Curso Integral - Uma Genealogia Das Psic

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Instituto de Psicologia

Universidade de São Paulo

Uma genealogia das psicoses

Curso ministrado no primeiro semestre


de 2017
Prof. Vladimir Safatle
Uma genealogia das psicoses
Aula 1

Este curso tem um objetivo central. Trata-se de procurar a estratégia mais


adequada para discutir que tipo de entidade são as categorias clínicas utilizadas
para descrever e classificar modalidades de sofrimento psíquico. São elas a
expressão de espécies naturais descobertas pelo desenvolvimento técnico do
saber médico? Entendamos, neste contexto, por “espécie natural” uma espécie
correspondente ao agrupamento de fatos e elementos que refletiria a estrutura
do mundo natural, ao invés de refletir os sistema de interesses e ações do seres
humanos. Neste sentido, uma espécie natural seria um agrupamento dotado de
duas características fundamentais: acessibilidade epistêmica (eles podem ser
conhecidos) e autonomia metafísica (eles não se reduzem a construções
convencionais produzidas pelas minhas estruturas de saber). Devemos começar
por perguntar: são a esquizofrenia ou o transtorno de personalidade boderline
espécies naturais, são elas categorias dotadas de estruturas naturais, de leis
naturais regulares que podem ser identificadas e verificadas através de pesquisa
empírica? Quais seriam então as propriedade essenciais da esquizofrenia, seus
marcadores biológicos?
Partamos da hipótese contrária, ou seja, de que categorias clínicas não são
espécies naturais, de que não há nada no mundo natural parecido à
esquizofrenia, ao transtorno obsessivo-compulsivo, ao transtorno de
personalidade histriônica, já que os mesmos marcadores biológicos podem
descrever estados mentais distintos. Poderíamos então afirmar que categorias
clínicas são, de certa forma, agenciamentos produzidos pelo próprio impacto dos
saberes médicos nos objetos que eles descrevem? Pode a configuração do saber
médico, com suas estruturas de classificação, produzir efeitos na experiência
subjetiva do sofrimento psíquico?
Posto desta forma, fica evidente como tal problema diz respeito,
inicialmente, a questões epistemológicas ligadas ao campo do saber psiquiátrico-
psicológico e suas categorias. São essas questões que, de certa forma, orientarão
nosso curso. Neste sentido, gostaria de iniciar nossa discussão lembrando como
há uma vasta literatura que procura evidenciar aquilo que poderíamos chamar
de “a natureza não-realista” de conceitos em operação no saber próprio às
clínicas do sofrimento psíquico1. Normalmente, tais pesquisas visam mostrar
como estamos diante de problemas que vão além de questões de cunho
estritamente epistemológico, pois se referem também à análise do sistema de
valores que estariam presentes em modalidades de intervenção clínica, assim

1
Esta literatura é extensa e tem seu momento fundador, entre outros em FOUCAULT, Michel; Histoire
de la folie .Gallimard, 1962. Para desdobramentos contemporâneos ver, principalmente, KINCALD,
Harold e SULLIVAN, Jacqueline: Classifying psychopathology: mental kinds and natural kinds, MIT
Press, 2014, assim como ZACHAR, Peter; A metaphysics of psychopathology, MIT Press, 2014,
COOPER, Rachel; Classifying madness: a philosophical examination of the Diagnostic and Statistical
Manual of Mental Disorders, Springer, 2005 e MURPHY, Dominic; Psychiatry in the scientific image,
MIT Press, 2012
como do seu impacto na produção dos objetos que deveriam descrever. Pois
devemos nos perguntar se as orientações que guiam perspectivas hegemônicas
de intervenção clínica são neutras em relação a valores. Se elas não são neutras,
então é o caso de se perguntar se a gênese de tais valores que dirigem nosso
horizonte de cura não exigiria uma perspectiva ampliada de análise na qual
modalidades de orientação clínica são compreendidas no interior de sistemas de
influências compostos por discursos de forte teor normativo advindos de
campos exteriores à práticas terapêuticas como, por exemplo, a cultura, a moral,
a estética, a política e a racionalidade econômica. Trata-se, nestes casos, de não
fornecer às questões clínicas o estatuto de problemas autônomos, mas de
reinscreve-las no interior do sistema de circulação de valores que compõem as
várias esferas da vida social como um sistema de implicação constante.
Neste sentido, gostaria de utilizar a discussão a respeito dos destinos e
mutações de uma categoria clínica central, a saber, a esquizofrenia para avaliar a
possibilidade de recusar tentativas de pautar problemas epistemológicos do
saber psiquiatrico-psicológico a partir de descrições realistas que tendem a
compreender categorias clínicas em chave naturalista. Tal recusa será feita, neste
caso, em nome da tentativa de explorar a produtividade de perspectivas capazes
de compreender como categorias clínicas são influenciadas pela circulação de
sistemas de valores produzidos fora do campo da clínica. Uma destas
perspectivas, que gostaria de apresentar para vocês já em nossa próxima aula é
conhecida por “nominalismo dinâmico”. Ela deriva da compreensão de que o
campo de intervenção clínica diante do sofrimento psíquico seria animado pela
instauração de categorias classificatórias com força performativa, ou seja,
categorias que não apenas descrevem entidades presentes no mundo natural,
mas que, de certa forma, criam performativamente entidades (daí vem seu
nominalismo). Mas o campo de intervenção clínica as cria de forma tal que tais
entidades adquirem a capacidade de organizar retroativamente fenômenos no
interior de quadros descritivos que servem não apenas como quadros de
produção de sentido para as experiências singulares de sofrimento, mas também
como quadro indutor de efeitos posteriores (por isto, a ideia de um nominalismo
“dinâmico”).
Neste sentido, vale as considerações de um importante filósofo da ciência,
Ian Hacking, para quem uma patologia mental não descreve uma espécie natural
como talvez seja o caso de uma doença orgânica como câncer ou mal de
Parkinson. Ela cria performativamente uma nova situação na qual sujeitos se
veem inseridos2. Fato compreensivo se aceitarmos que categorias clínicas ligadas
à descrição do sofrimento psíquico são objeto de elaboração reflexiva por parte
dos próprios sujeitos que elas visam descrever.
Esta é uma característica diferencial importante própria à clínica do
sofrimento psíquico, a saber, suas categorias são reflexivas. Os objetos que elas

2Este é um importante ponto defendido por HACKING, Ian; Historical ontology, , p. 106, para
quem, no que se refere a classificações de doenças mentais, “um tipo (kind) de pessoa vem à
existência ao mesmo tempo que a própria categoria clínica (kind) foi inventada. Em alguns casos,
nossas classes e classificações conspiram para aparecer uma suportada pela outra”. A respeito
deste nominalismo dinâmico, ver também DAVIDSON, Arnold, The Emergence of Sexuality:
Historical Epistemology and the Formation of Concepts. Cambridge: Harvard University Press,
2004.
descrevem (no caso, o sujeitos que portam sintomas, transtornos, angústias,
inibições) apreendem tais categorias, identificam-se a elas e se modificam a
partir delas. Contrariamente a fenômenos físicos, que são determinados a partir
de categorias não-reflexivas (uma pedra não muda seu comportamento quando
sua queda é descrita a partir da lei da gravidade), fenômenos mentais são
determinados por sujeitos que produzem um nível significativo de reorientação
de ações e condutas, sejam elas conscientes ou involuntárias, quando se
identificam com certas categorias. Pois estar doente é, a princípio, assumir uma
identidade com forte força performativa. Ao compreender-se como “neurótico”,
“depressivo” ou portador de “transtorno de personalidade borderline”, o sujeito
nomeia a si através de um ato de fala capaz de produzir performativamente
efeitos novos, de ampliar impossibilidades e restrições. O ato de nomeação da
doença produz efeitos por si, reorienta a compreensão de fenômenos anteriores,
instaura uma nova realidade.

A gênese da esquizofrenia

Tendo a defesa de tal perspectiva em mente, este curso se estruturará a partir da


análise do desenvolvimento de uma categoria clínica que aparece, atualmente,
como um dos eixos fundamentais do saber clínico ligado ao sofrimento psíquico,
a saber, a categoria de esquizofrenia. Essa escolha em centralizar o debate
epistemológico a respeito do estatuto das categorias clínicas na análise de uma
categoria privilegiada parte do pressuposto de que as discussões
epistemológicas no campo do saber clínico devem partir da análise localizada do
desenvolvimento histórico e das mutações próprias à categorias específicas. Se
escolhemos a esquizofrenia foi por ela ter conseguido se impor como a categoria
central para a qual converge grande parte dos fenômenos comumente
compreendidos como ligados à experiência fenomenológica da loucura.
A esquizofrenia tem uma história de um século no interior do qual ela
inicialmente compete com categorias como a demência precoce, para
posteriormente dividir o campo das psicoses com a paranoia e a psicose
maniaco-depressiva (melancolia), ser radicalmente criticada pela anti-
psiquiatria nos anos sessenta, até conseguir afirmar sua hegemonia quase
exclusiva no estudo das psicoses a partir principalmente da grande guinada na
psiquiatria a partir do DSM III, no final dos anos setenta. No interior desta
história, a esquizofrenia irá modificar a estrutura de sua descrição, mas
conservando alguns de seus traços fundamentais.
Partamos da definição contemporânea do espectro esquizofrênico e de
outros transtornos psicóticos, tal como encontramos em manuais como o recente
DSM V: “anormalidades em um ou mais dos seguintes cinco domínios: delírios,
alucinações, pensamento desorganizado (fala), comportamento psicomotor
grosseiramente desorganizado ou anormal (catatonia) e sintomas negativos”3.
Estes cinco domínios descrevem anormalidades nas faculdades do julgamento
(delírio), percepção (alucinação), no uso da linguagem (pensamento
desorganizado), na motricidade (catatonia) e na emotividade (sintomas
negativos como a expressão emocional diminuída, a avolição, a alogia, a anedonia
e a associalidade). Tais anormalidades precisam principalmente obedecer a um

3
AMERICAN PSYCHIATRY ASSOCIATION; DSM – V, p. 87
período de ocorrência (por exemplo, um mês para produções delirantes, caso
contrário, teremos um “transtorno psicótico breve”).
No entanto, podemos nos perguntar sobre o que tais anormalidades
teriam em comum para serem organizadas no interior de uma mesma categoria.
Por que não estaríamos, na definição da esquizofrenia, diante de uma descrição
como aquela que encontramos no relato de uma famosa enciclopédia chinesa
descrita por Jorge Luiz Borges: "os animais dividem-se em : a) pertencentes ao
Imperador, b) embalsamados, c) enjaulados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g)
cães em liberdade, j) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como
loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de
camelo, l) etc., m) que acabam de quebrar o bebedouro, n) que, de longe,
parecem moscas".
Pois por que estas cinco dimensões e não outras? Lembremos como a
psiquiatria contemporânea não define a esquizofrenia a partir de uma etiologia
que lhe seria própria, ou seja, não há uma reflexão sobre a estrutura de suas
causas, tal como, por exemplo, do que dizíamos da histeria de que uma
experiência traumática ligada à sexualidade era sua causa necessária (mesmo
que não suficiente). Também não encontraremos discussões a respeito da
dinâmica necessária de seu desenvolvimento e cura. Sendo assim, faz-se
necessário que exista alguma forma de relação interna entre os critérios
diagnósticos para que possamos compreender melhor a identidade da categoria
clínica.
No entanto, o que encontraremos na definição contemporânea de
esquizofrenia é uma condição ligada à duração (ao menos 6 meses de
persistência de signos do transtorno), outra ligada à inserção social do paciente
(os “níveis de funcionamento” de uma ou mais áreas como: trabalho, relações
interpessoais e auto-cuidado, devem estar claramente abaixo de uma expectativa
média4) e, por fim, uma condição ligada a presença de ao menos um destes três
sintomas (delírio, alucinação e fala desorganizada), acrescido de mais um
sintoma (que também pode ser sintomas negativos ou comportamento
catatônico ou desorganizado).
Esta definição aproximativa leva a esquizofrenia a ser determinada,
atualmente, como uma “síndrome clínica heterogênea” cujo diagnóstico envolve:
“o reconhecimento de uma constelação de signos e sintomas associados a
debilidades ocupacionais e de funcionamento social”5. No entanto, não há clareza
a respeito do fundamento dos critérios de avaliação de debilidades ocupacionais
e de funcionamento social nas áreas do trabalho, das relações interpessoais e do
auto-cuidado. Muito menos do que deveríamos entender por “constelação de
signos e sintomas”. Seriam tais critérios de avaliação ligados à incapacidade que
o próprio paciente sentiria na sua tentativa de realizar expectativas em tais áreas
da vida ativa, incapacidade vivenciada por ele como sofrimento? Ou estariam
eles ligados ao sofrimento que o comportamento do paciente acarretaria ao

4
O que levou o psiquiatra Thomas Szaz a afirmar que: “a exigência de que algumas pessoas tem uma
doença chamada esquizofrenia (e que outras pessoas presumidamente não a tenha) não foi baseada em
descoberta médica alguma, mas apenas na autoridade médica, em outras palavras, ela não foi o
resultado de um trabalho empírico e científico, mas de uma decisão ética é política” (SZAZ, Thomas;
Schizophrenia: the sacred symbol of psychiatry, p. 3)
5
DSM – V, p. 100
vínculo social, já que “o desconhecimento da doença é um sintoma típico da
esquizofrenia”6?
Neste sentido, notem que mesmo se encontrássemos uma correlação
estrita entre marcadores biológicos e estados da doença, criando assim uma
simetria entre estados cerebrais e estados mentais, não teríamos ainda
respondido ao problema da etiologia da doença. Ninguém nunca negou a
existência de paralelismos entre estados mentais e estados cerebrais, mas isto
não implica a necessidade de aceitar um reducionismo materialista que vê nos
estados mentais apenas uma maneira metafórica de descrever estados cerebrais.
Se o mundo humano é composto de quiasmas entre normatividades vitais e
normatividades sociais, podemos nos perguntar se a compreensão da estrutura
de nossas formas de sofrer não exigiria o esclarecimento do impacto de
normatividades sociais, com seus sistemas de valores, no desenvolvimento de
normatividades vitais.
Por esta razão, faz-se necessário lembrar que categorias clínicas devem
ser analisadas não apenas por aquilo que elas expressam de maneira explícita,
mas também por aquilo que elas pressupõem de maneira implícita. Dimensões
importantes de sua natureza normativa não estão explicitamente presentes, mas
poderão vir à luz através de uma reconstrução genealógica de seu
desenvolvimento e de sua história. É isto o que gostaria de propor neste
semestre através do estudo da esquizofrenia. Trata-se de afirmar que a definição
atual que encontramos é apenas a dimensão explícita de uma construção
implícita resultante da sedimentação de um processo extenso de
desenvolvimento.
Por exemplo, voltemos por um instante aos fundamentos do
aparecimento da esquizofrenia. Sabemos como a categoria aparece em 1911,
cunhada pelo psiquiatra Eugen Bleuler. Sua consolidação era resultado de um
desconforto da chamada Escola de Zurique com a estratégia de Kraepelin,
psiquiatra responsável pela mais influente nosografia psiquiátrica do final do
século XIX e começo do século XX, de elevar a demência precoce à condição de
estrutura fundamental para a compreensão das psicoses. A demência precoce,
como veremos no decorrer do curso, vinculava a compreensão da doença mental
a uma forma de degenerescência, o que submetia o horizonte de normalidade às
coordenadas próprias a uma síntese evolutiva. Dentro desta perspectiva, a
psicose fazia o caminho inverso do processo de maturação individual.
Contra tal forma claramente evolutiva de compreensão da doença mental,
Bleuler construía uma categoria que se definia funcionalmente a partir da noção
de dissociação (Spaultung). Em seu Lehrbuch der Psychatrie, organizado por seu
filho Manfred Bleuler, encontraremos definições da esquizofrenia como
vinculada a um distúrbio elementar de “unidade deficiente, de fragmentação e
dissociação do pensamento, do sentimento e do querer, assim como do
sentimento subjetivo de personalidade”7. Desta forma, a esquizofrenia indicava a
falta de unidade e ordem de todos os processos psíquicos, o que necessariamente
nos levava a: “uma imagem do mundo construída pela própria essência
contraditória e pelos próprios desejos e medos contraditórios”8 do paciente. Esta
estrutura contraditória da vida psíquica que se expressava na afetividade, no

6
Idem, p. 101
7
BLEULER, Eugen; Lehrbuch der Psychiatrie, p. 407
8
Idem, p. 408
pensamento e na identidade pessoal era a expressão maior da quebra da
normatividade definidora do comportamento normal, assim como o
enfraquecimento da capacidade de síntese do Eu.
Neste sentido, é importante perceber como tal estrutura contraditória
marcava, na maioria dos casos, a presença da perda do unidade funcional da
pessoa e suas expectativas de autonomia. Em 1919, o psicanalista Victor Tausk
chegava a comparar a esquizofrenia à presença de uma “máquina de influenciar”
(Beeinflussungsapparate), como se o sujeito fosse guiado em suas ações e
emoções por uma máquina dissociada do Eu e capaz de produzir imposição de
pensamentos, sugestão, sensações que expressam a presença de uma profunda
alteridade no sujeito. Mais ou menos na mesma época, psiquiatras como Gaetan
de Clerambaud insistiam de associar a esquizofrenia a um “automatismo
mental”, sublinhando mais uma vez a dissociação no interior da unidade sintética
do Eu9.
Notemos, por outro lado, como se tratava aqui de uma escolha clara na
reconfiguração do quadro das psicoses, pois ela abria o campo para a
secundarização paulatina de outras categorias ligadas à psicose, como a
paranoia, que acabarão por serem dissolvidas com o passar do tempo. De fato, a
definição funcional fornecida pela esquizofrenia permitia uma distinção clara e
operacional entre normal e patológico. Ela passava pela distinção, fundadora da
psiquiatria moderna, entre autonomia e alienação. Ou seja, se quisermos
entender com a esquizofrenia se constitui, teremos que ter em vista a circulação
de valores sociais e morais ligados à autonomia, à unidade, ao controle e à
coerência da conduta.
Esta distinção clara era algo que, por exemplo, a categoria de paranoia e
seu uso extensivo no interior da psicanálise não permitia. Correntes posteriores,
como a psiquiatria fenomenológica de Binswanger e Minkowski, fortaleciam a
natureza normativa da esquizofrenia ao ver: “o transtorno inicial da
esquizofrenia não em um enfraquecimento das associações mentais [como
muitos admitiam], mas em um perda de contato vital com a realidade”10. Esta
ausência de contato vital, forma de se servir de conceitos advindos da filosofia de
Henri Bergson, seria expressa na ausência da intuição de medidas e limites, de
um certo fluxo de processos e reações, o que faria a vida do esquizoide: “uma
linha quebrada, irregular, em zigue-zague, cheia de ângulos pontiagudos, linha
que cansa o olho muitas vezes, mas que marca no espaço uma direção bem
precisa”11.
Tal clareza de distinção era muito diferente, por exemplo, da estratégia
psicanalítica de aproximar o desenvolvimento da paranoia dos processos de
constituição do Eu. Neste sentido, lembremos como Freud acreditava que a
conduta patológica expunha, de maneira ampliada, o que estava realmente em
jogo no processo de formação das condutas sociais gerais. É desta forma que

9
Já encontrávamos esta compreensão da centralidade do problema da alienação na definição
kraepeliana de demênica precoce: “Creio não estar enganando ao considerar a ausência de distúrbio
primário da vontade na paranoia como estreitamente relacionada com a ausência de delírio de
possessão corporal. A ideia de haver forças estranhas atuando, como o faria a telepatia, no organismo,
nas sensações, nos pensamentos e nos atos voluntários não é, para mim, outra coisa senão a expressão
do mesmo disturbio de vontade que se reconhece em todas as manifestações externas dos dementes
precoces” (KRAEPELIN, Emil;
10
MINKOWSKI, Eugène; La schizophrénie, Payot, p. 31
11
Idem, p. 61
devemos interpretar uma metáfora maior de Freud: “Se atiramos ao chão um
cristal, ele se parte, mas não arbitrariamente. Ele se parte, segundo suas linhas
de clivagem, em pedaços cujos limites, embora fossem invisíveis, estavam
determinados pela estrutura do cristal”12. O patológico é este cristal partido que,
graças à sua quebra, fornece a inteligibilidade do comportamento definido como
normal. Neste sentido, a paranoia aparecia como a patologia que permitia a
ampliação dos processos normais de constituição do Eu a partir de
identificações. Uma aproximação entre patologia e gênese do Eu que ganhará
consequências maiores com o desdobramento da psicanálise, principalmente
através de Jacques Lacan. Neste sentido, vemos como a definição a respeito do
eixo de compreensão das psicoses determina, necessariamente, o modo de
relação aceita entre normal e patológico. Ë a identificação de tais modos que
teremos em mente em nossa discussões sobre a genealogia da esquizofrenia.
Tendo em vista esta genealogia da esquizofrenia, o curso irá se estruturar
da forma que se segue. A primeira aula será dedicada ao debate epistemológico a
respeito das categorias clínicas como espécies naturais. A partir daí utilizaremos
a reconstrução proposta por Foucault em A história da loucura para dar conta do
processo de transformação da experiência da loucura em doença mental até o
momento em que um setor fundamental da doença mental será definida por Emil
Kraepelin como demência precoce.
A partir daí, discutiremos a polaridade entre a psiquiatria de Emil
Kraepelin e a proposta da Escola de Zurique. Ou seja, veremos a natureza do
embate entre demência precoce e esquizofrenia, suas distinções e a modificação
do próprio conceito de doença mental que o advento da esquizofrenia implicou.
Em seguida, discutiremos a teoria psicanalítica das psicoses, centrada na
paranoia como paradigma central, principalmente tendo em vista os trabalhos de
Freud e Lacan, contrapondo-a com a compreensão da esquizofrenia no interior
da psiquiatria fenomenológica de Binswanger e Minkoviski, que se desenvolve
mais ou menos à mesma época. Depois, veremos o movimento de crítica à
esquizofrenia levado à cabo pela anti-psiquiatria, assim como trabalhos com a
esquizofrenia dentro das práticas de análise institucional, como os que podemos
encontrar em Félix Guattari e suas teorias, juntamente com Gilles Deleuze, de
relação entre esquizofrenia e modos de socialização no interior do capitalismo.
Por fim, estudaremos o processo de consolidação da hegemonia crescente da
esquizofrenia a partir do DSM III até os dias de hoje.

12
FREUD, Sigmund; Gesammelte Werke, v. XV, Frankfurt: Fischer, 1999, p. 64
Uma genealogia das psicoses
Aula 2

Comecemos pois nosso curso com uma discussão epistemológica relacionada à


natureza das categorias clínicas. Esta discussão será importante para
compreendermos o sentido em reconstituir as modificações classificatórias no
campo das psicoses, desde o final do século XIX até hoje. Pois tal reconstituição
seria apenas um exercício historiográfico destinado a explicar como vamos,
paulatinamente, individualizando de forma mais precisa nossas categorias
destinada a definir os padrões de patologias mentais? Ou seria ela uma estratégia
importante para entendermos como sistemas de valores exteriores à clínica
influenciam a configuração do saber médico e as formas de sofrimento? Creio
que uma boa maneira de encaminhar nossa discussão consiste em se perguntar
se categorias clínicas ligadas ao sofrimento psíquico são ou não espécies
naturais.

Realismo a respeito de categorias clínicas

Podemos começar por descrever o que seria uma perspectiva realista sobre
categorias clínicas. Partamos da definição operacional de que o realismo baseia-
se em dois princípios fundamentais: acessibilidade epistêmica e autonomia
metafísica.
Acessibilidade epistêmica significa afirmar que não há nenhum limite de
direito ao saber. Posso ter limitações técnicas que me impedem atualmente de
saber quais os circuitos neuronais específicos do transtorno de personalidade
borderline, mas tais limitações técnicas não são limitações ontológicas. Não há
nenhuma limitação de direito, apenas limitações de fato.
Autonomia metafísica significa que o mundo não é uma entidade
dependente da maneira com que eu o descrevo. Não é o mundo que se constitui a
partir de meus modos de descrição. É meu modo de descrição que
paulatinamente se ajusta ao mundo tal como ele é. Alguns autores chegam a usar
a metáfora do conceito que “pega o mundo pelas juntas” a fim de insistir como a
bases naturais forneceriam os princípios de individuação daquilo que nossas
teorias devem descrever. Autonomia metafísica significa ainda que o fato de eu
chamar “estrela” um conjunto de objetos do mundo vem do fato destes objetos
terem características comuns, eles tem propriedades intrínsecas fixas e
partilhadas que os definem como naturalmente pertencendo a uma mesma
família.
Este realismo é o pressuposto de visões clínicas para as quais o
desenvolvimento de nossas categorias clínicas segue a lógica da descoberta e do
aprimoramento progressivo, que a história de nossas categorias segue um ritmo
semelhante aquele que encontraríamos no desenvolvimento de categorias
utilizadas para a descrição do mundo físico. Lembremos, por exemplo, da leitura
realista da modificação de categorias químicas através da passagem do flogisto
ao oxigênio. No século XVIII, acreditava-se que os corpos combustíveis
possuiriam uma matéria chamada flogisto, liberada ao ar durante os processos
de combustão (material orgânico) ou de calcinação (metais). No final do século
XVIII, Lavoisier foi capaz de mostrar que não existia algo como flogisto, pois os
processos de combustão e calcinação não eram provocados pela liberação de um
elemento dos metais e materiais orgânicos, mas pela combustão de um elemento
que representa 20% do ar, a saber, o oxigênio. Ou seja, a passagem de uma
categoria a outra teria sido feita a partir da aproximação entre nossas teorias e a
configuração exata de espécies naturais.
Neste sentido, a esquizofrenia e a depressão, por exemplo, seriam
individualizadas a partir de sua estrutura de doenças orgânicas. Não haveria algo
como doenças mentais, apenas doenças orgânicas que teriam consequências
mentais. Por exemplo, a depressão seria, na verdade, apenas o nome que damos
para a alteração química no nível dos neurotransmissores envolvendo,
principalmente, a serotonina, a noradrenalina e, em menor grau, a dopamina.
Todas as formas de depressão que conhecemos, como Transtorno disruptivo de
desregulação de humor, o Transtornos depressivos maiores, a distimia, o
Transtorno disfórico pré-menstrual, os Transtornos depressivos induzidos por
medicamentos e outras substâncias, os Transtornos depressivos não-
especificados, teriam em comum um mesmo conjunto de traços distintivos.
Teríamos marcadores biológicos, que determinam a base causal comum dos
transtornos e que permitiriam a aproximação ontológica entre sistemas de
classificação psiquiátrico e espécies biológicas.
Aqui começa, de fato, nossas questões. Pois mesmo admitindo o realismo
de nossas categorias utilizadas para a descrição do mundo físico (o que não é
uma proposição desprovida de controvérsia), poderíamos dizer que ele serve de
paradigma para a descrição do mundo humano, em especial quando estamos
diante das distinções entre saúde e doença?
Esta questão ganha importância por nossa definição de saúde e doença
mental sofrerem continuamente profundas mutações. Vemos, normalmente, essa
continua mutação dos padrões de definição da doença mental como a
consequência natural do aprofundamento do conhecimento sobre estruturas
neuronais e modelos de intervenção medicamentosa.
Talvez exista um realismo ingênuo nessa descrição. Por exemplo, o
abandono da neurose histérica como categoria e sua subdivisão em entidades co-
mo “transtornos somatoformes” e “transtorno de personalidade histriônica” não
é apenas resultado da compreensão da histeria como inadequada por
pretensamente colocar em relação problemas que deveriam ser analisados de
maneira separada e, com isto, criar estruturas inexistentes de relações (entre,
por exemplo, problemas somáticos e sexualidade, comportamento teatralizado e
conflitos familiares). O abandono deu-se devido, entre outras coisas, a uma
mutação do que estamos dispostos a contar por saúde. Esta mutação não é
independente das mutações em um conjunto mais amplo de valores sociais. Pois
podemos, por exemplo, definir a constituição de categorias de patologias não
pela partilha de traços biológicos característicos, mas pela mesma disfunção
pragmática ocasionada13. Neste sentido, mais do que uma espécie natural, a
doença aparece como a descrição de uma limitação de ação. Kurt Goldstein tem
um definição precisa desta perspectiva ao afirmar que estar doente é “não estar
em estado de atualizar a capacidade de rendimento que lhe pertence

13
« Numerosas pesquisas e trabalhos experimentais descobriram que a aceitação de explicações
biogenéticas de transtornos mentais tendem a estar associada ao desejo social de tomar distância de
pessoas portadoras de tais transtornos” (HASLAM, Nick; Natural Kinds in psychiatry, p. )
essencialmente”14. A doença não é resultado de uma coerção externa, mas de
uma impossibilidade interna ao organismo de atualizar seus possíveis,
obrigando-se assim a “viver em contrariedade”. O que não a coloca mais em
relação ao mundo natural, mas ao sistema social de expectativas de agência.
Neste sentido, contrariamente a uma noção de doença determinada a
partir da possibilidade de localização orgânica, temos um conceito de doença,
herdado da medicina grega, marcado por um certo dinamismo relacional que
insiste no aspecto determinante das relações entre organismo e meio ambiente.
Como dirá o filósofo da ciência Georges Canguilhem: a natureza, (physis) tanto no
homem como fora dele, é harmonia e equilíbrio. A perturbação desse equilíbrio,
dessa harmonia, é a doença. Nesse caso, a doença não está em alguma parte no
homem. Está em todo o homem e é toda dele.
A doença aparece assim como um acontecimento que diz respeito ao
organismo vivo encarado na sua totalidade. Quando classificamos como
patológico um sistema ou um mecanismo funcional isolado, esquecemos que
aquilo que os torna patológicos é a relação de inserção na totalidade indivisível
de um comportamento individual. Canguilhem chega mesmo a afirmar que ser
doente é, para o homem, viver uma vida diferente. Notemos ainda que tal
estratégia de vincular o normal a partir de uma relação normativa de
ajustamento ao meio implica afirmar que não há fato algum que seja normal ou
patológico em si. Eles são normais e patológicos no interior de uma relação entre
organismo e meio-ambiente. Mas é neste ponto que algumas questões devem ser
complexificadas. Pois devemos levar ao extremo a compreensão de que o meio-
ambiente vital do ser humano não é um meio natural bruto, mas um meio social,
construído através de valores reguladores que internalizamos e que guiam a
maneira com que estruturamos o sentido e a orientação das relações a si, assim
como das relações ao corpo.
Tais valores são fundamentais na determinação geral dos padrões de
saúde e dos vetores de orientação dos processos de cura. Mas, se assim for,
temos todo o direito de nos perguntar: como tais valores interferem na
determinação do que é uma doença mental, qual sua estrutura e característica?
Seriam tais valores derivados de valores estéticos (basta pensarmos na natureza
sobredeterminada de termos como “harmonia” e “equilíbrio”), políticos
(pensemos o mesmo para “capacidade de controle e decisão”), entre outros?
Colocar tais questões nos permite tentar recuperar uma articulação perdida nos
últimos 40 anos. Ela diz respeito às articulações entre sofrimento psíquico e
estrutura social de valores, ou seja, como conjuntos de valores sociais nos fazem
sofrer.

Nominalismo dinâmico

É neste contexto que podemos introduzir a discussão sobre a


compreensão das categorias clínicas usadas para descrever o sofrimento
psíquico a partir de uma perspectiva nominalista dinâmica.
Mas o que poderíamos entender por “nominalismo dinâmico” em nosso
contexto? Basicamente, trata-se de insistir no fato de que a maneira com que
classificamos pessoas não é uma mera descrição de categorias que existem na

14
GOLDSTEIN, Kurt; La structure de l’organisme
natureza, mas uma construção que produz pessoas que, a partir de então,
apreenderão reflexivamente tais categorias, produzindo efeitos até então
inexistentes. Como dirá Hacking: “um tipo de pessoa vem à existência ao mesmo
tempo que um tipo é inventado”15. Neste sentido, classificações de sofrimento
psíquico não são “espécies indiferentes”, como são aqueles usadas para
descrever fenômenos do mundo físico, mas “espécies interativas”, ou seja, há
uma interação entre categorias e objetos através da apropriação auto-reflexiva e
da posterior modificação dos objetos.
Boa parte desta discussão nasce do uso que Michel Foucault fez do
conceito de “sexualidade”. Foucault queria mostrar como um certo regime de
organização, de classificação e de descrição da vida sexual foi fundamental para a
constituição dos indivíduos modernos. Não por outra razão, “sexualidade” é
aquilo produzido por um discurso de aspirações científicas, seja vindo
normalmente da psiquiatria, da psicologia ou da medicina. Foucault parece
querer mostrar, com mais detalhes, qual é esta experiência sexual própria aos
indivíduos que encontram no discurso da ciência seus padrões de normalidade e
de patologia. Isso quer dizer: ter uma sexualidade é algo fundamental para que
eu possa ser visto como um indivíduo normal, um indivíduo normalizado.
Notem uma inflexão importante. Não se trata de afirmar que pelas vias da
sexualidade nós poderíamos descobrir uma história, um corpo e uma identidade.
Trata-se de dizer algo mais forte, a saber, que constituiríamos um corpo, uma
história e uma identidade. Compreender-se como sujeito de uma sexualidade
equivaleria a uma construção que não seria simplesmente fruto de, digamos, um
projeto individual, mas da internalização das categorias do discurso de uma
ciência. Uma ciência que não apenas descreve, mas que também, e
principalmente, produz. Uma ciência que, de forma muito peculiar, produz seus
objetos: “O que acabamos por chamar de ‘sexualidade’ é o produto de um
sistema do conhecimento psiquiátrico que tem seu estilo muito particular de
raciocínio e argumentação”16. Ou seja, assim o problema da sexualidade não se
encontra na identificação de uma espécie de libido natural que deve se fazer
sentir. O problema da sexualidade se transforma na descrição de modos de
produção de corpos, histórias e identidades a partir das categorias de um
discurso social fortemente normativo como a ciência.
O que isto significa de maneira concreta? Tomemos como exemplo a
invenção da homossexualidade como categoria clínica. Um fato que ocorre
apenas em meados do século XIX com o estabelecimento do quadro das
perversões através destes grandes tratados psiquiátricos como o
Psychopatologia sexualis, de Krafft-Ebbing. De certa forma, nós podemos dizer
que não era possível ser homossexual antes de meados do século XIX. Nós
podemos mesmo dizer que não havia homossexuais antes de meados do século
XIX. Claro que práticas homossexuais existiram antes e sempre existirão, mas
não a concepção, tão evidente para nós, de que elas, por si só, definem uma
identidade social em toda sua extensão, fazendo com que o conjunto dos atos, de
modos de percepção sejam atos de um homossexual, modo de perceber de um
homossexual. Por exemplo, havia práticas homossexuais na Grécia antiga, mas
elas não eram uma questão em si, não estávamos em um mundo no qual

15
HACKING, Ian; Historical ontology, p. 106
16
DAVIDSON, Arnold; The emergence of sexuality, Harvard University Press, p. 32
classificava-se o comportamento de alguém a partir de suas preferências por
pessoas do mesmo sexo ou do sexo oposto. A verdadeira questão definidora na
Grécia era se alguém desempenhava ou não o papel de um agente passivo, se
alguém era ou não capaz de ser senhor de seus desejos. Daí porque alguém como
Foucault dirá:

O que opunha um homem com temperança e senhor de si mesmo a outro


que se consagrava aos prazeres era, do ponto de vista moral, muito mais
importante do que aquilo que, entre eles, distinguia as categorias de
prazeres aos quais se poderia abandonar voluntariamente17.

Isto significa que, em última instância, a homossexualidade como


identidade é uma invenção que só aparecerá no século XIX. Ela é uma construção
produzida por uma forma de circulação do discurso psiquiátrico e médico que
tem na ideia de “sexualidade” seu dispositivo principal.
A produção de tal identidade implica modificação do campo de
possibilidade de uma pessoa individualizada. Lembremos como: “quem nós
somos não é apenas o que fizemos, fazemos e queremos fazer, mas também o
que poderíamos ter feito e o que podemos fazer”18. De certa forma, o que coisas
fazem não dependem da maneira como as nomeamos, ou dependem apenas de
maneira indireta, enquanto o que pessoas fazem dependem profundamente da
maneira como determinamos descrições. Assim: “quando novos modos de
descrição vem à existência, novas possibilidade de ação vem consequentemente
à existência”. O que não significa apenas modificações em um futuro possível,
mas também um “efeito de looping” que modifica fenômenos passados, assim
como a compreensão presente de tais fenômenos.
Isto vale seguramente para o universo das doenças mentais. Pois estar
doente é, a princípio, assumir uma identidade com forte força performativa. A
doença mental é uma identidade social. Ao compreender-se como “neurótico”,
“depressivo” ou portador de “transtorno de personalidade borderline”, o sujeito
nomeia a si através de um ato de fala capaz de produzir performativamente
efeitos novos, de ampliar impossibilidades e restrições. Uma patologia mental
não descreve uma espécie natural como talvez seja o caso de uma doença
orgânica como câncer ou mal de Parkinson. Como nos lembram Ian Hacking, ela
cria performativamente uma nova situação na qual sujeitos se veem inseridos.

A constituição do olhar clínico

Aceitando tal perspectiva, devemos então colocar questões a respeito da


maneira com que tais categorias são criadas. Em que condições elas se
estabilizam? Por que há certas categorias que conseguem permanecer, enquanto
outras são criadas e desaparecem rapidamente? Por exemplo, o fetichismo é uma
categorias fundamentais das atuais parafilias (perversão) desde que a perversão
se constitui como categoria clínica no século XIX. Ela continua no nosso quadro
classificatório até hoje. Outras, como os transtornos de personalidade múltipla,
tiveram vida curta. O que esta distinção de velocidade representa? Devemos

17
FOUCAULT, Michel; Histoire de la sexualité – II, Paris: Gallimard, 1984, p. 244
18
HACKING, Ian; idem, p. 107
dizer que a criação de categorias clínicas obedece uma certa arbitrariedade ou há
fatores externos ao universo clínico que influenciam a permanência e o
desaparecimento de certas categorias?
É certo que muitas delas são criadas a partir do que é evidente para o
olhar clínico. O psiquiatra é capaz de enxergar imediatamente distúrbios na fala,
no julgamento, na percepção, na motricidade. Mas a boa questão aqui é: como o
olhar clínico se constituiu e se constitui? Vale aqui o que dizia Foucault a respeito
do olhar médico:

Desde o século XVIII, a medicina tem tendência a narrar sua própria


história como se o leito dos doentes tivesse sido sempre um lugar de
experiências constante e estável, em oposição às teorias e sistemas que
teriam estado em permanente mudança e mascarado, sob sua
especulação, a pureza da evidência clínica”. Na verdade, tudo se passaria
como se : “Na aurora da Humanidade, antes de toda crença vã, antes de
todo sistema, a medicina residia em uma relação imediata do sofrimento
com aquilo que alivia19.

Tal pressuposição de imediaticidade, no entanto, esquece como “o que nos faz


sofrer” muda constantemente de configuração. Poderíamos tentar dizer que a
experiência da dor é algo que ancora o sofrimento em um solo inquestionável e
indiferente a contextos. Mas, novamente, não seria difícil lembrar como não há
nenhuma relação imediata entre a dor física e o desprazer de um sofrimento
vivenciado como doença que leva sujeitos a se submeterem à clínica. Basta
lembrar aqui das palavras de um “psicólogo”, Nietzsche:

Só a grande dor, esta longa e lenta dor na qual queimamos como madeira
verde nos obriga, a nós filósofos, a descer em nossas profundezas e a nos
desfazer de toda confiança (...) Duvido que tal dor nos deixe melhor, mas
eu sei que ela nos aprofunda20

Ou seja, há uma gênese do olhar clínico em relação à identificação da doença, há


uma dependência deste olhar em relação a um conjunto de fatores que não se
reduzem simplesmente ao discurso de sofrimento do paciente. Lembrem na
verdade, como a medicina nasce de uma suspensão parcial do discurso de
sofrimento do paciente. Por exemplo, Xavier Bichat, um dos país da medicina
moderna, recomendava àqueles que se adentravam na clínica médica:

Durante vinte anos, você terão tomado nota sobre afecções do coração,
dos pulmões das vísceras gástricas, de manhã e de noite, diante do leito
do doente. Tudo será para vocês apenas confusão a respeito de sintomas
que, não se relacionando a nada, vos oferecerão apenas fenômenos
incoerentes. Abram alguns cadáveres: vocês verão rapidamente
desaparecer a obscuridade que apenas a observação poderia dissipar21.

19
FOUCAULT, O nascimento da clínica, pp. 59-60
20
NIETZSCHE, A gaia ciência - introdução
21
BICHAT, Anatomie générale, p. XCIX
Tal recomendação era clara em seus pressupostos. A escuta do relato da doença
pelo médico contribui em muito pouco para o saber clínico. A fala do doente não
é fiável, é insegura e movediça, não porta objetividade alguma. O médico pode
ouvi-la, mas apenas para tentar acalmar o paciente, ou seja, sua escuta tem um
efeito terapêutico que em nada contribui para a compreensão da verdadeira
doença. Na verdade, o saber clínico é um saber de objetos que podem ser
descritos sempre na terceira pessoa. A compreensão do sofrimento orgânico
pede uma submissão da clínica à fisiologia. Por isto, Bichat pode comparar seu
objeto a um cadáver, a uma coisa na qual eu não me reconheço. O corpo
fisiológico é um corpo como coisa.
Genealogia das psicoses
Aula 3

Na aula de hoje, gostaria de começar nossa análise do processo de formação das


categorias ligadas ao campo das psicoses. Gostaria de iniciar nosso trajeto
partindo de algumas considerações de Michel Foucault a respeito do sentido do
processo de transformação da experiência da loucura em doença mental, objeto
de um discurso médico que conhecemos por psiquiatria. Este quadro geral
poderá nos auxiliar no interior da reconstrução do processo histórico de
mutação das psicoses. Ele fornecerá eixos de discussão a respeito dos sistemas
sociais de valores mobilizados para a construção do horizonte de definição da
doença mental, com sua distinção necessária entre normalidade e patologia.

A loucura na Idade Clássica

Grosso modo, podemos dizer que a tese central de Foucault encontra-se


na defesa da transformação da loucura em doença mental que deve ser tratada
em instituições asilares e através de práticas específicas em relação a outras
formas de doenças orgânicas ocorrer em um momento histórico bastante
específico: o final do século XVIII e o início do século XIX. Momento histórico que
Foucault compreende como sendo marcado pelo advento da modernidade. Neste
sentido, não é incorreto afirmar que, para Foucault, a redução da loucura à sua
condição de doença mental é um sintoma moderno por excelência.
No entanto, ao iniciar o livro no qual explicita pela primeira vez tal tese,
Foucault não começa com a modernidade. Lembremos, o título é, ao contrário:
Histórica da loucura na idade clássica, esta idade que seria própria aos séculos
XVII e XVIII. Este recuo é claramente compreensível. Trata-se, para Foucault, de
se perguntar sobre as condições de possibilidade, condições historicamente
determinadas, para o advento desta noção clínica de loucura que marcará as
sociedades ocidentais a partir do início do século XIX.
Foucault tem um ponto de partida, uma data definida: 1657. Nesta data,
Luis XIII edita um decreto criando, em Paris, os Hospitais Gerais. A princípio, isto
não parece mais do que uma reforma administrativa visando abrigar, sob uma
única administração, vários estabelecimentos de caridade e médicos já
existentes. Sua função será de acolher aqueles que ali se apresentam, seja por
vontade própria, seja sob ordem jurídica de internação. Nesta população de
internos, encontramos pobres, desempregados, mas também aqueles que são
enviados pelo poder público: loucos, libertinos, acometidos de doenças venéreas.
Rapidamente, a figura institucional do Hospital geral se espalha por toda a
Europa, normalmente utilizando as estruturas de antigos leprosários
desativados depois do desaparecimento da epidemia. Por trás desta simples
medida administrativa, Foucault percebe a figura jurídica maior de modificações
profundas na partilha entre razão e loucura própria ao advento da idade clássica.
Para tanto, ele chega a falar em “grande internamento” como categoria descritiva
de uma nova relação entre razão e loucura. Relação marcada pela separação
ontológica de duas realidades agora excludentes.
Foucault pode então partir para a análise do que estava em jogo na união
peculiar, no interior da realidade do internamento, entre classes aparentemente
tão autônomas de sujeitos como: loucos, desempregados e libertinos. De fato, ele
aponta para a determinação de uma experiência que unifica, no interior da
mentalidade clássica, as realidades da libertinagem, do “ócio” e da loucura. Tal
experiência unificadora está fundamentalmente vinculada ao advento de uma
nova ética do trabalho derivada do impacto da reforma protestante. É isto que
Foucault terá em mente ao afirmar, a respeito do grande internamento:

Organiza-se em uma unidade complexa uma nova sensibilidade à miséria


e aos deveres da assistência, deveres das novas formas de reação diante
dos problemas econômicos do desemprego e do ócio, uma nova ética do
trabalho, assim como o sonho de uma cidade na qual a obrigação moral se
uniria à lei civil sob as formas autoritárias do constrangimento
(contrainte). De maneira obscura, tais temas estão presentes na
construção das cidades de internamento e de sua organização22.

Foucault começa lembrando como, devido à reforma, a Renascença desproveu a


miséria de sua positividade mística que ainda estava presente no medievo. Para
Calvino, por exemplo, o miserável é, ao mesmo tempo, um efeito da desordem e
um obstáculo á ordem do mundo burguês do trabalho. A pobreza é, em última
instância, resultado do enfraquecimento da disciplina e dos costumes.
Sendo o trabalho a ação resultante de um chamado moral no qual o
sujeito reconhece a labuta como resultado da queda, trabalho fundamentalmente
ascético, ligado à “sensação irracional de haver cumprido devidamente a sua
tarefa”23, a miséria, enquanto inaptidão para o trabalho, só pode ser uma falta
moral. O ócio é revolta. Foucault chega a afirmar que o trabalho aparece
vinculado a uma “transcendência ética” que lembra nossa condição de expulso
do paraíso. A pobreza insubmissa, vinculada ao ócio deve ser punida através da
aceitação forçada das exigências do mundo do trabalho. Desta forma, a
internação dos miseráveis e desempregado era uma medida que tratava o
interno como “sujeito moral”. Maneira astuta de lembrar como, na idade clássica,
a medicina era claramente uma questão de moral: o que nos explicaria, entre
outras coisas, o parentesco entre desrazão e culpabilidade que ainda se
apresentaria em nossos dias. Pois o vínculo entre medicina e moral é tão velho
quanto a antiguidade grega, mas o que é novo aqui é a forma de utilizar tal
vínculo para compreender a cura a partir de dispositivos de repressão e de
obrigação. É tendo em vista tal vínculo entre moralização e internamento que
Foucault poderá afirmar:

A partir da idade clássica e pela primeira vez, a loucura é percebida


através de uma condenação ética do ócio [de uma incapacidade ao
trabalho, de uma impossibilidade se integrar ao grupo] e em uma
imanência social garantida pela comunidade do trabalho24.

Desta forma, Foucault pode colocar uma questão central: em que o


estabelecimento de um campo empírico do saber com suas práticas e incidências
sociais é devedor de uma reflexão de ordem moral? Em que o fundamento da

22
FOUCAULT, Histoire de la folie, p. 80
23
WEBER, A ética protestante e o espírito do capitalismo, p. 56
24
idem, p. 102
ciência, em especial desta ciência que chamamos atualmente psicologia e
psiquiatria é devedor de uma moral que aparece como fundamento para os
modos de reprodução de formas hegemônicas de vida?

O que é a internação na Idade Clássica?

Dito isto, Foucault tem em mãos os elementos para expor qual o sentido
das práticas de internação na Idade Clássica. Sua ideia fundamental consiste em
defender que a internação não podia ser compreendida como uma prática
médica, até porque: “no século XVII, a loucura transformou-se em questão de
sensibilidade social, aproximando-se desta forma do crime, da desordem, do
escândalo”25. Não é por outra razão que a experiência clássica da loucura funda-
se na constituição de uma unidade indecisa entre uma análise filosófica das
faculdades e uma análise jurídica da imputabilidade. É a experiência jurídica da
alienação que irá aos poucos configurar a sensibilidade médica, isto até que a
alienação jurídica do sujeito do direito possa coincidir com a loucura do homem
social. Não é por outra razão que a decisão da internação era, normalmente,
resultado de uma decisão jurídica, e não médica. Foucault é claro a respeito desta
premência da experiência jurídica:

Sob a pressão dos conceitos do direito, e na necessidade de apreender de


maneira precisa a personalidade jurídica, a análise da alienação não cessa
de afinar-se e parecer antecipar as teorias médicas que a seguem de longe.

Neste contexto, a internação é uma prática que se justifica sobretudo pela


percepção social, pela impossibilidade de convívio social sem risco de escândalo
para as unidades sociais fundamentais, como a família e o mundo do trabalho.
Assim, a internação tem uma primeira dimensão ligada ao castigo. Mas,
juntamente com esta dimensão vinculada à percepção social, a loucura também é
doença que deve ser curada. Devemos então colocar a questão: que forma de
doença é, neste momento, a loucura?
Há duas coisas que podemos dizer a este respeito. Primeiro, para o
classicismo, a loucura é o homem em relação imediata com sua animalidade, sem
outra referência ou ponto de apoio. E quando se está diante de um animal, os
únicos recursos possíveis são o adestramento e uma certa redução do sujeito à
condição de besta. Daí, por exemplo, a posterior infantilização do louco e a
consequente determinação da loucura como regressão. Neste sentido,
lembremos que a criança será, juntamente com o animal, outra figura clássica da
ausência de razão A loucura é infância e tudo será organizado para que, desta
forma, o louco seja objeto de uma experiência de minoridade. O que permite a
Foucault afirmar que, em meados do século XIX: “começa a ser formulada a ideia
de que, primeiro, o louco é como uma criança, depois, que o louco deve ser posto
num meio análogo à família; e, enfim, que esses elementos quase familiares
possuem em si um valor terapêutico”26.
A questão fundamental nesta infantilização é: para que a conduta infantil
seja um refúgio para o doente, para que a regressão à infância se manifeste como

25
FOUCAULT, idem, p. 170
26
FOUCAULT, Michel; O poder psiquiátrico, p. 135
figura da neurose e a psicose, faz-se necessário que a sociedade instaure uma
barreira intransponível entre o passado e o presente, entificando uma
linearidade do tempo que é figura de uma certa noção de progresso. Da mesma
forma, para que o delírio religioso seja estrutura privilegiada da paranoia com
seus delírios de grandeza e fim do mundo, faz-se necessário que a laicização da
cultura aproxime a religião de um delírio sistematizado. Foucault descreve
claramente como ele compreende as relações entre loucura e retorno a uma
certa animalidade:

Na Idade Média, antes do início do movimento franciscano e, sem dúvida,


muito tempo após e apesar dele, a relação do ser humano à animalidade
consistiu nesta relação imaginária do homem às potências do mal. Na
nossa época, o homem reflete sobre tal relação sob a forma de uma
positividade natural; ao mesmo tempo hierarquia, ordenamento e
evolução. Mas a passagem do primeiro tipo de relação ao segundo tipo
ocorreu justamente na Idade Clássica, quando a animalidade foi percebida
ainda como negatividade, mas natural: quer dizer, no momento em que o
homem experimentou sua relação á animalidade apenas no perigo
absoluto de uma loucura que abole a natureza do homem em uma
indiferenciação natural27.

O outro ponto a lembrar é que, para o classicismo, não há psicologia, ou


antes, não algo como uma autonomia do fato psicológico em sua estrutura de
determinação causal, não há uma causalidade psíquica. Foucault chegará mesmo
a afirmar que a distinção cartesiana entre res extensa e res cogitans não guiava o
horizonte das práticas médicas. Neste sentido, não há possibilidade alguma de
compreender, durante todo período clássica, a loucura como um fato psicológico.
Este é um dado fundamental pois permite a Foucault afirmar que, sendo o
clacissismo, um momento marcado pela ausência da psicologia e da psiquiatria,
já que não há simplesmente um objeto que possa ser descrito como “fato
psicológico”, então um dos problemas centrais será de ordem epistemológica.
Trata-se de se perguntar em que condições um objeto de uma determinada
ciência empírica pode constituir-se, o que deve ocorrer ao ser humano e o que
deve ocorrer à loucura para que eles sejam objetos de uma empiricidade como a
psicologia e a psiquiatria.
A fim de sustentar sua tese segundo a qual não há, para a consciência do
classicismo, algo como uma psicologia, Foucault procura descrever o “monismo”
pressuposto pelo sentido de várias práticas médicas de intervenção à época. Um
monismo que demonstra como certa fisiologia aparece como base explicativa de
todos os processos de intervenção. Foucault parte afirmando ser possível
sistematizar, neste momento, as práticas de intervenção clínica em quatro
grandes grupos: a consolidação, a purificação, a imersão e a regulação do
movimento.
Por exemplo, no caso da consolidação, parte-se da crença de que, se
encontramos nas doenças dos nervos tantos espasmos e convulsões é porque as
fibras são muito móveis, ou muito irritáveis, ou muito sensíveis à vibrações. Quer
dizer, falta-lhes robustez, isto no sentido mais material que podemos dar a tal

27
FOUCAULT, Histoire de la folie, pp. 201-202
diagnóstico. Neste sentido, nada melhor do que o uso deste elemento que é, ao
mesmo tempo, o mais sólido, o mais resistente e o mais dócil e flexível à
habilidade humana: o ferro. A absorção direta de linhaça de ferro é recomendada
tendo em vista uma certa forma de comunicação possível, no interior do corpo,
entre as qualidades dos elementos.
Já a purificação aparece como remédio para uma noção de doença dos
nervos vinculada a maus humores que corrompem as vísceras, o cérebro e o
sangue. Transfusões sanguíneas, produção de sangramentos, ingestão de sabão,
aplicação de vinagre são apenas algumas das técnicas usadas nestes casos.
A imersão e as doses sequenciais de ducha fria são resultantes de um
duplo tema: de um lado, os ritos de purificação e de renascimento, de outro, a
impregnação que modifica as qualidades essenciais dos líquidos e sólidos do
corpo. Lembremos ainda como a água fria pode combater o aquecimento e a
secura das fibras nervosas que resultam na mania e o frenesi.
Por fim, a necessidade de regulação do movimento, necessidade que
sustenta práticas de intervenção médica como a viagem, os exercícios físicos
regulares, a roda, o uso medo enquanto afeto que produz a fixação da atenção,
será descrita por Foucault nos seguintes termos:

Se é verdade que a loucura é agitação irregular dos espíritos, movimento


desordenado das fibras e ideias – ela também é entupimento do corpo e
da alma, estagnação dos humores, imobilização das fibras e sua rigidez,
fixação das ideias e da atenção em um tema que, pouco a pouco, prevalece
sobre os demais. Trata-se então de dar ao espírito e aos espíritos, ao
corpo e à alma, a mobilidade que lhes faz vivos28.

Nestes exemplos, vemos claramente como nenhum sintoma da loucura é


compreendido como causado por fenômenos vinculados principalmente a uma
dimensão para além do corpo. Ao contrário, a intervenção médica orienta-se
completamente por uma fisiologia da doença. Um exemplo privilegiado aqui é a
melancolia, associada desde Hipócrates às desregulações humorais da bile negra,
no baço, e ruptura da isonomia entre os humores (sangue, fleuma, bile amarela,
bile negra). Tal teoria da melancolia continuará praticamente inalterada até o
século XIX. Daí porque as práticas terapêuticas estarão normalmente associadas
à purgação e às chamadas revulsões.
Exemplos desta natureza nos demonstram como não é possível ainda
falar, por exemplo, em distinções entre distúrbio funcional e lesão orgânica.
Quando a experiência da loucura receber enfim seu estatuto de doença mental,
ou seja, seu estatuto claramente psicológico que a transformará em objeto de
intervenções psicológicas, estas técnicas continuarão sendo usadas, mas com um
sentido totalmente diferente, muito mais vinculado ao castigo moral, à
modificação de comportamento do que à recomposição das disposições
corporais. O patológico será assim paulatinamente decalcado do imoral.

O nascimento do fato psicológico

28
idem, p. 402
Não é possível, com todo o rigor, utilizar, enquanto distinção válida na
idade clássica ou ao menos como distinção provida de significação, a
diferença, para nós imediatamente decifrável, entre medicação física e
medicação psicológica ou moral. A diferença só começará a existir em
toda sua profundidade no dia em que o medo não será mais usado como
método de fixação do movimento, mas como punição; quando a felicidade
não significará mais a dilatação orgânica, mas a recompensa, ou seja,
quando o século XIX, ao inventar os famosos “métodos morais” tiver
introduzido a loucura e sua cura no jogo da culpabilidade. A distinção
entre o físico e o moral só transformou-se em um conceito prático na
medicina do espírito quando a problemática da loucura deslocou-se para
uma interrogação a respeito do sujeito responsável (...) Uma medicina
puramente psicológica só foi possível no dia em que a loucura se
encontrou alienada na culpabilidade29.

Esta longa citação mostra claramente qual o horizonte que guia Foucault
em sua epistemologia das “ciências clínicas da subjetividade”. Há um momento,
bastante preciso, em que nasce um sujeito dotado de funções e disposições
puramente psicológicas, que devem ser tratadas através de técnicas e métodos
psicológicos. E tal processo é indissociável da crença disciplinar de constituição
do sujeito através da internalização de imperativos vinculados a uma certa
moral. É a partir de tal momento que a psiquiatria nascerá e suas categorias
clínicas serão paulatinamente construídas.
De qualquer forma, vale lembrar que este processo de constituição de um
domínio próprio à psicologia e à psiquiatria, permite a resignificação completa
das práticas de internação. Pois é a partir do século XIX que a internação ganha o
sentido não apenas de enclausuramento, mas de medicalização e,
principalmente, de reconstituição moral. Não será por outra razão que, ao final
do século XVIII e início do século XIX, a internação não será mais
sistematicamente aplicada a loucos, libertinos e desempregados, dissolvendo o
conjunto de exclusão que imperou durante, ao menos, dois séculos. Agora,
apenas os loucos serão os sujeitos de uma nova instituição médica: o asilo.
Foucault descreve com detalhes dois casos paradigmáticos na
constituição desta nova mentalidade hospitalar. Tais casos fornecem as datas de
término da Idade clássica e estão fundamentalmente associados aos nomes de
Pinel, na França revolucionária, e do quaker Samuel Tuke, na Inglaterra. Não é
por outra razão que, tanto Tuke quanto Pinel serão vistos a partir daí como
nomes fundadores desta nova empiricidade que será a psiquiatria.
O nome de Samuel Tuke está fundamentalmente associado à criação de
um asilo destinado aos quakers. Situado no meio de uma grande pradaria e
jardim, com janelas sem grades, o asilo era uma casa privada pensada como
resposta a preocupações potencializadas pelo caso de uma membro da seita que,
em 1791, fora internada em um hospital sem poder ter contato com outros
membros e com a assistência moral da seita. Algumas semanas depois, ela morre.
Tuke coloca-se então à frente de um projeto de construção de um asilo no qual o
doente esteja próximo da família e de uma natureza que era vista como “meio
natural” do homem e fator de recuperação da saúde. No asilo de Tuke:

29
FOUCAULT, idem, p. 412
O grupo humano é reconduzido a suas formas mais originárias e puras;
trata-se de recolocar o homem em relações sociais elementares e
absolutamente conforme à origem; o que quer dizer que tais relações
devem ser, ao mesmo tempo, rigorosamente fundadas e rigorosamente
morais. Assim, o doente encontra-se enviado a este ponto no qual a
sociedade acaba de surgir do seio da natureza e no qual ela se realiza em
uma verdade imediata a respeito da qual toda história dos homens
contribuiu posteriormente para embaralhar30.

Note-se aqui que a cura é indissociável de uma certa reconstituição dos


vínculos sociais, ou de um encaminhamento de tais vínculos a sua verdade
essencial. Uma verdade que, como não poderia deixar de ser para um quaker,
está ligada a expectativas mais amplas de reforma moral. Daí porque Foucault
poderá afirmar que Tuke criou um asilo no qual o terror livre da loucura foi
substituído pela angústia fechada da responsabilidade.
Por sua vez, o nome de Pinel está associado à liberação dos loucos
acorrentados em Bicêtre. Foucault faz questão de lembrar da cena que passou à
posteridade. A Assembleia revolucionária envia Couthon para avaliar o pedido
de liberação do acorrentamento de loucos, feito por Pinel. Depois de tentar em
vão conversar com os loucos, Couthon afirma a Pinel: “Ah, cidadão, você é louco
de querer desacorrentar animais como estes”. Pinel teria respondido: “Cidadão,
tenho a convicção de que estes alienados só são intratáveis porque nós os
privamos de liberdade e de ar”. Resposta: “bem, faça o que quiser, mas temo que
você será vítima de sua própria presunção”.
A liberação se dá acompanhada por exortações feitas por Pinel aos loucos.
Ameaças de retorno à condição de acorrentado e punição física são enunciadas
juntamente com profissões de fé de confiança. Ao serem libertos, todos se
“curam”. Mas o que é aqui a cura?

Então as correntes caem; o louco encontra sua liberdade. E, neste


instante, ele reencontra a razão. Ou melhor, não; não é a razão que
reaparece em si mesma e para ela mesma; são espécies sociais totalmente
constituídas, espécies adormecidas há muito sob a loucura e que se
levantam de uma vez, em uma conformidade perfeita àquilo que elas
representam, sem alteração ou careta. Como se o louco, liberado da
animalidade na qual as correntes o deixa, só alcançasse a humanidade no
tipo social31.

Esta é uma afirmação central no nosso contexto. Trata-se de afirmar primeiro


que a cura estará agora vinculada à uma certa recuperação da liberdade racional.
Aqui, fica muito mais claro o sentido desta vinculação entre loucura e alienação.
Digamos que Foucault procura, fundamentalmente, demonstrar como a cura
psiquiátrica estava vinculada à implementação de práticas disciplinares visando
a reconstrução de uma vontade autônoma. Como se a prática psiquiátrica fosse,
na verdade, um dispositivo de internalização da disciplina enquanto condição

30
idem, p. 590
31
idem, p. 594
para a autonomia, esta mesma autonomia que permitiria ao indivíduo ser
reconhecido como sujeito. Daí esta figura de uma liberdade que se realiza na
assunção de tipos sociais. Como se a verdadeira questão fosse expulsar, através
da transformação da loucura em doença mental, tudo o que impedisse a
constituição desta mais profunda ilusão da razão moderna: uma vontade que
determina a si mesma, que se auto-legisla e se auto-governa. Um auto-governo
que, no entanto, que se realiza na capacidade de assumir tipos sociais existentes
e avalizados como modelos ideais de conduta. É isto o que Foucault tem em vista
ao afirma: “a condição da relação com o objeto e da objetividade do
conhecimento médico, e a condição da operação terapêutica são as mesmas: a
ordem disciplinar”32.
No entanto, percebam que colocar a cura da loucura sob o signo da
recuperação de uma liberdade, de uma autonomia que é condição “natural” do
sujeito, significa assentar o procedimento de cura na possibilidade de operações
reflexivas através das quais o doente mental possa tomar gradativamente
distância de si mesmo, avaliando a si mesmo. Como se a condição para a cura
fosse a capacidade de tomar a si mesmo como objeto, reduzir si mesmo como
um objeto para um olhar no qual se alojam a liberdade e a autonomia. Como se a
condição para a cura fosse, primeiramente, a auto-objetivação do homem.
Este olhar que o sujeito deve internalizar para poder, a partir de
processos reflexivos, objetivar a si mesmo vem, de certa forma, do próprio
médico33. Daí porque, com o advento da psiquiatria e da psicologia, a própria
figura do médico aparece como dispositivo de cura. A função do médico será
também função de controle moral através da aplicação de um padrão de
normalidade do comportamento. O médico fornece, sobretudo, sua presença, ou
seja, a figura de uma retidão moral e saúde corporal que servirá de “tipo ideal” a
ser internalizado. Até porque: “curar significa inculcar no doente os sentimentos
de dependência, de humildade, de culpabilidade, de reconhecimento que são a
armadura moral da vida em família”34. Na verdade, Foucault percebe aqui as
molas do que o século XX chamará mais tarde de “transferência” enquanto
dispositivo fundamental da cura. Estas molas estão presentes em um tratado
médico do século XIX que afirmará a terapêutica da loucura como: “a arte de
subjugar e de domar, por assim dizer, o alienado, pondo-o na estreita
dependência de um homem que, por suas qualidades físicas e morais seja capaz
de exercer sobre ele um império irresistível e de mudar a correnteza viciosa de
suas ideias”35.
Notemos ainda um dado fundamental para a hipótese de Foucault. As
correntes não são mais necessárias no asilo porque a intervenção no corpo
deixou de ser direta. Ela é indireta, resultante da internalização de práticas
disciplinares que atuam no corpo a partir “do interior”. É a partir deste momento
que a loucura deixa de ser considerada um fenômeno global que diz respeito ao
corpo e à mente. Ela será um fato que concerne especialmente a mente e
32
FOUCAULT, O poder psiquiátrico, p. 5
33
Mas ele pode vir, de certa forma, do próprio hospital. Daí uma afirmação como: “o que cura no
hospital é o hospital. Ou seja, é a própria disposição arquitetônica, a organização do espaço, a maneira
como os indivíduos são distribuídos nesse espaço, a maneira como se circula por ele, a maneira como
se olha ou como se é olhado nele, tudo isso é que tem em si valor terapêutico” (FOUCAULT, Michel;
O poder psiquiátrico, p. 127). Ou seja, o asilo é o corpo do psiquiatra.
34
FOUCAULT, Maladie mentale, p. 84
35
ESQUIROL apud FOUCAULT, O poder psiquiátrico, p. 12
receberá, pela primeira vez, estatuto e significação psicológica. Esta
psicologicização é setor de uma operação mais ampla de inserção da loucura em
sistemas de valores e de inscrições morais.
Desta forma, Foucault pode afirmar que a psicologia só pode aparecer a
partir do momento em que a relação à loucura foi definida pela dimensão
exterior da exclusão e do castigo, assim como pela dimensão interior da
moralização e da culpabilidade. Com a psicologia, perde-se uma “relação
essencial” entre a razão e a desrazão. A doença mental será assim apenas a
loucura alienada na psicologia. Pois o advento da psicologia deve ser inserido no
interior dos modos gerais de relação alienada que o homem ocidental
estabeleceu consigo mesmo.
Uma genealogia da esquizofrenia
Aula 4

Nesta aula, iniciaremos nosso trajeto de análise dos desdobramentos do campo


das psicoses a partir do século XIX e começaremos, para isto, com a categoria
clínica de “demência precoce”, tal como consolidada por Emil Kraepelin.
Lembremos inicialmente como Kraepelin foi responsável por um dos mais
influentes tratados de psiquiatria do final do século XIX e começo do século XX.
Sua sistematicidade vem, principalmente, da possibilidade de classificação das
doenças mentais a partir de sua “forma clínica”, ou seja, o desenvolvimento da
doença, de seu aparecimento até seu desfecho. Consciente da dificuldade da
psiquiatria de sua época definir categorias claras a partir de lesões orgânicas e
agentes causais, Kraepelin insistirá, no entanto, que a forma clínica já poderia
fornecer quadros relativamente seguros de distinção.
Como afirmei anteriormente, a constituição da categoria de demência
precoce é o primeiro passo para a consolidação de uma estrutura nosográfica
que organiza nossa compreensão do campo das psicoses até hoje. Kraepelin
desenvolveu a categoria, cujo nome se deve à Morel que o cunha em 1851, para
descrever jovens que sofriam de estados sucessivos de decadência cerebral até
chegar a uma fase terminal de dissolução psíquica. Lembremos, a este respeito
da definição kraepeleniana de demência precoce:

A característica comum da série de estados que caracterizam a demência


precoce é uma destruição peculiar das conexões internas da
personalidade psíquica. Os efeitos deste dano na vida mental
predominam nas esferas emocional e volitiva36.

Kraepelin compreende que a demência precoce descreve um processo de


degenerescência, de regressão até a destruição do que ele chama de “conexões
internas da personalidade psíquica”. Aparecia assim uma doença de início
precoce com um curso crônico e deteriorante. A seu lado, o campo das psicoses
era ainda dividido pela paranoia e pela loucura maníaco-depressiva, a sucedânea
da melancolia. Por sua vez, o campo da demência precoce será ao final dividido
em ebefrenia, catatonia e demência paranoide (que se distingue da paranoia pelo
rápido desenvolvimento em direção à debilidade psíquica).

História e psicologia

A primeira característica a salientar na demência precoce é a noção de


doença mental como degenerescência, como processo que faz o caminho inverso
do desenvolvimento psíquico em direção à maturação. Esta regressão é descrita
de forma fenomenologicamente rica através da indiferença ao mundo exterior,
da ausência de afetividade, da desagregação da fala, da decadência da
inteligência pulando ao acaso de uma ideia a outra, sem levar em conta
princípios lógicos aparentemente elementares como o princípio de não-

36
KRAEPELIN, Emil; A demência precoce, p. 19
contradição, de identidade e do terceiro excluído, entre tantas outras
características. Notemos que os traços fundamentais desta regressão serão a
incoerência das emoções, a inexistência de uma coesão no interior da
experiência temporal e o desconhecimento sistemático de necessidades lógicas
do pensamento.
Insistamos inicialmente nesta noção de degenerescência, principalmente
em sua dimensão temporal, pois ela fornecerá durante o século XIX e início do XX
aquilo que poderíamos chamar de “a forma geral da doença mental”. Não é
possível compreender esta importância do conceito de degenerescência sem
levar em conta a influencia que a história como ciência terá para o
desenvolvimento da psicologia.
A influência da história se mede inicialmente através da constituição do
conceito psicológico de memória e, por consequência, de tempo psíquico. Se
antes do início do século XIX, a memória será uma questão de estocástica e
arquivamento, não sendo assim uma das funções centrais na determinação da
subjetividade, este cenário mudará de forma impressionante a partir do
momento em que a história aparecer como a essência da experiência humana. A
memória será compreendida então como o campo de certa história individual
cuja possibilidade de apreensão será o fundamento da consciência. Mas não
“história individual” apenas no sentido de uma narrativa singular de fatos que
expressariam um princípio único de desenvolvimento (a saber, a personalidade).
“História individual” no sentido de um tempo histórico que, através de suas
estruturas de articulação, fornece à vida psíquica sua estrutura de síntese. Assim,
será do tempo histórico que a psicologia trará, por exemplo, a noção de que: “o
transcurso da vida é constituído por partes, por vivências que se encontram em
uma conexão interna umas com as outras. Cada vivência particular está ligada a
um si mesmo, do qual ela é parte; por meio da estrutura, cada vivência particular
está ligada com outras partes e forma uma conexão. Em tudo aquilo que é
espiritual, encontramos uma conexão; assim a conexão é uma categoria que
emerge da vida”37. Ou seja, a ideia de unidade da consciência psicológica através
da vivência como sistema de conexões, aquilo que lhe permite formalmente ser
um sistema de sínteses temporais, virá do impacto das elaborações da história. É
este sistema de conexões que será destruído pelo advento da doença mental com
seus processos de degenerescência.
Pelo conceito de consciência psicológica ter em seu horizonte de
influência o conceito de consciência história, da história a psicologia herdará
ainda noções como o vínculo entre progresso e maturação. A este respeito,
lembremos como as modificações na estrutura do pensamento e da cognição
presentes, ainda hoje, em teorias do desenvolvimento psicológico traduzem, em
larga medida, etapas que organizam o ritmo do progresso histórico. Neste
sentido, a chamada “lei biogenética fundamental” que defendia o paralelismo
entre filogênese e ontogênese é, na verdade, a expressão de um princípio de
articulação entre história e psicologia que nunca saiu do horizonte de nossos
saberes. Enunciada no final do século XIX por Ernst Haeckel, tal lei era a forma
final de uma idéia que havia atravessado a história das idéias desde o

37
DILTHEY, Wilheim; A construção do mundo histórico nas ciências humanas, São Paulo: Unesp,
2006, p. 173
iluminismo. Lembremos, por exemplo, do que diz Condorcet em um texto
intitulado: Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano:

Se o homem pode predizer, com uma segurança quase total, os fenômenos


a respeito dos quais ele conhece as leis, se mesmo quando elas lhe são
desconhecidas, ele pode, a partir da experiência do passado, prever com
uma grande probabilidade os acontecimentos do futuro, por que veríamos
como um empreendimento quimérico traçar com alguma verossimilhança
o quadro dos destinos futuros da espécie humana, a partir dos resultados
da história? O único fundamento de crença nas ciências naturais é esta
ideia de que as leis gerais, conhecidas ou ignoradas, que fornecem as
regras dos fenômenos do universo, são necessárias e constantes; e por
qual razão este princípio seria menos verdadeiro para o desenvolvimento
das faculdades intelectuais e morais do homem do que para outras
operações da natureza?38

Uma idéia que estará enunciada de maneira ainda mais clara nos
trabalhos de Augusto Comte:

O desenvolvimento individual reproduz necessariamente sob os nossos


olhos, em uma sucessão mais rápida e familiar, cujo conjunto é então mais
apreciável, embora menos pronunciado, as principais fases do
desenvolvimento social. Tanto um quanto outro tem essencialmente como
objetivo comum a subordinação, na medida do possível, da satisfação
normal dos instintos pessoais ao exercício habitual dos instintos sociais,
assim como o assujeitamento de nossas paixões às regras impostas por
uma inteligência cada vez mais preponderante39.

No caso de Comte, tal articulação entre filogênese e ontogênese é,


segundo Canguilhem: “a peça indispensável de uma concepção biológica de
história [já que as leis do organismo social e do organismo biológico do indivíduo
seriam as mesmas – ou seja, como se a história do homem fosse uma “história
natural”] elaborada exatamente na época que a história começava a penetrar a
biologia”40. No entanto, tal paralelismo não fornecerá apenas o horizonte
regulador do desenvolvimento psicológico. Ou seja, ele não fundará apenas os
delineamentos da noção de normalidade. Ele será também responsável por
aquilo que poderíamos chamar de “forma geral” do conceito de doença mental, a
saber, a doença como regressão e degenerescência. Neste sentido, a doença seria
necessariamente um retorno e dissolução de funções complexas que teriam sido
sintetizadas em fases mais avançadas do desenvolvimento. Desta forma, a
relação entre história e psicologia habita o cerne da racionalidade do campo
psicológico, isto através da definição dos conceitos de normalidade e patologia.

A função da personalidade psíquica

38
CONDORCET, p. 265
39
COMTE, Cours de philosophie positiva, leçon 51, p. 291
40
CANGUILHEM, Etudes d´histoire et de philosophie des sciences, p. 98
Tal maturação, no caso de Kraepelin, está vinculada à formação da
“personalidade psíquica”. É ela que aparece como o núcleo de valores que
fornecem a orientação para a intervenção clínica e suas distinções estruturais
entre normalidade e patologia. A forma com que Kraepelin fala da personalidade
psíquica em sua definição da demência precoce já é bastante sugestiva: ela é
responsável por uma unidade capaz de criar conexões internas coerentes entre
processos afetivos, perceptivos e judicativos.
Não é por outra razão que Kraepelin se serve do termo de “demência”
neste contexto. Lembremos como já no início da era moderna, era comum a
distinção entre dementia (como redução da razão) e amentia (como perda total
da razão). Esta distinção visava lembrar como a loucura poderia consistir não em
um perda total do espírito, mas em uma perda de controle, perda de governo
sobre as funções mentais. Daí uma afirmação de Foucault como:

a demência é, de todas as doenças do espírito, esta que permanece a mais


próxima da essência da loucura. Mas da loucura em geral – da loucura
experimentada em tudo o que ela pode ter de negativo: decomposição do
pensamento, erro, ilusão, não-razão e não-verdade41.

Esta perda de controle com tudo o que ela pode ter de negativo será
compreendida por Kraepelin como sintoma da destruição da força de conexão da
personalidade psíquica. Neste sentido, o conceito de demência é a expressão
mais bem acabada da noção de alienatio mentis, criada por Plater. Com este
conceito de alienação, tratava-se de insistir não em um perda total da mente, mas
em um perda de governo, uma incapacidade de governar a si mesmo. Como
lembrará Isaias Pessoti: “a cura seria a retomada do controle sobre as próprias
funções mentais, uma forma de ‘reintegração de posse’, uma reversão da
alienação”42. Neste caso, há uma insistência clara em uma dimensão funcional
relacionada ao domínio e controle, a processos sem domínio e sem função.
Vejamos um dentre vários exemplos fornecidos por Kraepelin, neste caso, em
relação ao quadro de demência precoce simples:

O doente não tem resistência nem entendimento, comete erros no


trabalho, inicia tudo pelo lado errado, tenta escapar-se, sempre que
possível, de toda a responsabilidade. Fica deitado na cama durante vários
dias, senta-se em qualquer lado, malbarata o seu tempo em ocupações
inúteis, devora, talvez sem escolher nem entender, literatura inadequada,
vive sem horários e sem um plano. Alguns doentes sentem por momentos
uma certa sensação de mudança que se está a operar neles, muitas vezes
com tonalidade hipocondríaca, mas a maioria afunda-se num
embotamento sem ter consciência disso. Por vezes, há um certo
desassossego que faz com o que o doente faça grandes caminhadas, corra
sem destino, empreenda viagens sem um fim determinado43.

41
FOUCAULT, Michel; Histoire de la folie, p. 320
42
PESSOTI, Isaias; Demência, dementia praecox, esquizofrenia, p. 4
43
KRAEPELIN, Emil; A demência precoce, p. 107
Jung fornece um eixo importante para compreender o que pode ser a
perda da capacidade de governar a si mesmo no começo do século XX. Ao
descrever o debate em torno da demência precoce, ele não deixará de notar que:

As observações e sugestões oriundas de vários campos da demência


precoce ressaltam, sobretudo, a ideia de uma perturbação bem central,
designada por vários nomes: embotamento aperceptivo (Weygandt),
dissociação, abaissement du niveau mental (Janet, Masselon), cisão da
consciência (Gross), desintegração da personalidade (Neisser e outros).
Depois é enfatizada a tendência à fixação (Neisser, Masselon)44.

Estas descrições mostram como o problema da unidade fornecida pelo


desenvolvimento da personalidade é central na definição da demência precoce.
Pois é através da emergência da unidade que o governo de si pode se dar. Tal
problema, como veremos, permanecerá como horizonte fundamental da
definição da esquizofrenia. O que nos leva a se perguntar de onde vem este
conceito de “personalidade”.

Personalidade, identidade, pessoa

Haveria várias formas de introduzir este problema, mas podemos


encontrar uma das bases da noção de personalidade, base esta que será
importante para o desenvolvimento da psicologia como campo, na filosofia do
século XVIII. Ela se constitui para dar conta do uso da noção de “indivíduo” para
descrever seres humanos. Neste sentido, lembremos como “indivíduo”
significava, inicialmente, o que não pode ser dividido. Este é, ao menos, o sentido
dos termos individualis ou individuus no latim medieval. Já no latim clássico,
encontramos o termo individuum. No entanto, ele não era aplicado a uma pessoa.
Os filósofos escolásticos serviam-se dele para expressar o caso singular numa
espécie – não apenas a humana, mas qualquer espécie45.
O uso cada vez mais sistemático de relacionar “indivíduo” e “pessoa” deve
ser compreendido no interior do desenvolvimento das sociedades modernas que
fundamentam sua auto-compreensão como associações contratuais entre
indivíduos. É neste contexto que a compreensão do indivíduo será cada vez mais
vinculada à noção de identidade pessoal. Neste contexto, lembremos, por
exemplo, do que fala John Locke, um dos filósofos que mais influenciou o campo
da psicologia, a respeito da noção de “identidade pessoal” como:

Aquilo que a noção de pessoa representa e que, penso eu, é o próprio


pensamento, é a mesma coisa pensante em diferentes tempos e lugares; o
que é consciência apenas por isto, que é a meu ver essencial ao
pensamento e inseparável dele e essencial a ele. É impossível para alguém
perceber sem perceber que está percebendo46.

44
JUNG, Carl; Psicogênese das doenças mentais, p. 47
45
Ver a este respeito ELIAS, Norbert; A sociedade dos indivíduos, Rio de Janeiro; Jorge Zahar, 1994,
p. 133
46
LOCKE, John: Essays concerning human understanding, p. 302
Ou seja, a identidade pessoal está vinculada diretamente à capacidade de
ser a mesma coisa pensante em diferentes tempos e lugares, o que significa
entender-se como o mesmo agente consciente na dispersão do tempo e do
espaço. Neste sentido, a identidade de uma pessoa não será compreendida como
a identidade de uma substância, mas como a identidade de uma consciência. A
consciência aparece assim como o princípio de unificação da existência no tempo
e no espaço. Daí porque: “tão longe a consciência pode ser estendida para trás
em direção a qualquer ação ou pensamento passados, tão longe alcança a
identidade de uma pessoa”47. Esta operação feita por Locke é decisiva: toda
identidade pessoal é expressão da presença da consciência como princípio de
unidade. Pois “consciência” é, acima de tudo, o nome que damos para esta
identidade pessoal suposta que me faz, em cada ação ou pensamento passado,
me ver me vendo. Se Locke precisa lembrar que é impossível a alguém perceber
sem perceber que está percebendo é porque a consciência é solidária de uma
operação reflexiva. Todos os fatos da consciência são, de direito, acessíveis à
reflexão, podem se transformar em representação para a reflexão.
Neste sentido, a identidade de consciência deve ser compreendida,
principalmente, como identidade reflexiva, ou seja, identidade do que pode
unificar para si mesmo os momentos de sua existência através de operações de
auto-reflexão. Entra assim algo como uma “identidade de primeira pessoa”.
Diferentemente de uma substância, cuja identidade é normalmente descrita na
terceira pessoa e cuja identidade não mudará se não for descrita na primeira
pessoa, uma identidade de consciência só existe no momento em que ela pode
ser descrita sob a forma da primeira pessoa. Se ela não puder ser descrita na
primeira pessoa, ela simplesmente não existirá. Não sou idêntico aquilo no qual
não me reconheço, mesmo que se tratem de ações que tenham sido feitas por
meu corpo ou feitas por mim de forma involuntária.
Mas aqui entra um elemento suplementar importante. Tudo o que
acessível à minha reflexão e que diz respeito aos pensamentos e ações de minha
própria pessoa me são imputáveis. A identidade de consciência define os regimes
de imputabilidade e de responsabilização da ação, mostrando assim como tais
discussões sobre a constituição da identidade psicológica tem, em seu horizonte,
problemas ligados à imputibilidade jurídica. Daí uma definição fundamental de
Locke:

A personalidade se estende para além da existência presente em direção


ao passado apenas através da consciência, pelo que ela se torna
concernida e imputável (accountable), possui e imputa a si mesma ações
passadas, apenas através do mesmo fundamento e pelas mesmas razões
que ela faz isto no presente48.

A personalidade fundamenta, assim, uma coerência na qual ações


passadas aparecem como submetidas ao mesmo sistema de justificativas das
ações presentes. Há uma continuidade narrativa fundamental assegurada pela
personalidade.

47
Idem, p. 302
48
Idem, p. 313
Se nos perguntarmos sobre a genealogia desta noção de personalidade,
talvez devamos voltar nossos olhos à teologia. Pois algo desta noção encontra
seus pressupostos nas teses de teólogos protestantes como Lutero e Calvino. É
um lugar comum a afirmação de que o protestantismo foi decisivo para a
constituição da noção moderna de indivíduo. Lembremos, por exemplo, de como
diversas seitas protestantes entendiam que cada igreja era particular e deveria
se fundar sobre um pacto ou uma aliança na qual cada membro se engaja a partir
de sua vontade própria49. Ou seja, a igreja é uma aliança entre fieis, a todo
momento renovada. Esta era uma conseqüência natural de duas idéias centrais
de Lutero: a salvação é dada pela fé (e não pelas obras) e a afirmação da livre
interpretação da Bíblia 50. Nestes dois casos, a mediação da Igreja perde
importância e o exame individual de si e de suas motivações ganha força. Como
percebeu Max Weber, aparece com isto uma interioridade marcada pelo
sentimento de forte: “solidão interior do indivíduo. No assunto mais decisivo da
vida nos tempos da Reforma – a bem-aventurança eterna- o ser humano se via
relegado a traçar sozinho sua estrada ao encontro do destino fixado desde toda
eternidade. Ninguém podia ajudá-lo”51.
No caso do pensamento reformado, em especial no calvinismo, esta
solidão interior era aumentada devido ao dogma da predestinação. Segundo tal
dogma os salvos já estão predestinados por Deus. No entanto, o homem não sabe
qual a vontade divina pois há uma incomensurabilidade entre a vontade divina e
a ciência do homem52. Se há predestinação, se Deus já decidiu se serei ou não
salvo antes de minhas próprias ações, então a verdadeira causa última das
minhas ações (a vontade de Deus) não é acessível a meu entendimento. Assim :
“uma questão impunha-se de imediato a cada fiel individualmente e relegava
todos os outros interesses a segundo plano: Serei eu um dos eleitos? E como eu
vou poder ter certeza dessa eleição?”53. A resposta era apenas uma: devemos nos
contentar em tomar conhecimento do decreto divino e perseverar na confiança
em Cristo operada pela verdadeira fé.
Tal perseverança traduzia-se na exigência de uma profunda unidade
coerente das condutas mobilizada pelo exame contínuo de si, pela auto-inspeção
sistemática em cada instante, além da recorrência compulsiva da certeza
subjetiva da própria eleição. Como não havia para os protestantes sacramentos
como a confissão, que servia como reparação de momentos de fraqueza e
leviandade, a pressão de uma unidade coerente das condutas acabava sendo
entificada em uma vida pensada como sistema: “Nem pensar no vaivém católico
e autenticamente humano entre pecado, arrependimento, penitência, alívio e, de

49
Ver EHRENBERG, Alain; La société du malaise, Paris : Odile Jacob, 2010
50
“Pois isso fica evidente que um cristão é livre de todas as coisas e está acima delas, portanto, não
necessita de boas obras para ser justo e bem aventurado, pois a fé lhe dará tudo em abundância”
(LUTERO, Martinho; Da liberdade do cristão, São Paulo : Unesp, p. 43. Notemos como Lutero retoma
um tema filosófico maior: a liberdade como libertação em relação às determinações empíricas do
mundo (as obras) e retorno à interioridade (a fé).
51
WEBER, Max; A ética protestante e o espírito do capitalismo, São Paulo: Companhia das Letras, p.
95
52
“Voluntarismo” é o nome que usualmente damos para as teologias que afirmam a
incomensurabilidade entre a vontade divina com suas leis e a ciência humana. Doutrinas que insistem
que o homem não pode entender a vontade divina, que a razão de Deus é para o homem loucura.
53
Idem, p. 100
novo, pecado, nem pensar naquela espécie de saldo da vida inteira a ser quitado
seja por penas temporais seja por intermédio da graça eclesial”54.
Temos assim uma situação religiosa que produz necessariamente a
experiência da interioridade (apenas a certeza da minha fé individual é o
caminho para minha salvação, apenas eu posso interpretar o sentido da escritura
divina) e da unidade coerente das condutas (apenas a perseverança de minha
conduta é o sinal de minha predestinação). Estas duas experiências serão
fundamentais para o desenvolvimento da noção moderna de autonomia. Para
chegarmos a tal noção, basta, principalmente, recusar a perspectiva voluntarista
de incomensurabilidade entre causas da minha ação e minha consciência. É tal
incomensurabilidade que Kant recusa ao constituir sua teoria da autonomia55.

54
Idem, p. 107. Ou ainda: “Bastante realista, a Igreja católica apostava que o ser humano não era um
todo unitário e não podia ser julgado de forma absolutamente inequívoca, e sabia que sua vida moral
era (normalmente) um comportamento o mais das vezes muito contraditório, influenciado por motivos
conflitantes” (Idem, p. 106).
55
Vale para Kant a ideia Segundo a qual: “Uma moralidade composta de tirania e servilismo só pode
ser evitada se Deus e o homem formarem uma comunidade moral cujos membros sejam mutuamente
abrangentes por aceitarem os mesmos princípios. Assim, os oponentes do voluntarismo tinham de
mostrar que o moralidade envolve princípios que são válidos tanto para Deus quanto para nós”
(SCHNEEWIND, J. B.; op cit, pp. 554-555).
A genealogia da esquizofrenia
Aula 5

Na aula passada, vimos algumas características fundamentais da categoria clínica


de “demência precoce”, em Emil Kraepelin. Como afirmei anteriormente, a
constituição da categoria de demência precoce é o primeiro passo para a
consolidação de uma estrutura nosográfica que organiza nossa compreensão do
campo das psicoses até hoje. Kraepelin desenvolveu a categoria, cujo nome se
deve à Morel que o cunha em 1851, para descrever pacientes que sofriam de
estados sucessivos de decadência cerebral até chegar a uma fase terminal de
dissolução psíquica, através de uma articulação entre a catatonia, a ebefrenia e a
demência paranóide. Lembremos, a este respeito da definição kraepeleniana de
demência precoce:

A característica comum da série de estados que caracterizam a demência


precoce é uma destruição peculiar das conexões internas da
personalidade psíquica. Os efeitos deste dano na vida mental
predominam nas esferas emocional e volitiva56.

Kraepelin compreende que a demência precoce descreve um processo de


degenerescência, de regressão até a destruição do que ele chama de “conexões
internas da personalidade psíquica”. Aparecia assim uma doença de início
precoce com um curso crônico e deteriorante. Ela tinha as formas hebefrênicas
(por se manifestar na fase pubertária, pois Hébe é a deusa da juventude na
mitologia grega), catatônica e paranoide (que se diferencia da paranoia pelo seu
curso em direção à deterioração psíquica). A seu lado, o campo das psicoses era
ainda dividido pela paranoia e pela loucura maníaco-depressiva, a sucedânea da
melancolia.
Como lembrei anteriormente, vemos claramente na demência precoce a
noção de doença mental como degenerescência, como processo que faz o
caminho inverso do desenvolvimento psíquico em direção à maturação. Esta
regressão é descrita de forma fenomenologicamente rica através da indiferença
ao mundo exterior, da ausência de afetividade, da desagregação da fala, da
decadência da inteligência pulando ao acaso de uma ideia a outra, entre tantas
outras características.
Tal maturação está vinculada à formação da “personalidade psíquica”. É
ela que aparece como o núcleo de valores que fornecem a orientação para a
intervenção clínica e suas distinções estruturais entre normalidade e patologia. A
forma com que Kraepelin fala da personalidade psíquica em sua definição da
demência precoce já é bastante sugestiva: ela é responsável por uma unidade
capaz de criar conexões internas coerentes entre processos afetivos, perceptivos
e judicativos.
Não é por outra razão que Kraepelin se serve do termo de “demência”
neste contexto. Lembremos como já no início da era moderna, era comum a
distinção entre dementia (como redução da razão) e amentia (como perda total

56
KRAEPELIN, Emil; A demência precoce, p. 19
da razão). Esta distinção visava lembrar como a loucura poderia consistir não em
um perda total do espírito, mas em uma perda de controle, perda de governo
sobre as funções mentais. Daí uma afirmação de Foucault como:

a demência é, de todas as doenças do espírito, esta que permanece a mais


próxima da essência da loucura. Mas da loucura em geral – da loucura
experimentada em tudo o que ela pode ter de negativo: decomposição do
pensamento, erro, ilusão, não-razão e não-verdade57.

Esta perda de controle com tudo o que ela pode ter de negativo será
compreendida por Kraepelin como sintoma da destruição da força de conexão da
personalidade psíquica. Jung, ao descrever o debate em torno da demência
precoce no começo do século XX, não deixará de notar que:

As observações e sugestões oriundas de vários campos da demência


precoce ressaltam, sobretudo, a ideia de uma perturbação bem central,
designada por vários nomes: embotamento aperceptivo (Weygandt),
dissociação, abaissement du niveau mental (Janet, Masselon), cisão da
consciência (Gross), desintegração da personalidade (Neisser e outros).
Depois é enfatizada a tendência à fixação (Neisser, Masselon)58.

Estas descrições mostram como o problema da unidade fornecida pelo


desenvolvimento da personalidade é central na definição da demência precoce.
Tal problema, como veremos, permanecerá como horizonte fundamental da
definição da esquizofrenia. O que nos leva a se perguntar de onde vem este
conceito de “personalidade”.

Esquizofrenia e estrutura

Devemos ter tais discussões em mente quando é questão de nos perguntarmos


sobre a genealogia das psicoses em geral e da esquizofrenia em particular. Pois
tais discussões podem nos auxiliar a compreender o sistema de valores
pressupostos como horizonte de regulação da distinção entre normalidade e
patologia em nosso caso.
Sabemos que o termo esquizofrenia aparece graça a Eugen Bleuler em
1908, que ainda será responsável por cunhar o termo de “autismo”. É em 1911,
com a publicação de Demência precoce ou grupos de esquizofrenia que Bleuler
consolida sua redescrição nosográfica. Psiquiatra-chefe no Hospital Burghölzli,
em Zurique, onde ainda trabalhavam Jung, Karl Abraham, Binswanger e
Minkowsky. Bleuler trouxe à psiquiatria contribuições fundamentais da
psicanálise, em especial a noção de que os sintomas devem ser compreendidos
como mecanismos de defesa. Normalmente, descrevemos a passagem da
demência precoce à esquizofrenia da seguinte forma:

A troca do nome dementia praecox pelo neologismo esquizofrenia marca


uma mudança substancial no enfoque da doença. Implica a constatação

57
FOUCAULT, Michel; Histoire de la folie, p. 320
58
JUNG, Carl; Psicogênese das doenças mentais, p. 47
clínica de que a demência, entendida classicamente como deterioração e
perda de funções mentais, não é um desfecho inevitável da doença nem
um aspecto essencial do quadro sintomático. E implica também, por
consequência, uma ampla reinterpretação da nosografia de Kraepelin:
pois toda a sua riquíssima sintomatologia da dementia, voltada para
caracterizar a marcha inarrestável para a completa deterioração terminal
das funções psíquicas, agora passa a indicar um processo auto-protetivo
de isolamento autístico, diante de uma realidade que se afigura
desintegrada e incompreensível, como efeito da perda dos nexos lógicos
do pensamento59.

Esta definição é útil por mostrar como Bleuler diminui a importância do curso da
doença, que estava claramente colocada no centro com a noção de “demência”.
Havia vários casos, lembra Bleuler, que não regrediam em direção à demência e
que não ocorriam de forma “precoce”, o que mostrava que não estávamos
necessariamente diante de um processo de degenerescência, mas de
desenvolvimento de “predisposições” que determinam um organismo dotado de
estruturas herdadas capazes de definir possibilidades e limites para a relação
com o meio.
Ou seja, e este é um ponto decisivo, saímos de uma perspectiva ligada à
compreensão da doença como deterioração e degenerescência para outra na
qual a noção de predisposição pressupõe um pensamento estrutural no qual as
distinções entre normal e patológico ganham maior distinção nocional. Desta
forma, o vínculo entre doença mental e degenerescência era colocado em
questão para que aparecesse uma concepção não mais evolutiva, mas
simplesmente funcional de doença mental. Concepção esta que privilegia os
transtornos funcionais.
Nesta modificação, percebamos que desaparece paulatinamente a ideia de
uma certa continuidade entre razão e loucura que o evolucionismo próprio à
noção de demência precoce ainda conservava. Se estamos falando de
degenerescência, então há de se aceitar uma certa continuidade de estados no
interior de um processo ideal de progresso. No entanto, com Bleuler a gradação
entre normal e patológico desaparece para termos uma distinção cada vez mais
estrutural entre os dois.

O conceito de clivagem

Bleuler partia da mesma definição funcional de Kraepelin a respeito da


“falta de unidade e ordem de todos os processos psíquicos”60, embora não
necessariamente colocasse tal falta de unidade e ordem no interior de um
processo temporal de, digamos, “maturação invertida”. Daí segue-se o uso do
termo “esquizofrenia”:

Porque nestes casos os distúrbios elementares parecem ligar-se a uma


unidade defeituosa, a uma fragmentação e clivagem dos pensamentos,
sentimentos e desejos e do sentimento subjetivo de personalidade61.

59
PESSOTI, Isaias; Dementia, dementia praecox, esquizofrenia
60
BLEULER, Manfred; Lehrbuch der Psychiatrie, p. 408
61
Idem, p. 407
Ou ainda:

Com o nome de dementia praecox ou esquizofrenia definimos um grupo


de psicoses cujo curso é, as vezes, crônico, as vezes marcado por ataques
intermitentes e que pode parar ou retroagir em qualquer estado, mas que
não permite nenhuma forma de Restitutio ad integrum. Ela é caracterizada
por uma forma específica de alteração do pensamento, do sentimento e da
relação ao mundo exterior”62.

Como vemos, a ideia de clivagem (Spaultung) ocorrendo no campo dos


pensamentos, dos sentimentos e do desejo é aqui fundamental, assim como a
ideia de que estamos em um estrutura, por isto a restituição integral, ou seja, a
passagem a outra estrutura é impossível. Tais alteração, compreendidas como
clivagens, produzem dissociações que constituem “complexos” ideo-afetivos que
se isolam do resto da personalidade. Compreende-se por complexo um conjunto
de ideais inconsciente afetivamente carregadas capaz de interferir em processos
psíquicos. Tais complexos podiam, ao menos para Bleuler podem chegar mesmo
a constituir algo como uma outra personalidade ou a assumir a figura da
personalidade. No que fica claro a centralidade da noção de conflito na definição
da patologia. Em uma perspectiva claramente freudiana, encontramos a doença
como a resposta inadequada a um conflito psíquico. Isto talvez nos explique
porque a noção de complexo fará fortuna no interior da literatura psicanalítica,
como nós conhecemos, por exemplo, no Complexo de Édipo. Ela é a peça chave
de uma noção de doença como conflito.
Notemos ainda como os eixos das funções psicológicas descritas por
Bleuler serão centrais e fornecerão aquilo que ficou conhecido como os “quatro
A’s”, ou seja, o quatro eixos principais de sintomas que, insistiria, continuarão
como definição da patologia entre nós:

 Afrouxamento dos nexos associativos do pensamento. Daí a insistência de


Bleuler em associar a esquizofrenia à construção da “imagem do mundo”
a partir da “essência contraditória” do paciente, com seus desejos e
pensamentos contraditórios e transitivos.
 Autismo, com seu comportamento indiferente ao mundo, sua tendência a
ignorar a realidade, sua ausência de investimento emocional em relação a
ela e, consequentemente, sua dificuldade de relação e comunicação
 Afetividade embotada, com falta de empatia ou afetividade ambivalente
 Avolição, com apatia, desarticulação da vontade

Comparem tal descrição com o que temos atualmente em nosso DSM-V:


“anormalidades em um ou mais dos seguintes cinco domínios: delírios,
alucinações, pensamento desorganizado (fala), comportamento psicomotor
grosseiramente desorganizado ou anormal (catatonia) e sintomas negativos”63.
Avolição está presente nos sintomas negativos, o comportamento psicomotor
grosseiramente desorganizado ou anormal está presente sob a forma do

62
BLEULER, Eugen; Dementia praexox oder Gruppen des Squizophrenia, p. 6
63
AMERICAN PSYCHIATRY ASSOCIATION; DSM – V, p. 87
autismo, o pensamento desorganizado é o nome contemporâneo para o
afrouxamento dos nexos associativos do pensamento. Ou seja, há uma certa
estabilidade nocional da esquizofrenia desde sua criação, há pouco mais de um
século. Fica claro como a incidência destes distúrbios no quadro contemporâneo
da esquizofrenia implica dependência da reflexão psiquiátrica ao modelo
tradicional da dissociação da personalidade. Mesmo que ela não seja tematizada
diretamente, ela está presente de forma implícita.
Note-se como, em Bleuler, a presença de delírios e alucinações não
aparece como critério diferencial de diagnóstico, já que outros quadros clínicos
também poderiam comportar tais produções. Este é o sentido de sua definição
entre sintomas fundamentais e sintomas secundários. Os sintomas fundamentais
indicam a estrutura dissociada do paciente nos níveis do julgamento, da
percepção e da afetividade. Já os sintomas secundários são resultantes das
tentativas de adaptação, mais ou menos exitosas, às perturbações primárias: “As
ideias delirantes seriam exemplos de sintomas secundários. E, segundo Bleuler, o
conteúdo dessas ideias estaria constituído por desejos e temores que, devido a
transtornos afetivos, estariam deformados. Ou seja, não fosse a dissociação
(Spaltung) que bloqueia os complexos mais carregados de afeto, seria possível
compreender esses desejos e temores expressos no delírio. O delírio é
incompreensível porque nele estão condensadas ou deslocadas uma cadeia de
associações”64.
De toda forma, gostaria de chamar a atenção para o caráter vasto e pouco
preciso da diferenciação. Se ainda hoje definimos a esquizofrenia como: “uma
doença heterogênea, com manifestação clínicas multiformes” 65 é certamente
porque, desde seu início, a patologia depende de um conceito de unidade, síntese
e coerência cujo fundamento se encontra em um horizonte normativo exterior a
fatos clínicos. Foi a isto que tentei aludir na aula passada quando foi questão de
propor uma rápida genealogia da própria noção de personalidade, em suas
matrizes filosóficas e teológicas. Notem, por exemplo, como o problema da
contradição aparece como um eixo privilegiado para a definição da clivagem
própria à esquizofrenia. Sua ideias delirantes são marcadas pela contradição, sua
incapacidade de se relacionar ao mundo exterior é muitas vezes expressa pelo
uso sistemático de contradições.

64
D’ARGOT, Marta; Esquizofrenia: os limites de um conceito
65
GABBARD, Glen; Psiquiatria psicodinâmica, p. 141
A gênese das psicoses
Aula 6

Na aula de hoje, gostaria de iniciar nossa discussão sobre a paranoia, seu


desenvolvimento e desaparecimento. De fato, a paranoia desapareceu do quadro
clínico psiquiátrico desde o DSM V. No DSM IV ela era definida como um subtipo
da esquizofrenia – falava-se então em esquizofrenia de tipo paranóide, juntamente
com outros quatro tipos: desorganizado (caracterizado pelo discurso e pensamento
desorganizado, além de afeto inadequado), catatônico (caracterizado por uma
acentuada perturbação motora, como imobilidade, atividade excessiva, extremo
negativismo, mutismo etc.), indiferenciado (esquizofrenia que não se enquadra nos
outros três tipos) e residual (quando há apenas um episódio de esquizofrenia, mas o
quadro clínico não apresenta sintomas psicóticos positivos proeminentes). Enquanto
sub-tipo, a paranóia seria marcada, principalmente, pela consistência sistemática das
interpretações delirantes (perseguição, erotomania, ciúme, grandeza etc.) e pela
ausência de deterioração intelectual. Por sua vez, sua causalidade seria sindrômica, já
que seria o resultado de uma articulação entre fatores psicológicos e vulnerabilidades
constitucionais (genéticos e obstétricos)66.
No DSM V este quadro desapareceu para dar lugar a transtornos delirantes
especificados a partir de sete tipos: erotomania, delírio de grandeza, de ciúme,
persecutório, somático, misto e não especificado. Ou seja, a estrutura definidora da
paranoia desapareceu para dar lugar ao tratamento isolado de alguns de seus sintomas.
Sai-se assim de uma perspectiva clínica baseada na orientação para a estrutura e
caminha-se para uma orientação taxionômica. Uma modificação que deve ser
compreendida levando em conta o que se perde quando uma categoria clínica
desaparece. O que não podemos mais ver quando não guiamos o olhar clínico a partir
da identificação de certas categorias?
Por outro lado, lembremos como o DSM V conservou a categoria de
“transtorno de personalidade paranóide”. Um transtorno de personalidade é: “um
padrão constante de experiência interna e comportamento que desvia, de forma
constante, da expectativa cultural do indivíduo, é invasivo e inflexível, tem seu início
na adolescência ou no começo da idade adulta, é estável e leva a danos ou a angústia
(impairment or distress)”67. Tais desvios dão-se nas áreas da cognição, da afetividade,
da capacidade de controle e das relações intersubjetivas. Não é difícil notar a natureza
disciplinar destes quadros clínicos que partem da pressuposição da existência de
padrões relativamente coesos e não problemáticos de comportamento.
No caso dos transtornos de personalidade paranoide, os critério diagnóstico
giram em torno de um padrão de comportamento marcado por uma desconfiança e
suspeita contínua de outros cujos motivos são interpretados como malévolos. Tais
critérios são descritos como: “suspeita, sem base suficiente, de que outros estão
explorando, prejudicando ou enganando o paciente”, “o paciente se preocupa com
dúvidas injustificadas sobre a lealdade ou confiança de amigos e associados”, “lê
ameaças escondidas por trás de eventos ou colocações benignas”, etc.

Breve história da paranoia

66
Ver, CRAIGHEAD, Edward, CRAIGHEAD, Linda e MIKLOWITZ, David; Psychopathology:
history, diagnosis and empirical foundations, New Jersey: Wiley, 2008, pp. 402-434
67
DSM V, p. 645
Façamos inicialmente um rápido histórico da paranoia a fim de melhor
contextualizar nosso problema. Sabemos que a paranoia é certamente uma das
categorias clínicas mais antigas que temos notícia. Sua raiz grega não nos deixa
dúvidas. Paranoia vem do grego para e nous, ou seja, algo como “ao lado do
espírito”, fora do que deve ser o espírito. No entanto, é só em meados do século
XIX que ela ganha sistematização, principalmente através do Tratado de
psiquiatria (1879), do psiquiatra alemão Richard Krafft Ebing, além dos esforços
posteriores de classificação desenvolvidos por Emil Kraepelin. Desde o início de
sua sistematização, a paranoia conservou-se como modalidade de doença mental
cuja característica essencial era aquilo que podemos ainda encontrar no DSM IV,
a saber: “presença de delírios ou alucinações auditivas proeminentes no contexto
de uma relativa preservação do funcionamento cognitivo e do afeto” 68. Krapelin
ainda apresenta uma distinção entre paranoia e parafrenia, sendo a primeira
marcada por delírios crônicos, enquanto a segunda podia admitir alucinações e:
“devido a um desenvolvimento mais ligeiro das perturbações da emoção e da
volição, a harmonia interna da vida psíquica fica consideravelmente menos
afetada ou, pelo menos, limitada a certas faculdades intelectuais”69.
Tal especificação da paranoia respondia a uma tendência maior da
psiquiatria ocidental até então, a saber, distinguir um modo de loucura onde as
funções de julgamento e os usos da linguagem eram, em larga medida,
conservados em sua estrutura formal de outro onde tais funções superiores
eram eliminadas no interior de um processo de regressão que classicamente foi
chamado de “demência”. Esta dicotomia, tão bem caracterizada na distinção
alemã entre Wahnsinn e Verrückheit, continuou na psicanálise com sua distinção
entre esquizofrenia e paranoia. No entanto, ela tende a ser diminuída na
psiquiatria contemporânea, que unificou todo o espectro das psicoses sob a
categoria geral de “esquizofrenia”.
A partir do seu estabelecimento, foi no campo da psicanálise que a
paranoia apareceu como a forma privilegiada da psicose. Freud e Lacan, por
exemplo, são dois psicanalistas que trabalham exclusivamente com a categoria
de paranoia. Tal prevalência se desenvolve pela paranoia aparecer em uma
posição decisiva no quadro clínica psicanalítico. Lembremos, por exemplo, como
a reflexão freudiana sobre a paranoia desenvolve-se como setor de uma reflexão
a respeito das neuroses. Daí uma afirmação como: “a investigação psicanalítica
não seria possível se os doentes não tivessem a peculiaridade de revelar, ainda
que de forma distorcida, justamente o que os demais neuróticos escondem como
um segredo”70. Neste sentido, a paranoia teria como característica deixar à céu
aberto os conflitos que são encobertos na neurose.
Mas esta função central da paranoia será ainda mais aprofundada. Pois
podemos ver nesta conservação relativa da estrutura cognitiva e afetiva na
paranoia um traço importante. Alguns psicanalistas viram nela a indicação de um
regime de participação em valores sociais e modos normatizados de raciocínio
que dão forma à própria noção de personalidade. É pensando nisto que alguém
como Jacques Lacan dirá, em uma tese de doutorado dedicada à paranoia: “A

68
DSM IV, p. 317.
69
KRAEPELIN, Emil; Demência precoce, parafrenia, p. 113
70
FREUD, Observações psicanalíticas sobre uma caso de paranoia, p. 14
economia do patológico parece assim calcada sobre a estrutura normal”71. O que
é, no fundo, uma derivaçào consequente da ideia freudiana segundo a qual :
“mesmo formações mentais tão extraordinárias, tão afastadas do pensamento
humano habitual, tiveram origem nos mais universais e compreensíveis
impulsos da vida psíquica”72. Isto porque ela absorve os modos formais de
raciocínio e comportamento próprios à estrutura normal. Freud costumava dizer
que a conduta patológica expõe, de maneira ampliada (Freud fala de
Vergrösserung e Vergröberung), o que está realmente em jogo no processo de
formação das condutas sociais gerais. É desta forma que devemos interpretar
uma metáfora maior de Freud : "Se atiramos ao chão um cristal, ele se parte, mas
não arbitrariamente. Ele se parte, segundo suas linhas de clivagem, em pedaços
cujos limites, embora fossem invisíveis, estavam determinados pela estrutura do
cristal"73. O patológico é este cristal partido que, graças à sua quebra, fornece a
inteligibilidade do comportamento definido como normal. Neste sentido, Lacan
radicalizará uma intuição de Freud que consiste em se perguntar se a paranoia
não expõe, como em uma lente de aumento, a natureza do modo de formação da
personalidade que determina a figura da subjetividade moderna.
Notemos que, se a esquizofrenia era definida a partir da dissociação da
personalidade, estabelecendo com isto a personalidade e toda sua estrutura de
valores como horizonte de regulação da noção de normalidade psíquica, a
paranoia em sua versão psicanalítica acaba por operar como uma
desconstituição da personalidade enquanto categoria reguladora da intervenção
clínica por aproximar-lhe em demasia da própria paranoia. Não por outra razão,
psicanalistas como Jacques Lacan discutirão as relações entre psicose paranoica
e personalidade a fim de defender a hipótese de existência de uma espécie de
fundo paranoico em todo processo de constituição da personalidade. No fundo,
trata-se de levar a sério a ideia de Jacques Lacan, enunciada ao comentar a razão
pela qual ele se relutou a republicar sua tese de doutorado sobre as relações
entre psicose paranoica e personalidade: “Se resisti por tanto tempo à
republicação de minha tese, é simplesmente pelo seguinte, é que a psicose
paranoica e a personalidade como tal não têm relações, simplesmente por isso,
porque são a mesma coisa”74.
Neste sentido, não é desprovido de interesse perceber como encontramos
tal intuição da maneira com que a paranoia exporia a estrutura escondida do
comportamento normal em um trabalho profícuo de psicologia social como
Massa e Poder, de Elias Canetti75. Esta absorção de modos formais de raciocínio e
comportamento próprios a estrutura normal pode ser identificado, por exemplo,
na presença, no interior da paranoia, de algo como um “vício da causalidade” e
um “vício da fundamentação”. Uma espécie de princípio de razão suficiente
elevado à defesa patológica : nada acontece que não tenha uma causa. Assim, na
“ontologia paranoica”, não haverá lugar para noções como contingência e acaso.
Por trás da máscara do novo, há sempre o mesmo. Tudo o que é desconhecido

71
LACAN, Jacques ; De la psychose paranoiaque dans ses rapports à la personalité, Paris: Seuil,
1975, p. 56.
72
FREUD, Sigmund; Observações psicanalíticas sobre um caso de paranóia, In: O caso Schreber e
outros textos, São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 24
73
FREUD, Sigmund; ibidem, p. 64
74
LACAN, Jacques; Séminaire XXIII: Le sinthome, Paris: Seuil, 2005, p. 53
75
CANETTI, Elias; Massa e poder, São Paulo : Companhia das Letras, 2005, pp. 448-463
deve ser remetido a algo conhecido e referido ao doente. Isto leva o paranoico à
necessidade compulsiva do desmacaramento. Ele quer que haja algo por trás dos
fenômenos ordinários e só se acalma quando uma relação causal é encontrada.
Neste sentido, é possível dizer que um dos traços fundamentais da
paranoia, traço que fornece a base de sua certeza delirante e da incorrigibilidade
de seus julgamentos, está vinculado à naturalização das estruturas e dos quadros
narrativos de organização da experiência. Não é possível ao sujeito tomar
distância de suas próprias construções, retificando criticamente suas pretensões
a partir dos acasos e contingências da experiência, desconfiando de sua
sistematicidade e de sua exigência absoluta de sentido e ligação, pois tais
construções foram naturalizadas. Neste sentido, não seria incorreto ver, nesta
forma imanente de adesão a suas próprias crenças, um efeito maior daquilo que
em teoria social chamaríamos simplesmente de reificação. O que talvez nos
permitiria dizer que a paranoia é uma sombra da razão, pois é o risco aberto
quando ocorre uma reificação da própria estrutura do conhecimento. Exemplo
ilustrativo deste processo de reificação é dado por Freud a caracterizar a
linguagem psicótica como: “uma linguagem que trata as palavras como coisas”76.
Consideração ilustrada pelo exemplo da analisanda de Victor Tausk, conduzida à
clínica após uma disputa com seu amante e portando a seguinte reivindicação:
“Meus olhos (Augen) não estão como devem estar, eles estão revirados
(verdreht)”. Resultado da coisificação da metáfora: “meu amado é um hipócrita,
um Augenverdreher”. Pois, se Freud afirma que, na esquizofrenia, há a
predominância da relação de palavra sobre a relação de coisa, é porque as
palavras foram coisificadas.
Por outro lado, notemos como há um conjunto de valores políticos que
parecem nortear o sofrimento paranoico. Falamos de unidade, identidade,
controle e risco de invasão. Como se fosse questão de assegurar a posse e a
unificação de um território a todo momento ameaçado. Não é difícil perceber, já
neste momento, como os motivos paranoicos parecem derivados de uma certa
compreensão a respeito daquilo que uma ordem deve ser capaz de produzir.

Paranoia e psicanálise

Na estrutura clínica psicanalítica, a paranoia é ainda concebida como um dos


três quadros nosográficos próprios à estrutura psicótica, juntamente com a
esquizofrenia e a melancolia (ou psicose maníaco-depressiva). Sua caracterização
atual não é muito distinta daquela que encontramos em Freud. Desde 1895, Freud
compreendia a paranoia como um “modo patológico de defesa” que se servia de
mecanismos como o delírio 77 e uma forte tendência à projeção de representações
inconciliáveis com a coerência ideal do Eu. Freud fala de: “um abuso do mecanismo
de projeção para fins defensivos”78 na paranoia. Esta noção da formação patológica
como mecanismo de defesa é enunciada de forma clara em um texto de 1924:

76
FREUD, GW vol. X, p. 298
77
Sendo que, em Freud, o delírio paranoico é: “uma tradução em representações de palavras do
reprimido que retornou maciçamente na forma de signos perceptuais” (SIMANKE, Richard; A
formação da teoria freudiana das psicoses, Belo Horizonte: Loyola, 2008, p. 100)
78
FREUD; Manuscrito H, In: Neurose, psicose, perversão, p. 18
A etiologia comum para o início de uma psiconeurose ou psicose permanece
sendo o impedimento, a não realização de algum daqueles eternamente
indomáveis desejos de infância, enraizados profundamente em nossa
organização filogeneticamente determinada79.

À ocasião de seu texto paradigmático relativo ao caso Schreber, tais


mecanismos de defesa encontrarão seu fundamento em uma desesperada reação
contra um certo impulso homossexual impossível, por razões estruturais, de ser
vivenciado como tal pelo sujeito. Isto demonstrava como Freud estava muito mais
interessado em uma determinação causal específica do que em uma pretensa descrição
diferencial dos sintomas paranoicos.
Por trás desta temática aparentemente muito redutora ligada à defesa contra a
homossexualidade (que, no limite, nos obrigaria a tese incorreta do ponto de vista da
fenomenologia clínica referente à impossibilidade de alguém ser, ao mesmo tempo,
paranóico e homossexual explícito) há, no entanto, o que poderíamos chamar de uma
intuição psicanalítica fundamental a respeito das psicoses. Ela se refere à
impossibilidade de alguma forma de mediação simbólica das identificações e da
alteridade devido à fixação em um estado de desenvolvimento e de maturação que
Freud chamava de “narcísico”. Freud compreende que a libido passa por estágios de
maturação, como o autoerotismo, o narcisismo e a escolha objetal. Partilhando a
concepção de doença mental como regressão, que vimos em Kraepelin, Freud
associará a paranoia a uma fixação na fase narcísica. Assim, ele dirá:

Na paranoia a libido liberada se volta para o Eu, é utilizada para o


engrandecimento do Eu. Com isso atinge-se novamente o estágio do
narcisismo, conhecido no desenvolvimento da libido, no qual o próprio Eu era
o único objeto sexual. Por causa desse testemunho clínico supomos que os
paranoicos trazem uma fixação no narcisismo, e dizemos que o recuo da
homossexualidade sublimada ao narcisismo indica o montante da regressão
característica da paranoia80.

Há duas ideias fundamentais aqui. Primeiro, no narcisismo o próprio Eu é o


objeto de investimento libidinal. Posteriormente, Freud distinguirá narcisismo
primário e secundário para descrever um estágio no qual o Eu retoma e internaliza
investimentos anteriores de objeto, o que provoca uma modificação na própria
estrutura do Eu, já que ele absorve no seu interior, sob a forma de identificações,
antigos investimentos de objeto. Segue-se daí uma perda de investimento libidinal na
realidade responsável pela produção de uma “perturbação nas relações entre Eu e
mundo exterior”81. Freud chega a falar que o Eu cria autonomamente para si um novo
mundo exterior e interior. Ele fornece um exemplo didático, presente em um texto a
respeito da diferença entre neurose e psicose no que se refere à perda da realidade:

Quero voltar, por exemplo, a um caso analisado há muitos anos, no qual a


moça, apaixonada por seu cunhado, fica abalada com a seguinte ideia no leito
de morte da irmã: ‘agora ele está livre e pode se casar com você’. Essa cena é
imediatamente esquecida e, com isso, é acionado o processo de regressão que
leva aos sofrimentos histéricos. Mas, nesse caso, é justamente instrutivo
79
FREUD; Neurose e psicose, In: Neurose, psicose, perversão, p. 274
80
FREUD, idem, p. 96
81
FREUD; Neurose e psicose, p. 272
observar por qual caminho a neurose procura resolver o conflito. A neurose
desvaloriza a alteração real, na medida em que recalca a exigência pulsional
em questão, isto é, o amor pelo cunhado. A reação psicótica teria sido recusar
a realidade do fato da morte da irmã82.

Segundo ponto importante, haveria algo de narcisismo sublimado na


homossexualidade, o que permitiria um retorno no qual o homossexualismo se associa
a uma confusão narcísica entre eu e outro.
Assim, devido a tal fixação, todo reconhecimento de si em um outro aparece
como anulação catastrófica dos regimes de identidade que, até então, sustentavam
uma certa estabilidade pré-psicótica. O problema da defesa contra o homossexualismo
é, no fundo, modo freudiano de dizer que, na psicose paranoica, todo reconhecimento
de si em um outro é vivenciado de maneira ameaçadora e muito invasiva, o que
coloca uma personalidade formada a partir da internalização de identificações em rota
contínua de colapso. A este respeito, podemos lembrar como, no caso Schreber, a
produção delirante transformou-se em modo de estabilização para tal conflito
psíquico. Haja vista um delírio como:

“Quando falo de cultivo da volúpia, que se tornou como que um dever para
mim, não quero dizer jamais um desejo sexual por outras pessoas (mulheres)
ou um contato sexual com elas, mas sim que represento a mim mesmo como
homem e mulher numa só pessoa, consumando o coito comigo mesmo,
realizando comigo mesmo certas ações que visam a excitação sexual, ações
que de outra forma seriam consideradas indecorosas, e das quais se deve
excluir qualquer ideia de onanismo ou coisas do gênero”83

Notemos ainda como tal situação indica um certo modo de ligação defensiva à
identidade, de negação da “interioridade da diferença”, que demonstram a fragilidade,
no caso da psicose, dos modos de síntese psíquica fundadas na noção funcional de Eu.
Esta ideia da psicose como fragilidade estrutural do processo de produção de
identidades subjetivas aparecerá de maneira mais sistemática nos trabalhos de Jacques
Lacan.
Lembremos também como Jung definirá a esquizofrenia como uma
introversão da libido, em um esquema utilizado por Freud para falar da
paranoia. Segundo a ideia de Jung, a libido retirada do mundo se volta para o Eu,
produzindo assim os fenômenos de autismo e avolição descritos por Bleuler
como fundamento do quadro esquizofrênico. Trata-se assim de um estado
secundário construído sobre a base de um narcisismo primário (investimento
libidinal originário do Eu). Posteriormente, tal investimento originário será
cedido aos objetos. É só com o investimento de objeto que seria possível
distinguir energia sexual e energia das pulsões do Eu, libido do Eu e libido de
objeto.
Gostaria então de, inicialmente, expor a teoria freudiana da paranoia para
depois passarmos a teoria lacaniana da paranoia. Como sabemos, a teoria freudiana é
construída principalmente a partir da interpretação de um relato escrito por Daniel
Paul Schreber em seu Memória de um doente dos nervos. Notemos já um dado

82
FREUD; A perda de realidade na neurose e na psicose, p. 279
83 SCHREBER, Daniel Paul; Memória de um doente dos nervos, São Paulo : Paz e Terra, 1986, p.
218
significativo, Freud trabalha um relato literário, nós não estamos diante de um caso
derivado de sua clínica, como temos no caso Dora, no caso do Homem dos Lobos e
do Homem dos Ratos.
Esta natureza “literária” da fonte freudiana não deveria nos deixar indiferentes.
O desejo de escrita indica forma de participação social, forma de constituição de uma
“narrativa”, de uma história pessoal que será maneira de constituir um Eu lá onde Eu
nenhum é mais possível. Por outro lado, não haverá em Freud a descrição de um
processo de cura, de uma intervenção clínica bem sucedida. A psicanálise, mesmo
tendo uma teoria das psicoses, será basicamente uma clínica das neuroses. Mesmo
Lacan, quando escrever em 1932 uma tese sobre a paranoia servindo-se de um caso
que ele acompanhará (o “caso Aimée”) não poderá apresentar uma clínica das
psicoses. Seus desenvolvimentos posteriores serão teoricamente decisivos para uma
teoria psicanalítica das psicoses, mas não para uma clínica estruturada das psicoses.
Esta clínica será, a sua maneira, tentada apenas a partir dos anos cinquenta,
por psicanalistas que irão procurar sistematizar práticas ligadas à análise institucional,
como, por exemplo, Jean Oury e Felix Guattari. Mas neste momento, a prevalência do
quadro paranoico será abandonada em prol de uma recuperação da esquizofrenia,
agora sob novas bases.
Genealogia das psicoses
Aula 7

Na aula de hoje, gostaria de discutir a leitura freudiana do caso Schreber.


Trata-se aqui de descrever o sistema delirante, assim como a interpretação
fornecida por Freud. Recapitulemos alguns dados fundamentais do caso
Schreber, a menos a partir da leitura de Freud. Sabemos que o surto psicótico
que ocasionou sua segunda internação está profundamente relacionado à
informação de que Schreber seria nomeado juiz-presidente da Corte de Apelação
de Dresden. Tratava-se de um cargo excepcionalmente elevado para sua idade
(51 anos) e a nomeação era irreversível. O posto era vitalício, o que significava
que Schreber alcançara o ponto máximo de sua carreira. No entanto, antes de
tomar posse, Schreber tem um sonho e um devaneio que será, de uma certa
forma, o início de sua experiência delirante:

Uma vez, de manhã, ainda deitado na cama (não sei mais se meio
adormecido ou já desperto), tive uma sensação que me perturbou da
maneira mais estranha, quando pensei nela depois, em completo estado
de vigília. Era a ideia de que deveria ser realmente bom ser uma mulher
se submetendo ao coito – esta ideia era tão alheia a todo o meu modo de
sentir que, permito-me afirmar, em plena consciência eu a teria rejeitado
com tal indignação que de fato, depois de tudo o que vivi nesse ínterim,
não posso afastar a possibilidade de que ela me tenha sido inspirada por
influência exteriores que estavam em jogo84.

O que diferencia quadros clínicos não é a existência de conteúdos


ideacionais específicos. Ou seja, não é o fato de ter pensado que seria bom
transar como uma mulher que especifica a estrutura psicótica de Schreber, mas
sim o fato deste pensamento ser vivenciado como catástrofe, ainda mais se
levarmos em conta a situação anterior na qual ele aparecia como impossibilitado
de ser pai. De uma certa forma, não há homem que não tenha feito uma
proposição desta natureza em seu inconsciente e a tenha integrado, de uma
forma ou de outra, à consciência. No entanto, o que vemos no caso de Schreber
é uma impossibilidade de alguma forma de mediação simbólica da alteridade, de
integração que não seja vivenciada como anulação dos regimes de identidade
que sustentavam uma certa estabilidade pré-psicótica.
Que esta impossibilidade de integração diga respeito à questão colocada
sobre o gozo feminino, eis algo que leva Freud a afirmar que a raiz a doença deve
ser procurada na vida sexual. Na verdade, ela deve ser procurada nessa
desintegração da ordem simbólica pela emergência de um gozo a respeito do
qual o sujeito não sabe o que fazer e que o levaria a delírios e alucinações de
modificações corporais completas.
Poucos semanas depois de assumir seu cargo de juiz-presidente, Schreber
tem um colapso marcado por insônias, angústia intensa, sentimento de
perseguição e extrema sensibilidade a ruídos. Tal quadro se desenvolve para dar
lugar a tentativas de suicídio. Este é o quadro anterior à internação. Ao ser

84
Idem, p. 54
internado, Schreber desenvolve um quadro delirante onde temáticas religiosas e
científicas se misturam para descrever uma crise profunda na “ordem do
mundo”. Schreber começa afirmando que a alma humana está contida nos nervos
do corpo, algo comparável a fios de linha muito finas. Deus também é, desde o
início, apenas nervo, e não corpo, portanto algo aparentado à alma humana. Até o
momento de crise, a situação era tal que Deus deixava abandonados a si mesmos
o mundo criado por ele e os seres orgânicos. Uma intervenção imediata de Deus
no destino dos indivíduos via de regra não acontecia, apenas em situações
particulares. Esta “conexão nervosa” não podia se tornar regras porque:

Os nervos de homens vivos, sobretudo em estado de uma excitação muito


intensa, possuem uma tal força de atração sobre os nervos de Deus que
Deus não poderia mais livrar deles, ficando portanto ameaçado em sua
própria existência85.

Por isto, relações regulares entre Deus e as almas humanas só ocorriam


depois da morte. Então, Deus podia, sem perigo, se aproximar dos cadáveres
para atrair para si os nervos em direção à beatitude. Isto significava que Deus
não tinha onisciência e onipresença, no sentido de Deus ver continuamente o
interior de cada ser humano vivo. Ele só tecia relações com cadáveres, já que os
nervos humanos conservavam todas as impressões recebidas durante a vida.

Deus via um homem vivo só por fora, não existindo, como regra geral,
uma onisciência e uma consciência de Deus com relação ao interior das
pessoas vivas. Mesmo o eterno amor divino, fundamentalmente, só existia
para a criação como um todo86.

Tais nervos, após a morte, passam por uma purificação na qual as almas
aprendiam a língua falada por Deus que, não podia ser diferente, era uma espécie
de alemão arcaico cheio de palavras de sentidos opostos (recompensa era
punição, veneno era alimento, profano era sagrado etc.). Pois os alemães eram o
povo eleito de Deus por serem moralmente mais virtuosos.
As almas completamente depuradas pelo processo de purificação subiam
ao céu atingindo a beatitude. Tal beatitude consistia num estado de gozo
ininterrupto, associado à contemplação de Deus. A beatitude masculina ficava
um grau acima da feminina; essa última era, na verdade, um “sentimento
ininterrupto de volúpia”87.
Esta construção teria entrado em crise devido aquilo que Schreber chama
de “assassinato de alma” e que teria sido produzido por seu médico, Dr. Flechsig.
Tal assassinato estaria sendo imputado a Schreber. Trata-se de um abuso das
conexões nervosas. Deus teria concedido a família Flechsig a possibilidade de ter
conexões nervosas e de receber inspirações divinas. No entanto, os Flechsig
procuraram “reter os raios divinos” e impedir que a estirpe dos Schreber
pudesse ter relações de maior proximidade com Deus. Daí a noção de
“assassinato de alma”, ou seja:

85
Idem, p. 36
86
Idem, p. 48
87
Idem, p. 40
A entrega de uma alma a outra, seja para conseguir uma vida terrena mais
longa, seja para se apropriar das forças espirituais desta, seja ainda para
obter uma espécie de imortalidade pessoal ou alguma outra vantagem88.

Schreber acreditava que Flechsig estabelecera uma conexão nervosa com


ele, falando com seus nervos sem estar presente em pessoa, interferindo em seus
nervos ao provocar uma “coação a pensar” de maneira ininterrupta. Tal
assassinato abalou a ordem do mundo, criando uma crise que teria colocado o
próprio Deus em perigo. Tal abalo na ordem do mundo permitiu que Schreber
tivesse uma relação ininterrupta com os raios divinos. Tal ligação indissolúvel
entre Deus e Schreber teria provocado uma crise de tal tamanho que o fim do
mundo teria ocorrido sendo Schreber o único homem verdadeiro que ainda
restava. As poucas figuras humanas que ele via seriam “homens feito às pressas”
produzidos por milagres. Schreber chega a afirmar que tudo o que acontecia
referia-se necessariamente a ele:

Desde que Deus entrou em conexão nervosa exclusiva comigo, eu me tornei


para Deus, num certo sentido, o homem, ou o único homem em torno do
qual tudo gira, ao qual tudo deve se referir e que por isso, também do seu
próprio ponto de vista, tem de referir a si mesmo todas as coisas (p. 205)

Notemos como Deus não aparece em seus delírios enquanto figura de


onipotência. Nem para Deus a ordem do mundo, dirá Schreber, fornece meios
para destruir o entendimento de um homem: “a Ordem do mundo não fornece,
nem mesmo a Deus, os meios para destruir a razão de um homem”89. Freud
chega a afirmar que: “todo o livro de Schreber é permeado pela amarga queixa de
que Deus, habituado ao trato com os mortos, não compreende os vivos” 90. Dado
importante pois nos encontramos às voltas com uma tentativa de dar forma à
limitação do poder do Outro, à incapacidade do Outro tudo saber e poder tudo
saber. De uma certa forma, Schreber procura dar forma para a experiência de
uma ordem não apenas muito invasiva, que está em conexão direta com ele
mesmo. Ele quer falar de uma ordem que se impõe de maneira totalmente
exterior, que ë incapaz de saber o que realmente se passa com aqueles que ela
ordena. Uma ordem cuja força é proporcional a sua cegueira. Em suma, uma
ordem em crise. Algo que não deixa de nos remeter a uma situação histórica
precisa de crise da ordem social que assombrava a cultura européia do final do
século XIX e começo do século XX. Basta lembrarmos aqui dos estudos clássicos
de Emile Durkheim sobre a anomia social e de Max weber sobre o
desencantamento do mundo.
No entanto, tudo se passa como se esta experiência de crise não pudesse,
por alguma razão, ser realmente simbolizada, ser realmente vivida pelo sujeito.
Falta ao sujeito a gramática para a elaboração de experiências de crise. Elas só
podem ser elaborada sob a forma de delírios e de alucinações, elas pedem um
complemento que acaba por ganhar a forma de delírios místicos capazes de
reconstruir o sentido de um mundo em decomposição, fornecer um sentido
cosmogônico para a decomposição do mundo. Neste sentido, a paranoia de

88
Idem, p. 46
89
Idem, p. 222
90
FREUD, Sigmund; idem, p. 34
Schreber não é exatamente a figura de mente fragilizada, mas de uma mente para
qual é impossível pensar a fragilidade de nossas imagens de mundo. Como se ele
representasse, de uma maneira extremamente acabada, a reação quixotesca
contra uma ordem em decomposição, que ameaça nos jogar em um mundo onde
precisaremos nos deparar continuamente com aquilo que é radicalmente
contingente.
Neste sentido, a paranoia aparece como a reação mais bem acabada à
experiência da contingência radical daquilo que fornece o fundamento de nossas
visões de mundo. Ela será a costura de um mundo em decomposição que se
apoiará em ideias centrais para a constituição de uma personalidade, como
constituição de um ideal enquanto missão simbólica, ideal capaz de organizar as
contingências do desenvolvimento tendo em vista a realização de um projeto; a
organização narrativa e unificada dos fatos que compõe o desenvolvimento de
um sujeito, entre outros.

A interpretação freudiana

Freud analisa a produção delirante admitindo inicialmente processos de


inversão que depois serão descritos como próprios das dinâmicas pulsionais. Por
exemplo:

a pessoa a que o delírio atribui tamanho poder e influência, para cujas


mãos convergem todos os fios do complô, seria, no caso de ser
expressamente nomeada, a mesma que antes da doença tinha significado
igualmente grande para a vida afetiva do paciente, ou um substituto
facilmente reconhecível. A importância afetiva é projetada para fora,
como poder externo, e o tom afetivo é transformado no oposto; aquele
agora odiado e temido, por sua perseguição, seria alguém amado e
venerado anteriormente91.

Freud verá então uma forte inclinação erótica entre Schreber e seu médico,
Flechsig, como fator de desencadeamento dos delírios paranoicos. Este
sentimento em relação ao médico deveria, por sua vez, originar-se em uma
transferência na qual um investimento afetivo anterior fora transposto para a
figura do médico. Provavelmente, tal investimento tivesse por objeto o irmão
mais velho, que cometerá suicídio em 1877, ou seja, antes da ninternação de
Schreber. Da mesma forma, a relação à Deus é associada por Freud à figura do
pai.
De fato, a ideia freudiana consiste em afirmar que há um conflito na
relação entre Schreber e o pai que não pode ser simbolizado pelo primeiro. Este
conflito que será expulso do universo simbólico, marcado pela ambivalência
entre identificação e rivalidade, retornará sob a forma de produção delirante.
Freud chegará a afirmar que a “mais temida ameaça do pai”, a saber, a castração
teria proporcionado o material para a fantasia-desejo de transformação em
mulher.
Lembremos aqui de dados importantes sobre a figura paterna de
Schreber. Seu pai, Daniel Gottlob [Gott: Deus, lob: louvor] Moritz Schreber, fora

91
FREUD, O caso Schreber, p. 56
um médico, pedagogo e professor conhecido responsável por práticas
pedagógicas higienistas ligadas ao uso constante de exercícios físicos (seu livro
Ginástica médica de quarto teve mais de 40 edições) e combate à sexualidade, em
especial a masturbação, fonte de males inumeráveis e enfraquecimento físico. A
influência de Schreber à época é considerável e seus métodos são marcados por
profundas intervenções corporais disciplinares. Schreber pai é representante de
um modelo educacional que será inicialmente aplicado em seus próprios filhos
nas mais variadas situações: na hora de dormir, de comer, de estudar, de se
divertir.
Esta onipresença da intervenção paterna aparece inicialmente como a
expressão de uma força que impede o filho de se medir ao pai, de poder ocupar
seu lugar (como pai ou autoridade). Não por acaso, Schreber terá seu surto à
ocasião de ocupar um lugar máximo de autoridade, sem ninguém acima dele.
Mas ela é também expressão de uma fraqueza extrema. O poder onipotente é
aquele que precisa estar sempre presente por temer a deserção a qualquer
momento. Ele não pode entrar no interior dos homens, por isto precisa da
coerção contínua.
Freud fundamenta assim a paranoia a partir da impossibilidade da
identificação ao pai operar sem que ela se resvale à condição de escolha de
objeto insuportável de ser assumida. Este problema da impossibilidade da
identificação será o eixo da releitura que veremos de Jacques Lacan.
Note-se ainda como Freud organizará a produção delirante a partir das
modalidades de negação do julgamento: “Eu (um homem) amo ele (um homem)”.
Maneira de insistir na constituição estrutural da racionalidade da posição
paranoica. Quando a afirmação é contrariada por “Eu não o amo – eu o odeio
porque ele me persegue” temos o delírio de perseguição. Quando temos: “Eu não
o amo – eu amo ela”, temos a erotomania. Quando temos “Não sou eu que amo
um homem – ela o ama” temos o delírio de ciúme. Quanto temos: “eu não amo
absolutamente, não amo ninguém” temos o delírio de grandeza. Neste caso,
temos também o retorno do investimento libidinal outrora ligado aos objetos.

Problemas com o corpo próprio

Há ainda um ponto específico que gostaria de trabalhar com vocês. Ele diz
respeito a problematização da relação ao corpo próprio no interior do caso
Schreber. Primeiro, tal relação toca profundamente o que diz respeito à
sexualidade e à identidade sexual. Questão maior, já que toda constituição social
de identidades subjetivas passa necessariamente pela maneira com que
identidades de gênero serão constituídas, modos de prazer corporal serão
organizados, recalcados, deslocados, em suma, ordenados. Não entenderemos
nada sobre a constituição social das identidades subjetivas se não estivermos
atentos aos problemas de gênero, ao modo com que sujeitos constituem seu
pertencimento a um gênero e seu modo de relação a outro.
Levando isto em conta, lembremos como Schreber afirma que, devido a
uma tendência inerente à Ordem do mundo, um homem que entrou em contato
permanente com os raios divinos tenderia à emasculação. Por um lado, a própria
natureza dos nervos de Deus produz uma sensação de volúpia intensa
(característica feminina). Isto a ponto de Schreber afirmar: “Encontravam então,
no meu corpo, um substituto de valor igual ou aproximado à sua perdida
beatitude celeste, que também consistia num gozo de tipo voluptoso”(p. 149)
Por outro lado, haveria um plano, subjacente à Ordem do mundo, de
renovar o gênero humano depois da crise. Este plano foi objeto de um mal-
entendido fundamental advindo do fato de Deus não ser capaz de conhecer
verdadeiramente o homem vivo. Na verdade, por se sentir ameaçado e inspirado
por seu instinto de conservação, Deus tornou-se cúmplice de uma conspiração
dirigida contra Schreber e que consiste em transformar seu corpo em um corpo
feminino que deverá ser entregue para fins de abusos sexuais, isto a fim de
depois ser “deixado largado” e abandonado à putrefação.
O problema das transformações corporais é uma constante nos delírios e
alucinações de Schreber. Por exemplo: “Muitas vezes, durante períodos mais ou
menos longos, vivi sem estômago, e algumas vezes declarei expressamente ao
enfermeiro M., que talvez ainda se lembre disto, que eu não podia comer porque
não tinha estômago” (p. 129). Tais temáticas não deixam de se relacionar a
modalidades de intervenção corporal que, de fato, foram vivenciadas pelo sujeito
em sua educação. Como sabemos, a educação recebida de seu pai incluía um
verdadeiro adestramento corporal com intervenções ortopédicas as mais
radicais e uma moral sexual extremamente rígida:

Poucas pessoas cresceram com princípios tão rigorosos como eu, e poucas,
como eu posso afirmar a meu próprio respeito, se impuseram ao longo de
toda a sua vida tanta contenção de acordo como esses princípios
principalmente no que se refere à vida sexual. (p. 217)

Lembremos ainda como em seus delírios o tema da decomposição corporal


é uma constante. Quando voltar a ser internado pela terceira e última vez,
Schreber afirmará que seu corpo está em deterioração. As vezes murmura coisas
como “cheiro de cadáver”, “apodrecimento”. Como se aquilo que fornecia a
consistência de sua imagem do corpo estivesse se dissolvendo. Ou seja, não se
trata apenas uma transformação, mas de uma verdadeira dissolução que aos
poucos vai se impondo. Dissolução que não deixa de nos remeter à experiência
de uma ordem que não é mais capaz de assegurar seu próprio funcionamento.
Como viu claramente Eric Santner: “Nas metáforas que ele usa para evocar essa
podridão literal e figurada, ressoam fortemente os termos com que o sentimento
generalizado de decadência, degeneração e debilitação eram registrados na
crítica social e cultural do fim do século”92

92
SANTNER, A Alemanha de Schreber, p. 18
Genealogia das psicoses
Aula 8

Na aula de hoje, gostaria de discutir com vocês o desenvolvimento do conceito


lacaniano de psicose a fim de chegarmos a sua releitura do caso Schreber. Para
tanto, gostaria de dar um passo atrás e partir de sua tese de doutorado,
publicada em 1931, Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade.
Orientada pelo psiquiatra Henri Claude, chefe de clínica do Hospital parisiense
de Saint-Anne, a tese terá uma acolhida, no mínimo, peculiar, já que será
praticamente desconsiderada pelo meio médico. Os maiores elogios virão da
revista O surrealismo a serviço da revolução através de resenhas escritas pelo
poeta René Crevel e por Salvador Dali (que havia publicado um artigo sobre
paranoia e produção estética). Isto sem contar uma nota elogiosa do escritor
Paul Nizan no jornal comunista L´humanité.
Esta acolhida tinha uma razão clara: com sua tese, Lacan procurava
constituir uma teoria onde clínica, reflexão social e tematização da produção
estética se articulam de maneira orgânica. Desde o início, esta teoria é um
programa interdisciplinar cuidadosamente montado que, através da
reconstrução dos modos de determinação do normal e do patológico, fornece os
subsídios para uma crítica da razão que não deixa de encontrar-se com as
expectativas disruptivas da vanguarda estética.
A tese de Lacan chegava a tais consequências partindo da defesa de uma
perspectiva à época chamada de “psicogênica” e que consistia em afirmar que:

na ausência de qualquer déficit detectável pelas provas de capacidade (de


memória, de motricidade, de percepção, de orientação e de discurso), e na
ausência de qualquer lesão orgânica apenas provável, existem distúrbios
mentais que relacionados, segundo as doutrinas, à ‘afetividade’, ao ‘juízo’,
à ‘conduta’, são todos eles distúrbios específicos da síntese psíquica93.

Ou seja, tratava-se de uma perspectiva que insistia na irredutibilidade de um


certo quadro de distúrbios mentais a toda e qualquer explicação causal de
natureza orgânica ou mesmo funcional. Quadro no qual encontraríamos, de
maneira privilegiada, o que a psicanálise ainda hoje compreende por psicose
paranoica.
No edifício clínico psicanalítico lacaniano, a paranoia é concebida como
uma das três categorias nosográficas próprias à estrutura psicótica (as outras
duas são a esquizofrenia e a melancolia ou psicose maníaco-depressiva).
Estruturas estas cujo sintoma definidor é, principalmente, a produção
sistemática de delírios e alucinações. Como dissera anteriormente, em manuais
diagnósticos de transtornos mentais até o DSM-IV, a paranoia aparecia como um
subtipo da esquizofrenia. Fala-se então em esquizofrenia do tipo paranoide. No

93
LACAN,Jacques; Da psicose paranóica em sua relação com a personalidade, (Rio de Janeiro:
Forense, 1988); pag. 1. Décadas mais tarde, Lacan se afastará de sua postura psicogênica de juventude.
Mas, neste caso, não se tratava de criticar a noção de uma causalidade não redutível a processos
fisiológicos. Tratava-se, na verdade, de tomar distância da noção de relação de compreensão, tal como
desenvolvida pelo psiquiatra e filósofo Karl Jasper. Noção fundamental para a constituição da
perspectiva psicogênica à época.
entanto, seja em tais manuais seja na literatura psicanalítica, temos um quadro
de identificação relativamente simétrico que vê, na paranoia, um
comportamento psicótico marcado pela produção sistemática de interpretações
delirantes (ligadas normalmente a temáticas de perseguição, ciúme, grandeza
e/ou erotomania) e por uma certa ausência de deterioração intelectual (o que
explica o uso relativamente ordenado da linguagem e a consistência da conduta).
Lacan baseava sua análise da paranoia em uma noção relativamente
comum à época que atribuía a gênese da doença a um problema evolutivo da
personalidade, tal como vimos também em Freud. Mas no seu caso, isto lhe
permitia insistir que apenas a compreensão do processo de formação da
personalidade poderia fornecer a inteligibilidade da psicose paranoica. Daí
porque, Lacan dirá:

É psicogênico um sintoma –físico ou mental – cujas causas se exprimem


em função dos mecanismos complexos da personalidade, cuja
manifestação os reflete e cujo tratamento pode dela depender94.

A esta personalidade, Lacan reconhece a capacidade de síntese de “nossa


experiência interior”, da intencionalidade e da responsabilidade: “a
personalidade é pois a garantia que assegura, para além das variações afetivas,
as constantes sentimentais, para além das modificações de situação, a realização
das promessas. Ela é o fundamento de nossa responsabilidade”95.
Falar em formação da personalidade significa falar sobre dinâmicas de
socialização visando a individuação. Forma-se a personalidade através da
socialização do indivíduo no interior de núcleos de interação como a família, as
instituições sociais, o estado. Tal processo de socialização implica uma certa
gênese social da personalidade que, segundo Lacan, deve servir de horizonte para
a compreensão de patologias que se manifestam no comportamento. O que não
significa negar as bases orgânicas da doença, mas insistir em um domínio de
causalidade vinculado àquilo que Lacan chama à época de “história vivida do
sujeito” ou ainda “história psíquica”. Maneira clara de vincular a reflexão sobre
as patologias mentais a uma certa antropologia que não deixa de nos remeter a
uma das operações fundamentais de constituição da psicanálise freudiana, com
seu hibridismo entre textos sociológicos (Totem e tabu, O mal-estar na
civilização, O futuro de uma ilusão etc.) e textos clínicos. Um pouco como se o
verdadeiro paralelismo a ser procurado pela clínica não fosse exatamente entre
o mental e o orgânico, mas entre o mental e o social. Eis o que Lacan tem em vista
ao insistir nas relações entre psicose paranoica e desenvolvimento da
personalidade; isto a ponto de defender que a verdadeira psiquiatria só poderia
ser uma “ciência da personalidade”. O que demonstra como, contra o
materialismo organicista, Lacan não temia em sugerir algo como um
materialismo histórico aplicado às clínicas dos fatos mentais. Por isto, Lacam dirá:
“Esta gênese social da personalidade explica o caráter de alta tensão que, no
desenvolvimento pessoal, tomam as relações humanas e as situações vitais que a
elas se vinculam”96. Assim, toda personalidade implicará: um desenvolvimento
biográfico, uma concepção de si mesmo e uma certa tensão nas relações sociais.

94
LACAN, Da la psychose paranoiaque, p. 45
95
LACAN, De la psychose paranoiaque, p. 33
96
Idem, p. 42
Da mesma forma, toda doença mental será caracterizada por um “ciclo de
comportamento” no qual todos os episódios se ordenam a partir de tal ciclo. Por
sua vez, esse ciclo de comportamento se organizará a partir dos desdobramentos
da história concreta do desejo. De um desejo cuja história será eminentemente
social. O que faz da categoria do desejo e de sua alienação a chave compreensiva
do sofrimento psíquico.
Veremos na próxima aula o que isto pode significar. Neste momento, é
importante abordar outra questão, a saber, como Lacan compreende esta gênese
social da personalidade resultante das dinâmicas de socialização? De fato, Lacan
já opera aqui com a tendência psicanalítica em compreender socialização e
individuação a partir de processos de identificação.
Identificar-se é, grosso modo, “fazer como”, atuar a partir de tipos ideais
que servem de modelo e de pólo de orientação para os modos de desejar, julgar e
agir. O que nos leva a uma contradição aparente. Pois afirmar que a identificação
é o motor das dinâmicas de socialização significa dizer que o processo social que
permite a constituição de subjetividades é movido pela internalização de
modelos ideais de conduta socialmente reconhecidos e encarnados em certos
indivíduos. Modelos que podem aparecer nas figuras familiares do irmão, dos
pais, ou em qualquer outra figura de autoridade.
No entanto, esta internalização não deixa de ser profundamente
conflitual. Internalizar um tipo ideal encarnado na figura de um outro significa
conformar-se a partir de um outro que serve de referência para o
desenvolvimento do Eu. Se quisermos ser mais exatos, diremos que se trata de
alienar-se, já que significa ter sua essência fora de si, ter seu modo de desejar e de
pensar moldado por um outro. Daí porque uma das temáticas clássicas da teoria
freudiana consiste em lembrar como toda socialização é alienação, como este
processo é fundamentalmente repressivo por exigir a conformação a padrões
gerais de conduta. Para Freud, há algo anterior aos processos de socialização,
algo que não é ainda um Eu, mas é um corpo libidinal polimorfo e inconsistente.
Isto nos explica porque os processos de socialização tendem a se impor através
da repressão do corpo libidinal, da culpabilização de toda exigência de satisfação
irrestrita perpetuando, com isto, relações de agressividade profunda contra
aquilo que serve de ideal. Há um preço alto a pagar para ser um Eu.
A sua maneira, Lacan se serve deste esquema de compreensão da gênese
social da personalidade e do problema da culpabilidade a fim encaminhar sua
interpretação daquele que será seu único “caso clínico” em quase cinquenta anos
de atividade profissional: o caso Aimée97.

O caso Aimée

Marguerite Anzieu (o verdadeiro nome da paciente) fora internada após


tentar esfaquear Huguette Duflos, uma famosa atriz de teatro da época, por crer
que a mesma a perseguia e participava de um complô que visava assassinar seu
filho. Ela já demonstrara um quadro constante de delírios de perseguição, de
grandeza e de erotomania e chegara a passar por uma primeira internação. Após
sair da primeira internação, Marguerite conseguirá transferir seu emprego para

97
Para uma análise completa do caso Aimée, ver Jean Allouch, Paranóia: Marguerite ou a Aimée de
Lacan (Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005)
Paris onde tentará, sem sucesso, ser reconhecida como “mulher de letras e de
ciência”. Suas temáticas delirantes continuarão até o crime perpetrado contra a
atriz de teatro, em 1931. Dias depois de internada, a produção delirante para
momentaneamente. No entanto, ela ficará internada com recaídas constantes até
1943.
Durante seu longo relato clínico, Lacan demonstra como esta filha de
camponeses da “França profunda” era atravessada, desde cedo, pelo sentimento
de deslocamento em relação a seu meio, em relação aos “papéis femininos” e,
sobretudo, por veleidades intelectuais. Lacan dedicará várias páginas ao relato
de seus escritos. Tal atividade literária será fundamental para ele descrever os
tipos ideais que determinaram o desenvolvimento da personalidade de
Marguerite, os mesmos tipos contra os quais ela se volta em seus delírios de
perseguição:

Mulheres de letras, atrizes, mulheres do mundo, elas representam a


imagem que Aimée concebe da mulher que, em algum grau, goza da
liberdade e do poder social (...) A mesma imagem que representa seu ideal
é também o objeto do seu ódio98.

Há assim uma profunda relação de identificação entre Marguerite e suas


perseguidoras, relação que se inverte em rivalidade e agressividade. Pois se o
outro se encontra no lugar que desejo ocupar, nunca cessarei de tentar desalojá-
lo para ser eu mesmo. Daí porque Lacan poderá afirmar: “A noção de
agressividade responde ao dilaceramento do sujeito contra si mesmo”99. A
inabilidade narcisica na distinção entre eu e outro é evidente. O ‘objeto’ desejado
é o duplo do sujeito100. O que o paranoico ama é a imagem de si em um duplo ou,
usando uma terminologia mais apropriada, seu ego-ideal. As reações agressivas
justificam-se já que, ao mesmo tempo em que o sujeito ama a imagem de si no
outro, ela a odeia justamente por ser outro. É esta rivalidade que Lacan chamou
de ‘tensão social’ ao determinar os fatores componentes da personalidade. É ela
que demonstra, por outro lado, que o delírio é uma forma de participação social.
A celebridade de teatro e das letras aparece, para esta “camponesa
desenraizada” que é Aimée como a figura possível de um lugar que poderia lhe
inscrever no interior de uma ordem social que não existe mais em seu meio.
No entanto, explicações desta natureza são genéricas e nunca serviriam
para descrever a particularidade de uma reação paranoica. Lacan precisa
encontrar uma causa que permita explicar como as reversibilidades de um
processo de identificação que concerne todo e qualquer sujeito são vivenciadas
de maneira tão traumática pelo paranoico.
Neste contexto, Lacan traz a noção de fixação do desenvolvimento da
personalidade. No interior da socialização, há um momento de internalização de
um processo que permite ao sujeito tomar certa distância destas identificações
marcadas pela reversibilidade transitiva entre o Eu e o outro. Posteriormente,

98
Jacques Lacan; idem, pag. 254
99
Jacques Lacan, Escritos (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996), p. 347
100
É interessante notar como, já na tese de 1932, o outro é o objeto do desejo do sujeito. Ele é o
suporte das identificações imaginárias do eu e, por esta razão, será o que responde pela identidade do
eu. Como veremos, devido a esse caráter especular do objeto, Aimée só poderá realizar seu desejo,
imbricado de amor e ódio, através da autopunição.
Lacan mostrará como tal processo está vinculado a uma outra identificação, esta
que se dá com a lei social ordenadora representada, no interior da família, pela
função paterna. O argumento de Lacan consistirá em dizer que, na paranoia, esta
segunda identificação estabilizadora com a ordem paterna não ocorre, há uma
fixação que impede o sujeito de atravessar as relações de rivalidade e alienação
com o que lhe aparece como ideal. Ele vive assim em uma confusão narcísica que
faz com que toda alteridade apareça próxima demais, invasiva demais, saída que
já vimos com a leitura freudiana de Schreber (e que no caso Aimée será
representado pela relação de rivalidade entre a paciente e a irmã, que ocupará o
lugar da mãe, que também era psicótica). Pois esta era a maneira lacaniana de
interpretar a noção freudiana segundo a qual a paranoia seria uma reação de
defesa contra a homossexualidade. Tudo se passa como se Lacan transformasse
tal homossexualidade em paixão pelo mesmo, paixão conflitual pela imagem de
si mesmo vinda de um outro. Como se a paranoia fosse, no fundo, uma doença do
narcisismo. Daí a impossibilidade de reconhecer a dependência à alteridade sem
produzir explosões de rivalidade que acabam, por exemplo, sendo projetadas
para fora de si sob a forma de delírios de perseguição.
Levando em conta este jogo de identificações, Lacan poderá fornecer o
sentido da ação criminosa de Marguerite. Na verdade, ao atacar a atriz de teatro,
ela procurou atingir a si mesma. Ela atinge a si mesma não exatamente para
livrar-se de um ideal que a persegue, mas para ser punida, para ser culpada
perante uma lei social da qual ela sempre se sentiu deslocada. Pois ser culpada e
punida é, neste contexto, uma forma peculiar de ter diante de si a presença da
potência asseguradora da lei. Sentir-se culpada é uma forma de inscrever-se no
interior da lei social, como se o crime fosse, na verdade, um modo de demanda de
reconhecimento social que só pode realizar-se se Marguerite sentir que a lei
também “é para ela”. Daí porque, após o crime, Lacan dirá que ela se “cura” de
uma “paranoia de auto-punição” e pode tomar uma certa distância da sua
produção delirante.
Tais mecanismos de autopunição estão internalizados no supereu:
instância psíquica estruturada pela reincorporação, ao Eu, de uma parte do
mundo exterior através de uma identificação secundária. Esta parte do mundo
exterior é constituída pelos objetos que resumem em si mesmos todas as
coerções que a sociedade exerce sobre o sujeito, sejam os pais ou seus
substitutos. O supereu será composto de representações de Ideais do eu
introjetados. O sentimento de culpa, sentimento provocado pela ação dos
mecanismos de autopunição, será a expressão do confronto entre as exigências
do supereu e os desempenhos concretos do Eu.
Notemos então como esta cura não deixa de ter um acento peculiar. Ao
sentir-se culpada, Marguerite se encontra com uma ordem social punitiva e
“legítima”, cuja ausência teria permitido o advento da psicose. Como bem
assinalou Borch-Jacobsen, a respeito dos casos criminais lacanianos: “eles são
criminosos devido a um obscuro desejo de glorificar a lei que eles violam”101.
Lembremos de Freud afirmando: “Em muitos criminosos, especialmente nos
principiantes, é possível detectar um sentimento de culpa muito poderoso, que
existia antes do crime, e, portanto, não é o seu resultado, mas sim o seu motivo. É
como se fosse um alívio poder ligar esse sentimento inconsciente de culpa a algo

101
BORCH-JACOBSEN, Mikkel; Lacan: the absolute master, pag. 25
de real e imediato”102. Por isto, a ação criminosa de Aimée será compreendida
por Lacan como uma “catarse” que produz a liberação do sujeito em relação a
uma concepção de si mesmo e do mundo devido a um choque com a realidade.
Não é por outra razão que Lacan recomendará, como estratégia profilática
contra a psicose, a recondução destes pacientes a instituições sociais rígidas ou a
grande ideais reformadores que exigem abnegação. “A fórmula de atividade a
mais desejável para esses sujeitos é seu enquadre em uma comunidade de
trabalho, à qual eles estão vinculados por um dever abstrato” 103. Por sinal, esta
será sua estratégia quando tiver em análise Dora Maar (artista e amante de
Picasso) nos anos quarenta. Sentido a fragilidade de sua estrutura psicótica,
Lacan verá como saída clínica o reforço de seu encaminhamento em direção à fé
religiosa. Pois: “na falta dessa solução ideal, toda comunidade tendendo a
satisfazer mais ou menos completamente as mesmas condições: exército,
comunidades políticas e sociais militantes, sociedades filantrópicas, de emulação
moral ou sociedades de pensamento, beneficiariam da mesma indicação”104.
Segundo, não é difícil notar que Lacan está mais interessado em “uma
psicanálise do eu do que em uma psicanálise do inconsciente”105 ligada à análise
dos mecanismos de resistência do sujeito. Como vimos, a causalidade da psicose
paranoica foi descrita através de uma teoria das identificações e da gênese social
da personalidade que em momento algum precisou fazer apelo direto à noção
psicanalítica de inconsciente. Na verdade, durante décadas Lacan considerará o
conceito de inconsciente como supérfluo. Foi só a partir de seu encontro com o
inconsciente estrutural de Lévi-Strauss, isto no início dos anos 50, que Lacan
“retornará” ao inconsciente freudiano.

102
FREUD, Sigmund; O Ego e o Id, pag. 69
103
LACAN, De la psychose paranoiaque, p. 277
104
Idem, p. 278
105
LACAN, Da psicose paranóica, p. 280
Genealogia das psicoses
Aula 9

Nas últimas aulas, vimos o desenvolvimento da teoria psicanalítica das psicoses,


principalmente através do comentário freudiano ao caso de Daniel Paul
Schreber. Através dele, Freud fornecia uma teoria da paranoia fundada na
fixação da personalidade em um momento do processo de maturação libidinal
caracterizado pelo primado do narcisismo. Esta fixação na fase narcísica, que
podia se manifestar através da impossibilidade de operar mediações entre eu e
outro, de distinguir identificações e investimentos libidinais, assim como através
da generalização da sobreposição entre percepção e projeção, era a maneira
freudiana de pensar a doença mental como degenerescência e regressão.
Ela ainda levava Freud a pensar, de forma distinta àquela presente em
Bleuler, a distinção entre normalidade e patologia. Vimos como a definição
bleureniana de esquizofrenia pressupunha uma distinção estrutural baseada na
incapacidade de organização de sínteses psíquicas e hierarquias funcionais
devido à cisão na personalidade. Já a definição freudiana pressupunha certa
continuidade entre normalidade e patologia, já que os mecanismos patológicos
eram compreendidos como o resultado de fixações no interior de processos
normais de desenvolvimento.
Na aula passada, vimos as elaborações do jovem Lacan a respeito da
paranoia. Elaborações estas que explicitavam a necessidade de compreensão da
gênese social da personalidade como condição para a determinação dos
mecanismos das patologias mentais. Esta gênese social expunha processos de
constituição de identidade por identificação que eram, por sua vez, expostos a céu
aberto pelos delírios paranoicos. Ela fornecia assim um horizonte concreto e
psicogenético que, posteriormente, vinculará as patologias mentais a etiologias
resultantes de problemas nas dinâmicas de socialização, operando assim uma
guinada materialista no interior da clínica analítica.
Por outro lado, a peculiaridade de Lacan consiste, inicialmente, em
modificar paulatinamente a relação entre psicose e personalidade que aparece
como o eixo para a definição do quadro clínico. Seguindo uma via aberta por
Freud, a personalidade deixará, cada vez mais, de ser definida como o horizonte
normativo para o estabelecimento dos julgamentos referentes à normalidade. Se
em Freud o processo de constituição da personalidade fornecia os momentos de
fixação responsáveis pela consolidação das patologias, em Lacan a própria
personalidade será paulatinamente compreendida como um mecanismo
patológico de defesa. Isto explicitará porque, contrariamente a outras práticas
analíticas hegemônicas em sua época, a clínica de Lacan não procurará
desenvolver mecanismos para fortalecer as capacidades de síntese e unidade da
personalidade, de fortalecer o Eu em sua função de mediação entre exigências da
realidade e exigências das pulsões inconscientes. Ela tenderá cada vez mais a
compreender o Eu como um sintoma e suas funções de síntese e unidade como
possíveis de serem realizadas apenas graças a mecanismos profundos de
“desconhecimento”. Por “desconhecimento” Lacan entende a posição reificada
que o Eu deve absorver, a defesa que ele desenvolve contra a compreensão de
sua própria gênese com todo o sistema de dependências entre eu e outro. Daí
posições extremas como:
Se formamos analistas, é para que existam sujeitos nos quais o eu esteja
ausente. É o ideal da análise que, claro, continua sempre virtual. Nunca há
um sujeito sem eu, um sujeito plenamente realizado, mas é isto que
sempre devemos tentar obter do sujeito em análise106.

Isto a ponto de Lacan afirmar que, na psicose: “o sujeito se encontra


completamente identificado com seu eu”107. Neste sentido, Lacan pode falar da
constituição paranoica da própria gênese do Eu porque se trata de mostrar como
a autonomia e a individualidade, atributos essenciais à noção moderna de
personalidade, são apenas figuras do desconhecimento em relação a uma
dependência constitutiva ao outro. Acreditamos que nosso Eu é o centro de
nossa autonomia e auto-identidade. No entanto, sua gênese demonstra como, nas
palavras de Rimbaud, “Eu é um outro”. Daí a noção, central em Lacan, de que a
verdadeira função do Eu não está ligada à síntese psíquica ou à síntese das
representações, mas ao desconhecimento de sua própria gênese e à projeção de
esquemas mentais no mundo. Ou ainda: “o eu é este senhor que o sujeito
encontra em um outro, e que se instaura em sua função de dominação do coração
de si mesmo”108.
Mas temos então um problema maior. Pois, se não é mais a personalidade
que fornecerá o horizonte de distinção entre normalidade e patologia no interior
da clínica das psicoses, onde estará o critério?

Formas de negação

Podemos iniciar dizendo que, contrariamente a diagnósticos vinculados à


desarticulação da personalidade, Lacan definirá funcionalmente a psicose pela
prevalência de um certo modo de agenciamento de conflitos psíquicos. Por
exemplo, nas neuroses, os conflitos psíquicos são agenciados principalmente
através dos mecanismos de recalque, responsáveis pela clivagem do aparelho
psíquico em instâncias distintas, isto devido ao deslocamento de representações
mentais insuportáveis para a consciência à um “outro lugar”, a uma “outra cena”
na qual encontramos o inconsciente. Os conflitos psíquicos constituem um
aparelho dividido entre Eu, Isso e Supereu. Por ser deslocado para um outro
lugar, as representações mentais recalcadas são também conhecidas pela
instância que recalca, a saber, a consciência. Há uma espécie de saber tácito da
consciência a respeito do recalcado, há uma primeira simbolização do conteúdo
recalcado. O que permite que o recalcado seja recuperado através de
mecanismos de interpretação.
Já nas psicoses, os conflitos psíquicos não seriam organizados a partir do
recalque mas a partir do que Lacan chama de forclusão. Forclusão é um termo
jurídico empregado pela primeira vez em um contexto clínico pelo psicanalista e
linguista Edouard Pichon, que visava assim designar a particularidade da dupla
negação no francês. Em francês, a negação é normalmente produzida por duas
partículas: ne e pas ou rien, jamais, personne. O valor principal da negação
encontra-se na segunda partícula. Damourette e Pichon dizem que as ideias
tocadas por tais partículas: “são como que expulsas do campo de possibilidades

106
LACAN, S II, p. 287
107
LACAN, S III, p. 23
108
LACAN, S III, p. 107
percebidas pelo locutor”109. Elas exprimiriam um desejo de que certas coisas
tivessem sido “escotomizadas”, termo criado por René Laforgue e que se refere
aos fenômenos próprios à alucinação negativa. Fenômenos através dos quais um
objeto no campo de percepção do sujeito é eliminado, como se não existisse.
Lacan se serve desta discussão de Pichon para desenvolver a ideia de que,
na psicose, temos sempre fenômenos semelhantes a uma forclusão jurídica.
Contrariamente ao que é recalcado, o que é forcluído não foi objeto de uma
primeira simbolização. Por isto, não há a necessidade de uma clivagem através
da qual o aparelho psíquico se cinde. Na verdade, a forclusão é uma abolição que
faz com que aquilo que foi eliminado no Simbólico retorne no Real sob a forma
de alucinações. É isto que Lacan quer dizer ao afirmar:

O sujeito, na impossibilidade de restabelecer de alguma maneira o pacto


entre sujeito e outro, na impossibilidade de fazer alguma forma de
mediação simbólica entre o que é novo e ele mesmo, entra em um outro
modo de mediação, completamente diferente do primeiro, substituindo a
mediação simbólica por um formigamento, por uma proliferação
imaginária na qual se introduz, de uma maneira deformada e
profundamente a-simbólica, o sinal central de uma mediação possível110.

Há um acontecimento que não pode ser simbolicamente inscrito, não


pode ser reconhecido em um campo de partilha intersubjetiva entre o sujeito e o
outro. Esta ausência de inscrição, no entanto, não é simplesmente um
apagamento da existência do acontecimento, mas sua transcrição em uma
mediação deformada e a-simbólica, porém a única possível. Deformação própria
a um campo de experiência marcado por estruturas narcísicas e imaginárias. Ou
seja, um acontecimento da ordem da alteridade só pode ser assumido como
identificação imaginária, com as consequências de desintegração do corpo
próprio, explosão de rivalidade sob a forma de delírio de perseguição e de
anulação dos regimes de identidade que sustentavam uma certa establidade pré-
psicótica. Neste sentido, podemos compreender porque Schreber nunca integrou
espécie alguma de figura feminina e por que o surto psicótico se deu à ocasião da
realização da identificação imaginária com a figura feminina através da
afirmação: “seria bom ser uma mulher no momento do coito”. Identificação
resultante da descoberta de sua impossibilidade em ser genitor.
Neste ponto, devemos compreender melhor o que Lacan entende por
imaginário e simbólico. Notemos, inicialmente que este é um problema
fundamental para sua teoria das psicoses porque, de certa forma, a psicose é o
resultado da redução do campo de experiência à dimensão do Imaginário.
Podemos dizer que o Imaginário é aquilo que o homem tem em comum com o
comportamento animal. Trata-se de um conjunto de imagens ideais que guiam
tanto o desenvolvimento da personalidade do indivíduo quanto sua relação com
seu meio ambiente próprio. Mas o que pode significar dizer que há um conjunto
de imagens que guiam a relação do indivíduo com seu meio ambiente?
Lembremos inicialmente que, para a psicanálise, os processos perceptivos e
cognitivos não são “neutros”, mas dependem do sistema de interesses que temos

109
DAMOURETTE e PICHON,
110
LACAN, S III, p. 101
em relação ao mundo Isto implica em admitir que o desejo é a função intencional
determinante na interação do sujeito ao seu meio ambiente.
Uma colocação desta natureza parece implicar um relativismo e um
psicologismo extremos que nos levariam a afirmar ser o mundo nada mais do
que aquilo projetado pelo desejo particularista do sujeito. Relativismo
aparentemente presente quando Lacan diz que o homem só encontra em seu
meio ambiente imagens das coisas que ele próprio projetou: “É sempre em volta
da sombra errante do seu próprio eu que se estruturarão todos os objetos do seu
mundo [assim como sua percepção dos outros empíricos]. Eles terão um caráter
fundamentalmente antropomórfico, digamos mesmo egomórfico” 111 . O que
explica porque o Imaginário em Lacan é fundamentalmente narcísico.
Proposições desta natureza parecem dificilmente defensáveis por não
explicarem como podemos ter “mundos em comum” cuja objetividade é
socialmente reconhecida. No entanto, lembremos que, com sua teoria da
constituição do Eu, Lacan demonstrou como é a partir da imagem do outro que
oriento meu desejo e minha relação ao mundo social. A imagem mostra como “o
desejo do homem é o desejo do outro”. Assim, não se trata simplesmente da
projeção do Eu sobre o mundo dos objetos, já que a imagem do outro é a
perspectiva de apreensão dos objetos. O mundo dos objetos já é sempre
constituído através da perspectiva fornecida pelo desejo do outro, um desejo que
não posso reconhecer como alteridade no interior do si mesmo. Impossibilidade
que se manifesta na perpetuação de estruturas de agressividade e de exclusão
em relação à alteridade, isto devido às mesmas razões que vimos na descrição do
caso de paranoia na aula passada. Assim, chegamos às duas principais
características do Imaginário: narcísico e marcado por relações duais.

O Nome-do-Pai

A fim de sair deste universo imaginário marcado por relações narcísicas,


duais e projetivas, relações nas quais as distâncias são impossíveis, o sujeito
precisa aceder ao que Lacan entende por estrutura simbólica. Há várias maneiras
de discutir este ponto, mas gostaria de abordar um ponto que nos é fundamental.
Lacan insiste que a Lei social que estrutura o universo simbólico, que define os
lugares no interior da vida social, que constitui as identidades, os sistemas de
trocas, não é uma lei normativa no sentido forte do termo, ou seja, uma lei que
enuncia claramente o que devo fazer e quais condições devo preencher para
segui-la. Esta é uma questão central que costuma gerar confusões. A Lei
simplesmente organiza distinções e oposições que, em si, não teriam sentido
algum. Assim, por exemplo, a Lei da estrutura de parentesco pode determinar
topicamente vários lugares, como “filho de...”, “pai de...”, “cunhada de...”, mas
estes lugares não têm em si nenhuma significação normativa, nenhuma
referência estável. Por isto, nunca sei claramente o que significa, por exemplo,
ser “pai de...”, mesmo tendo consciência de que ocupo atualmente tal lugar. Só
posso saber o que um pai é, o que devo fazer para assumir a autoridade e
enunciar a norma à condição de acreditar em uma certa impostura. É esta
ausência de conteúdo que Lacan tem em vista ao afirmar que a Lei sócio-

111
Jacques Lacan, Séminaire II, (Paris : Seuil, 1982), p. 198
simbólica é composta por significantes puros, que ela é uma “cadeia de
significantes”.
Isto pode nos auxiliar a entender o que Lacan quer dizer com Nome-do-
Pai e com sua teoria da psicose como forclusão do Nome-do-Pai. Pois quando
comentar os relatos psicóticos de Daniel-Paul Schreber, Lacan completará a
teoria da forclusão afirmando que tal operação sempre incide sobre um
significante privilegiado que sustenta a identificação do sujeito à ordem
simbólica. Daí uma afirmação como: “a falta de um significante leva
necessariamente o sujeito a colocar em questão o conjunto dos significantes. Eis
a chave fundamental para o problema da entrada na psicose”112. Pois o conflito
psíquico fundamental para a entrada na psicose diz respeito à identificação com
a representação que encarna o acesso à ordem simbólica. Neste caso, trata-se, ao
menos para Lacan, da identificação paterna. É a compreensão da função paterna
como um mero significante que aparece como impossível ao psicótico. Tentemos
entender melhor este ponto.
Desde a época em que estava à procura da gênese social da personalidade,
Lacan trabalhava com um esquema onde as dinâmicas de socialização eram
pensadas a partir de identificações. A principal destas identificações se daria com
o pai. No entanto, Lacan parte de uma consideração de ordem histórica. Ele
pensa o problema da função paterna em uma época marcada exatamente por
uma crise psicológica produzida pelo “declínio social da imago paterna”. Época
na qual a imagem do pai é: “sempre carente, ausente, humilhada, dividida ou
postiça”113.
Várias razões podem ser aventadas para tal declínio. Para Lacan, trata-se
de um paradoxo interno à família burguesa. Pois o pai da família burguesa não é
apenas o ideal que fornece as referências da minha conduta e do meu modo de
desejar. No caso masculino, ele é também o rival na posse do objeto materno. Por
um lado, há uma relação assimétrica de idealização; por outro, há uma relação
simétrica de rivalidade. Por isto, converge para o pai a função simbólica de
representante da Lei, que responde pela normalização sexual e que será
internalizada através do Ideal do eu, e a característica imaginária do pai
enquanto rival na posse do objeto materno, rivalidade introjetada através do
supereu repressivo. Exatamente para impedir tal sobreposição, em várias
sociedades o pai não é o responsável pelo acesso à função simbólica, mas o avô, o
irmão da mãe, etc.
Assim, devido a uma razão estrutural própria aos modos de socialização
hegemônicos na modernidade, o pai nunca está à altura de sua função simbólica.
Quer dizer, ninguém na efetividade pode realizar a função simbólica do pai e
colocar-se como encarnação do Ideal do eu: “O pai simbólico não está em lugar
algum, ele não intervém em lugar algum” 114. No entanto, a astúcia consiste em
dizer que apenas nesta condição podemos levar o sujeito a reforçar a
identificação com a função paterna. Pois esta função não é outra coisa do que a
formalização da impossibilidade de todo e qualquer figura empírica legislar em
Nome-do-Pai. Ou seja, não se trata de levar o sujeito a se identificar com a
imagem do pai, mas com uma função sem potência normativa, função que apenas
dá forma à inadequação radical do desejo humano. Daí porque: “O Nome-do-Pai é

112
LACAN, S III, p. 229
113
Jacques Lacan, Outros escritos (Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 2003), p. 67
114
Jacques Lacan, Séminaire IV (Paris : Seuil, 1994), p. 210
apresentado como o nome de uma falha”115. Tudo se passa como se o declínio da
imago paterna, a crise de investiduras em relação à autoridade, fosse condição
sócio-histórica para o reconhecimento do desejo em sua inadequação. Como se o
verdadeiro pai não fosse aquele que impõe uma norma a ser seguida, mas aquele
que, por se calar diante das questões fundamentais da existência de todo sujeito,
permite que um espaço de indeterminação se abra.
Esta natureza do pai como formalização da inadequação entre o desejo, os
objetos empíricos e as representações imaginárias é tão central que ela
organizará as distinções lacanianas entre neurose e psicose. Grosso modo, a
psicose será vista como o resultado de um fracasso do processo de socialização
resultante da forclusão desta natureza eminentemente simbólica da função
paterna. Daí porque as representações de pais de psicóticos são, ou desprovidas
de qualquer carência ou fragilidade (como se não existisse diferença entre pai
empírico e função paterna, ou seja, como se a figura do pai fosse imaginarizada),
ou simplesmente inexistentes, como no caso Aimée. Já nas neuroses, esta
natureza simbólica da função paterna é inscrita no campo da experiência. No
entanto, ela é inscrita de uma maneira peculiar, já que o neurótico procura a todo
momento negar o que ele mesmo inscreveu.
Neste sentido, Lacan compreenderá o caso Schreber como a descrição da
forclusão da natureza simbólica da identificação paterna, natureza esta que
permitiria ao sujeito fazer circular a falta constitutiva de seu próprio desejo.
Falta esta que expressa a ausência de determinação natural de seu desejo, a
fragilidade das operações de sentido e das estruturas de sua identidade, o
desamparo diante da morte, da sexualidade e do gozo. Não há acesso a uma
ordem de experiência que permitiria a circulação desta falta ligada a um modo
de ser do sujeito. Por isto, o que é da ordem da ausência e da falta só podem
aparecer a ele sob a forma de delírios, como o delírio de uma crise da ordem
divina, o delírio de um deus que nada sabe sobre os vivos.

A linguagem na psicose

Notemos, para finalizar, alguns traços fundamentais do funcionamento da


linguagem na psicose. Pois Lacan afirma que o diagnóstico de psicose exige
certos problemas na linguagem. A respeito dos neologismos que normalmente
compõem o delírio psicótico, Lacan dirá: “É uma significação que não envia a
nada, a não ser a ela mesma, ela fica irredutível. O doente sublinha que a palavra
tem peso em si mesma"116. Encontramos tal inércia também nas considerações
de Lacan a respeito da economia do inconsciente na psicose. Se é verdade que,
na psicose, o inconsciente não é recalcado, apresentando-se a céu aberto:
“Contrariamente ao que poderíamos acreditar, que ele esteja aí não significa em
si mesmo resolução alguma mas, ao contrário, uma inércia toda particular" 117.
Tal significação inerte é o signo de uma linguagem reduzida à economia
imaginária do discurso, linguagem naturalizada e coisificada, já que ela não
dispõe da dimensão do Outro. Trata-se de uma linguagem na qual o Outro está

115
Erik Porge, Les noms du père chez Jacques Lacan, p. 105
116
LACAN, S III, p. 43
117
LACAN, S III, p. 164
reduzido ao outro, o que produz uma suplementação do Simbólico pelo
Imaginário.
Ainda sobre esta inércia própria à linguagem psicótica, lembremos que
Freud caracterizou tal linguagem como: “uma linguagem que trata as palavras
como coisas”118. Consideração ilustrada pelo exemplo da analisanda de Victor
Tausk, conduzida à clínica após uma disputa com seu amante e portando a
seguinte reivindicação: “Meus olhos (Augen) não estão como devem estar, eles
estão revirados (verdreht)”. Resultado da coisificação da metáfora: “meu amado
é um hipócrita, um Augenverdreher”. Pois, se Freud afirma que, na esquizofrenia,
há a predominância da relação de palavra sobre a relação de coisa, é porque as
palavras foram coisificadas.

118
FREUD, GW vol. X, p. 298
Genealogia das psicoses
Aula 11

Na aula de hoje, gostaria de apresentar a matriz dos debates em torno das


psicoses desenvolvidos no campo do que entendemos atualmente por “anti-
psiquiatria”. Termo utilizado pela primeira vez pelo psiquiatra David Cooper, ele
resultava da compreensão da psiquiatria hegemônica até então como uma
prática profundamente disciplinar, adaptativa e moralizadora. Não apenas as
práticas de intervenção clínica hegemônicas teriam tais características, não
temendo operar com intervenções julgadas violentas, como eletrochoques e
lobotomia. Na verdade, as próprias categorias clínicas psiquiátricas seriam, em
larga medida, construções sociais naturalizadas que diriam mais respeito aos
modos de reprodução social do que a descrições sobre modalidades de
sofrimento. Isto significava dizer, por exemplo, que haveria um sofrimento
produzido não exatamente pelo fato de certo grupo de pessoas serem
esquizofrênicas, mas pelo fato de certos grupos de pessoas só poderem existir
socialmente, só poderem ter inscrição social como esquizofrênicas. Da mesma
forma, haveria uma violência que não seria apenas violência produzida pela
psiquiatria, mas uma violência da própria psiquiatria enquanto discurso e
prática de intervenção. Violência esta que significaria bloqueio em possibilidades
de realização de emancipação devido à aceitação da conformação de si a
modalidades estereotipadas de comportamento e julgamento.
Neste sentido, a antipsiquiatria aparece como um momento de inflexão da
clínica em direção a tematização das relações entre patologia e poder. Ela será
sensível à existência de um poder psiquiátrico que se exerceria através de
múltiplas modalidades de intervenção clínica, sendo a principal vinculada ao uso
da instituição asilar. Daí afirmações como: “Durante o último século, a
psiquiatria, na opinião de número crescente de psiquiatras contemporâneos, se
alinhou demasiado intimamente com as necessidades alienadas da sociedade
dentro da qual ela funciona”119. Por isto, a antipsiquiatria tentará levar a cabo
uma modificação estrutural nas práticas clínicas, em especial através da crítica a
instituição asilar como dispositivo de segregação e disciplina.
Tais modificações partem da compreensão de que: “The behaviour of the
patient is to some extent a function of the behaviour of the psychiatrist in the
same behavioural field. The standard psychiatric patient is a function of the
standard psychiatrist, and of the standard mental hospital”120. Ou seja, não seria
possível abstrair da dimensão relacional do comportamento dos pacientes, não
levar em conta a maneira com que seus comportamentos são, muitas vezes,
respostas a padrões de interpretação e classificação produzidos pelo saber
médico.
Alguns dos psiquiatras associados a antipsiquiatria, como Robert Laing,
virão de correntes ligadas a psiquiatria fenomenológica. Outros, como David
Cooper, virão de uma certa tradição marxista. Eles aparecem principalmente a
partir dos anos sessenta, em um momento histórico marcado pela sensibilidade

119
COOPER, David; Psiquiatria e antipsiquiatria, p. 10
120
LAING, Robert; The divided mind, p. 28
cada vez maior à natureza política da distinção entre normalidade e patologia
quando aplicada ao campo do sofrimento psíquico. Nesta mesma época, teremos
trabalhos como os de Michel Foucault e sua discussão sobre o processo de
transformação da loucura em doença mental (A história da loucura é de 1962).
Teremos ainda experiências clínicas de comunidades terapêuticas em vários
países da Europa e nos EUA, assim como uma forte discussão a respeito de
práticas antiasilares, como aquelas levadas a cabo na Itália por Franco Basaglia.
Todos esses casos expressam a insistência, cada vez maior, de que a crítica social
não pode ficar imune à maneira com que as sociedades inscrevem sofrimentos
em patologias, como a classificação de patologias mentais é um setor
fundamental da gestão social, pois nelas expressam os ideais de comportamento,
de rendimento, de valoração que a sociedade espera de seus membros.
Tentemos então compreender algumas das posições da antipsiquiatria a
respeito das psicoses e da esquizofrenia. Elas serão importantes para a
consolidação de modalidades de crítica a práticas e a regimes de descrição
clínica que serão um eixo fundamental do debate clínico nos anos sessenta e
setenta.

Laing e a esquizofrenia

The term schizoid refers to an individual the totality of whose experience


is split in two main ways: in the first place, there is a rent in his relation
with his world and, in the second, there is a disruption of his relation with
himself. Such a person is not able to experience himself 'together with'
others or 'at home in' the world, but, on the contrary, he experiences
himself in despairing aloneness and isolation; moreover, he does not
experience himself as a complete person but rather as 'split' in various
ways, perhaps as a mind more or less tenuously linked to a body, as two
or more selves, and so on121.

Esta definição de Laing é clara em sua procura em definir a esquizoidia a partir


do problema fenomenológico dos modos de estar-no-mundo. Ela procura ainda
compreender suas reações a partir da temática da perda de contato vital com o
mundo e consigo mesmo. Vimos na aula passada como tal perspectiva fornecia
um solo positivo para a interpretação dos sintomas, delírios e alucinações que
determinarão o sofrimento psíquico esquizofrênico. Laing chega a definir a
posição esquizofrênica como aquela produzida por uma “insegurança
ontológica” advinda da decomposição de um horizonte de garantias na sua
capacidade de se relacionar ao mundo e a si mesmo, de onde se seguiria
sentimentos de irrealidade, esvaziamento, possessão, absorção pelo outro,
despersonalização que são tão típicos da esquizofrenia. Neste sentido, a
esquizofrenia aparece então como um modo de defesa contra certa insegurança
ontológica:

If the individual cannot take the realness, aliveness, autonomy, and


identity of himself and others for granted, then he has to become
absorbed in contriving ways of trying to be real, of keeping himself or

121
Idem, p. 12
others alive, of preserving his identity, in efforts, as he will often put it, to
prevent himself losing his self. What are to most people everyday
happenings, which are hardly noticed because they have no special
significance, may become deeply significant in so far as they either
contribute to the sustenance of the individual's being or threaten him
with non-being. Such an individual, for whom the elements of the world
are coming to have, or have come to have, a different hierarchy of
significance from that of the ordinary person, is beginning, as we say, to
'live in a world of his own', or has already come to do so122.

Aceita tal perspectiva, Laing distingue a posição esquizoide da pura e simples


esquizofrenia. Pois a posição de insegurança ontológica pode produzir a
reconstrução de um campo de relação mais apto a dar conta das singularidades
da posição subjetiva. No entanto, ele pode também pode redundar em uma
condição esquizofrênica assim descrita por Laing:

Such a mode of being-with-others would presuppose the capacity to


maintain one's reality by means of a basically autistic identity. It would
presuppose that it is finally possible to be human without a dialectical
relationship to others. It seems that the whole aim of this manoeuvring is
the preservation of an 'inner' identity from phantasied destruction from
outer sources, by eliminating any direct access from without to this
'inner' self. But without the 'self ever being qualified by the other,
committed to the 'objective' element, and without being lived in a
dialectical relationship with others, the 'self is not able to preserve what
precarious identity or aliveness it may already possess123.

Desconstruindo a esquizofrenia

Laing ainda compreende a esquizofrenia dentro de um quadro no qual ela não


será definida como um mero “rótulo”, como no caso de Cooper e Thomas Szaz.
Para eles, trata-se simplesmente de afirmar que o termo esquizofrenia: “pouco
fez além de confundir o problema real, não havendo a mínima parcela de
evidência indiscutivelmente inequívoca para apoiar a inclusão da esquizofrenia
como entidade mórbida no campo da nosologia médica”124. Na verdade, Cooper
dirá que a esquizofrenia não é um termo totalmente desprovido de significado,
mas ela descreve um fenômeno de natureza bem específica, a saber: uma
situação de “crise microsocial” na qual os atos e experiências de determinadas
pessoas são invalidados por outras, em razão de certas razões culturais a ponto
das primeiras serem consideradas “mentalmente doentes”.
Neste sentido, aquilo que entendemos por “esquizofrenia” poderia ser
descrito a partir da análise de tais crises microsociais, ou seja, crises em um
grupo finito de pessoas em interação face a face. Sua estrutura de causalidade
exige a compreensão dos comportamentos esquizofrênicos, ou seja, “a maneira
com que a pessoa rotulada como esquizofrênica se objetiva no mundo”. Maneira
esta que é orientada a um sentido apreensível apenas à condição de

122
Idem, p. 43
123
Idem, p. 139
124
COOPER, David; Psiquiatria e antipsiquiatria, p. 16
recuperarmos a dimensão das relações concretas que se desdobram no campo
social. Daí uma afirmação central como:

A loucura não se encontra ‘numa’ pessoa, porém num sistema de


relacionamentos em que o ‘paciente’ rotulado participa: a esquizofrenia,
se é que significa alguma coisa, constitui um modo mais ou menos
característico de comportamento grupal perturbado. Não existem
esquizofrênicos125.

Esta concepção será importante pois nos lembrará que, se a loucura


ocorre em um sistema de relacionamentos, então não há cura possível sem um
tratamento do comportamento grupal perturbado. O que pode implicar uma
crítica às estruturas institucionais de socialização de sujeitos como condição
para o “tratamento” da doença mental. No interior destas relações concretas,
Cooper lembrará que a família desempenha um papel primordial. Fato resultante
do desenvolvimento material das sociedades capitalistas e de seus “valores de
isolamento íntimo (privacy)” que fortaleceram necessariamente as famílias.
Nas famílias de pessoas destinadas à designação de esquizofrênico, as leis
do grupo são, ao mesmo tempo, confusas e inflexíveis. A família pode falhar em
criar um “campo de ação recíproca” que permitiria processos bem sucedidos de
reconhecimento:

Assim, o processo de vir a ser uma pessoa pode estar errado, e pode estar
errado já nos meses iniciais de uma vida. Se a mãe falhar em gerar o
campo de ação recíproca, de modo que a criancinha aprenda como afetá-
la como outro, o filho carecerá da precondição para a realização de sua
autonomia pessoal. Será para sempre uma coisa, um apêndice, algo não
inteiramente humano, uma boneca perfeitamente animada126.

Cooper chega mesmo a dizer que sintomas esquizofrênicos são todos


aqueles que tornam a família insuportavelmente ansiosa em relação às tentativas
de independência de um de seus membros. Cria-se então uma situação tal na
qual a reação é, ou a submissão total, com o abandono de sua liberdade, ou a
saída do grupo, com a angústia contra a separação e a culpa. Uma saída que será
apenas a entrada em outro grupo que reproduz as peculiaridades
enlouquecedoras da família do paciente, a saber, o hospital psiquiátrico.
A reflexão sobre o hospital psiquiátrico ganhará uma nova dimensão
graças a antipsiquiatria. Pois o hospital será visto principalmente como um
aparelho de definição de condutas esperadas. Ele constituirá um campo no qual
impera uma maneira de passividade e responsividade. O hospital será, na
verdade, uma família ampliada. Contra a figura normativa e disciplinar do
hospital psiquiátrico, Cooper, assim como outros psiquiatras vinculados a
antipsiquiatria, defenderão o modelo de comunidades terapêuticas. Neste
espaço, seria possível reconhecer “a complexidade dialética da realidade
humana”. Assim é descrito tais comunidades:

125
Idem, p. 47
126
Idem, p. 39
Deveremos procurar o momento vital da praxis, o núcleo intencional de
cada existência humana, o projeto pelo qual cada pessoa se define no
mundo, Isto foi sempre difícil de conseguir na grande instituição
psiquiátrica tradicional e, em termo práticos, nossa experiência sugere
que se carece de uma pequena comunidade de cerca de trinta ou quarenta
pessoas, que funcione sem os preconceitos e prejuízos clínicos correntes,
sem hierarquização funcionário-paciente rígida e externamente imposta e
com envolvimento pleno e ativo das famílias das pessoas incluídas na
comunidade. Em semelhantes comunidade ‘experimental’, uma pessoa
não terá de lutar com os desejos alienados de outros, que se esforçam
para mete-la no molde, a fim de curá-la da tentativa de se tornar a pessoa
que realmente é. Ela terá, por fim, a oportunidade de descobrir e explorar
modos autênticos de se relacionar com outros. Tal comunidade ainda não
existe, porém pode ser criada127.

É evidente aqui o caráter regulador do horizonte fenomenológico da


autenticidade, do modo de estar-no-mundo que vimos anteriormente em
Binswanger, além de uma discussão tipicamente sartreana a respeito do projeto
existencial.

127
Idem, p. 52
Uma genealogia das psicoses
Aula 12

Na aula de hoje, daremos sequência à crítica da clínica e do horizonte conceitual


das psicoses desenvolvidas a partir do advento da antipsiquiatria. Vimos como se
tratava, inicialmente, de questionar a própria natureza das categorias clínicas de
descrição de patologias mentais. Cooper, Laing, Szasz entendiam, cada um a sua
maneira, que categorias clínicas deveriam ser compreendidas a partir de sua
função disciplinar no interior dos modos de reprodução material da vida social.
Lembremos como Cooper, por exemplo, chegava a definir a esquizofrenia como
um mero “rótulo”. Para ele, trata-se simplesmente de afirmar que o termo
esquizofrenia: “pouco fez além de confundir o problema real, não havendo a
mínima parcela de evidência indiscutivelmente inequívoca para apoiar a
inclusão da esquizofrenia como entidade mórbida no campo da nosologia
médica”128. Na verdade, Cooper dirá que a esquizofrenia não é um termo
totalmente desprovido de significado, mas descreve um fenômeno de natureza
bem específica, a saber: uma situação de “crise microsocial” na qual os atos e
experiências de determinadas pessoas são invalidados por outras, em razão de
certas razões culturais a ponto das primeiras serem consideradas “mentalmente
doentes”.
Esta forma de compreender a psicose como resposta a uma “crise
microsocial” devia ser lida na continuidade de duas tendências maiores.
Primeiro, a psiquiatria fenomenológica de Binswanger e Minkovski lembravam
como a loucura era indissociável de dimensões relacionais descritas a partir do
vocabulário fenomenológico do estar-no-mundo e da autenticidade. Daí uma
definição de Cooper como: a loucura não se encontra em uma pessoa, mas
descreve um comportamento grupal perturbado. Segundo, a psicanálise insistira
na relação entre processos de socialização do desejo e consolidação de quadros
de patologias mentais. Alguém como Lacan chegava a definir as patologias
mentais como descrições de deficits de reconhecimento do desejo, o que
demonstrava claramente que estávamos a falar de fenômenos de relação que
exigiam a mobilização de um horizonte de intervenção que não se limitasse a
indivíduos. Mesmo que se tratasse de uma prática clínica de consultório, a
psicanálise pedia uma abordagem centrada nas relações do sujeito ao que
constitui laços sociais, a saber, a linguagem, instituições como a família e suas
dinâmicas intergeracionais.
O saldo teórico da antipsiquiatria estava na discussão a respeito do
estatuto da loucura como fenômeno e modalidade de sofrimento. Não estávamos
diante simplesmente de deficits de funções psicológicas ou de descrições de
estados cerebrais objetos de transtornos e anomalias. Estávamos diante de uma
análise das formas humanas da recusa e da revolta. A loucura é uma das figuras
humanas da recusa, de suas dificuldades, e deve ser analisada a partir deste
horizonte. Não por outra razão, os loucos não falam apenas de suas famílias e de
suas experiências individuais, mas falam de religião, de política, de caos e de
ordem, de arte, de economia e de literatura.

128
COOPER, David; Psiquiatria e antipsiquiatria, p. 16
Perguntemo-nos, por exemplo, como a loucura se manifesta no interior da
vida social. Em larga medida, através de usos de fala singulares, de
comportamentos e reações afetivas julgadas inadequadas, de interpretações que
não levam mais em conta sua própria fragilidade. Mas tais fenômenos nunca
poderiam ser considerados expressões de loucuras se não fossem acompanhados
de um dado fundamental, a saber, do sofrimento do paciente. Este é um dado, no
entanto, que nem sempre está presente nos diagnósticos clínicos que aceitam
uma definição da doença mental a partir do transtorno social produzido (boa
parte dos diagnósticos de perversão, por exemplo entram neste caso). Lembrar
disto é uma forma de insistir que a redução da loucura a sua condição de doença
mental não é apenas o resultado de uma estratégia de tratamento clínico. Ela é
uma decisão a respeito de como o vínculo social irá dar conta, como ele irá ouvir
e se deixar afetar pela recusa e revolta que emergem sob a forma da loucura.
Como ele irá se defender da modalidade de recusa produzida pela loucura.
Isto nos leva, no entanto, a lembrar que a sobreposição imediata entre
alienação mental e alienação social traz também problemas e questões. De forma
importante, Guattari lembra: “Com as melhores intenções do mundo, morais e
políticas, acaba-se por recusar ao louco o direito de ser louco, e o ditado “é culpa
da sociedade”, pode mascarar uma maneira de reprimir todo desvio”129. Ou seja,
enquanto forma de recusa, a loucura é uma forma específica marcada também
por modalidades claras de sofrimento. Ela não é uma entidade inexistente,
simplesmente socialmente produzida, mas a inscrição social de uma forma
específica de recusa que pede também uma forma de cura, mesmo que o conceito
de cura se desvincule de noções como adaptação e média normal.
Por sua vez, o saldo clínico fundamental da antipsiquiatria estava na
consciência da força de transformação própria à análise de laços sociais a partir
das exigências da clínica, organizando um quiasma importante entre clínica e
crítica. Daí o foco das práticas de intervenção clínica na crítica das instituições e
do discurso médico-asilar. Sobe a cena a consciência de que o hospital
psiquiátrico e o próprio discurso médico são parte da doença. Pois eles são
sistemas de imposição de disposições normativas contra as quais, muitas vezes,
sujeitos mobilizam a doença para se fazerem ouvir. Não é possível abstrair o fato
de que o médico é uma figura de autoridade vinculada, normalmente, à defesa
das instituições do Estado. Nem é possível esquecer das consequências do fato
de: “expulso do social, o doente é acolhido na sociedade do psiquiatra” 130. Sua
realidade não pode ser abstraída da série de relações que vinculam o paciente à
normatividade geral dos discursos sociais. Levando em conta problemas desta
natureza, práticas antimanicomiais centradas na construção de comunidades
terapêuticas aparecerão como o eixo principal desta nova modalidade de
intervenção clínica. Assim, teremos exortações como:

Deveremos procurar o momento vital da praxis, o núcleo intencional de


cada existência humana, o projeto pelo qual cada pessoa se define no
mundo, Isto foi sempre difícil de conseguir na grande instituição
psiquiátrica tradicional e, em termo práticos, nossa experiência sugere
que se carece de uma pequena comunidade de cerca de trinta ou quarenta

129
GUATTARI, Félix; Psicanálise e transversalidade, p. 340
130
Idem, p. 57
pessoas, que funcione sem os preconceitos e prejuízos clínicos correntes,
sem hierarquização funcionário-paciente rígida e externamente imposta e
com envolvimento pleno e ativo das famílias das pessoas incluídas na
comunidade. Em semelhantes comunidade ‘experimental’, uma pessoa
não terá de lutar com os desejos alienados de outros, que se esforçam
para mete-la no molde, a fim de curá-la da tentativa de se tornar a pessoa
que realmente é. Ela terá, por fim, a oportunidade de descobrir e explorar
modos autênticos de se relacionar com outros. Tal comunidade ainda não
existe, porém pode ser criada131.

No entanto, é clara a dependência desta concepção clínica a um horizonte


filosófico baseado em conceitos como estar-no-mundo, Dasein, autenticidade e,
principalmente, uma noção sartreana de projeto existencial. Tais conceitos
filosóficos aparecem como horizonte fundamental para a definição da direção da
cura.
Neste sentido, a trajetória de Felix Guattari guarda um interesse especial.
De certa forma, ela partilhará tal horizonte crítico próprio a antipsiquiatria, mas
abandonando seus pressupostos filosóficos. Guattari tentará, na verdade,
reenquadrar a crítica da clínica da esquizofrenia no interior de uma teoria ampla
do desejo constituída através de trabalhos conjuntos com Gilles Deleuze. Tal
teoria será, ainda, um eixo maior para o redimensionamento da crítica social, de
onde se segue o projeto em pensar as relações entre capitalismo e esquizofrenia,
entre a constituição de um sistema econômico e os modos de gestão do
sofrimento sob a forma de patologias.

Guattari e La Borde

Comecemos então do início, Desde os anos cinquenta, Guattari fará parte do


projeto clínico de La Borde, tornando-se diretor da clínica a partir de 1957. La
Borde é, até hoje, um dos centros mais importantes de prática de psicoterapia
institucional e durante muito tempo foi fortemente influenciado por aportes
psicanalíticos. Procurando uma abordagem inovadora no tratamento das
psicoses, o dispositivo central de intervenção clínica da psicoterapia institucional
é baseado na noção de “comunidade terapêutica”. Ao invés de uma intervenção
clínica centrada na transferência analista-paciente, trata-se de constituir grupos
de pacientes, médicos e membros do corpo clínico na condução de tarefas, tanto
de organização quanto de criação. Tais tarefas podem ser tanto a organização da
alimentação no interior da clínica quanto a montagem de uma peça de teatro.
Esta construção de um espaço de grupo tem efeitos clínicos, na medida que
permitiria a abertura do paciente à “fantasias de grupo”, a um inconsciente que
se materializa nos problemas de grupo e sua “transversalidade”. Guattari
descreve bem tal inovação clínica ao afirmar:

A principal descoberta da psicoterapia institucional, a qual temos sempre


de retornar para nos ressituar diante das ‘heresias’, consiste em
reconhecer que o lugar de existência, no caso o hospital psiquiátrico, traz
uma radical modificação a tudo o que vem a surgir em seu âmbito, seja em

131
Idem, p. 52
que ordem for. Uma técnica terapêutica, exercida no ‘contexto’ de um
hospital psiquiátrico, torna-se essencialmente outra132.

Note-se aqui a incidência de um horizonte fenomenológico através da


importância dada ao “lugar de existência”. Já vimos como o sistema de relações
que compõe o lugar orienta as modalidades de interpretação do sofrimento
psíquico desde Binswanger. Mas Guattari quer insistir que, se o lugar de
existência traz uma modificação radical a tudo o que surge em seu âmbito, então
haverá uma produção desejante outra a partir do momento em que as relações
entre os sujeitos e o lugar forem privilegiadas. Pois a instituição, como sujeito
inconsciente ou, se quisermos utilizar um termo de Guattari, como “agente
coletivo de enunciação” é um analisando que não coincide com o indivíduo e que,
por isto, poderia permitir ao sujeito operar construções impossíveis no interior
dos limites de um indivíduo. Há um sujeito de grupo, um inconsciente de grupo
que não se reduz à soma dos sujeitos e inconscientes individuais. Este agente
coletivo de enunciação não mobiliza o universo individualista de representações
e seu circuito de desejos marcado pelos romances familiares. Eles tendem a
mobilizar mitos, lutas de classes, experiências históricas, deixando em evidência
outras dimensões da produção desejante dos sujeitos.
Para que ele funcione de forma efetiva, será necessário encontrar uma
estrutura na qual a distância entre “curadores” e “curados” diminuam ao
máximo, isto a ponto de criar uma situação na qual: “todos são em algum
momento psicanalistas”133. Isto significa que os dois mecanismos fundamentais
da prática analítica, a saber, a interpretação e a transferência, circularão entre os
vários sujeitos do grupo. Daí porque Guattari dirá:

A transferência rígida, mecânica, insolúvel, por exemplo, a transferência


dos enfermeiros e doentes para o médico, a transferência obrigatória,
predeterminada, ‘territorializada’, para um papel, um dado estereótipo, é
pior do que uma resistência à análise, configurando-se como uma forma
de interiorização da repressão burguesa efetuada por meio do retorno
repetitivo, arcaico e artificial de fenômenos de casta, com seu cortejo de
fantasias de grupo, fascinantes e reacionários134.

Ou seja, a transferência não pode vincular-se de forma privilegiada à


figuras específicas de autoridade, pois ela localizará a interpretação no interior
de uma série específicas de papeis sociais que, necessariamente, interpenetram-
se. O médico, o pai, o Estado, o padre. Permitindo a transferência circular, é esta
“transferência obrigatória” que tenderá a se quebrar. Para descrever tal
dinâmica de transferência, Guattari cunha o conceito de “transversalidade”. Nem
a verticalidade de relações de uma estrutura piramidal, nem a horizontalidade
dos pares, mas uma comunicação máxima entre os diferentes níveis e nos
diferentes sentidos.
Tal transversalidade é condizente com uma análise das estruturas de
poder no interior das instituições asilares. Pois tal poder pode escapar aos
representantes patentes da lei e se repartir: “entre diversos subgrupos: serviço,

132
GUATTARI, Félix; Psicanálise e transversalidade, p. 120
133
Idem, p. 342
134
Idem, p. 110
chefe ou – por que não? – clube inter-hospitalar, associação de funcionários
etc.”135 Ou seja, a direção do poder da transferência exige uma compreensão
mais precisa a respeito do poder real e das instâncias e sujeitos capazes de
modificar o ambiente, os modos de produção e de sentido.
Neste ponto, fica mais clara a função do antifamiliarismo militante que
ganhará corpo com Guattari. Um familiarismo estrito colonizaria os processos de
transferência a partir das figuras de autoridade paterna, como de fato ocorre
muitas vezes na clínica freudiana com resultados clínicos problemáticos. Aqui,
vemos uma distinção clara entre a perspectiva de Guattari e aquela hegemônica
no interior da antipsiquiatria. A prática defendida por Cooper, por exemplo, era
centrada na análise da família como núcleo produtor de sofrimento. Guattari
tende a ver, e este é um tema que ganhará ainda mais importância em O anti-
Édipo, uma prática clínica baseada em interpretações centradas nas relações
familiares como uma forma de reforçar seu domínio, fazendo dela a referência
maior de determinação do sentido da experiência, bloqueando assim a
produtividade de novas figuras de instituições e grupos.
Notemos como, por ter reflexões desta natureza em mente, Guattari irá
procurar associar tais experiências clínicas a suas preocupações políticas
militantes. Ele insistirá na existência de uma distinção entre grupos sujeitados,
ou seja, aqueles que obedecem a uma lei que vem de seus exterior, e grupos
sujeitos que, a sua maneira, são fundadores de si mesmos. Tais grupos sujeitos
não são apenas entidades clínicas, mas podem existir como grupos políticos,
estéticos, etc. A clínica se serve de uma criatividade institucional que pode
emergir em outros pontos da vida social. É a partir de tais distinções que
Guattari poderá se perguntar:

“A habitual proliferação de instituições na sociedade contemporânea não


levou senão ao reforço da alienação do indivíduo: haverá condições de
ocorrer uma transferência de responsabilidade , e de que suceda ao
burocratismo uma criatividade institucional?”136. Ou ainda: “Como pode
um grupo tomar a palavra, numa dada instituição, num momento dado de
sua história, sem reforçar os mecanismos seriais e alienantes que
costumam caracterizar as coletividades nas sociedades industriais?
Haverá, no nível de uma instituição que dispensa cuidados, a
possibilidade de colocar o indivíduo numa situação radicalmente distinta
da que marca o colóquio singular, os impasses identificatórios
correlativos ou estatuto da família conjugal, das relações de submissão
socioprofissional e assim por diante?”137.

Esta criatividade institucional exige a emergência de uma forma


específica de grupo. Um grupo, como dirá Gilles Deleuze: “que não se julgue
único, imortal e significante, como um sindicato de defesa ou de segurança, como
um ministério de ex-combatentes”. No que se vê claramente como há uma
dinâmica de afetos que instauram grupos e que há um princípio de fechamento
identitário, de mobilização de temáticas de imunidade, de defesa e de
fortalecimento que serão a verdadeira origem de fantasmas regressivos de

135
Idem, p. 112
136
GUATTARI, Félix; Psicanálise e transversalidade, p. 61
137
idem, p. 123
grupo. Daí porque é necessário lembrar da possibilidade de grupos que se
ramifiquem: “num fora que lhes ponham em confronto com suas possibilidade de
não sentido, de morte ou de esfacelamento ‘pela mesma razão de sua abertura a
outros grupos’” 138 . Ou seja, grupos que sejam fortes o suficiente para
desaparecerem, para saber desaparecer. Grupos que possam ser o agente de sua
própria morte.
Neste sentido, tudo se passa como se fosse questão de lembrar como um
dos eixos maiores de sofrimento inscrito sob a forma de esquizofrenia não fosse
exatamente a incapacidade de síntese e de unidade própria a uma identidade
social suposta. Na verdade, seria a impossibilidade social de vivenciar
experiências que se colocam na exterioridade dos modos de determinação
disponíveis, mesmo das determinações provisórias produzidas no interior de
grupos. Um verdadeiro sofrimento de determinação.
Por estar ligada a uma impossibilidade social, será impossível dissociar a
clínica de processos de reconhecimento. Mesmo que Guattari não tematize
diretamente, como Lacan, a lógica do reconhecimento enquanto eixo
fundamental do sofrimento psíquico. Ele falará do vazio no qual o doente se
encontra devido a “sua incapacidade de se fazer reconhecer e compreender”139.
Ele descreverá o desenvolvimento de um caso clínico, chamado R.A., a partir da
capacidade de paulatinamente “reconhecer a voz e o esquema corporal”,
“reconhecer a linguagem”, “reconhecer a própria situação e enfim “reconhecer o
outro”, assim como usa, durante toda a década de 60, o par palavra vazia/palavra
plena para se orientar na clínica.
Por outro lado, é claro como Guattari faz uma aposta clínica na força de
transformação própria à constituição de grupos. Há um horizonte de experiência
social restauradora como condição para a cura do sofrimento psíquico e para a
superação do estado catatônico potencial da esquizofrenia. Por isto, o grupo-
sujeito aparece como uma versão contemporânea da força terapêutica dos
vínculos comunitários, mesmo que se trate aqui de um grupo advertido quanto a
seus efeitos imaginários. Efeitos não por acaso ligados a um certo paradigma
médico: a imunidade, a defesa contra a intrusão, contra o enfraquecimento, a
exigência do controle.
Mas esta discussão clínica irá ser enquadrada em uma teoria a respeito da
esquizofrenia como o modo privilegiado de sofrimento no interior do
capitalismo. Haverá uma relação fundamental entre capitalismo e esquizofrenia
que até então nunca tinha sido tematizada enquanto tal. Não que o capitalismo
seja “esquizofrênico”, como dizemos, por exemplo, que há sociedades narcísicas,
paranoias sociais etc. Ele será, na verdade, indissociável da maneira com que
potências de transformação serão paralisadas através da constituição de
categorias clínicas que aprisionarão sujeitos em revoltas mudas e autistas. Ou
seja, o capitalismo será indissociável da história da colonização da potência de
desterritorialização em esquizofrenia ou em uma certa forma de circulação e de
intensificação do desejo que encontrará seu ritmo, sua regra nas dinâmicas de
valorização do Capital.
Um sistema econômico como o capitalismo não será apenas um sistema
econômico. Ele será um modelo de gestão do sofrimento psíquico, um modelo de

138
Idem, p. 8
139
Idem, p. 58
produção de patologias que limitarão as formas possíveis de experiências
humanas da recusa, como veremos na aula que vem. Não se deseja da mesma
forma dentro e fora do capitalismo, não se trabalha da mesma forma dentro e
fora do capitalismo, não se fala da mesma forma dentro e fora do capitalismo,
não se adoece da mesma forma dentro e fora do capitalismo.
Uma genealogia das psicoses
Aula 13

Na aula de hoje, eu gostaria de continuar nossa leitura da clínica da


esquizofrenia em Guattari através da apresentação de certos aspectos de seu
projeto comum com Gilles Deleuze chamado de “Capitalismo e esquizofrenia”.
Projeto este cuja base serão dois livros: O anti-Édipo e Mil Platôs. Na aula
passada, eu dissera que, para Guattari, um dos eixos maiores de sofrimento
inscrito sob a forma de esquizofrenia não seria exatamente a incapacidade de
síntese e de unidade própria a uma identidade social suposta. Na verdade, seria a
impossibilidade social de vivenciar experiências que se colocam na exterioridade
dos modos de determinação disponíveis, mesmo das determinações provisórias
produzidas no interior de grupos. Um verdadeiro sofrimento de determinação.
Neste sentido, ficou claro como Guattari fazia uma aposta clínica na força
de transformação própria à constituição de grupos. Haveria um horizonte de
experiência social restauradora como condição para a cura do sofrimento
psíquico e para a superação do estado catatônico potencial da esquizofrenia. Por
isto, o que Guattari chamava de “grupo-sujeito” apareceria como uma versão
contemporânea da força terapêutica dos vínculos comunitários, mesmo que se
trate aqui de um grupo advertido quanto a seus efeitos imaginários. Efeitos não
por acaso ligados a um certo paradigma médico: a imunidade, a defesa contra a
intrusão, contra o enfraquecimento, a exigência do controle.
Mas eu dissera que esta discussão clínica irá ser enquadrada em uma
teoria a respeito da esquizofrenia como o modo privilegiado de sofrimento no
interior do capitalismo. Haverá uma relação fundamental entre capitalismo e
esquizofrenia que até então nunca tinha sido tematizada enquanto tal. Não que o
capitalismo seja “esquizofrênico”, como dizemos, por exemplo, que há
sociedades narcísicas, paranoias sociais etc. Ele será, na verdade, indissociável
da maneira com que potências de transformação serão paralisadas através da
constituição de categorias clínicas que aprisionarão sujeitos em revoltas mudas e
autistas. Ou seja, o capitalismo será indissociável da história da colonização da
potência de desterritorialização em esquizofrenia ou em uma certa forma de
circulação e de intensificação do desejo que encontrará seu ritmo, sua regra nas
dinâmicas de valorização do Capital. É esta dupla escolha, que será um duplo
impasse, que gostaria de analisar com vocês hoje.

Capitalismo e esquizofrenia

Comecemos por nos perguntar qual o sentido de construir uma conjunção


entre capitalismo e esquizofrenia. Uma das ideias consiste em dizer que a
esquizofrenia é uma categoria nosográfica cujo sucesso seria indissociável da
maneira com que o capitalismo procura administrar o sofrimento psíquico. Ele
tende a reduzir experiências de multiplicidade à dissociação esquizofrênica. A
título operacional, aceitemos que o capitalismo é fundamentalmente um sistema
de trocas econômicas e de produção social do valor baseado na entificação da
livre concorrência de agentes individuais no mercado. Sistema que, por
privilegiar o mercado como espaço social fundamental de interação, tende a
organizar todas as esferas sociais de valores a partir da forma-mercadoria. Uma
forma que, por sua vez, está fundamentada em noções como: intercambialidade,
abstração e quantificação a partir de um padrão geral de cálculo e unidade.
Sendo assim, enquanto modo extensivo de racionalização social, o capitalismo
pediria a construção de uma espécie de sistema geral de relações baseado na
submissão da diferença à identidade abstrata do equivalente geral. Foi pensando
em processos como este que Theodor Adorno podia afirmar: “A identidade é a
forma originária da ideologia”.
No entanto, dirá Deleuze e Guattari, esta racionalidade não é apenas
econômica, mas tende a servir de padrão geral de ordenamento das formas de
relação a si. Deleuze e Guattari tendem a compreender a inteligibilidade de
processos sociais exclusivamente a partir de problemas vinculados à socialização
do desejo e questões de saúde mental exclusivamente através do impacto das
estruturas sociais na vida subjetiva, até porque: “Só há desejo e social, e nada
mais”140.
Lembremos que, para quem insistira que a questão filosófica maior
consistia em levar às últimas conseqüências a crítica das ilusões da identidade,
nada mais natural do que abordar a crítica social a partir da maneira com que a
sociedade capitalista produz identidades sociais, submetendo o desejo ao regime
de procura pelo idêntico, não apenas identidade em relação a uma experiência
originária de satisfação (como no caso de Freud) mas em relação a uma
organização identitária de constituição dos objetos do desejo. Não só: o desejo
deseja o mesmo; mas também: o desejo deseja identidades e se afasta de tudo o
que é des-idêntico. Se aceitarmos este diagnóstico social, podemos entender
melhor a conjunção capitalismo e esquizofrenia.
Vimos como a esquizofrenia enquanto estrutura nosográfica advinha da
antiga demência precoce, compreendida, entre outros, como “imobilização súbita
de todas as faculdades”. Foucault chegava a afirmar: “A demência é de todas as
doenças do espírito, aquela que permanece a mais próxima da essência da
loucura. Mas da loucura em geral – da loucura experimentada em tudo o que ela
pode ter de negativo, de desordem, decomposição do pensamento, erro, ilusão,
não razão e não verdade”141. Bleuler cunha o termo “esquizofrenia” para insistir
no caráter de esquize, de divisão (Spaltung) das faculdades mentais que podem
mais se submeter ao poder regulador da síntese consciente, da instância
superior e diretiva da personalidade. A esquizofrenia aparecia para Bleuler como
desaparecimento de uma representação-meta capaz de dirigir a estrutura
associativa do pensamento lógico: “Nessas condições, o conjunto das operações
psicológicas ficava abandonado à ação dos complexos e o sujeito parecia viver
quase que permanentemente um estado análogo à associação livre, ao devaneio
ou ao sonho, ao desaparecimento voluntário ou fisiológico da ação diretiva do eu
e da consciência sobre o funcionamento da psiquê” 142 . Desta forma, na
esquizofrenia o desejo não consegue mais constituir objetos coerentes ou mesmo
ser enunciado em uma linguagem articulada, sustentar condutas próprias a uma
personalidade, usar a linguagem própria a um psiquismo que saberia se orientar
no espaço e no tempo. Ainda hoje, a esquizofrenia está ligada a “disfunções
cognitivas e emocionais” que acometem a percepção, o raciocínio, a linguagem, a
comunicação, o afeto, a atenção, ou seja, funções e faculdades mentais que não se

140
idem, p. 36
141
FOUCAULT, Histoire de la folie, p. 320
142
BECHERIE, Os fundamentos da clínica, p. 232
submetem mais à estrutura diretiva das condutas e da personalidade própria a
um Eu.
Deleuze e Guattari lembram como a esquizofrenia mobiliza três conceitos:
a dissociação (Kraepelin), o autismo (Bleuler) e as modificações espaço-
temporais (Binswanger). Estes três conceitos reportam o problema da
esquizofrenia à distúrbios de síntese do eu: “Dir-se-á que o esquizo não tem mais
Eu e que é necessário lhe devolver esta função sagrada de enunciação”143. Mas,
no fundo, Deleuze e Guattari querem mostrar que esta dissociação, esta ausência
de princípio de unidade na esquizofrenia estaria ligada à manifestação de um
corpo libidinal anterior aos processos de alienação e repressão. Ao se deixar
pautar pela lógica de organização deste corpo libidinal, o desejo só poderia
encontrar inscrição como aquilo que não se inscreve mais no modo de
determinação social hegemônico em nossas sociedades capitalistas. Daí porque
Deleuze e Guattari podem dizer:

“O que reduz o esquizofrênico à sua figura autista, hospitalizada, cortada


da realidade? È o processo [próprio ao regime do desejo na esquizofrenia]
ou , ao contrário, a interrupção do processo, sua exasperação, sua
continuação no vazio? O que força o esquizofrênico a se redobrar sobre
seu corpo sem órgãos agora surdo, cego e mudo?”144.

Neste sentido, a articulação “Capitalismo e esquizofrenia” significaria uma


contraposição através da qual o capitalismo encontraria seu limite na exigência
de retorno ao fluxo não-identitário do desejo que pulsa na esquizofrenia. No
entanto, a articulação significa também uma certa sobreposição. Pois o
capitalismo não se contenta em codificar o desejo, ele inicialmente descodifica os
fluxos, desterritorializa o socius em uma dinâmica que lembra claramente a
esquizofrenia. De certa forma, o capitalismo mimetiza a esquizofrenia,
aprisionando nosso desejo em um circuito pulsional cuja expressão é a base dos
comportamentos ditos esquizofrênicos.

Uma teoria do capitalismo

Ao falar sobre o advento do capitalismo, Deleuze e Guattari colocarão a


seguinte pergunta:

Por que a Europa? Por que não a China? A respeito da navegação


marítima, Braudel se pergunta: por que não os navios chineses e
japoneses, ou mesmo muçulmanos? Por que não Simbad, o marujo? Não é
a técnica que falta, a máquina técnica. Não seria, na verdade, o desejo que
continua preso às vias do Estado despótico, totalmente investido na
máquina do déspota?145

A pergunta é fundamental. Não foi alguma forma de defasagem


tecnológica que impediu o aparecimento do capitalismo na China ou mesmo no
mundo árabe. Sob vários aspectos, o atraso tecnológico e social dos europeus era

143
DELEUZE e GUATTARI, idem, p. 30
144
DELEUZE e GUATTARI, idem, p. 105
145
Idem, p. 265
maior. Mas, para o aparecimento do capitalismo, faz-se necessário uma
experiência de desterritorialização, um desejo de movimento sem telos, a
transformação da ausência de telos em sistema. Faz-se necessário “a
predominância do ponto de vista da circulação sobre o ponto de vista da
produção”146. Como lembra Deleuze e Guattari, quando as minas na China pré-
capitalista produziam excedente, elas eram fechadas. Ou seja, a necessidade
social atual definia os limites da produção. Não é, como no capitalismo
contemporâneo, a dinâmica autônoma da produção, seu ritmo e seus
movimentos que engendram os ritmos e movimentos do desejo.
Lembremos a este respeito como, ao menos segundo Deleuze e Guattari, o
capitalismo não se caracteriza apenas pela descodificação geral dos fluxos, mas
pela conjunção de todos os fluxos descodificados, ou seja, ele transforma tais
fluxos em um processo ordenado de auto-valorização do Capital. Deleuze e
Guattari pensam aqui no que significa o aparecimento do capital como dinheiro
que engendra dinheiro, como valor que se auto-valoriza. Com isto, não só um
equivalente geral é posto, mas instaura-se um processo ilimitado de
desterritorialização de todo objeto em relação a si mesmo (valor de uso).
Nenhum objeto é idêntico a si mesmo, já que ele é apenas a ocasião para a
passagem do fluxo ilimitado do capital que perverte todos os códigos e
identidades, anula todo conteúdo privilegiado a fim de instaurar a repetição
modular da pura forma. No capitalismo, todo objeto está “separado de si
mesmo”. Assim, a desterritorialização é elevada a princípio de funcionamento do
sistema.
Para tanto, basta que o capitalismo se sirva da natureza funcional da
abstração real, deste processo de desencarnação entre forma e conteúdo que faz
da circulação da forma-equivalente o fundamento efetivo da vida social:

A máquina capitalista começa quando o capital deixa de ser um capital de


aliança para ser um capital filiativo. O capital se transforma em um capital
filiativo quando o dinheiro engendra dinheiro, ou quando o valor
engendra mais-valor147.

Tudo se passa pois como se Deleuze e Guattari derivassem sua análise do


capitalismo da maneira com que a submissão do trabalho humano à condição de
produção do valor, com que a natureza auto-referencial da produção do valor,
acabasse por expor a estrutura libidinal do capitalismo. Valor cuja função é
apenas engendrar mais-valor significa operar sobre fluxos descodificados, ou
seja, sobre processos de produção que não são codificados pelo sistema atual de
necessidade sociais. Ao falar dos limites do corpo despótico, Deleuze e Guattari
lembram do: “horror dos fluxos descodificados, fluxos de produção, mas também
fluxos mercantis de troca e de comércio que escapariam ao monopólio do Estado,
ao seu esquadrinhamento e seu tampão”148. Esta é uma maneira de lembrar que
a intensificação da produção, assim como a intensificação do comércio e seu
sistema alargado de trocas produz uma experiência social de desterritorialização
que é, ao mesmo tempo, objeto de horror de sociedades pré-capitalistas e o
fundamento mesmo das sociedades capitalistas. Por esta razão, Jean-François

146
LYOTARD, Jean-François; Des dispositifs pulsionnels, p. 31
147
Idem, p. 269
148
Idem, p. 233
Lyotard dirá, a respeito de O anti-Édipo: “na figura do Kapital proposta por
Deleuze e Guattari, reconhece-se bem o que fascina Marx: a perversão capitalista,
a subversão dos códigos, religiões, pudores, ofícios, educação, cozinha, palavra, o
nivelamento de todas diferenças ‘fundamentadas’ em prol da única real
diferença: valer por - , ser trocável por -. Diferença indiferente”149.
Por isto, Deleuze e Guattari devem dizer que a conjunção produzida pelo
capitalismo entre uma multiplicidade de fluxos descodificados não é a invenção
de um novo código, mas a produção de um axioma. Neste contexto, “axioma” é
aquele princípio intocável que permite os desdobramentos dos processos de
fluxo e produção. Ou seja, o “valor de troca”: “axioma, e não código: a energia e
seus objetos não são mais marcas de um signo, não há mais, em sentido estrito,
signos pois não há mais códigos, não há mais reenvio à origem, a uma ‘prática’, a
uma referência, a uma suposta natureza ou surrealidade ou realidade, extra-
dispositivo ou grande Outro – só há uma pequena etiqueta de preço, index da
intercambialidade: não é nada, é enorme, é outra coisa”150.

Máquinas desejantes

Uma das maneiras de compreender a reconstrução do conceito de esquizofrenia


produzida por Deleuze e Guattari é lembrando de um conceito central de seu
projeto, a saber, máquina desejante, até porque: “a esquizofrenia é o universo
das máquinas desejantes, produtoras e reprodutoras”151.
O conceito de máquina desejante vem de Guattari, em especial de uma
texto de 1969 publicado em Psicanálise e transversalidade intitulado “Máquina e
estrutura”. Em O anti-Édipo falar em máquina desejante é o que permite falar da
ação como processo de produção, e não como representação de cenas anteriores,
originárias que deveriam o sentido do que ocorre no presente. Falar de máquina,
de automatismo significa anular a dimensão da representação que parece
determinar a ação de todo e qualquer sujeito. Falar de máquina significa, ainda,
pensar o desejo como uma questão de produção, não uma questão de aquisição.
É neste sentido que devemos compreender a afirmação de Guattari, para
quem a distinção entre máquina e estrutura: “visa esclarecer a localização de
posições particulares da subjetividade em sua relação com o acontecimento e à
História”152. Pois a estrutura encerraria o sujeito em uma totalidade, fazendo-lhe
aparecer como determinado por uma totalidade que articula a temporalidade em
um contínuo histórico. Já a máquina apareceria inicialmente como a essência do
desenvolvimento do trabalho no capitalismo, na qual o trabalho humano
apareceria como: “mero subconjunto residual do trabalho da máquina”153. Neste
sentido, falar em “máquina” poderia parecer simplesmente referendar o modo de
automatismo da ação produzido pela alienação no mundo capitalista do trabalho.
No entanto, Guattari acredita que a máquina se transferiu para o cerne do desejo
e enquanto “máquina desejante” ela não funciona mais como o que se submete à
funções específicas e compartimentalizadas, repetidas no ritmo de uma
repetição automática e industrial. Ela funciona de forma a sempre se

149
LYOTARD, Jean-François; idem, p. 35
150
Idem, p. 41
151
Idem, p. 11
152
GUATARRI, Félix; Psicanálise e transversalidade, p. 309
153
Idem, p. 312
desfuncionalizar, a produzir fluxos a partir de encontros contingentes, um pouco
como as montagens surrealistas. Daí uma afirmação como: “para além de
qualquer modelo mecanicista, a ideia de máquina desejante designa justamente
esse processo de fixação retrospectiva do acaso”154. Esta máquina não é a
máquina da indústria, mas a máquina da arte de vanguarda, das conexões
produzidas pelo que não se submete à funcionalidade do plano. Nos livraremos
do maquinismo do capitalismo produzindo máquinas que se quebram a si
mesmas e se fixam momentaneamente em novas conexões, sem com isto
precisar retornar à temática da consciência que se assenhora de suas ações e
representações. Pois se há sujeito aqui, ele não é constituinte, mas constituído
pela dimensão maquínica do desejo. Desta forma, o projeto revolucionário, ao
menos segundo Guattari, pode ser indissociável do uso da máquina em uma
subversão institucional.
A própria maneira de descrever o modo de relação entre o desejo e seus
objetos a partir do sintagma “máquina desejante” diz muito a respeito das
intenções dos autores. Tal como uma máquina, o desejo acopla peças separadas
que devem funcionar a partir de uma orientação. Tal acoplagem pode se dar
segundo três formas de síntese: síntese conectiva (se...então – constituição de
uma série), conjuntiva (e – articulação de duas ou mais séries) disjuntivas (ou -
repartição de séries divergentes). A metáfora da máquina para descrever o que é
da ordem do comportamento tem uma longa história que remonta a Aristóteles.
No estudo dos organismos, ela esteve normalmente vinculada a uma discussão
entre perspectivas vitalistas e mecanicistas. No caso de Deleuze e Guattari, trata-
se fundamentalmente de insistir que o desejo obedece a um automatismo que
desconhece o que é da ordem da decisão de uma consciência dirigista. A noção
de automatismo foi fundamental para descrever a esquizofrenia, desde a ideia de
automatismo mental do psiquiatra francês Gäetan de Clerambault até Victor
Tausk.
No entanto, este automatismo não pode ser a entificação de uma
orientação naturalizada de conduta. Isto talvez nos explique porque as máquinas
de Deleuze e Guatarri estão muito mais próximas das máquinas surrealistas (sem
telos e sem finalidade) do que das metáforas da indústria que abundam em O
anti-Édipo. Isto talvez nos explique porque Deleuze e Guattarri afirmam: “as
máquinas desejantes não cessam de se desmontar (détraquer), só funcionam se
desmontando, sempre o produzir se acopla ao produto e as peças da máquina
são ao mesmo tempo combustível”155.
Por fim, notemos como esta ideia de máquina desejante irá fundar uma
compreensão do inconsciente distinta da sua versão estruturalista. Ao invés do
inconsciente estrutural, que organiza sua produção a partir de relações
estruturais definidas em larga medida pelo complexo de Édipo, teríamos o
inconsciente maquínico. Um conceito de inconsciente que se apropria de um
conceito decisivo da própria psicanálise, a saber, o conceito de objeto parcial.
Vale a pena nos determos na compreensão de tal conceito.
Para Freud, o movimento do desejo era coordenado pela repetição
alucinatória de experiências primeiras de satisfação. Tais experiências primeiras
deixariam imagens mnésicas de satisfação no sistema psíquico. Quando um

154
PRADO JR., Bento; Alguns ensaios, p. 40
155
idem, p. 39
estado de tensão reaparece, o sistema psíquico atualiza de maneira automática
tais imagens sem saber se o objeto correspondente à imagem está ou não
efetivamente presente. Através deste processo de repetição, o desejo procura
reencontrar um objeto perdido ligado às primeiras experiências de satisfação.
Mas, se analisarmos de maneira mais precisa a natureza destas primeiras
experiências de satisfação, veremos que elas se dão através da relação entre o
sujeito e aquilo que Karl Abraham indicou como sendo o que hoje conhecemos
por objetos parciais156. Neste caso, o adjetivo parcial significa principalmente
que, devido a uma insuficiência na capacidade perceptiva do bebê, suas
primeiras experiências de satisfação não se dão com representações globais de
pessoas, como o pai, a mãe ou mesmo o eu enquanto corpo próprio, mas com
partes de tais objetos: seios, voz, olhar, excrementos etc.
O caráter parcial dos primeiros objetos de satisfação também estaria
ligado à estrutura originariamente polimórfica da pulsão, ou seja, ao fato de que
as moções pulsionais apresentam-se inicialmente sob a forma de pulsões parciais
cujo alvo consiste na satisfação do prazer específico de órgão. Pensemos no bebê
que ainda não tem à sua disposição uma imagem unificada do corpo próprio.
Neste caso, cada zona erógena tem tendência em seguir sua própria economia de
gozo. Notemos também que tal gozo é auto-erótico porque o investimento
libidinal destes objetos parciais ocorre antes do advento da imagem narcísica
com sua estrutura de identidades.
O amor de objeto, no sentido do amor próprio à relação interpessoal com
um outro, só seria possível através da operação de transposição das moções
pulsionais parciais. Assim, as pulsões parciais seriam integradas em
representações globais de pessoas ou sublimadas em representações sociais.
Como sabemos, o exemplo freudiano mais célebre é a transformação do desejo
feminino de ter um pênis em desejo de ter um homem portador do pênis.
Esta integração de objetos parciais não colocará problemas
intransponíveis para Abraham ou para seus continuadores como Melanie Klein e
outros representantes da escola inglesa. Pois tais objetos serão partes de um
todo que estará disponível a posteriori. O desejo pelo seio resolve-se logicamente
no amor pela mãe. O desejo pelo pênis resolve-se logicamente no amor pelo
homem portador do pênis. A abertura às relações intersubjetivas pareceria estar
assim assegurada 157 . Aqui, a metonímia do objeto é reconhecimento da
pressuposição de sua integração em uma totalidade funcional.
No entanto, a posição de Lacan sempre foi totalmente diferente e é isto
que Deleuze e Guattari querem recuperar. Daí porque eles falarão da “admirável
teoria do desejo em Lacan”158 cujo um dos polos seria constituído pela noção de
objeto a como máquina desejante. Ao apropriar-se do conceito de objeto parcial,
Lacan operou uma inversão maior na perspectiva psicanalítica clássica. Inversão
que produzirá conseqüências maiores na noção de racionalidade analítica.

156
Abraham fala de um estágio de amor parcial no qual : « o objeto dos sentimentos amorosos e
ambivalentes é representado por uma de suas partes introjetadas pelo sujeito" (ABRAHAM, 2000, p.
220)
157
É neste ponto que se situa, por exemplo, a crítica pertinente de Deleuze e Guatarri : « Desde o
nascimento, o berço, o seio, os excrementos são máquinas desejantes em conexão com partes do corpo
do bebê. Nos parece contraditório dizer ao mesmo tempo que a criança vive entre objetos parciais e que
o que a apreende nestes objetos são pessoas parentais em pedaços":(DELEUZE e GUATARRI, L´anti-
Oedipe, p. 53)
158
Idem, p. 34
Primeiramente, Lacan notou que, se o movimento do desejo consistia em
tentar reencontrar um objeto perdido, então deveria tratar-se, na verdade, da
relação entre o sujeito e tais objetos parciais159. Devemos sublinhar o termo
‘relação’ porque não se trata simplesmente de reencontrar um objeto no sentido
representativo da palavra ‘objeto’, mas de reencontrar uma ‘forma relacional’
encarnada pelo tipo de ligação afetiva do sujeito ao seio, à voz, aos excrementos
etc. O que nos explica porque: “um seio, é algo que não é representável”, a não
ser “sob estas palavras: ‘a nuvem encantadora de seios”160 que nos fornece a
forma relacional do sujeito com os objetos nos quais seu desejo aliena-se. O que
nos explica também porque o objeto a é presença de um vazio de objeto
empírico, como vemos na afirmação de que tal objeto é "presença de um vazio
preenchível, nos diz Freud, por qualquer objeto”, já que estaríamos diante de um:
“objeto eternamente faltante”161. Pois ele nada mais é do que a derivação de uma
forma relacional produzida pelas primeiras experiências de satisfação.
Aqui, podemos compreender melhor porque Lacan designou o objeto a
como objeto causa do desejo. Pois, por exemplo, o que causa o amor por uma
mulher particular é a identificação do objeto a no estilo e no corpo desta mulher;
da mesma maneira que o amor de Alcebíades por Sócrates, no Banquete, teria
sido causado por este objeto que Sócrates guardava dentro de si e que os gregos
chamavam de agalma. “Se este objeto os apaixona”, dirá Lacan, “é porque lá
dentro, escondido nele, há o objeto do desejo, agalma”162. Como se Sócrates
pudesse ser suporte de uma forma relacional que sustentava o desejo de
Alcebíades
A princípio, poderia parecer que, devido a esta maneira de pensar a causa
do desejo, Lacan estaria seguindo o caminho destes que acreditavam em uma
passagem possível do amor parcial de objeto ao amor por representações globais
de pessoas. Passagem impulsionada pelo primado genital. Mas, na verdade, seu
movimento era inverso: “A noção de objeto parcial nos parece aquilo que a
análise descobriu de mais correto, mas ao preço de postular uma totalização
ideal deste objeto, através do qual dissipa-se o benefício desta descoberta”163. É
isto que Deleuze e Guattari irão radicalizar ao afirmarem:

A produção desejante é multiplicidade pura, ou seja, afirmação irredutível


à unidade. Nós estamos na idade dos objetos parciais, dos tijolos e restos.
Não acreditamos mais nestes falsos fragmentos que, tais quais pedaços de
estátuas antigas, esperam serem completados e recolados para compor
uma unidade que é também unidade de origem164.

159
Neste ponto, ele era fiel à afirmação de Freud : « Quando vemos uma criança satisfeita largar o seio
deixando-se cair para trás e dormir, com as bochechas vermelhas e um sorriso, não podemos deixar de
dizer que esta imagem contém o protótipo da expressão da satisfação (Befriedigung) sexual na
existência ulterior » (FREUD, ;GW vol. V, p.82).
160
LACAN, S XIV, sessão do 25/01/67
161
LACAN, S XI, p. 168
162
LACAN, AE, p. 180
163
LACAN, E, p. 676
164
DELEUZE e GUATTARI, idem, p. 50

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