanto distinção válida na
idade clássica ou ao menos como distinção provida de significação, a
diferença, para nós imediatamente decifrável, entre medicação física e
medicação psicológica ou moral. A diferença só começará a existir em
toda sua profundidade no dia em que o medo não será mais usado como
método de fixação do movimento, mas como punição; quando a felicidade
não significará mais a dilatação orgânica, mas a recompensa, ou seja,
quando o século XIX, ao inventar os famosos “métodos morais” tiver
introduzido a loucura e sua cura no jogo da culpabilidade. A distinção
entre o físico e o moral só transformou-se em um conceito prático na
medicina do espírito quando a problemática da loucura deslocou-se para
uma interrogação a respeito do sujeito responsável (...) Uma medicina
puramente psicológica só foi possível no dia em que a loucura se
encontrou alienada na culpabilidade29.
Esta longa citação mostra claramente qual o horizonte que guia Foucault
em sua epistemologia das “ciências clínicas da subjetividade”. Há um momento,
bastante preciso, em que nasce um sujeito dotado de funções e disposições
puramente psicológicas, que devem ser tratadas através de técnicas e métodos
psicológicos. E tal processo é indissociável da crença disciplinar de constituição
do sujeito através da internalização de imperativos vinculados a uma certa
moral. É a partir de tal momento que a psiquiatria nascerá e suas categorias
clínicas serão paulatinamente construídas.
De qualquer forma, vale lembrar que este processo de constituição de um
domínio próprio à psicologia e à psiquiatria, permite a resignificação completa
das práticas de internação. Pois é a partir do século XIX que a internação ganha o
sentido não apenas de enclausuramento, mas de medicalização e,
principalmente, de reconstituição moral. Não será por outra razão que, ao final
do século XVIII e início do século XIX, a internação não será mais
sistematicamente aplicada a loucos, libertinos e desempregados, dissolvendo o
conjunto de exclusão que imperou durante, ao menos, dois séculos. Agora,
apenas os loucos serão os sujeitos de uma nova instituição médica: o asilo.
Foucault descreve com detalhes dois casos paradigmáticos na
constituição desta nova mentalidade hospitalar. Tais casos fornecem as datas de
término da Idade clássica e estão fundamentalmente associados aos nomes de
Pinel, na França revolucionária, e do quaker Samuel Tuke, na Inglaterra. Não é
por outra razão que, tanto Tuke quanto Pinel serão vistos a partir daí como
nomes fundadores desta nova empiricidade que será a psiquiatria.
O nome de Samuel Tuke está fundamentalmente associado à criação de
um asilo destinado aos quakers. Situado no meio de uma grande pradaria e
jardim, com janelas sem grades, o asilo era uma casa privada pensada como
resposta a preocupações potencializadas pelo caso de uma membro da seita que,
em 1791, fora internada em um hospital sem poder ter contato com outros
membros e com a assistência moral da seita. Algumas semanas depois, ela morre.
Tuke coloca-se então à frente de um projeto de construção de um asilo no qual o
doente esteja próximo da família e de uma natureza que era vista como “meio
natural” do homem e fator de recuperação da saúde. No asilo de Tuke:
29
FOUCAULT, idem, p. 412
O grupo humano é reconduzido a suas formas mais originárias e puras;
trata-se de recolocar o homem em relações sociais elementares e
absolutamente conforme à origem; o que quer dizer que tais relações
devem ser, ao mesmo tempo, rigorosamente fundadas e rigorosamente
morais. Assim, o doente encontra-se enviado a este ponto no qual a
sociedade acaba de surgir do seio da natureza e no qual ela se realiza em
uma verdade imediata a respeito da qual toda história dos homens
contribuiu posteriormente para embaralhar30.
30
idem, p. 590
31
idem, p. 594
para a autonomia, esta mesma autonomia que permitiria ao indivíduo ser
reconhecido como sujeito. Daí esta figura de uma liberdade que se realiza na
assunção de tipos sociais. Como se a verdadeira questão fosse expulsar, através
da transformação da loucura em doença mental, tudo o que impedisse a
constituição desta mais profunda ilusão da razão moderna: uma vontade que
determina a si mesma, que se auto-legisla e se auto-governa. Um auto-governo
que, no entanto, que se realiza na capacidade de assumir tipos sociais existentes
e avalizados como modelos ideais de conduta. É isto o que Foucault tem em vista
ao afirma: “a condição da relação com o objeto e da objetividade do
conhecimento médico, e a condição da operação terapêutica são as mesmas: a
ordem disciplinar”32.
No entanto, percebam que colocar a cura da loucura sob o signo da
recuperação de uma liberdade, de uma autonomia que é condição “natural” do
sujeito, significa assentar o procedimento de cura na possibilidade de operações
reflexivas através das quais o doente mental possa tomar gradativamente
distância de si mesmo, avaliando a si mesmo. Como se a condição para a cura
fosse a capacidade de tomar a si mesmo como objeto, reduzir si mesmo como
um objeto para um olhar no qual se alojam a liberdade e a autonomia. Como se a
condição para a cura fosse, primeiramente, a auto-objetivação do homem.
Este olhar que o sujeito deve internalizar para poder, a partir de
processos reflexivos, objetivar a si mesmo vem, de certa forma, do próprio
médico33. Daí porque, com o advento da psiquiatria e da psicologia, a própria
figura do médico aparece como dispositivo de cura. A função do médico será
também função de controle moral através da aplicação de um padrão de
normalidade do comportamento. O médico fornece, sobretudo, sua presença, ou
seja, a figura de uma retidão moral e saúde corporal que servirá de “tipo ideal” a
ser internalizado. Até porque: “curar significa inculcar no doente os sentimentos
de dependência, de humildade, de culpabilidade, de reconhecimento que são a
armadura moral da vida em família”34. Na verdade, Foucault percebe aqui as
molas do que o século XX chamará mais tarde de “transferência” enquanto
dispositivo fundamental da cura. Estas molas estão presentes em um tratado
médico do século XIX que afirmará a terapêutica da loucura como: “a arte de
subjugar e de domar, por assim dizer, o alienado, pondo-o na estreita
dependência de um homem que, por suas qualidades físicas e morais seja capaz
de exercer sobre ele um império irresistível e de mudar a correnteza viciosa de
suas ideias”35.
Notemos ainda um dado fundamental para a hipótese de Foucault. As
correntes não são mais necessárias no asilo porque a intervenção no corpo
deixou de ser direta. Ela é indireta, resultante da internalização de práticas
disciplinares que atuam no corpo a partir “do interior”. É a partir deste momento
que a loucura deixa de ser considerada um fenômeno global que diz respeito ao
corpo e à mente. Ela será um fato que concerne especialmente a mente e
32
FOUCAULT, O poder psiquiátrico, p. 5
33
Mas ele pode vir, de certa forma, do próprio hospital. Daí uma afirmação como: “o que cura no
hospital é o hospital. Ou seja, é a própria disposição arquitetônica, a organização do espaço, a maneira
como os indivíduos são distribuídos nesse espaço, a maneira como se circula por ele, a maneira como
se olha ou como se é olhado nele, tudo isso é que tem em si valor terapêutico” (FOUCAULT, Michel;
O poder psiquiátrico, p. 127). Ou seja, o asilo é o corpo do psiquiatra.
34
FOUCAULT, Maladie mentale, p. 84
35
ESQUIROL apud FOUCAULT, O poder psiquiátrico, p. 12
receberá, pela primeira vez, estatuto e significação psicológica. Esta
psicologicização é setor de uma operação mais ampla de inserção da loucura em
sistemas de valores e de inscrições morais.
Desta forma, Foucault pode afirmar que a psicologia só pode aparecer a
partir do momento em que a relação à loucura foi definida pela dimensão
exterior da exclusão e do castigo, assim como pela dimensão interior da
moralização e da culpabilidade. Com a psicologia, perde-se uma “relação
essencial” entre a razão e a desrazão. A doença mental será assim apenas a
loucura alienada na psicologia. Pois o advento da psicologia deve ser inserido no
interior dos modos gerais de relação alienada que o homem ocidental
estabeleceu consigo mesmo.
Uma genealogia da esquizofrenia
Aula 4
História e psicologia
36
KRAEPELIN, Emil; A demência precoce, p. 19
contradição, de identidade e do terceiro excluído, entre tantas outras
características. Notemos que os traços fundamentais desta regressão serão a
incoerência das emoções, a inexistência de uma coesão no interior da
experiência temporal e o desconhecimento sistemático de necessidades lógicas
do pensamento.
Insistamos inicialmente nesta noção de degenerescência, principalmente
em sua dimensão temporal, pois ela fornecerá durante o século XIX e início do XX
aquilo que poderíamos chamar de “a forma geral da doença mental”. Não é
possível compreender esta importância do conceito de degenerescência sem
levar em conta a influencia que a história como ciência terá para o
desenvolvimento da psicologia.
A influência da história se mede inicialmente através da constituição do
conceito psicológico de memória e, por consequência, de tempo psíquico. Se
antes do início do século XIX, a memória será uma questão de estocástica e
arquivamento, não sendo assim uma das funções centrais na determinação da
subjetividade, este cenário mudará de forma impressionante a partir do
momento em que a história aparecer como a essência da experiência humana. A
memória será compreendida então como o campo de certa história individual
cuja possibilidade de apreensão será o fundamento da consciência. Mas não
“história individual” apenas no sentido de uma narrativa singular de fatos que
expressariam um princípio único de desenvolvimento (a saber, a personalidade).
“História individual” no sentido de um tempo histórico que, através de suas
estruturas de articulação, fornece à vida psíquica sua estrutura de síntese. Assim,
será do tempo histórico que a psicologia trará, por exemplo, a noção de que: “o
transcurso da vida é constituído por partes, por vivências que se encontram em
uma conexão interna umas com as outras. Cada vivência particular está ligada a
um si mesmo, do qual ela é parte; por meio da estrutura, cada vivência particular
está ligada com outras partes e forma uma conexão. Em tudo aquilo que é
espiritual, encontramos uma conexão; assim a conexão é uma categoria que
emerge da vida”37. Ou seja, a ideia de unidade da consciência psicológica através
da vivência como sistema de conexões, aquilo que lhe permite formalmente ser
um sistema de sínteses temporais, virá do impacto das elaborações da história. É
este sistema de conexões que será destruído pelo advento da doença mental com
seus processos de degenerescência.
Pelo conceito de consciência psicológica ter em seu horizonte de
influência o conceito de consciência história, da história a psicologia herdará
ainda noções como o vínculo entre progresso e maturação. A este respeito,
lembremos como as modificações na estrutura do pensamento e da cognição
presentes, ainda hoje, em teorias do desenvolvimento psicológico traduzem, em
larga medida, etapas que organizam o ritmo do progresso histórico. Neste
sentido, a chamada “lei biogenética fundamental” que defendia o paralelismo
entre filogênese e ontogênese é, na verdade, a expressão de um princípio de
articulação entre história e psicologia que nunca saiu do horizonte de nossos
saberes. Enunciada no final do século XIX por Ernst Haeckel, tal lei era a forma
final de uma idéia que havia atravessado a história das idéias desde o
37
DILTHEY, Wilheim; A construção do mundo histórico nas ciências humanas, São Paulo: Unesp,
2006, p. 173
iluminismo. Lembremos, por exemplo, do que diz Condorcet em um texto
intitulado: Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano:
Uma idéia que estará enunciada de maneira ainda mais clara nos
trabalhos de Augusto Comte:
38
CONDORCET, p. 265
39
COMTE, Cours de philosophie positiva, leçon 51, p. 291
40
CANGUILHEM, Etudes d´histoire et de philosophie des sciences, p. 98
Tal maturação, no caso de Kraepelin, está vinculada à formação da
“personalidade psíquica”. É ela que aparece como o núcleo de valores que
fornecem a orientação para a intervenção clínica e suas distinções estruturais
entre normalidade e patologia. A forma com que Kraepelin fala da personalidade
psíquica em sua definição da demência precoce já é bastante sugestiva: ela é
responsável por uma unidade capaz de criar conexões internas coerentes entre
processos afetivos, perceptivos e judicativos.
Não é por outra razão que Kraepelin se serve do termo de “demência”
neste contexto. Lembremos como já no início da era moderna, era comum a
distinção entre dementia (como redução da razão) e amentia (como perda total
da razão). Esta distinção visava lembrar como a loucura poderia consistir não em
um perda total do espírito, mas em uma perda de controle, perda de governo
sobre as funções mentais. Daí uma afirmação de Foucault como:
Esta perda de controle com tudo o que ela pode ter de negativo será
compreendida por Kraepelin como sintoma da destruição da força de conexão da
personalidade psíquica. Neste sentido, o conceito de demência é a expressão
mais bem acabada da noção de alienatio mentis, criada por Plater. Com este
conceito de alienação, tratava-se de insistir não em um perda total da mente, mas
em um perda de governo, uma incapacidade de governar a si mesmo. Como
lembrará Isaias Pessoti: “a cura seria a retomada do controle sobre as próprias
funções mentais, uma forma de ‘reintegração de posse’, uma reversão da
alienação”42. Neste caso, há uma insistência clara em uma dimensão funcional
relacionada ao domínio e controle, a processos sem domínio e sem função.
Vejamos um dentre vários exemplos fornecidos por Kraepelin, neste caso, em
relação ao quadro de demência precoce simples:
41
FOUCAULT, Michel; Histoire de la folie, p. 320
42
PESSOTI, Isaias; Demência, dementia praecox, esquizofrenia, p. 4
43
KRAEPELIN, Emil; A demência precoce, p. 107
Jung fornece um eixo importante para compreender o que pode ser a
perda da capacidade de governar a si mesmo no começo do século XX. Ao
descrever o debate em torno da demência precoce, ele não deixará de notar que:
44
JUNG, Carl; Psicogênese das doenças mentais, p. 47
45
Ver a este respeito ELIAS, Norbert; A sociedade dos indivíduos, Rio de Janeiro; Jorge Zahar, 1994,
p. 133
46
LOCKE, John: Essays concerning human understanding, p. 302
Ou seja, a identidade pessoal está vinculada diretamente à capacidade de
ser a mesma coisa pensante em diferentes tempos e lugares, o que significa
entender-se como o mesmo agente consciente na dispersão do tempo e do
espaço. Neste sentido, a identidade de uma pessoa não será compreendida como
a identidade de uma substância, mas como a identidade de uma consciência. A
consciência aparece assim como o princípio de unificação da existência no tempo
e no espaço. Daí porque: “tão longe a consciência pode ser estendida para trás
em direção a qualquer ação ou pensamento passados, tão longe alcança a
identidade de uma pessoa”47. Esta operação feita por Locke é decisiva: toda
identidade pessoal é expressão da presença da consciência como princípio de
unidade. Pois “consciência” é, acima de tudo, o nome que damos para esta
identidade pessoal suposta que me faz, em cada ação ou pensamento passado,
me ver me vendo. Se Locke precisa lembrar que é impossível a alguém perceber
sem perceber que está percebendo é porque a consciência é solidária de uma
operação reflexiva. Todos os fatos da consciência são, de direito, acessíveis à
reflexão, podem se transformar em representação para a reflexão.
Neste sentido, a identidade de consciência deve ser compreendida,
principalmente, como identidade reflexiva, ou seja, identidade do que pode
unificar para si mesmo os momentos de sua existência através de operações de
auto-reflexão. Entra assim algo como uma “identidade de primeira pessoa”.
Diferentemente de uma substância, cuja identidade é normalmente descrita na
terceira pessoa e cuja identidade não mudará se não for descrita na primeira
pessoa, uma identidade de consciência só existe no momento em que ela pode
ser descrita sob a forma da primeira pessoa. Se ela não puder ser descrita na
primeira pessoa, ela simplesmente não existirá. Não sou idêntico aquilo no qual
não me reconheço, mesmo que se tratem de ações que tenham sido feitas por
meu corpo ou feitas por mim de forma involuntária.
Mas aqui entra um elemento suplementar importante. Tudo o que
acessível à minha reflexão e que diz respeito aos pensamentos e ações de minha
própria pessoa me são imputáveis. A identidade de consciência define os regimes
de imputabilidade e de responsabilização da ação, mostrando assim como tais
discussões sobre a constituição da identidade psicológica tem, em seu horizonte,
problemas ligados à imputibilidade jurídica. Daí uma definição fundamental de
Locke:
47
Idem, p. 302
48
Idem, p. 313
Se nos perguntarmos sobre a genealogia desta noção de personalidade,
talvez devamos voltar nossos olhos à teologia. Pois algo desta noção encontra
seus pressupostos nas teses de teólogos protestantes como Lutero e Calvino. É
um lugar comum a afirmação de que o protestantismo foi decisivo para a
constituição da noção moderna de indivíduo. Lembremos, por exemplo, de como
diversas seitas protestantes entendiam que cada igreja era particular e deveria
se fundar sobre um pacto ou uma aliança na qual cada membro se engaja a partir
de sua vontade própria49. Ou seja, a igreja é uma aliança entre fieis, a todo
momento renovada. Esta era uma conseqüência natural de duas idéias centrais
de Lutero: a salvação é dada pela fé (e não pelas obras) e a afirmação da livre
interpretação da Bíblia 50. Nestes dois casos, a mediação da Igreja perde
importância e o exame individual de si e de suas motivações ganha força. Como
percebeu Max Weber, aparece com isto uma interioridade marcada pelo
sentimento de forte: “solidão interior do indivíduo. No assunto mais decisivo da
vida nos tempos da Reforma – a bem-aventurança eterna- o ser humano se via
relegado a traçar sozinho sua estrada ao encontro do destino fixado desde toda
eternidade. Ninguém podia ajudá-lo”51.
No caso do pensamento reformado, em especial no calvinismo, esta
solidão interior era aumentada devido ao dogma da predestinação. Segundo tal
dogma os salvos já estão predestinados por Deus. No entanto, o homem não sabe
qual a vontade divina pois há uma incomensurabilidade entre a vontade divina e
a ciência do homem52. Se há predestinação, se Deus já decidiu se serei ou não
salvo antes de minhas próprias ações, então a verdadeira causa última das
minhas ações (a vontade de Deus) não é acessível a meu entendimento. Assim :
“uma questão impunha-se de imediato a cada fiel individualmente e relegava
todos os outros interesses a segundo plano: Serei eu um dos eleitos? E como eu
vou poder ter certeza dessa eleição?”53. A resposta era apenas uma: devemos nos
contentar em tomar conhecimento do decreto divino e perseverar na confiança
em Cristo operada pela verdadeira fé.
Tal perseverança traduzia-se na exigência de uma profunda unidade
coerente das condutas mobilizada pelo exame contínuo de si, pela auto-inspeção
sistemática em cada instante, além da recorrência compulsiva da certeza
subjetiva da própria eleição. Como não havia para os protestantes sacramentos
como a confissão, que servia como reparação de momentos de fraqueza e
leviandade, a pressão de uma unidade coerente das condutas acabava sendo
entificada em uma vida pensada como sistema: “Nem pensar no vaivém católico
e autenticamente humano entre pecado, arrependimento, penitência, alívio e, de
49
Ver EHRENBERG, Alain; La société du malaise, Paris : Odile Jacob, 2010
50
“Pois isso fica evidente que um cristão é livre de todas as coisas e está acima delas, portanto, não
necessita de boas obras para ser justo e bem aventurado, pois a fé lhe dará tudo em abundância”
(LUTERO, Martinho; Da liberdade do cristão, São Paulo : Unesp, p. 43. Notemos como Lutero retoma
um tema filosófico maior: a liberdade como libertação em relação às determinações empíricas do
mundo (as obras) e retorno à interioridade (a fé).
51
WEBER, Max; A ética protestante e o espírito do capitalismo, São Paulo: Companhia das Letras, p.
95
52
“Voluntarismo” é o nome que usualmente damos para as teologias que afirmam a
incomensurabilidade entre a vontade divina com suas leis e a ciência humana. Doutrinas que insistem
que o homem não pode entender a vontade divina, que a razão de Deus é para o homem loucura.
53
Idem, p. 100
novo, pecado, nem pensar naquela espécie de saldo da vida inteira a ser quitado
seja por penas temporais seja por intermédio da graça eclesial”54.
Temos assim uma situação religiosa que produz necessariamente a
experiência da interioridade (apenas a certeza da minha fé individual é o
caminho para minha salvação, apenas eu posso interpretar o sentido da escritura
divina) e da unidade coerente das condutas (apenas a perseverança de minha
conduta é o sinal de minha predestinação). Estas duas experiências serão
fundamentais para o desenvolvimento da noção moderna de autonomia. Para
chegarmos a tal noção, basta, principalmente, recusar a perspectiva voluntarista
de incomensurabilidade entre causas da minha ação e minha consciência. É tal
incomensurabilidade que Kant recusa ao constituir sua teoria da autonomia55.
54
Idem, p. 107. Ou ainda: “Bastante realista, a Igreja católica apostava que o ser humano não era um
todo unitário e não podia ser julgado de forma absolutamente inequívoca, e sabia que sua vida moral
era (normalmente) um comportamento o mais das vezes muito contraditório, influenciado por motivos
conflitantes” (Idem, p. 106).
55
Vale para Kant a ideia Segundo a qual: “Uma moralidade composta de tirania e servilismo só pode
ser evitada se Deus e o homem formarem uma comunidade moral cujos membros sejam mutuamente
abrangentes por aceitarem os mesmos princípios. Assim, os oponentes do voluntarismo tinham de
mostrar que o moralidade envolve princípios que são válidos tanto para Deus quanto para nós”
(SCHNEEWIND, J. B.; op cit, pp. 554-555).
A genealogia da esquizofrenia
Aula 5
56
KRAEPELIN, Emil; A demência precoce, p. 19
da razão). Esta distinção visava lembrar como a loucura poderia consistir não em
um perda total do espírito, mas em uma perda de controle, perda de governo
sobre as funções mentais. Daí uma afirmação de Foucault como:
Esta perda de controle com tudo o que ela pode ter de negativo será
compreendida por Kraepelin como sintoma da destruição da força de conexão da
personalidade psíquica. Jung, ao descrever o debate em torno da demência
precoce no começo do século XX, não deixará de notar que:
Esquizofrenia e estrutura
57
FOUCAULT, Michel; Histoire de la folie, p. 320
58
JUNG, Carl; Psicogênese das doenças mentais, p. 47
clínica de que a demência, entendida classicamente como deterioração e
perda de funções mentais, não é um desfecho inevitável da doença nem
um aspecto essencial do quadro sintomático. E implica também, por
consequência, uma ampla reinterpretação da nosografia de Kraepelin:
pois toda a sua riquíssima sintomatologia da dementia, voltada para
caracterizar a marcha inarrestável para a completa deterioração terminal
das funções psíquicas, agora passa a indicar um processo auto-protetivo
de isolamento autístico, diante de uma realidade que se afigura
desintegrada e incompreensível, como efeito da perda dos nexos lógicos
do pensamento59.
Esta definição é útil por mostrar como Bleuler diminui a importância do curso da
doença, que estava claramente colocada no centro com a noção de “demência”.
Havia vários casos, lembra Bleuler, que não regrediam em direção à demência e
que não ocorriam de forma “precoce”, o que mostrava que não estávamos
necessariamente diante de um processo de degenerescência, mas de
desenvolvimento de “predisposições” que determinam um organismo dotado de
estruturas herdadas capazes de definir possibilidades e limites para a relação
com o meio.
Ou seja, e este é um ponto decisivo, saímos de uma perspectiva ligada à
compreensão da doença como deterioração e degenerescência para outra na
qual a noção de predisposição pressupõe um pensamento estrutural no qual as
distinções entre normal e patológico ganham maior distinção nocional. Desta
forma, o vínculo entre doença mental e degenerescência era colocado em
questão para que aparecesse uma concepção não mais evolutiva, mas
simplesmente funcional de doença mental. Concepção esta que privilegia os
transtornos funcionais.
Nesta modificação, percebamos que desaparece paulatinamente a ideia de
uma certa continuidade entre razão e loucura que o evolucionismo próprio à
noção de demência precoce ainda conservava. Se estamos falando de
degenerescência, então há de se aceitar uma certa continuidade de estados no
interior de um processo ideal de progresso. No entanto, com Bleuler a gradação
entre normal e patológico desaparece para termos uma distinção cada vez mais
estrutural entre os dois.
O conceito de clivagem
59
PESSOTI, Isaias; Dementia, dementia praecox, esquizofrenia
60
BLEULER, Manfred; Lehrbuch der Psychiatrie, p. 408
61
Idem, p. 407
Ou ainda:
62
BLEULER, Eugen; Dementia praexox oder Gruppen des Squizophrenia, p. 6
63
AMERICAN PSYCHIATRY ASSOCIATION; DSM – V, p. 87
autismo, o pensamento desorganizado é o nome contemporâneo para o
afrouxamento dos nexos associativos do pensamento. Ou seja, há uma certa
estabilidade nocional da esquizofrenia desde sua criação, há pouco mais de um
século. Fica claro como a incidência destes distúrbios no quadro contemporâneo
da esquizofrenia implica dependência da reflexão psiquiátrica ao modelo
tradicional da dissociação da personalidade. Mesmo que ela não seja tematizada
diretamente, ela está presente de forma implícita.
Note-se como, em Bleuler, a presença de delírios e alucinações não
aparece como critério diferencial de diagnóstico, já que outros quadros clínicos
também poderiam comportar tais produções. Este é o sentido de sua definição
entre sintomas fundamentais e sintomas secundários. Os sintomas fundamentais
indicam a estrutura dissociada do paciente nos níveis do julgamento, da
percepção e da afetividade. Já os sintomas secundários são resultantes das
tentativas de adaptação, mais ou menos exitosas, às perturbações primárias: “As
ideias delirantes seriam exemplos de sintomas secundários. E, segundo Bleuler, o
conteúdo dessas ideias estaria constituído por desejos e temores que, devido a
transtornos afetivos, estariam deformados. Ou seja, não fosse a dissociação
(Spaltung) que bloqueia os complexos mais carregados de afeto, seria possível
compreender esses desejos e temores expressos no delírio. O delírio é
incompreensível porque nele estão condensadas ou deslocadas uma cadeia de
associações”64.
De toda forma, gostaria de chamar a atenção para o caráter vasto e pouco
preciso da diferenciação. Se ainda hoje definimos a esquizofrenia como: “uma
doença heterogênea, com manifestação clínicas multiformes” 65 é certamente
porque, desde seu início, a patologia depende de um conceito de unidade, síntese
e coerência cujo fundamento se encontra em um horizonte normativo exterior a
fatos clínicos. Foi a isto que tentei aludir na aula passada quando foi questão de
propor uma rápida genealogia da própria noção de personalidade, em suas
matrizes filosóficas e teológicas. Notem, por exemplo, como o problema da
contradição aparece como um eixo privilegiado para a definição da clivagem
própria à esquizofrenia. Sua ideias delirantes são marcadas pela contradição, sua
incapacidade de se relacionar ao mundo exterior é muitas vezes expressa pelo
uso sistemático de contradições.
64
D’ARGOT, Marta; Esquizofrenia: os limites de um conceito
65
GABBARD, Glen; Psiquiatria psicodinâmica, p. 141
A gênese das psicoses
Aula 6
66
Ver, CRAIGHEAD, Edward, CRAIGHEAD, Linda e MIKLOWITZ, David; Psychopathology:
history, diagnosis and empirical foundations, New Jersey: Wiley, 2008, pp. 402-434
67
DSM V, p. 645
Façamos inicialmente um rápido histórico da paranoia a fim de melhor
contextualizar nosso problema. Sabemos que a paranoia é certamente uma das
categorias clínicas mais antigas que temos notícia. Sua raiz grega não nos deixa
dúvidas. Paranoia vem do grego para e nous, ou seja, algo como “ao lado do
espírito”, fora do que deve ser o espírito. No entanto, é só em meados do século
XIX que ela ganha sistematização, principalmente através do Tratado de
psiquiatria (1879), do psiquiatra alemão Richard Krafft Ebing, além dos esforços
posteriores de classificação desenvolvidos por Emil Kraepelin. Desde o início de
sua sistematização, a paranoia conservou-se como modalidade de doença mental
cuja característica essencial era aquilo que podemos ainda encontrar no DSM IV,
a saber: “presença de delírios ou alucinações auditivas proeminentes no contexto
de uma relativa preservação do funcionamento cognitivo e do afeto” 68. Krapelin
ainda apresenta uma distinção entre paranoia e parafrenia, sendo a primeira
marcada por delírios crônicos, enquanto a segunda podia admitir alucinações e:
“devido a um desenvolvimento mais ligeiro das perturbações da emoção e da
volição, a harmonia interna da vida psíquica fica consideravelmente menos
afetada ou, pelo menos, limitada a certas faculdades intelectuais”69.
Tal especificação da paranoia respondia a uma tendência maior da
psiquiatria ocidental até então, a saber, distinguir um modo de loucura onde as
funções de julgamento e os usos da linguagem eram, em larga medida,
conservados em sua estrutura formal de outro onde tais funções superiores
eram eliminadas no interior de um processo de regressão que classicamente foi
chamado de “demência”. Esta dicotomia, tão bem caracterizada na distinção
alemã entre Wahnsinn e Verrückheit, continuou na psicanálise com sua distinção
entre esquizofrenia e paranoia. No entanto, ela tende a ser diminuída na
psiquiatria contemporânea, que unificou todo o espectro das psicoses sob a
categoria geral de “esquizofrenia”.
A partir do seu estabelecimento, foi no campo da psicanálise que a
paranoia apareceu como a forma privilegiada da psicose. Freud e Lacan, por
exemplo, são dois psicanalistas que trabalham exclusivamente com a categoria
de paranoia. Tal prevalência se desenvolve pela paranoia aparecer em uma
posição decisiva no quadro clínica psicanalítico. Lembremos, por exemplo, como
a reflexão freudiana sobre a paranoia desenvolve-se como setor de uma reflexão
a respeito das neuroses. Daí uma afirmação como: “a investigação psicanalítica
não seria possível se os doentes não tivessem a peculiaridade de revelar, ainda
que de forma distorcida, justamente o que os demais neuróticos escondem como
um segredo”70. Neste sentido, a paranoia teria como característica deixar à céu
aberto os conflitos que são encobertos na neurose.
Mas esta função central da paranoia será ainda mais aprofundada. Pois
podemos ver nesta conservação relativa da estrutura cognitiva e afetiva na
paranoia um traço importante. Alguns psicanalistas viram nela a indicação de um
regime de participação em valores sociais e modos normatizados de raciocínio
que dão forma à própria noção de personalidade. É pensando nisto que alguém
como Jacques Lacan dirá, em uma tese de doutorado dedicada à paranoia: “A
68
DSM IV, p. 317.
69
KRAEPELIN, Emil; Demência precoce, parafrenia, p. 113
70
FREUD, Observações psicanalíticas sobre uma caso de paranoia, p. 14
economia do patológico parece assim calcada sobre a estrutura normal”71. O que
é, no fundo, uma derivaçào consequente da ideia freudiana segundo a qual :
“mesmo formações mentais tão extraordinárias, tão afastadas do pensamento
humano habitual, tiveram origem nos mais universais e compreensíveis
impulsos da vida psíquica”72. Isto porque ela absorve os modos formais de
raciocínio e comportamento próprios à estrutura normal. Freud costumava dizer
que a conduta patológica expõe, de maneira ampliada (Freud fala de
Vergrösserung e Vergröberung), o que está realmente em jogo no processo de
formação das condutas sociais gerais. É desta forma que devemos interpretar
uma metáfora maior de Freud : "Se atiramos ao chão um cristal, ele se parte, mas
não arbitrariamente. Ele se parte, segundo suas linhas de clivagem, em pedaços
cujos limites, embora fossem invisíveis, estavam determinados pela estrutura do
cristal"73. O patológico é este cristal partido que, graças à sua quebra, fornece a
inteligibilidade do comportamento definido como normal. Neste sentido, Lacan
radicalizará uma intuição de Freud que consiste em se perguntar se a paranoia
não expõe, como em uma lente de aumento, a natureza do modo de formação da
personalidade que determina a figura da subjetividade moderna.
Notemos que, se a esquizofrenia era definida a partir da dissociação da
personalidade, estabelecendo com isto a personalidade e toda sua estrutura de
valores como horizonte de regulação da noção de normalidade psíquica, a
paranoia em sua versão psicanalítica acaba por operar como uma
desconstituição da personalidade enquanto categoria reguladora da intervenção
clínica por aproximar-lhe em demasia da própria paranoia. Não por outra razão,
psicanalistas como Jacques Lacan discutirão as relações entre psicose paranoica
e personalidade a fim de defender a hipótese de existência de uma espécie de
fundo paranoico em todo processo de constituição da personalidade. No fundo,
trata-se de levar a sério a ideia de Jacques Lacan, enunciada ao comentar a razão
pela qual ele se relutou a republicar sua tese de doutorado sobre as relações
entre psicose paranoica e personalidade: “Se resisti por tanto tempo à
republicação de minha tese, é simplesmente pelo seguinte, é que a psicose
paranoica e a personalidade como tal não têm relações, simplesmente por isso,
porque são a mesma coisa”74.
Neste sentido, não é desprovido de interesse perceber como encontramos
tal intuição da maneira com que a paranoia exporia a estrutura escondida do
comportamento normal em um trabalho profícuo de psicologia social como
Massa e Poder, de Elias Canetti75. Esta absorção de modos formais de raciocínio e
comportamento próprios a estrutura normal pode ser identificado, por exemplo,
na presença, no interior da paranoia, de algo como um “vício da causalidade” e
um “vício da fundamentação”. Uma espécie de princípio de razão suficiente
elevado à defesa patológica : nada acontece que não tenha uma causa. Assim, na
“ontologia paranoica”, não haverá lugar para noções como contingência e acaso.
Por trás da máscara do novo, há sempre o mesmo. Tudo o que é desconhecido
71
LACAN, Jacques ; De la psychose paranoiaque dans ses rapports à la personalité, Paris: Seuil,
1975, p. 56.
72
FREUD, Sigmund; Observações psicanalíticas sobre um caso de paranóia, In: O caso Schreber e
outros textos, São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 24
73
FREUD, Sigmund; ibidem, p. 64
74
LACAN, Jacques; Séminaire XXIII: Le sinthome, Paris: Seuil, 2005, p. 53
75
CANETTI, Elias; Massa e poder, São Paulo : Companhia das Letras, 2005, pp. 448-463
deve ser remetido a algo conhecido e referido ao doente. Isto leva o paranoico à
necessidade compulsiva do desmacaramento. Ele quer que haja algo por trás dos
fenômenos ordinários e só se acalma quando uma relação causal é encontrada.
Neste sentido, é possível dizer que um dos traços fundamentais da
paranoia, traço que fornece a base de sua certeza delirante e da incorrigibilidade
de seus julgamentos, está vinculado à naturalização das estruturas e dos quadros
narrativos de organização da experiência. Não é possível ao sujeito tomar
distância de suas próprias construções, retificando criticamente suas pretensões
a partir dos acasos e contingências da experiência, desconfiando de sua
sistematicidade e de sua exigência absoluta de sentido e ligação, pois tais
construções foram naturalizadas. Neste sentido, não seria incorreto ver, nesta
forma imanente de adesão a suas próprias crenças, um efeito maior daquilo que
em teoria social chamaríamos simplesmente de reificação. O que talvez nos
permitiria dizer que a paranoia é uma sombra da razão, pois é o risco aberto
quando ocorre uma reificação da própria estrutura do conhecimento. Exemplo
ilustrativo deste processo de reificação é dado por Freud a caracterizar a
linguagem psicótica como: “uma linguagem que trata as palavras como coisas”76.
Consideração ilustrada pelo exemplo da analisanda de Victor Tausk, conduzida à
clínica após uma disputa com seu amante e portando a seguinte reivindicação:
“Meus olhos (Augen) não estão como devem estar, eles estão revirados
(verdreht)”. Resultado da coisificação da metáfora: “meu amado é um hipócrita,
um Augenverdreher”. Pois, se Freud afirma que, na esquizofrenia, há a
predominância da relação de palavra sobre a relação de coisa, é porque as
palavras foram coisificadas.
Por outro lado, notemos como há um conjunto de valores políticos que
parecem nortear o sofrimento paranoico. Falamos de unidade, identidade,
controle e risco de invasão. Como se fosse questão de assegurar a posse e a
unificação de um território a todo momento ameaçado. Não é difícil perceber, já
neste momento, como os motivos paranoicos parecem derivados de uma certa
compreensão a respeito daquilo que uma ordem deve ser capaz de produzir.
Paranoia e psicanálise
76
FREUD, GW vol. X, p. 298
77
Sendo que, em Freud, o delírio paranoico é: “uma tradução em representações de palavras do
reprimido que retornou maciçamente na forma de signos perceptuais” (SIMANKE, Richard; A
formação da teoria freudiana das psicoses, Belo Horizonte: Loyola, 2008, p. 100)
78
FREUD; Manuscrito H, In: Neurose, psicose, perversão, p. 18
A etiologia comum para o início de uma psiconeurose ou psicose permanece
sendo o impedimento, a não realização de algum daqueles eternamente
indomáveis desejos de infância, enraizados profundamente em nossa
organização filogeneticamente determinada79.
“Quando falo de cultivo da volúpia, que se tornou como que um dever para
mim, não quero dizer jamais um desejo sexual por outras pessoas (mulheres)
ou um contato sexual com elas, mas sim que represento a mim mesmo como
homem e mulher numa só pessoa, consumando o coito comigo mesmo,
realizando comigo mesmo certas ações que visam a excitação sexual, ações
que de outra forma seriam consideradas indecorosas, e das quais se deve
excluir qualquer ideia de onanismo ou coisas do gênero”83
Notemos ainda como tal situação indica um certo modo de ligação defensiva à
identidade, de negação da “interioridade da diferença”, que demonstram a fragilidade,
no caso da psicose, dos modos de síntese psíquica fundadas na noção funcional de Eu.
Esta ideia da psicose como fragilidade estrutural do processo de produção de
identidades subjetivas aparecerá de maneira mais sistemática nos trabalhos de Jacques
Lacan.
Lembremos também como Jung definirá a esquizofrenia como uma
introversão da libido, em um esquema utilizado por Freud para falar da
paranoia. Segundo a ideia de Jung, a libido retirada do mundo se volta para o Eu,
produzindo assim os fenômenos de autismo e avolição descritos por Bleuler
como fundamento do quadro esquizofrênico. Trata-se assim de um estado
secundário construído sobre a base de um narcisismo primário (investimento
libidinal originário do Eu). Posteriormente, tal investimento originário será
cedido aos objetos. É só com o investimento de objeto que seria possível
distinguir energia sexual e energia das pulsões do Eu, libido do Eu e libido de
objeto.
Gostaria então de, inicialmente, expor a teoria freudiana da paranoia para
depois passarmos a teoria lacaniana da paranoia. Como sabemos, a teoria freudiana é
construída principalmente a partir da interpretação de um relato escrito por Daniel
Paul Schreber em seu Memória de um doente dos nervos. Notemos já um dado
82
FREUD; A perda de realidade na neurose e na psicose, p. 279
83 SCHREBER, Daniel Paul; Memória de um doente dos nervos, São Paulo : Paz e Terra, 1986, p.
218
significativo, Freud trabalha um relato literário, nós não estamos diante de um caso
derivado de sua clínica, como temos no caso Dora, no caso do Homem dos Lobos e
do Homem dos Ratos.
Esta natureza “literária” da fonte freudiana não deveria nos deixar indiferentes.
O desejo de escrita indica forma de participação social, forma de constituição de uma
“narrativa”, de uma história pessoal que será maneira de constituir um Eu lá onde Eu
nenhum é mais possível. Por outro lado, não haverá em Freud a descrição de um
processo de cura, de uma intervenção clínica bem sucedida. A psicanálise, mesmo
tendo uma teoria das psicoses, será basicamente uma clínica das neuroses. Mesmo
Lacan, quando escrever em 1932 uma tese sobre a paranoia servindo-se de um caso
que ele acompanhará (o “caso Aimée”) não poderá apresentar uma clínica das
psicoses. Seus desenvolvimentos posteriores serão teoricamente decisivos para uma
teoria psicanalítica das psicoses, mas não para uma clínica estruturada das psicoses.
Esta clínica será, a sua maneira, tentada apenas a partir dos anos cinquenta,
por psicanalistas que irão procurar sistematizar práticas ligadas à análise institucional,
como, por exemplo, Jean Oury e Felix Guattari. Mas neste momento, a prevalência do
quadro paranoico será abandonada em prol de uma recuperação da esquizofrenia,
agora sob novas bases.
Genealogia das psicoses
Aula 7
Uma vez, de manhã, ainda deitado na cama (não sei mais se meio
adormecido ou já desperto), tive uma sensação que me perturbou da
maneira mais estranha, quando pensei nela depois, em completo estado
de vigília. Era a ideia de que deveria ser realmente bom ser uma mulher
se submetendo ao coito – esta ideia era tão alheia a todo o meu modo de
sentir que, permito-me afirmar, em plena consciência eu a teria rejeitado
com tal indignação que de fato, depois de tudo o que vivi nesse ínterim,
não posso afastar a possibilidade de que ela me tenha sido inspirada por
influência exteriores que estavam em jogo84.
84
Idem, p. 54
internado, Schreber desenvolve um quadro delirante onde temáticas religiosas e
científicas se misturam para descrever uma crise profunda na “ordem do
mundo”. Schreber começa afirmando que a alma humana está contida nos nervos
do corpo, algo comparável a fios de linha muito finas. Deus também é, desde o
início, apenas nervo, e não corpo, portanto algo aparentado à alma humana. Até o
momento de crise, a situação era tal que Deus deixava abandonados a si mesmos
o mundo criado por ele e os seres orgânicos. Uma intervenção imediata de Deus
no destino dos indivíduos via de regra não acontecia, apenas em situações
particulares. Esta “conexão nervosa” não podia se tornar regras porque:
Deus via um homem vivo só por fora, não existindo, como regra geral,
uma onisciência e uma consciência de Deus com relação ao interior das
pessoas vivas. Mesmo o eterno amor divino, fundamentalmente, só existia
para a criação como um todo86.
Tais nervos, após a morte, passam por uma purificação na qual as almas
aprendiam a língua falada por Deus que, não podia ser diferente, era uma espécie
de alemão arcaico cheio de palavras de sentidos opostos (recompensa era
punição, veneno era alimento, profano era sagrado etc.). Pois os alemães eram o
povo eleito de Deus por serem moralmente mais virtuosos.
As almas completamente depuradas pelo processo de purificação subiam
ao céu atingindo a beatitude. Tal beatitude consistia num estado de gozo
ininterrupto, associado à contemplação de Deus. A beatitude masculina ficava
um grau acima da feminina; essa última era, na verdade, um “sentimento
ininterrupto de volúpia”87.
Esta construção teria entrado em crise devido aquilo que Schreber chama
de “assassinato de alma” e que teria sido produzido por seu médico, Dr. Flechsig.
Tal assassinato estaria sendo imputado a Schreber. Trata-se de um abuso das
conexões nervosas. Deus teria concedido a família Flechsig a possibilidade de ter
conexões nervosas e de receber inspirações divinas. No entanto, os Flechsig
procuraram “reter os raios divinos” e impedir que a estirpe dos Schreber
pudesse ter relações de maior proximidade com Deus. Daí a noção de
“assassinato de alma”, ou seja:
85
Idem, p. 36
86
Idem, p. 48
87
Idem, p. 40
A entrega de uma alma a outra, seja para conseguir uma vida terrena mais
longa, seja para se apropriar das forças espirituais desta, seja ainda para
obter uma espécie de imortalidade pessoal ou alguma outra vantagem88.
88
Idem, p. 46
89
Idem, p. 222
90
FREUD, Sigmund; idem, p. 34
Schreber não é exatamente a figura de mente fragilizada, mas de uma mente para
qual é impossível pensar a fragilidade de nossas imagens de mundo. Como se ele
representasse, de uma maneira extremamente acabada, a reação quixotesca
contra uma ordem em decomposição, que ameaça nos jogar em um mundo onde
precisaremos nos deparar continuamente com aquilo que é radicalmente
contingente.
Neste sentido, a paranoia aparece como a reação mais bem acabada à
experiência da contingência radical daquilo que fornece o fundamento de nossas
visões de mundo. Ela será a costura de um mundo em decomposição que se
apoiará em ideias centrais para a constituição de uma personalidade, como
constituição de um ideal enquanto missão simbólica, ideal capaz de organizar as
contingências do desenvolvimento tendo em vista a realização de um projeto; a
organização narrativa e unificada dos fatos que compõe o desenvolvimento de
um sujeito, entre outros.
A interpretação freudiana
Freud verá então uma forte inclinação erótica entre Schreber e seu médico,
Flechsig, como fator de desencadeamento dos delírios paranoicos. Este
sentimento em relação ao médico deveria, por sua vez, originar-se em uma
transferência na qual um investimento afetivo anterior fora transposto para a
figura do médico. Provavelmente, tal investimento tivesse por objeto o irmão
mais velho, que cometerá suicídio em 1877, ou seja, antes da ninternação de
Schreber. Da mesma forma, a relação à Deus é associada por Freud à figura do
pai.
De fato, a ideia freudiana consiste em afirmar que há um conflito na
relação entre Schreber e o pai que não pode ser simbolizado pelo primeiro. Este
conflito que será expulso do universo simbólico, marcado pela ambivalência
entre identificação e rivalidade, retornará sob a forma de produção delirante.
Freud chegará a afirmar que a “mais temida ameaça do pai”, a saber, a castração
teria proporcionado o material para a fantasia-desejo de transformação em
mulher.
Lembremos aqui de dados importantes sobre a figura paterna de
Schreber. Seu pai, Daniel Gottlob [Gott: Deus, lob: louvor] Moritz Schreber, fora
91
FREUD, O caso Schreber, p. 56
um médico, pedagogo e professor conhecido responsável por práticas
pedagógicas higienistas ligadas ao uso constante de exercícios físicos (seu livro
Ginástica médica de quarto teve mais de 40 edições) e combate à sexualidade, em
especial a masturbação, fonte de males inumeráveis e enfraquecimento físico. A
influência de Schreber à época é considerável e seus métodos são marcados por
profundas intervenções corporais disciplinares. Schreber pai é representante de
um modelo educacional que será inicialmente aplicado em seus próprios filhos
nas mais variadas situações: na hora de dormir, de comer, de estudar, de se
divertir.
Esta onipresença da intervenção paterna aparece inicialmente como a
expressão de uma força que impede o filho de se medir ao pai, de poder ocupar
seu lugar (como pai ou autoridade). Não por acaso, Schreber terá seu surto à
ocasião de ocupar um lugar máximo de autoridade, sem ninguém acima dele.
Mas ela é também expressão de uma fraqueza extrema. O poder onipotente é
aquele que precisa estar sempre presente por temer a deserção a qualquer
momento. Ele não pode entrar no interior dos homens, por isto precisa da
coerção contínua.
Freud fundamenta assim a paranoia a partir da impossibilidade da
identificação ao pai operar sem que ela se resvale à condição de escolha de
objeto insuportável de ser assumida. Este problema da impossibilidade da
identificação será o eixo da releitura que veremos de Jacques Lacan.
Note-se ainda como Freud organizará a produção delirante a partir das
modalidades de negação do julgamento: “Eu (um homem) amo ele (um homem)”.
Maneira de insistir na constituição estrutural da racionalidade da posição
paranoica. Quando a afirmação é contrariada por “Eu não o amo – eu o odeio
porque ele me persegue” temos o delírio de perseguição. Quando temos: “Eu não
o amo – eu amo ela”, temos a erotomania. Quando temos “Não sou eu que amo
um homem – ela o ama” temos o delírio de ciúme. Quanto temos: “eu não amo
absolutamente, não amo ninguém” temos o delírio de grandeza. Neste caso,
temos também o retorno do investimento libidinal outrora ligado aos objetos.
Há ainda um ponto específico que gostaria de trabalhar com vocês. Ele diz
respeito a problematização da relação ao corpo próprio no interior do caso
Schreber. Primeiro, tal relação toca profundamente o que diz respeito à
sexualidade e à identidade sexual. Questão maior, já que toda constituição social
de identidades subjetivas passa necessariamente pela maneira com que
identidades de gênero serão constituídas, modos de prazer corporal serão
organizados, recalcados, deslocados, em suma, ordenados. Não entenderemos
nada sobre a constituição social das identidades subjetivas se não estivermos
atentos aos problemas de gênero, ao modo com que sujeitos constituem seu
pertencimento a um gênero e seu modo de relação a outro.
Levando isto em conta, lembremos como Schreber afirma que, devido a
uma tendência inerente à Ordem do mundo, um homem que entrou em contato
permanente com os raios divinos tenderia à emasculação. Por um lado, a própria
natureza dos nervos de Deus produz uma sensação de volúpia intensa
(característica feminina). Isto a ponto de Schreber afirmar: “Encontravam então,
no meu corpo, um substituto de valor igual ou aproximado à sua perdida
beatitude celeste, que também consistia num gozo de tipo voluptoso”(p. 149)
Por outro lado, haveria um plano, subjacente à Ordem do mundo, de
renovar o gênero humano depois da crise. Este plano foi objeto de um mal-
entendido fundamental advindo do fato de Deus não ser capaz de conhecer
verdadeiramente o homem vivo. Na verdade, por se sentir ameaçado e inspirado
por seu instinto de conservação, Deus tornou-se cúmplice de uma conspiração
dirigida contra Schreber e que consiste em transformar seu corpo em um corpo
feminino que deverá ser entregue para fins de abusos sexuais, isto a fim de
depois ser “deixado largado” e abandonado à putrefação.
O problema das transformações corporais é uma constante nos delírios e
alucinações de Schreber. Por exemplo: “Muitas vezes, durante períodos mais ou
menos longos, vivi sem estômago, e algumas vezes declarei expressamente ao
enfermeiro M., que talvez ainda se lembre disto, que eu não podia comer porque
não tinha estômago” (p. 129). Tais temáticas não deixam de se relacionar a
modalidades de intervenção corporal que, de fato, foram vivenciadas pelo sujeito
em sua educação. Como sabemos, a educação recebida de seu pai incluía um
verdadeiro adestramento corporal com intervenções ortopédicas as mais
radicais e uma moral sexual extremamente rígida:
Poucas pessoas cresceram com princípios tão rigorosos como eu, e poucas,
como eu posso afirmar a meu próprio respeito, se impuseram ao longo de
toda a sua vida tanta contenção de acordo como esses princípios
principalmente no que se refere à vida sexual. (p. 217)
92
SANTNER, A Alemanha de Schreber, p. 18
Genealogia das psicoses
Aula 8
93
LACAN,Jacques; Da psicose paranóica em sua relação com a personalidade, (Rio de Janeiro:
Forense, 1988); pag. 1. Décadas mais tarde, Lacan se afastará de sua postura psicogênica de juventude.
Mas, neste caso, não se tratava de criticar a noção de uma causalidade não redutível a processos
fisiológicos. Tratava-se, na verdade, de tomar distância da noção de relação de compreensão, tal como
desenvolvida pelo psiquiatra e filósofo Karl Jasper. Noção fundamental para a constituição da
perspectiva psicogênica à época.
entanto, seja em tais manuais seja na literatura psicanalítica, temos um quadro
de identificação relativamente simétrico que vê, na paranoia, um
comportamento psicótico marcado pela produção sistemática de interpretações
delirantes (ligadas normalmente a temáticas de perseguição, ciúme, grandeza
e/ou erotomania) e por uma certa ausência de deterioração intelectual (o que
explica o uso relativamente ordenado da linguagem e a consistência da conduta).
Lacan baseava sua análise da paranoia em uma noção relativamente
comum à época que atribuía a gênese da doença a um problema evolutivo da
personalidade, tal como vimos também em Freud. Mas no seu caso, isto lhe
permitia insistir que apenas a compreensão do processo de formação da
personalidade poderia fornecer a inteligibilidade da psicose paranoica. Daí
porque, Lacan dirá:
94
LACAN, Da la psychose paranoiaque, p. 45
95
LACAN, De la psychose paranoiaque, p. 33
96
Idem, p. 42
Da mesma forma, toda doença mental será caracterizada por um “ciclo de
comportamento” no qual todos os episódios se ordenam a partir de tal ciclo. Por
sua vez, esse ciclo de comportamento se organizará a partir dos desdobramentos
da história concreta do desejo. De um desejo cuja história será eminentemente
social. O que faz da categoria do desejo e de sua alienação a chave compreensiva
do sofrimento psíquico.
Veremos na próxima aula o que isto pode significar. Neste momento, é
importante abordar outra questão, a saber, como Lacan compreende esta gênese
social da personalidade resultante das dinâmicas de socialização? De fato, Lacan
já opera aqui com a tendência psicanalítica em compreender socialização e
individuação a partir de processos de identificação.
Identificar-se é, grosso modo, “fazer como”, atuar a partir de tipos ideais
que servem de modelo e de pólo de orientação para os modos de desejar, julgar e
agir. O que nos leva a uma contradição aparente. Pois afirmar que a identificação
é o motor das dinâmicas de socialização significa dizer que o processo social que
permite a constituição de subjetividades é movido pela internalização de
modelos ideais de conduta socialmente reconhecidos e encarnados em certos
indivíduos. Modelos que podem aparecer nas figuras familiares do irmão, dos
pais, ou em qualquer outra figura de autoridade.
No entanto, esta internalização não deixa de ser profundamente
conflitual. Internalizar um tipo ideal encarnado na figura de um outro significa
conformar-se a partir de um outro que serve de referência para o
desenvolvimento do Eu. Se quisermos ser mais exatos, diremos que se trata de
alienar-se, já que significa ter sua essência fora de si, ter seu modo de desejar e de
pensar moldado por um outro. Daí porque uma das temáticas clássicas da teoria
freudiana consiste em lembrar como toda socialização é alienação, como este
processo é fundamentalmente repressivo por exigir a conformação a padrões
gerais de conduta. Para Freud, há algo anterior aos processos de socialização,
algo que não é ainda um Eu, mas é um corpo libidinal polimorfo e inconsistente.
Isto nos explica porque os processos de socialização tendem a se impor através
da repressão do corpo libidinal, da culpabilização de toda exigência de satisfação
irrestrita perpetuando, com isto, relações de agressividade profunda contra
aquilo que serve de ideal. Há um preço alto a pagar para ser um Eu.
A sua maneira, Lacan se serve deste esquema de compreensão da gênese
social da personalidade e do problema da culpabilidade a fim encaminhar sua
interpretação daquele que será seu único “caso clínico” em quase cinquenta anos
de atividade profissional: o caso Aimée97.
O caso Aimée
97
Para uma análise completa do caso Aimée, ver Jean Allouch, Paranóia: Marguerite ou a Aimée de
Lacan (Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005)
Paris onde tentará, sem sucesso, ser reconhecida como “mulher de letras e de
ciência”. Suas temáticas delirantes continuarão até o crime perpetrado contra a
atriz de teatro, em 1931. Dias depois de internada, a produção delirante para
momentaneamente. No entanto, ela ficará internada com recaídas constantes até
1943.
Durante seu longo relato clínico, Lacan demonstra como esta filha de
camponeses da “França profunda” era atravessada, desde cedo, pelo sentimento
de deslocamento em relação a seu meio, em relação aos “papéis femininos” e,
sobretudo, por veleidades intelectuais. Lacan dedicará várias páginas ao relato
de seus escritos. Tal atividade literária será fundamental para ele descrever os
tipos ideais que determinaram o desenvolvimento da personalidade de
Marguerite, os mesmos tipos contra os quais ela se volta em seus delírios de
perseguição:
98
Jacques Lacan; idem, pag. 254
99
Jacques Lacan, Escritos (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996), p. 347
100
É interessante notar como, já na tese de 1932, o outro é o objeto do desejo do sujeito. Ele é o
suporte das identificações imaginárias do eu e, por esta razão, será o que responde pela identidade do
eu. Como veremos, devido a esse caráter especular do objeto, Aimée só poderá realizar seu desejo,
imbricado de amor e ódio, através da autopunição.
Lacan mostrará como tal processo está vinculado a uma outra identificação, esta
que se dá com a lei social ordenadora representada, no interior da família, pela
função paterna. O argumento de Lacan consistirá em dizer que, na paranoia, esta
segunda identificação estabilizadora com a ordem paterna não ocorre, há uma
fixação que impede o sujeito de atravessar as relações de rivalidade e alienação
com o que lhe aparece como ideal. Ele vive assim em uma confusão narcísica que
faz com que toda alteridade apareça próxima demais, invasiva demais, saída que
já vimos com a leitura freudiana de Schreber (e que no caso Aimée será
representado pela relação de rivalidade entre a paciente e a irmã, que ocupará o
lugar da mãe, que também era psicótica). Pois esta era a maneira lacaniana de
interpretar a noção freudiana segundo a qual a paranoia seria uma reação de
defesa contra a homossexualidade. Tudo se passa como se Lacan transformasse
tal homossexualidade em paixão pelo mesmo, paixão conflitual pela imagem de
si mesmo vinda de um outro. Como se a paranoia fosse, no fundo, uma doença do
narcisismo. Daí a impossibilidade de reconhecer a dependência à alteridade sem
produzir explosões de rivalidade que acabam, por exemplo, sendo projetadas
para fora de si sob a forma de delírios de perseguição.
Levando em conta este jogo de identificações, Lacan poderá fornecer o
sentido da ação criminosa de Marguerite. Na verdade, ao atacar a atriz de teatro,
ela procurou atingir a si mesma. Ela atinge a si mesma não exatamente para
livrar-se de um ideal que a persegue, mas para ser punida, para ser culpada
perante uma lei social da qual ela sempre se sentiu deslocada. Pois ser culpada e
punida é, neste contexto, uma forma peculiar de ter diante de si a presença da
potência asseguradora da lei. Sentir-se culpada é uma forma de inscrever-se no
interior da lei social, como se o crime fosse, na verdade, um modo de demanda de
reconhecimento social que só pode realizar-se se Marguerite sentir que a lei
também “é para ela”. Daí porque, após o crime, Lacan dirá que ela se “cura” de
uma “paranoia de auto-punição” e pode tomar uma certa distância da sua
produção delirante.
Tais mecanismos de autopunição estão internalizados no supereu:
instância psíquica estruturada pela reincorporação, ao Eu, de uma parte do
mundo exterior através de uma identificação secundária. Esta parte do mundo
exterior é constituída pelos objetos que resumem em si mesmos todas as
coerções que a sociedade exerce sobre o sujeito, sejam os pais ou seus
substitutos. O supereu será composto de representações de Ideais do eu
introjetados. O sentimento de culpa, sentimento provocado pela ação dos
mecanismos de autopunição, será a expressão do confronto entre as exigências
do supereu e os desempenhos concretos do Eu.
Notemos então como esta cura não deixa de ter um acento peculiar. Ao
sentir-se culpada, Marguerite se encontra com uma ordem social punitiva e
“legítima”, cuja ausência teria permitido o advento da psicose. Como bem
assinalou Borch-Jacobsen, a respeito dos casos criminais lacanianos: “eles são
criminosos devido a um obscuro desejo de glorificar a lei que eles violam”101.
Lembremos de Freud afirmando: “Em muitos criminosos, especialmente nos
principiantes, é possível detectar um sentimento de culpa muito poderoso, que
existia antes do crime, e, portanto, não é o seu resultado, mas sim o seu motivo. É
como se fosse um alívio poder ligar esse sentimento inconsciente de culpa a algo
101
BORCH-JACOBSEN, Mikkel; Lacan: the absolute master, pag. 25
de real e imediato”102. Por isto, a ação criminosa de Aimée será compreendida
por Lacan como uma “catarse” que produz a liberação do sujeito em relação a
uma concepção de si mesmo e do mundo devido a um choque com a realidade.
Não é por outra razão que Lacan recomendará, como estratégia profilática
contra a psicose, a recondução destes pacientes a instituições sociais rígidas ou a
grande ideais reformadores que exigem abnegação. “A fórmula de atividade a
mais desejável para esses sujeitos é seu enquadre em uma comunidade de
trabalho, à qual eles estão vinculados por um dever abstrato” 103. Por sinal, esta
será sua estratégia quando tiver em análise Dora Maar (artista e amante de
Picasso) nos anos quarenta. Sentido a fragilidade de sua estrutura psicótica,
Lacan verá como saída clínica o reforço de seu encaminhamento em direção à fé
religiosa. Pois: “na falta dessa solução ideal, toda comunidade tendendo a
satisfazer mais ou menos completamente as mesmas condições: exército,
comunidades políticas e sociais militantes, sociedades filantrópicas, de emulação
moral ou sociedades de pensamento, beneficiariam da mesma indicação”104.
Segundo, não é difícil notar que Lacan está mais interessado em “uma
psicanálise do eu do que em uma psicanálise do inconsciente”105 ligada à análise
dos mecanismos de resistência do sujeito. Como vimos, a causalidade da psicose
paranoica foi descrita através de uma teoria das identificações e da gênese social
da personalidade que em momento algum precisou fazer apelo direto à noção
psicanalítica de inconsciente. Na verdade, durante décadas Lacan considerará o
conceito de inconsciente como supérfluo. Foi só a partir de seu encontro com o
inconsciente estrutural de Lévi-Strauss, isto no início dos anos 50, que Lacan
“retornará” ao inconsciente freudiano.
102
FREUD, Sigmund; O Ego e o Id, pag. 69
103
LACAN, De la psychose paranoiaque, p. 277
104
Idem, p. 278
105
LACAN, Da psicose paranóica, p. 280
Genealogia das psicoses
Aula 9
Formas de negação
106
LACAN, S II, p. 287
107
LACAN, S III, p. 23
108
LACAN, S III, p. 107
percebidas pelo locutor”109. Elas exprimiriam um desejo de que certas coisas
tivessem sido “escotomizadas”, termo criado por René Laforgue e que se refere
aos fenômenos próprios à alucinação negativa. Fenômenos através dos quais um
objeto no campo de percepção do sujeito é eliminado, como se não existisse.
Lacan se serve desta discussão de Pichon para desenvolver a ideia de que,
na psicose, temos sempre fenômenos semelhantes a uma forclusão jurídica.
Contrariamente ao que é recalcado, o que é forcluído não foi objeto de uma
primeira simbolização. Por isto, não há a necessidade de uma clivagem através
da qual o aparelho psíquico se cinde. Na verdade, a forclusão é uma abolição que
faz com que aquilo que foi eliminado no Simbólico retorne no Real sob a forma
de alucinações. É isto que Lacan quer dizer ao afirmar:
109
DAMOURETTE e PICHON,
110
LACAN, S III, p. 101
em relação ao mundo Isto implica em admitir que o desejo é a função intencional
determinante na interação do sujeito ao seu meio ambiente.
Uma colocação desta natureza parece implicar um relativismo e um
psicologismo extremos que nos levariam a afirmar ser o mundo nada mais do
que aquilo projetado pelo desejo particularista do sujeito. Relativismo
aparentemente presente quando Lacan diz que o homem só encontra em seu
meio ambiente imagens das coisas que ele próprio projetou: “É sempre em volta
da sombra errante do seu próprio eu que se estruturarão todos os objetos do seu
mundo [assim como sua percepção dos outros empíricos]. Eles terão um caráter
fundamentalmente antropomórfico, digamos mesmo egomórfico” 111 . O que
explica porque o Imaginário em Lacan é fundamentalmente narcísico.
Proposições desta natureza parecem dificilmente defensáveis por não
explicarem como podemos ter “mundos em comum” cuja objetividade é
socialmente reconhecida. No entanto, lembremos que, com sua teoria da
constituição do Eu, Lacan demonstrou como é a partir da imagem do outro que
oriento meu desejo e minha relação ao mundo social. A imagem mostra como “o
desejo do homem é o desejo do outro”. Assim, não se trata simplesmente da
projeção do Eu sobre o mundo dos objetos, já que a imagem do outro é a
perspectiva de apreensão dos objetos. O mundo dos objetos já é sempre
constituído através da perspectiva fornecida pelo desejo do outro, um desejo que
não posso reconhecer como alteridade no interior do si mesmo. Impossibilidade
que se manifesta na perpetuação de estruturas de agressividade e de exclusão
em relação à alteridade, isto devido às mesmas razões que vimos na descrição do
caso de paranoia na aula passada. Assim, chegamos às duas principais
características do Imaginário: narcísico e marcado por relações duais.
O Nome-do-Pai
111
Jacques Lacan, Séminaire II, (Paris : Seuil, 1982), p. 198
simbólica é composta por significantes puros, que ela é uma “cadeia de
significantes”.
Isto pode nos auxiliar a entender o que Lacan quer dizer com Nome-do-
Pai e com sua teoria da psicose como forclusão do Nome-do-Pai. Pois quando
comentar os relatos psicóticos de Daniel-Paul Schreber, Lacan completará a
teoria da forclusão afirmando que tal operação sempre incide sobre um
significante privilegiado que sustenta a identificação do sujeito à ordem
simbólica. Daí uma afirmação como: “a falta de um significante leva
necessariamente o sujeito a colocar em questão o conjunto dos significantes. Eis
a chave fundamental para o problema da entrada na psicose”112. Pois o conflito
psíquico fundamental para a entrada na psicose diz respeito à identificação com
a representação que encarna o acesso à ordem simbólica. Neste caso, trata-se, ao
menos para Lacan, da identificação paterna. É a compreensão da função paterna
como um mero significante que aparece como impossível ao psicótico. Tentemos
entender melhor este ponto.
Desde a época em que estava à procura da gênese social da personalidade,
Lacan trabalhava com um esquema onde as dinâmicas de socialização eram
pensadas a partir de identificações. A principal destas identificações se daria com
o pai. No entanto, Lacan parte de uma consideração de ordem histórica. Ele
pensa o problema da função paterna em uma época marcada exatamente por
uma crise psicológica produzida pelo “declínio social da imago paterna”. Época
na qual a imagem do pai é: “sempre carente, ausente, humilhada, dividida ou
postiça”113.
Várias razões podem ser aventadas para tal declínio. Para Lacan, trata-se
de um paradoxo interno à família burguesa. Pois o pai da família burguesa não é
apenas o ideal que fornece as referências da minha conduta e do meu modo de
desejar. No caso masculino, ele é também o rival na posse do objeto materno. Por
um lado, há uma relação assimétrica de idealização; por outro, há uma relação
simétrica de rivalidade. Por isto, converge para o pai a função simbólica de
representante da Lei, que responde pela normalização sexual e que será
internalizada através do Ideal do eu, e a característica imaginária do pai
enquanto rival na posse do objeto materno, rivalidade introjetada através do
supereu repressivo. Exatamente para impedir tal sobreposição, em várias
sociedades o pai não é o responsável pelo acesso à função simbólica, mas o avô, o
irmão da mãe, etc.
Assim, devido a uma razão estrutural própria aos modos de socialização
hegemônicos na modernidade, o pai nunca está à altura de sua função simbólica.
Quer dizer, ninguém na efetividade pode realizar a função simbólica do pai e
colocar-se como encarnação do Ideal do eu: “O pai simbólico não está em lugar
algum, ele não intervém em lugar algum” 114. No entanto, a astúcia consiste em
dizer que apenas nesta condição podemos levar o sujeito a reforçar a
identificação com a função paterna. Pois esta função não é outra coisa do que a
formalização da impossibilidade de todo e qualquer figura empírica legislar em
Nome-do-Pai. Ou seja, não se trata de levar o sujeito a se identificar com a
imagem do pai, mas com uma função sem potência normativa, função que apenas
dá forma à inadequação radical do desejo humano. Daí porque: “O Nome-do-Pai é
112
LACAN, S III, p. 229
113
Jacques Lacan, Outros escritos (Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 2003), p. 67
114
Jacques Lacan, Séminaire IV (Paris : Seuil, 1994), p. 210
apresentado como o nome de uma falha”115. Tudo se passa como se o declínio da
imago paterna, a crise de investiduras em relação à autoridade, fosse condição
sócio-histórica para o reconhecimento do desejo em sua inadequação. Como se o
verdadeiro pai não fosse aquele que impõe uma norma a ser seguida, mas aquele
que, por se calar diante das questões fundamentais da existência de todo sujeito,
permite que um espaço de indeterminação se abra.
Esta natureza do pai como formalização da inadequação entre o desejo, os
objetos empíricos e as representações imaginárias é tão central que ela
organizará as distinções lacanianas entre neurose e psicose. Grosso modo, a
psicose será vista como o resultado de um fracasso do processo de socialização
resultante da forclusão desta natureza eminentemente simbólica da função
paterna. Daí porque as representações de pais de psicóticos são, ou desprovidas
de qualquer carência ou fragilidade (como se não existisse diferença entre pai
empírico e função paterna, ou seja, como se a figura do pai fosse imaginarizada),
ou simplesmente inexistentes, como no caso Aimée. Já nas neuroses, esta
natureza simbólica da função paterna é inscrita no campo da experiência. No
entanto, ela é inscrita de uma maneira peculiar, já que o neurótico procura a todo
momento negar o que ele mesmo inscreveu.
Neste sentido, Lacan compreenderá o caso Schreber como a descrição da
forclusão da natureza simbólica da identificação paterna, natureza esta que
permitiria ao sujeito fazer circular a falta constitutiva de seu próprio desejo.
Falta esta que expressa a ausência de determinação natural de seu desejo, a
fragilidade das operações de sentido e das estruturas de sua identidade, o
desamparo diante da morte, da sexualidade e do gozo. Não há acesso a uma
ordem de experiência que permitiria a circulação desta falta ligada a um modo
de ser do sujeito. Por isto, o que é da ordem da ausência e da falta só podem
aparecer a ele sob a forma de delírios, como o delírio de uma crise da ordem
divina, o delírio de um deus que nada sabe sobre os vivos.
A linguagem na psicose
115
Erik Porge, Les noms du père chez Jacques Lacan, p. 105
116
LACAN, S III, p. 43
117
LACAN, S III, p. 164
reduzido ao outro, o que produz uma suplementação do Simbólico pelo
Imaginário.
Ainda sobre esta inércia própria à linguagem psicótica, lembremos que
Freud caracterizou tal linguagem como: “uma linguagem que trata as palavras
como coisas”118. Consideração ilustrada pelo exemplo da analisanda de Victor
Tausk, conduzida à clínica após uma disputa com seu amante e portando a
seguinte reivindicação: “Meus olhos (Augen) não estão como devem estar, eles
estão revirados (verdreht)”. Resultado da coisificação da metáfora: “meu amado
é um hipócrita, um Augenverdreher”. Pois, se Freud afirma que, na esquizofrenia,
há a predominância da relação de palavra sobre a relação de coisa, é porque as
palavras foram coisificadas.
118
FREUD, GW vol. X, p. 298
Genealogia das psicoses
Aula 11
119
COOPER, David; Psiquiatria e antipsiquiatria, p. 10
120
LAING, Robert; The divided mind, p. 28
cada vez maior à natureza política da distinção entre normalidade e patologia
quando aplicada ao campo do sofrimento psíquico. Nesta mesma época, teremos
trabalhos como os de Michel Foucault e sua discussão sobre o processo de
transformação da loucura em doença mental (A história da loucura é de 1962).
Teremos ainda experiências clínicas de comunidades terapêuticas em vários
países da Europa e nos EUA, assim como uma forte discussão a respeito de
práticas antiasilares, como aquelas levadas a cabo na Itália por Franco Basaglia.
Todos esses casos expressam a insistência, cada vez maior, de que a crítica social
não pode ficar imune à maneira com que as sociedades inscrevem sofrimentos
em patologias, como a classificação de patologias mentais é um setor
fundamental da gestão social, pois nelas expressam os ideais de comportamento,
de rendimento, de valoração que a sociedade espera de seus membros.
Tentemos então compreender algumas das posições da antipsiquiatria a
respeito das psicoses e da esquizofrenia. Elas serão importantes para a
consolidação de modalidades de crítica a práticas e a regimes de descrição
clínica que serão um eixo fundamental do debate clínico nos anos sessenta e
setenta.
Laing e a esquizofrenia
121
Idem, p. 12
others alive, of preserving his identity, in efforts, as he will often put it, to
prevent himself losing his self. What are to most people everyday
happenings, which are hardly noticed because they have no special
significance, may become deeply significant in so far as they either
contribute to the sustenance of the individual's being or threaten him
with non-being. Such an individual, for whom the elements of the world
are coming to have, or have come to have, a different hierarchy of
significance from that of the ordinary person, is beginning, as we say, to
'live in a world of his own', or has already come to do so122.
Desconstruindo a esquizofrenia
122
Idem, p. 43
123
Idem, p. 139
124
COOPER, David; Psiquiatria e antipsiquiatria, p. 16
recuperarmos a dimensão das relações concretas que se desdobram no campo
social. Daí uma afirmação central como:
Assim, o processo de vir a ser uma pessoa pode estar errado, e pode estar
errado já nos meses iniciais de uma vida. Se a mãe falhar em gerar o
campo de ação recíproca, de modo que a criancinha aprenda como afetá-
la como outro, o filho carecerá da precondição para a realização de sua
autonomia pessoal. Será para sempre uma coisa, um apêndice, algo não
inteiramente humano, uma boneca perfeitamente animada126.
125
Idem, p. 47
126
Idem, p. 39
Deveremos procurar o momento vital da praxis, o núcleo intencional de
cada existência humana, o projeto pelo qual cada pessoa se define no
mundo, Isto foi sempre difícil de conseguir na grande instituição
psiquiátrica tradicional e, em termo práticos, nossa experiência sugere
que se carece de uma pequena comunidade de cerca de trinta ou quarenta
pessoas, que funcione sem os preconceitos e prejuízos clínicos correntes,
sem hierarquização funcionário-paciente rígida e externamente imposta e
com envolvimento pleno e ativo das famílias das pessoas incluídas na
comunidade. Em semelhantes comunidade ‘experimental’, uma pessoa
não terá de lutar com os desejos alienados de outros, que se esforçam
para mete-la no molde, a fim de curá-la da tentativa de se tornar a pessoa
que realmente é. Ela terá, por fim, a oportunidade de descobrir e explorar
modos autênticos de se relacionar com outros. Tal comunidade ainda não
existe, porém pode ser criada127.
127
Idem, p. 52
Uma genealogia das psicoses
Aula 12
128
COOPER, David; Psiquiatria e antipsiquiatria, p. 16
Perguntemo-nos, por exemplo, como a loucura se manifesta no interior da
vida social. Em larga medida, através de usos de fala singulares, de
comportamentos e reações afetivas julgadas inadequadas, de interpretações que
não levam mais em conta sua própria fragilidade. Mas tais fenômenos nunca
poderiam ser considerados expressões de loucuras se não fossem acompanhados
de um dado fundamental, a saber, do sofrimento do paciente. Este é um dado, no
entanto, que nem sempre está presente nos diagnósticos clínicos que aceitam
uma definição da doença mental a partir do transtorno social produzido (boa
parte dos diagnósticos de perversão, por exemplo entram neste caso). Lembrar
disto é uma forma de insistir que a redução da loucura a sua condição de doença
mental não é apenas o resultado de uma estratégia de tratamento clínico. Ela é
uma decisão a respeito de como o vínculo social irá dar conta, como ele irá ouvir
e se deixar afetar pela recusa e revolta que emergem sob a forma da loucura.
Como ele irá se defender da modalidade de recusa produzida pela loucura.
Isto nos leva, no entanto, a lembrar que a sobreposição imediata entre
alienação mental e alienação social traz também problemas e questões. De forma
importante, Guattari lembra: “Com as melhores intenções do mundo, morais e
políticas, acaba-se por recusar ao louco o direito de ser louco, e o ditado “é culpa
da sociedade”, pode mascarar uma maneira de reprimir todo desvio”129. Ou seja,
enquanto forma de recusa, a loucura é uma forma específica marcada também
por modalidades claras de sofrimento. Ela não é uma entidade inexistente,
simplesmente socialmente produzida, mas a inscrição social de uma forma
específica de recusa que pede também uma forma de cura, mesmo que o conceito
de cura se desvincule de noções como adaptação e média normal.
Por sua vez, o saldo clínico fundamental da antipsiquiatria estava na
consciência da força de transformação própria à análise de laços sociais a partir
das exigências da clínica, organizando um quiasma importante entre clínica e
crítica. Daí o foco das práticas de intervenção clínica na crítica das instituições e
do discurso médico-asilar. Sobe a cena a consciência de que o hospital
psiquiátrico e o próprio discurso médico são parte da doença. Pois eles são
sistemas de imposição de disposições normativas contra as quais, muitas vezes,
sujeitos mobilizam a doença para se fazerem ouvir. Não é possível abstrair o fato
de que o médico é uma figura de autoridade vinculada, normalmente, à defesa
das instituições do Estado. Nem é possível esquecer das consequências do fato
de: “expulso do social, o doente é acolhido na sociedade do psiquiatra” 130. Sua
realidade não pode ser abstraída da série de relações que vinculam o paciente à
normatividade geral dos discursos sociais. Levando em conta problemas desta
natureza, práticas antimanicomiais centradas na construção de comunidades
terapêuticas aparecerão como o eixo principal desta nova modalidade de
intervenção clínica. Assim, teremos exortações como:
129
GUATTARI, Félix; Psicanálise e transversalidade, p. 340
130
Idem, p. 57
pessoas, que funcione sem os preconceitos e prejuízos clínicos correntes,
sem hierarquização funcionário-paciente rígida e externamente imposta e
com envolvimento pleno e ativo das famílias das pessoas incluídas na
comunidade. Em semelhantes comunidade ‘experimental’, uma pessoa
não terá de lutar com os desejos alienados de outros, que se esforçam
para mete-la no molde, a fim de curá-la da tentativa de se tornar a pessoa
que realmente é. Ela terá, por fim, a oportunidade de descobrir e explorar
modos autênticos de se relacionar com outros. Tal comunidade ainda não
existe, porém pode ser criada131.
Guattari e La Borde
131
Idem, p. 52
que ordem for. Uma técnica terapêutica, exercida no ‘contexto’ de um
hospital psiquiátrico, torna-se essencialmente outra132.
132
GUATTARI, Félix; Psicanálise e transversalidade, p. 120
133
Idem, p. 342
134
Idem, p. 110
chefe ou – por que não? – clube inter-hospitalar, associação de funcionários
etc.”135 Ou seja, a direção do poder da transferência exige uma compreensão
mais precisa a respeito do poder real e das instâncias e sujeitos capazes de
modificar o ambiente, os modos de produção e de sentido.
Neste ponto, fica mais clara a função do antifamiliarismo militante que
ganhará corpo com Guattari. Um familiarismo estrito colonizaria os processos de
transferência a partir das figuras de autoridade paterna, como de fato ocorre
muitas vezes na clínica freudiana com resultados clínicos problemáticos. Aqui,
vemos uma distinção clara entre a perspectiva de Guattari e aquela hegemônica
no interior da antipsiquiatria. A prática defendida por Cooper, por exemplo, era
centrada na análise da família como núcleo produtor de sofrimento. Guattari
tende a ver, e este é um tema que ganhará ainda mais importância em O anti-
Édipo, uma prática clínica baseada em interpretações centradas nas relações
familiares como uma forma de reforçar seu domínio, fazendo dela a referência
maior de determinação do sentido da experiência, bloqueando assim a
produtividade de novas figuras de instituições e grupos.
Notemos como, por ter reflexões desta natureza em mente, Guattari irá
procurar associar tais experiências clínicas a suas preocupações políticas
militantes. Ele insistirá na existência de uma distinção entre grupos sujeitados,
ou seja, aqueles que obedecem a uma lei que vem de seus exterior, e grupos
sujeitos que, a sua maneira, são fundadores de si mesmos. Tais grupos sujeitos
não são apenas entidades clínicas, mas podem existir como grupos políticos,
estéticos, etc. A clínica se serve de uma criatividade institucional que pode
emergir em outros pontos da vida social. É a partir de tais distinções que
Guattari poderá se perguntar:
135
Idem, p. 112
136
GUATTARI, Félix; Psicanálise e transversalidade, p. 61
137
idem, p. 123
grupo. Daí porque é necessário lembrar da possibilidade de grupos que se
ramifiquem: “num fora que lhes ponham em confronto com suas possibilidade de
não sentido, de morte ou de esfacelamento ‘pela mesma razão de sua abertura a
outros grupos’” 138 . Ou seja, grupos que sejam fortes o suficiente para
desaparecerem, para saber desaparecer. Grupos que possam ser o agente de sua
própria morte.
Neste sentido, tudo se passa como se fosse questão de lembrar como um
dos eixos maiores de sofrimento inscrito sob a forma de esquizofrenia não fosse
exatamente a incapacidade de síntese e de unidade própria a uma identidade
social suposta. Na verdade, seria a impossibilidade social de vivenciar
experiências que se colocam na exterioridade dos modos de determinação
disponíveis, mesmo das determinações provisórias produzidas no interior de
grupos. Um verdadeiro sofrimento de determinação.
Por estar ligada a uma impossibilidade social, será impossível dissociar a
clínica de processos de reconhecimento. Mesmo que Guattari não tematize
diretamente, como Lacan, a lógica do reconhecimento enquanto eixo
fundamental do sofrimento psíquico. Ele falará do vazio no qual o doente se
encontra devido a “sua incapacidade de se fazer reconhecer e compreender”139.
Ele descreverá o desenvolvimento de um caso clínico, chamado R.A., a partir da
capacidade de paulatinamente “reconhecer a voz e o esquema corporal”,
“reconhecer a linguagem”, “reconhecer a própria situação e enfim “reconhecer o
outro”, assim como usa, durante toda a década de 60, o par palavra vazia/palavra
plena para se orientar na clínica.
Por outro lado, é claro como Guattari faz uma aposta clínica na força de
transformação própria à constituição de grupos. Há um horizonte de experiência
social restauradora como condição para a cura do sofrimento psíquico e para a
superação do estado catatônico potencial da esquizofrenia. Por isto, o grupo-
sujeito aparece como uma versão contemporânea da força terapêutica dos
vínculos comunitários, mesmo que se trate aqui de um grupo advertido quanto a
seus efeitos imaginários. Efeitos não por acaso ligados a um certo paradigma
médico: a imunidade, a defesa contra a intrusão, contra o enfraquecimento, a
exigência do controle.
Mas esta discussão clínica irá ser enquadrada em uma teoria a respeito da
esquizofrenia como o modo privilegiado de sofrimento no interior do
capitalismo. Haverá uma relação fundamental entre capitalismo e esquizofrenia
que até então nunca tinha sido tematizada enquanto tal. Não que o capitalismo
seja “esquizofrênico”, como dizemos, por exemplo, que há sociedades narcísicas,
paranoias sociais etc. Ele será, na verdade, indissociável da maneira com que
potências de transformação serão paralisadas através da constituição de
categorias clínicas que aprisionarão sujeitos em revoltas mudas e autistas. Ou
seja, o capitalismo será indissociável da história da colonização da potência de
desterritorialização em esquizofrenia ou em uma certa forma de circulação e de
intensificação do desejo que encontrará seu ritmo, sua regra nas dinâmicas de
valorização do Capital.
Um sistema econômico como o capitalismo não será apenas um sistema
econômico. Ele será um modelo de gestão do sofrimento psíquico, um modelo de
138
Idem, p. 8
139
Idem, p. 58
produção de patologias que limitarão as formas possíveis de experiências
humanas da recusa, como veremos na aula que vem. Não se deseja da mesma
forma dentro e fora do capitalismo, não se trabalha da mesma forma dentro e
fora do capitalismo, não se fala da mesma forma dentro e fora do capitalismo,
não se adoece da mesma forma dentro e fora do capitalismo.
Uma genealogia das psicoses
Aula 13
Capitalismo e esquizofrenia
140
idem, p. 36
141
FOUCAULT, Histoire de la folie, p. 320
142
BECHERIE, Os fundamentos da clínica, p. 232
submetem mais à estrutura diretiva das condutas e da personalidade própria a
um Eu.
Deleuze e Guattari lembram como a esquizofrenia mobiliza três conceitos:
a dissociação (Kraepelin), o autismo (Bleuler) e as modificações espaço-
temporais (Binswanger). Estes três conceitos reportam o problema da
esquizofrenia à distúrbios de síntese do eu: “Dir-se-á que o esquizo não tem mais
Eu e que é necessário lhe devolver esta função sagrada de enunciação”143. Mas,
no fundo, Deleuze e Guattari querem mostrar que esta dissociação, esta ausência
de princípio de unidade na esquizofrenia estaria ligada à manifestação de um
corpo libidinal anterior aos processos de alienação e repressão. Ao se deixar
pautar pela lógica de organização deste corpo libidinal, o desejo só poderia
encontrar inscrição como aquilo que não se inscreve mais no modo de
determinação social hegemônico em nossas sociedades capitalistas. Daí porque
Deleuze e Guattari podem dizer:
143
DELEUZE e GUATTARI, idem, p. 30
144
DELEUZE e GUATTARI, idem, p. 105
145
Idem, p. 265
maior. Mas, para o aparecimento do capitalismo, faz-se necessário uma
experiência de desterritorialização, um desejo de movimento sem telos, a
transformação da ausência de telos em sistema. Faz-se necessário “a
predominância do ponto de vista da circulação sobre o ponto de vista da
produção”146. Como lembra Deleuze e Guattari, quando as minas na China pré-
capitalista produziam excedente, elas eram fechadas. Ou seja, a necessidade
social atual definia os limites da produção. Não é, como no capitalismo
contemporâneo, a dinâmica autônoma da produção, seu ritmo e seus
movimentos que engendram os ritmos e movimentos do desejo.
Lembremos a este respeito como, ao menos segundo Deleuze e Guattari, o
capitalismo não se caracteriza apenas pela descodificação geral dos fluxos, mas
pela conjunção de todos os fluxos descodificados, ou seja, ele transforma tais
fluxos em um processo ordenado de auto-valorização do Capital. Deleuze e
Guattari pensam aqui no que significa o aparecimento do capital como dinheiro
que engendra dinheiro, como valor que se auto-valoriza. Com isto, não só um
equivalente geral é posto, mas instaura-se um processo ilimitado de
desterritorialização de todo objeto em relação a si mesmo (valor de uso).
Nenhum objeto é idêntico a si mesmo, já que ele é apenas a ocasião para a
passagem do fluxo ilimitado do capital que perverte todos os códigos e
identidades, anula todo conteúdo privilegiado a fim de instaurar a repetição
modular da pura forma. No capitalismo, todo objeto está “separado de si
mesmo”. Assim, a desterritorialização é elevada a princípio de funcionamento do
sistema.
Para tanto, basta que o capitalismo se sirva da natureza funcional da
abstração real, deste processo de desencarnação entre forma e conteúdo que faz
da circulação da forma-equivalente o fundamento efetivo da vida social:
146
LYOTARD, Jean-François; Des dispositifs pulsionnels, p. 31
147
Idem, p. 269
148
Idem, p. 233
Lyotard dirá, a respeito de O anti-Édipo: “na figura do Kapital proposta por
Deleuze e Guattari, reconhece-se bem o que fascina Marx: a perversão capitalista,
a subversão dos códigos, religiões, pudores, ofícios, educação, cozinha, palavra, o
nivelamento de todas diferenças ‘fundamentadas’ em prol da única real
diferença: valer por - , ser trocável por -. Diferença indiferente”149.
Por isto, Deleuze e Guattari devem dizer que a conjunção produzida pelo
capitalismo entre uma multiplicidade de fluxos descodificados não é a invenção
de um novo código, mas a produção de um axioma. Neste contexto, “axioma” é
aquele princípio intocável que permite os desdobramentos dos processos de
fluxo e produção. Ou seja, o “valor de troca”: “axioma, e não código: a energia e
seus objetos não são mais marcas de um signo, não há mais, em sentido estrito,
signos pois não há mais códigos, não há mais reenvio à origem, a uma ‘prática’, a
uma referência, a uma suposta natureza ou surrealidade ou realidade, extra-
dispositivo ou grande Outro – só há uma pequena etiqueta de preço, index da
intercambialidade: não é nada, é enorme, é outra coisa”150.
Máquinas desejantes
149
LYOTARD, Jean-François; idem, p. 35
150
Idem, p. 41
151
Idem, p. 11
152
GUATARRI, Félix; Psicanálise e transversalidade, p. 309
153
Idem, p. 312
desfuncionalizar, a produzir fluxos a partir de encontros contingentes, um pouco
como as montagens surrealistas. Daí uma afirmação como: “para além de
qualquer modelo mecanicista, a ideia de máquina desejante designa justamente
esse processo de fixação retrospectiva do acaso”154. Esta máquina não é a
máquina da indústria, mas a máquina da arte de vanguarda, das conexões
produzidas pelo que não se submete à funcionalidade do plano. Nos livraremos
do maquinismo do capitalismo produzindo máquinas que se quebram a si
mesmas e se fixam momentaneamente em novas conexões, sem com isto
precisar retornar à temática da consciência que se assenhora de suas ações e
representações. Pois se há sujeito aqui, ele não é constituinte, mas constituído
pela dimensão maquínica do desejo. Desta forma, o projeto revolucionário, ao
menos segundo Guattari, pode ser indissociável do uso da máquina em uma
subversão institucional.
A própria maneira de descrever o modo de relação entre o desejo e seus
objetos a partir do sintagma “máquina desejante” diz muito a respeito das
intenções dos autores. Tal como uma máquina, o desejo acopla peças separadas
que devem funcionar a partir de uma orientação. Tal acoplagem pode se dar
segundo três formas de síntese: síntese conectiva (se...então – constituição de
uma série), conjuntiva (e – articulação de duas ou mais séries) disjuntivas (ou -
repartição de séries divergentes). A metáfora da máquina para descrever o que é
da ordem do comportamento tem uma longa história que remonta a Aristóteles.
No estudo dos organismos, ela esteve normalmente vinculada a uma discussão
entre perspectivas vitalistas e mecanicistas. No caso de Deleuze e Guattari, trata-
se fundamentalmente de insistir que o desejo obedece a um automatismo que
desconhece o que é da ordem da decisão de uma consciência dirigista. A noção
de automatismo foi fundamental para descrever a esquizofrenia, desde a ideia de
automatismo mental do psiquiatra francês Gäetan de Clerambault até Victor
Tausk.
No entanto, este automatismo não pode ser a entificação de uma
orientação naturalizada de conduta. Isto talvez nos explique porque as máquinas
de Deleuze e Guatarri estão muito mais próximas das máquinas surrealistas (sem
telos e sem finalidade) do que das metáforas da indústria que abundam em O
anti-Édipo. Isto talvez nos explique porque Deleuze e Guattarri afirmam: “as
máquinas desejantes não cessam de se desmontar (détraquer), só funcionam se
desmontando, sempre o produzir se acopla ao produto e as peças da máquina
são ao mesmo tempo combustível”155.
Por fim, notemos como esta ideia de máquina desejante irá fundar uma
compreensão do inconsciente distinta da sua versão estruturalista. Ao invés do
inconsciente estrutural, que organiza sua produção a partir de relações
estruturais definidas em larga medida pelo complexo de Édipo, teríamos o
inconsciente maquínico. Um conceito de inconsciente que se apropria de um
conceito decisivo da própria psicanálise, a saber, o conceito de objeto parcial.
Vale a pena nos determos na compreensão de tal conceito.
Para Freud, o movimento do desejo era coordenado pela repetição
alucinatória de experiências primeiras de satisfação. Tais experiências primeiras
deixariam imagens mnésicas de satisfação no sistema psíquico. Quando um
154
PRADO JR., Bento; Alguns ensaios, p. 40
155
idem, p. 39
estado de tensão reaparece, o sistema psíquico atualiza de maneira automática
tais imagens sem saber se o objeto correspondente à imagem está ou não
efetivamente presente. Através deste processo de repetição, o desejo procura
reencontrar um objeto perdido ligado às primeiras experiências de satisfação.
Mas, se analisarmos de maneira mais precisa a natureza destas primeiras
experiências de satisfação, veremos que elas se dão através da relação entre o
sujeito e aquilo que Karl Abraham indicou como sendo o que hoje conhecemos
por objetos parciais156. Neste caso, o adjetivo parcial significa principalmente
que, devido a uma insuficiência na capacidade perceptiva do bebê, suas
primeiras experiências de satisfação não se dão com representações globais de
pessoas, como o pai, a mãe ou mesmo o eu enquanto corpo próprio, mas com
partes de tais objetos: seios, voz, olhar, excrementos etc.
O caráter parcial dos primeiros objetos de satisfação também estaria
ligado à estrutura originariamente polimórfica da pulsão, ou seja, ao fato de que
as moções pulsionais apresentam-se inicialmente sob a forma de pulsões parciais
cujo alvo consiste na satisfação do prazer específico de órgão. Pensemos no bebê
que ainda não tem à sua disposição uma imagem unificada do corpo próprio.
Neste caso, cada zona erógena tem tendência em seguir sua própria economia de
gozo. Notemos também que tal gozo é auto-erótico porque o investimento
libidinal destes objetos parciais ocorre antes do advento da imagem narcísica
com sua estrutura de identidades.
O amor de objeto, no sentido do amor próprio à relação interpessoal com
um outro, só seria possível através da operação de transposição das moções
pulsionais parciais. Assim, as pulsões parciais seriam integradas em
representações globais de pessoas ou sublimadas em representações sociais.
Como sabemos, o exemplo freudiano mais célebre é a transformação do desejo
feminino de ter um pênis em desejo de ter um homem portador do pênis.
Esta integração de objetos parciais não colocará problemas
intransponíveis para Abraham ou para seus continuadores como Melanie Klein e
outros representantes da escola inglesa. Pois tais objetos serão partes de um
todo que estará disponível a posteriori. O desejo pelo seio resolve-se logicamente
no amor pela mãe. O desejo pelo pênis resolve-se logicamente no amor pelo
homem portador do pênis. A abertura às relações intersubjetivas pareceria estar
assim assegurada 157 . Aqui, a metonímia do objeto é reconhecimento da
pressuposição de sua integração em uma totalidade funcional.
No entanto, a posição de Lacan sempre foi totalmente diferente e é isto
que Deleuze e Guattari querem recuperar. Daí porque eles falarão da “admirável
teoria do desejo em Lacan”158 cujo um dos polos seria constituído pela noção de
objeto a como máquina desejante. Ao apropriar-se do conceito de objeto parcial,
Lacan operou uma inversão maior na perspectiva psicanalítica clássica. Inversão
que produzirá conseqüências maiores na noção de racionalidade analítica.
156
Abraham fala de um estágio de amor parcial no qual : « o objeto dos sentimentos amorosos e
ambivalentes é representado por uma de suas partes introjetadas pelo sujeito" (ABRAHAM, 2000, p.
220)
157
É neste ponto que se situa, por exemplo, a crítica pertinente de Deleuze e Guatarri : « Desde o
nascimento, o berço, o seio, os excrementos são máquinas desejantes em conexão com partes do corpo
do bebê. Nos parece contraditório dizer ao mesmo tempo que a criança vive entre objetos parciais e que
o que a apreende nestes objetos são pessoas parentais em pedaços":(DELEUZE e GUATARRI, L´anti-
Oedipe, p. 53)
158
Idem, p. 34
Primeiramente, Lacan notou que, se o movimento do desejo consistia em
tentar reencontrar um objeto perdido, então deveria tratar-se, na verdade, da
relação entre o sujeito e tais objetos parciais159. Devemos sublinhar o termo
‘relação’ porque não se trata simplesmente de reencontrar um objeto no sentido
representativo da palavra ‘objeto’, mas de reencontrar uma ‘forma relacional’
encarnada pelo tipo de ligação afetiva do sujeito ao seio, à voz, aos excrementos
etc. O que nos explica porque: “um seio, é algo que não é representável”, a não
ser “sob estas palavras: ‘a nuvem encantadora de seios”160 que nos fornece a
forma relacional do sujeito com os objetos nos quais seu desejo aliena-se. O que
nos explica também porque o objeto a é presença de um vazio de objeto
empírico, como vemos na afirmação de que tal objeto é "presença de um vazio
preenchível, nos diz Freud, por qualquer objeto”, já que estaríamos diante de um:
“objeto eternamente faltante”161. Pois ele nada mais é do que a derivação de uma
forma relacional produzida pelas primeiras experiências de satisfação.
Aqui, podemos compreender melhor porque Lacan designou o objeto a
como objeto causa do desejo. Pois, por exemplo, o que causa o amor por uma
mulher particular é a identificação do objeto a no estilo e no corpo desta mulher;
da mesma maneira que o amor de Alcebíades por Sócrates, no Banquete, teria
sido causado por este objeto que Sócrates guardava dentro de si e que os gregos
chamavam de agalma. “Se este objeto os apaixona”, dirá Lacan, “é porque lá
dentro, escondido nele, há o objeto do desejo, agalma”162. Como se Sócrates
pudesse ser suporte de uma forma relacional que sustentava o desejo de
Alcebíades
A princípio, poderia parecer que, devido a esta maneira de pensar a causa
do desejo, Lacan estaria seguindo o caminho destes que acreditavam em uma
passagem possível do amor parcial de objeto ao amor por representações globais
de pessoas. Passagem impulsionada pelo primado genital. Mas, na verdade, seu
movimento era inverso: “A noção de objeto parcial nos parece aquilo que a
análise descobriu de mais correto, mas ao preço de postular uma totalização
ideal deste objeto, através do qual dissipa-se o benefício desta descoberta”163. É
isto que Deleuze e Guattari irão radicalizar ao afirmarem:
159
Neste ponto, ele era fiel à afirmação de Freud : « Quando vemos uma criança satisfeita largar o seio
deixando-se cair para trás e dormir, com as bochechas vermelhas e um sorriso, não podemos deixar de
dizer que esta imagem contém o protótipo da expressão da satisfação (Befriedigung) sexual na
existência ulterior » (FREUD, ;GW vol. V, p.82).
160
LACAN, S XIV, sessão do 25/01/67
161
LACAN, S XI, p. 168
162
LACAN, AE, p. 180
163
LACAN, E, p. 676
164
DELEUZE e GUATTARI, idem, p. 50