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Ciência e Libertação
José Leite Lopes
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A FUNÇÃO SOCIAL DO ENSINO DE CIÊNCIAS* ciências exatas, dos cientistas e dos mestres das ciências não se-
ria um dos motivos do bloqueio à inovação e à revisão? O próprio pe-
Miguel González Arroyo** so imposto às ciências como mecanismos de seleção e filtragem
para o vestibular não teria aumentado essa auto-suficiência e esse
Duvidar é preciso bloqueio perante qualquer revisão séria dos conteúdos e métodos
de ensino?
Refletir acerca do ensino de ciências sem integrar poucos inicia-
dos nas ciências pode parecer uma ousadia. Este poderia ser um A dúvida como método está na raiz da nova ciência e poderia ser
primeiro ponto para nossa reflexão. O ensino de ciências participa um ponto de partida para se avançar no repensar sério de uma área
de certo mistério, comum às ciências ditas exatas, o mistério de do ensino que ocupa a maior parte do tempo e das energias na edu-
ser um saber tão inacessível quanto nobre, se comparado a outros cação escolar da adolescência e da juventude. Duvidar é preciso,
saberes. Conseqüentemente, um certo ethos de segurança, de in- para avançar.
questionabilidade domina a área. Pela experiência que venho acu-
mulando como pai de estudantes, atrevo-me a dizer que no ensino Por onde avançar no repensar o ensino de ciências? Como já salien-
de ciências e matemática cometem-se mais barbaridades didáti- tado, a prática docente ou o chamado processo de ensino-apren-
cas que no ensino de língua portuguesa, história ou geografia. dizagem precisa ser revisto em cada um de seus componentes: os
sujeitos docentes, os conteúdos, os livros de texto, os processos
As práticas monótonas e repetitivas dos para casa, o caráter de transmissão-avaliação, os sujeitos cognoscentes, os contextos
maçante e massacrante dos livros de texto, a falta de sensibilidade de sala, os laboratórios... Há muito campo para repensar cada um
das questões das provas, os medos em torno das ciências, todo es- desses aspectos. Entretanto, não será suficiente parar por aí. 0
se clímax aproxima-se dos velhos, velhíssimos métodos da pal- que acontece no ensino de qualquer área do conhecimento não se
matória, da obrigação de escrever cem vezes a mesma palavra, ou esgota nem se explica por processos interativos ou de comuni-
fórmula, como castigo. O ensino de ciências, em geral, distancia- cação. Na área do ensino de ciências, isso é ainda mais perceptível.
se dos métodos mais racionais e didáticos de ensino-aprendiza- O que ai acontece é inseparável dos processos sociais e políticos
gem, defendidos pela pedagogia moderna. A auto-suficiência das da produção-reprodução-apropriação-uso da ciência e das técni-
cas, tanto nos processos gerais como nas especificidades de nos-
sa formação social. É verdade que essas relações estão presentes
* Este trabalho retoma as reflexões apresentadas no Encontro Nacional de Ensino
em qualquer área do conhecimento, mas os estreitos vínculos en-
de Fisica, realizado no Rio de Janeiro em janeiro de 1 9 8 9 , e no Encontro Estadual tre ciência-técnica-produção tornam seu conhecimento mais de-
de Ensino de Ciências, ocorrido em Belo Horizonte em março, de 1 989. A totali- terminado e mais polêmico.
dade do trabalho comporá um capitulo de um livro - em preparação por vários
professores - a respeito do ensino de Ciências.
**Professor titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Em outros termos, não se pode refletir acerca do ensino de ciên-
Gerais (UFMG). cias apenas pedagogicamente ou como se fosse um processo me-
Julgo que o ensino de ciências mais do que o de outras áreas con- O pensamento mais comum entre os professores é que o ensino de
templadas nos programas de 1º e 2º graus tem de ampliar sua aná- ciências se relaciona com a preparação para o mundo produtivo.
lise crítica para questões como: Se lhes perguntarmos para que servirá a física, a química, a biolo-
gia e a matemática ensinadas no segundo grau, a resposta será
• por que essa área adquiriu a relevância atual? quase unânime: para capacitar os jovens a um trabalho profissio-
• que papel cumpre no equilíbrio ou desequilíbrio de uma propos- nal competente. Se fizermos a mesma pergunta aos professores
ta coerente de formação do cidadão comum? de humanas (no linguajar escolar a condição de ciências não se
• em que medida o ensino de ciências vem descartando a função aplica a humanas), possivelmente a resposta seja: preparar os jo-
social da escola de 1º e sobretudo de 2º grau? vens para a cidadania.
• qual a concepção de ciência presente no ensino de ciências?
• quais os vínculos entre ciências-produção-trabalho? Faz parte do senso comum pedagógico que o conhecimento das
• quais os vínculos entre ensino de ciências e a indústria do ensi- forças sociais, econômicas, políticas e culturais que levaram, por
no, o assalariamento das camadas médias, a desqualificação do exemplo, à abolição da escravatura, ou à Proclamação da Repúbli-
trabalho moderno, a seletividade do ensino superior e, mais es- ca, permitirá aos jovens aprender a lutar, como futuros cidadãos,
pecificamente, a seletividade do mercado de trabalho dos pro- pela igualdade ou pela democracia republicana. Enfim, as huma-
fissionais da ciência e da técnica?... nas ensinam que a sociedade funciona numa correlação complexa
de forças, o que permitirá aos futuros cidadãos entenderem essa
Se deixarmos de lado um enfrentamento muito sério com essas sociedade e participarem de sua transformação. Nem todos os
questões e nos fecharmos em qualquer reforma dos processos professores terão essa visão tão progressista. O que importa é des-
internos ao ensino ou de seus componentes - conteúdos, livros de tacar como é concebido o papel de cada ramo das ciências na for-
texto, laboratórios, para casa, provas, métodos -, sem situar histó- mação dos jovens no 1° e 2° graus. Por exemplo, o conhecimento
rica e socialmente o ensino de ciências, corremos o risco de cair relativo às linhas de força de um campo elétrico, supõe-se, capaci-
num receituário ou até de levar os mestres das ciências a um certo tará os jovens a entender e manipular a tecnologia moderna usada
complexo de incapazes, uma vez que os determinantes da maioria no mundo da produção e, conseqüentemente, os capacitará para a
dos pontos vulneráveis nesse ensino não são de natureza didática, vida profissional.
nem sequer de incompetência ou despreparo de quem ensina, ou
de quem elabora material de ensino. Qualquer pesquisa rápida constataria essa visão dicotômica de
função do ensino. Basta olhar as introduções dos livros de texto pa-
Minha reflexão tenta abrir novas dimensões - oriundas de outras ra perceber como essa visão dicotômica faz parte do pensamento
ciências -, nem sempre aceitas como ciências, e que podem per- pedagógico dos profissionais da escola. Os livros de geografia do
turbar o campo tão fechado das ciências nobres - as exatas - e segundo grau ressaltam na apresentação: "a formação do cidadão
exige que se dê ao jovem orientação e instrumentos para a filtra- de 1.° e 2.° graus: separando as disciplinas destinadas à formação
gem, a análise, a interpretação do que ocorre no mundo". Por sua geral do cidadão daquelas destinadas à formação especial do pro-
vez, os livros de história insistem na mesma idéia de contribuir pa- fissional-trabalhador.
ra a formação do cidadão. "Através do estudo da história, você,
aluno, será capaz de extrair lições de participação e de espe- O que aconteceu realmente nestes vinte anos? Os conhecimentos
rança." A temática destacada nas humanas relaciona-se à ocu- transmitidos pelas ciências têm cumprido o papel de mediadores,
pação política do espaço, às formas de governo, às datas cívicas, como se esperava, entre a escola e o mundo do trabalho ? Como as
descoladas dos processos produtivos. ciências vêm cumprindo essa função? Ensinando conteúdos
científicos ao futuro profissional-trabalhador ou mediante outros
Entretanto, as introduções dos livros de física, química, biologia e mecanismos mais sutis? Lembremos um pouco de história.
matemática deixam logo claro aos jovens que são ciências vincula-
das a outro departamento de sua formação. Nas primeiras páginas No final da década de sessenta e início da década de setenta fez-se
apresentam aos jovens sua proposta: "capacitá-los para suas f u - uma crítica rígida ao saber transmitido no sistema escolar brasilei-
turas carreiras, sua vida profissional e o exame vestibular". ro. Tratava-se com desprezo o chamado saber tradicional, visto
como livresco, humanista, metafísico, apropriado a uma república
O jovem deve tirar esta conclusão: as humanas tratam do humano, de bacharéis diletantes e improdutivos. Propunha-se um saber
do social, do cívico, enquanto o mundo da produção, do trabalho, moderno, técnico-científico, útil, prático, capaz de formar profis-
da opção profissional pertence a outro departamento - das ciên- sionais e trabalhadores eficientes para uma sociedade produtiva.
cias exatas. Tal conclusão poderá acompanhar o futuro profissio-
nal-cidadão-trabalhador e dificultar uma compreensão unitária O argumento apresentado era que este saber e não aquele prepa-
das diversas dimensões de sua existência e da sociedade em que rava para o mundo moderno da produção, uma vez que estávamos
vive e para cuja construção contribui. sob o impacto de uma revolução científico-técnica. As causas do
subdesenvolvimento relacionavam-se a formas ultrapassadas de
Nossa hipótese é que nas últimas décadas essa separação entre produção, e a arrancada para o desenvolvimento correspondia à
ciência-técnica e cultura-política vem sendo levada ao extremo aplicação de tecnologias avançadas e à formação de profissionais
nas propostas de ensino de 1º e 2º graus. que dominassem essas tecnologias. O discurso da época, em suas
análises sobre o subdesenvolvimento, e em suas propostas para o
Essa visão dicotômica sempre esteve presente na prática pedagó- desenvolvimento, tentava ocultar qualquer variável político-social
gica. Desde as reformas dos anos vinte, o sistema de instrução pú- e cultural. As análises que incluíssem as ciências humanas no
blica era orientado, em sua totalidade, para a formação da cidada- diagnóstico da nossa realidade eram consideradas ideológicas,
nia das elites dirigentes. A formação profissional fazia-se fora da como um conhecimento acientífico, vulgar, preconceituoso, um
escola, no próprio trabalho, na família e um pouco no ensino técni- saber apropriado à revolução inconseqüente, o divertimento de
co e agrícola. As reformas de 68 e 71 tentaram administrar a união profissionais pouco sérios.
dessas duas funções no próprio sistema educacional. As transfor-
mações ocorridas nestas duas últimas décadas têm sido bem mais Tentava-se passar essa interpretação tecnicista, despolitizada à
profundas do que nas oito décadas republicanas anteriores. sociedade brasileira exatamente no momento em que os vínculos
entre ciência-técnica-cultura-política eram fortalecidos como
A concepção dicotômica foi transferida para o interior do ensino nunca antes em nossa história. Igualmente ocorria na educação
O maior perdedor nessa dicotomia entre ciência-técnica-cultu- Nessa experiência social, política e econômica, autoritária e selva-
ra que vem orientando o ensino nas últimas décadas é sem dúvida gem das últimas décadas não deu nem para perceber a pobreza
a própria ciência. A crítica ao ensino livresco e pouco científico, fei- científica e cultural legada por esses colégios, mas para a expe-
ta na década de sessenta, tinha suas bases. Um tratamento mais riência presente, e a que espera aos jovens nas próximas décadas,
científico das ciências da natureza (e das ciências da sociedade deveríamos ser um pouco mais exigentes e retomar com maior se-
também) era urgente. riedade o direito dos profissionais-cidadãos deste país de terem
uma formação científico-cultural séria e consistente.
O que se vê hoje, entretanto, não é exatamente uma formação mais
científica, mas uma simplificação do saber científico, um reducio-
nismo utilitarista que envergonharia os grandes cientistas que nos Uma esperança pode vir do movimento de renovação existente nos
últimos séculos colaboraram em sua construção. Esse reducionis- próprios profissionais do ensino dessas áreas, o qual tenta reagir à
mo utilitarista em nada contribui para o avanço das ciências no país submissão servil a seus patrões, mercadores do ensino privado, e
nem para a formação do homem e seu domínio sobre a natureza. reencontrar os vínculos entre técnica-ciência-cultura-política.
O ATO DE ENSINAR CIÊNCIAS* teúdo científico. A ação do professor, desse modo, não pode con-
sistir em negar o cotidiano fragmentado do conhecimento da
Amélia Império Hamburger** criança. Mas, ao contrário, em levá-la a superar essa visão para
Elvira CA. Souza Lima** que chegue ao conhecimento formalizado.
A questão do ensino de ciências - da compreensão dos conceitos No processo histórico de elaboração do conhecimento científico
científicos pelas crianças - sugere a necessidade de um processo verifica-se movimento semelhante: os cientistas partem da ação
contínuo de interação professor-aluno, o qual contenha as re- na prática, da análise de dados concretos, e teorizam, formando vi-
lações intrínsecas entre o conteúdo a ser ensinado e a metodologia sões muitas vezes fragmentadas e mesmo contraditórias, até que
de ensino. cheguem a um nível de compreensão que possibilite a observação,
a manipulação e a experimentação do real. Um cientista promove
Apresentamos aqui algumas considerações que, segundo nossas uma compreensão de uma totalidade, de um certo recorte da reali-
pesquisas e nossa prática, favorecem o estabelecimento de inte- dade.
rações dialógicas professor-aluno em sala de aula - condição de
aprendizagem criativa. Pode-se afirmar que essa construção de conhecimento ocorreu do
informal para o formal. Esse conhecimento que se formaliza cor-
Destacamos alguns elementos constitutivos do ato complexo de responde a representações de novas possibilidades de ação dos
construir conhecimento científico, em situação de aprendizagem: homens, instrumentos de transformação das ligações com a reali-
o conteúdo, os indivíduos envolvidos na interação (como professor dade, natural e social. Esse conhecimento passa de abstrato a con-
e como aluno), a formação do professor, a ação didática e cons- creto, de novo, pelo uso, pelo seu significado efetivo.
trução do conhecimento, e a avaliação da aprendizagem.
É nesse nível de disseminação do conhecimento científico que, por
Ensinar ciências deve partir do conhecimento cotidiano. A ciência sua vez, o professor vai atuar para ensiná-lo.
está no dia-a-dia da criança de qualquer classe social, porque está
na cultura, na tecnologia, no modo de pensar. Quando se parte do Trabalhar com o fenômeno cientificamente delineado, na sala de
cotidiano conhecido, o aluno se sente motivado a aprender o con- aula, implica partir do saber que a criança já possui. Este saber que
a criança constrói no cotidiano - pela observação e por infor-
mações diversas - é o ponto de partida para a ação pedagógica.
Entretanto, ele precisa ser confrontado com o conhecimento
* Trabalho resultante da participação das autoras no Primeiro Encontro Regional científico. Mesmo que não seja com a última teoria científica, mas
de Ensino de Ciências, Ribeirão Preto. SP. agosto de 1988
com alguma teoria que organize o conhecimento, desenvolvendo
** Professora do Instituto de Física da USP - Programa de Pós-Graduaçâo em
Ensino de Ciências. outras dimensões do pensamento. A criança lança hipóteses, que
*** Professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão P r e t o - USP. retira do dia-a-dia; porém estas hipóteses precisam ser teoriza-
O conceito não é, portanto, um conhecimento fechado em si mes- Sendo o professor, então, o mediatizador específico e impres-
mo, o qual se transmite à criança. Para ser aprendido, ele precisa cindível da situação em sala de aula, sua formação é fator funda-
ser construído por ela, com as possibilidades e diversidades das si- mental no fenômeno da aprendizagem.
tuações efetivas. Este fato deve, por sua vez, nortear a orientação
da ação pedagógica. A formação do professor que desenvolva capacidade de síntese,
visão de conjunto, para poder organizar e guiar a construção de co-
Também não se justifica limitar a priori o conteúdo que se vai ensi- nhecimento dos alunos, deve ser ampla, e abranger uma visão de
nar às crianças, com o argumento de que é necessário reduzi-lo ou educação também como valor cultural. Para tanto, precisa incluir
simplificá-lo para que elas o entendam. antropologia, sociologia, história, psicologia, lingüística, além de
conhecer as especificidades dos conteúdos científicos, de suas
Um mesmo fenômeno, que leva a um conceito científico, pode ser origens e evolução conceituai e de suas aplicações.
trabalhado de diversas maneiras, conforme o nível de ensino. No
caso da cinemática, por exemplo, conceitos mais complexos que, Trabalhar com o fenômeno científico na formação do professor
em geral, são introduzidos nas últimas séries do primeiro grau - implica partir do que o professor com alguma experiência de ensi-
como variações do movimento, velocidade, aceleração - podem no já faz, porque nesta ação existem sempre elementos de sua
ser ensinados mediante experiências de demonstração, de forma criatividade e de aprendizagem.
qualitativa, a crianças das primeiras séries do primeiro grau, e até a
pré-escolares. Uma familiaridade qualitativa poderá representar É importante, na formação do professor, que nele se incorpore a
base de referência para uma compreensão mais profunda dos idéia de que a ciência não é exatamente igual a realidade à qual diz
fenômenos da teoria da mecânica, em estudos posteriores. respeito. Ela é idêntica à realidade num determinado recorte, mas
não esgota todas as possibilidades de conhecimento desta reali-
A delimitação da amplitude com a qual o conceito será trabalhado dade.
depende da própria ação de ensino, tal como ela se define, e da re-
presentação que o adulto faz das possibilidades de compreensão O professor, ao ensinar ciências, tem de estar consciente de que vai
da criança. delimitar situações e tem de esclarecerão aluno que aquilo de que
se vai falar é válido naquelas condições e pode não valer para toda
Pouca disponibilidade para a exploração do pensamento da e qualquer situação.
criança acerca de um determinado conceito e pouca familiaridade
com as estratégias que ela utiliza para aprender tendem a levar o Assim, é função do professor fazer o recorte do fenômeno ao qual
professor a uma prática restritiva, revelada através da redução de se refere o ensino a ser realizado. Recortá-lo da melhor maneira
informações e da seleção do conhecimento que ensinará aos alu- possível, pensar a respeito dele, descobrir e permitir que o aluno
nos. faça este processo de perceber, captar e revelar/ver revelado. Este
é o mecanismo de compreensão: delimitar o fenômeno e ver reve-
Isto provocará o empobrecimento da ação didática, uma vez que lado naquele fenômeno o conceito científico que foi construído
não se estará trabalhando com a capacidade real de construção de historicamente.
A partir de uma prática que considera o conhecimento existente na A interação dialógica professor-aluno apresenta componentes
sala de aula, no sentido de organizá-lo, o professor passa a ver sua simétricos, nos quais se afirmam tanto a reciprocidade de
função de maneira diferente. Ele aprende a pensar de outras for- intenções de conhecer o conteúdo quanto a de se reconhecerem
mas, a olhar para o objeto de ensino, para o conteúdo de outras mutuamente como sujeitos ativos, criativos desse conhecimento.
maneiras que possibilitem novas dimensões de compreensão, li- Apresenta também componente assimétrico, presente na situação
bertando-se de formas antigas que não possibilitam construir um efetiva de fazer emergir um conhecimento novo, na qual professor
significado compreensivo. e alunos têm formação e experiência diversas.
Construir significados de várias perspectivas - da biologia, da an- Atualmente, o conceito de energia, por exemplo, pode parecer
tropologia, da física, da bioquímica, etc. - pode ser efetivo para se intuitivo para os alunos, que o percebem em seu cotidiano e nas
descobrirem, num significado, novas ligações com a realidade. conotações do uso atual. O professor preparado o conhece como
um conceito construído no contexto do século XIX, com as especi-
O estudo de uma formiga, por exemplo, possibilitará diversas for- ficidades de desenvolvimento técnico, matemático e conceituai
mas de desenvolvimento, conforme forem consideradas perspec- desta época. O professor está a par de um conceito científico que
tivas definidas por sua ação como inseto, na comparação com ou- teve, inicialmente, sua definição baseada nas leis da termodinâmi-
tros animais, na organização social, nos sistemas ecológicos, etc. ca para certos sistemas físicos, químicos e biológicos e cujo signi-
ficado evoluiu segundo as teorias modernas relativas a outros sis-
O significado da medida de um volume pode ser pensado de várias temas.
maneiras, conforme a definimos na situação de mobiliar uma sala,
de decidir sobre o processo de distribuição comercial de leite em O professor terá, portanto, conhecimentos específicos que o aluno
litros, ou de como tomar doses pequenas de remédios fortes, etc. não domina, mas que deverá dominar mediante a ampliação e a
transformação de seus conhecimentos, chegando à construção
O estudo das propriedades dos corpos, em seus movimentos e dos conceitos científicos com compreensão própria.
interações físicas, requer conceitos bem definidos se forem cor-
pos grandes (macroscópicos), na nossa escala de tamanho, ou pe- As teorias científicas e o conhecimento cotidiano apresentam rit-
quenos (microscópicos), em escala não-visível. mos diversos; entretanto, são combinados no ensino.
Um rápido levantamento dos modos de pensar dos alunos que ex- A avaliação da aprendizagem não é independente das questões já
pressam livremente seus pensamentos a respeito de conceitos a tratadas. A ação pedagógica estrutura-se e realiza-se em função
serem ensinados pode ser utilizado como guia significativo para o do próprio processo de avaliação a ser utilizado, e desta forma o
professor. contém. A metodologia de ensino abrange a forma de avaliá-lo;
assim, o ensino é norteado pela avaliação que dele será feita. Muitas
Com esta prática, o conjunto de alunos de uma classe deixa de ser vezes isto acarreta uma delimitação do conhecimento a ser apren-
inerte e passa a ser ativo em relação ao conhecimento. É neste mo- dido e uma limitação no ato de conhecer. Tal fato ocorre quando a
mento que o conteúdo emerge e que se define como parte indisso- avaliação efetua-se com o objetivo de implicar mais a devolução
ciável da metodologia de ensino. E o momento que se estabelece a estática de um conteúdo ensinado do que a ação dinâmica do pro-
ação pedagógica, que se institui o diálogo. fessor e do aluno em relação ao conhecimento a ser construído.
DOISE, W. & PALMONARI, A. Social interaction in individual de- VYGOTSKY, L.S. Thought and language. Trad. Hanfamann e Va-
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HAMBURGER, A. Império. Alguns dilemas da licenciatura. Ciência NOTA: a normalização bibliográfica foi feita a partir dos dados fornecidos pelo au-
e Cultura, São Paulo 35 (3): 307-1 3, mar. 1983. tor.
ENSINO DE CIÊNCIAS NAS ESCOLAS: UMA QUESTÃO EM ratórios, não realizam experimentos. E gostariam de fazê-lo, pois a
ABERTO vivência do método científico é para eles um mito. Os que tiveram
esta chance, em geral egressos de universidades públicas,
Marisa Ramos Barbieri* também não conseguem efetivamente dar aulas práticas, embora
até as programem. Alegam falta de condições apropriadas e se
sentem desencorajados para se lançarem sozinhos em um progra-
Laboratório: entre o mito, a mágica e a necessidade ma dispendioso - não há verbas e o tempo é curto. Laboratório -
aspiração de todos - não vinga em nossas escolas, mesmo nas
0 ensino das Ciências através de experiências tem aceitação unâ- estáveis, públicas ou privadas1.
nime entre professores, pais e alunos de nossas escolas. Todos
concordam que o ensino das Ciências só se efetiva se for acompa-
nhado de experiências em laboratório. Há reivindicações perma-
nentes dos professores, para que sejam montados laboratórios O laboratório possível
nas escolas, e dos alunos, para que sejam ministradas aulas práti-
Toda atividade de laboratório em escolas concretiza-se com a par-
cas de Ciências. Embora apontado por todos como condição bási-
ticipação efetiva de grupos de alunos. Com pouca orientação, eles
ca para aprender Ciências, o ensino experimental não se viabiliza
logo percebem o caminho e se dispõem a prolongar o programa de
em nossas escolas. Apenas algumas instituições ou professores -
professor, improvisando experimentos, iniciando ou reiniciando a
por período relativamente curto - conseguiram desenvolver pro-
organização do laboratório da escola. Ao professor cabe a tarefa
gramas de aulas com experiências. Mesmo com certas condições
de indicar bibliografia, orientar em classe - para que todos acom-
mínimas, os laboratórios ficam fechados a maior parte do tempo.
panhem -, com algum atendimento em intervalos de aulas e, even-
As razões apontadas são que os professores trabalham sozinhos,
tualmente, fora do período de aulas. A participação dos alunos é
de forma isolada, permanecem na escola apenas durante o perío-
imprescindível. Aí reside o sucesso das Feiras de Ciências, impor-
do em que ministram aulas e em poucas reuniões anuais, que têm
tantes enquanto programadas com antecedência, com o objetivo
mais caráter burocrático do que pedagógico. Embora consideran-
de ser um grande laboratório, onde grupos de crianças têm a opor-
do que professores têm dificuldade em coordenar sozinhos a reali-
tunidade - ainda que única no ano - intensa e curta de vivenciar a
zação de experimentos durante o período das aulas, a estas razões
concretização de alguns experimentos.
se soma uma mais grave, relacionada à maioria deles: durante
a sua formação em cursos de licenciatura, não têm acesso a labo-
12 14
Proposta Curricular para o ensino de Ciências e Programas de Saúde — 1,° grau, Um exemplo é o programa "Melhoria para o ensino de Ciências", SPEC-CAPES-
versão 1988. p. 9. PADCT, Brasília, 1 983. Os projetos constam do Catálogo CAPES-PADCT, 1 986.
13 15
BARBIERI, M.R. 0 professor, um ex-aluno. Painel no I Encontro Regional de Ensi- l, II e III Encontro Nacional de Centros de Ciências, 1986, 1987, 1988.
16
no das Ciências. Ribeirão Preto, São Paulo, 1988. Ver Relatório do Encontro, Relatórios Técnico-Criticos dos projetos CAPES-MEC-PADCT-LEC-FFCLRP-
LEC-FFCLRP-USP. USP, 1985 a 1988.
tendo em vista a realização dos seus estágios supervisionados. E à tos, embora dificilmente tragam dados da sua aplicação, ou seja,
Prática de Ensino de Biologia cabe, de alguma forma, cuidar da sua validação empírica - pois não é um hábito do professor re-
também do ensino de Ciências (primeiro grau), sem contudo fazê- gistrar dados do desenvolvimento das aulas -, assim mesmo po-
lo devidamente. dem indicar os aspectos mais significativos, que seguramente ga-
rantem momentos de aprendizagem em sala de aula. Resgatar es-
Como resultado de esforço concentrado de pequenos grupos de te momento educacional, que inclui o teste em sala de aula, signifi-
educadores, deve-se citar a instalação de colégios de aplicação - ca sistematizar um trabalho já comprovado empiricamente e que
alguns ainda sobrevivendo -, escolas experimentais e vocacio- pode vir a ser um rico filão para a pesquisa em ensino de Ciências e
nais, estas fechadas no estado de São Paulo, no final da década de sua melhoria. Com apoio em afirmações de professores e alunos
60, e aquelas definhando a partir dos anos 70. Lamentavelmente de que - a despeito das condições adversas das escolas -, há mo-
pouco se sistematizou de toda esta experiência. O resgate de mentos significativos de aprendizagem, captá-los e contá-los é fa-
alguns registros e principalmente depoimentos já forneceu pou- zer história e permitir outras investigações.
cas mas significativas publicações a respeito destas inovações
educacionais, que atingindo a escola como um todo também se Mesmo o professor de universidade não é valorizado por este tra-
estenderam ao ensino das Ciências. balho que desenvolve e que pode vir a ser uma linha importante nas
pesquisas relativas a ensino, em especial o das Ciências. A nível de
Em relação à questão dos registros do processo educacional licenciatura, o professor do futuro professor, também pesquisa-
convém nos estendermos um pouco mais. Uma das possibilidades dor, com certeza transmite o conhecimento que procura produzir
para o resgate da história do ensino das Ciências seria feita me- na preparação das aulas da disciplina que leciona, incluindo a for-
diante a análise de registros dos professores e alunos. Quais regis- ma pela qual produz este conhecimento. Durante o desenrolar da
tros? Dos momentos em que o professor ensina e o aluno aprende. aula, há situações evidentes, passíveis de registro, em que, ao con-
Aqueles momentos em que se tem a convicção de que o professor teúdo programado pelo professor, se acrescenta a participação do
está produzindo um conhecimento especialmente para ser trans- aluno, interseccionando à forma de preparação ("ensino") a de
mitido àqueles alunos, naquela situação de aula. Há uma conversa compreensão ("aprendizagem"), indicando, assim, uma pista para
corrente nas escolas de que há determinados momentos especiais análise desta metodologia 17 .
em que o professor ensina e o aluno aprende.
Sempre há alunos participando direta ou indiretamente de progra-
Se se considera que o professor prepara suas aulas, em especial os mas pesquisados por professores. Constatar a participação dos
professores das universidades, cujas condições de trabalho possi- alunos que resulte em aprendizagem tem sido um dos objetivos
bilitam um ensino melhor, e que a preparação demanda um pro- dos trabalhos desenvolvidos no LEC - Laboratório de Ensino de
cesso de consulta à licenciatura e de seleção de conceitos apro- Ciências da FFCLRP-USP. A maior dificuldade relaciona-se à ques-
priados, pode-se afirmar que há um caráter de investigação embu- tão do registro. A valorização do ato de ensinar como uma ativida-
tido neste processo, que tende a ser mais investigativo e criterioso de igualmente científica só tem significado se submetida a investi-
à medida que o professor já tem envolvimento com pesquisas - o
que é usual em universidades. Os apontamentos de aulas destes
professores constituem importante registro para o resgate da 17
Entendemos por metodologia a trajetória percorrida pelo professor, desde a or-
história do ensino e seriam preciosa fonte para análises dos currí- ganização do conhecimento transmissível à análise de sua transmissão. O regis-
culos de formação de diferentes profissionais. Estes apontamen- tro do processo, incluindo a participação do aluno, é essencial.
Os arquivos das escolas são precários em registros que levem à Neste contexto, o investimento por vezes maior na melhoria do en-
construção da sua memória, condição essencial em projetos de sino de Ciências, o que tem ocorrido historicamente, não produz os
melhoria do ensino que incluem sempre a formação do professor. resultados desejados. As condições exigidas pelos programas de
Há um grande esforço dos pesquisadores da história da escola em Ciências têm custo mais alto do que o de outras áreas, pois envolve
encontrar dados - em geral reunidos por alguns poucos educado- a formação específica e metodológica dos professores, que preci-
res -, os quais se dispõem a dar depoimentos acerca do trabalho sam trabalhar na interseção das áreas de saber que constituem
escolar. No ensino das Ciências também não se tem o hábito de re- esse ensino. Ainda que suportado por avanço científico e tecnoló-
gistrar sequer os dados relativos à aplicação de alguns projetos gico maior, o ensino das Ciências também não tem uma política
inovadores, que se constituíram em contribuição importante. Ge- educacional-científica correspondente. É uma questão em aberto.
ralmente os dados se perdem, a divulgação não ocorre e as boas
Uma proposta para divulgar o ensino das Ciências
aulas ficam restritas à memória dos ex-alunos. O reconhecimento
da história do ensino, e nele a trajetória da formação do professor Pelo projeto que desenvolvemos há anos, tudo indica que os apon-
visando a sua melhoria, depende do resgate de dados e de um pro- tamentos de aulas merecem ser analisados e sistematizados para
cesso sistemático de divulgação das análises. A falta de documen- divulgação. É um processo demorado. A condição básica é o tra-
tos explica, de alguma forma, a tendência mais descritiva e menos balho em grupo.
Pelos estudos que vimos desenvolvendo, depende do trabalho ocorrência da situação de aprendizagem. E a contribuição escrita
conjunto de especialistas, pesquisadores e professores envolvi- que se pode exigir de um professor, nos limites do seu trabalho de
dos num projeto de pesquisa que vise ao ensino das Ciências. Do ministrar aulas seguidas; visa a documentar a situação de um con-
projeto derivam programas a serem testados. texto em que produção e transmissão de conhecimento se harmo-
nizam. A proposta é descaracterizar a tendência do ensino das
Os graduandos, principalmente os estagiários das Práticas de En- Ciências marcada pelo conteúdo ditado pelas Ciências, sem a con-
sino, que ministram cursos aos alunos de 1º e 2º graus, têm parti- sideração do aspecto educacional. Sendo avulsa instiga a investi-
cipação importante nas decisões e relato dos programas desen- gação de sua seqüência segundo a mesma proposta metodológica
volvidos. São os alunos que concretizam o contato entre os profes- para se organizarem programas.
sores especialistas, na procura de assessoria para a organização
das atividades. Embora o professor trabalhe sozinho, não é tarefa para um só; a
proposta inclui a participação de alunos auxiliando no registro e na
No LEC trabalha a equipe permanente, composta de professores, organização dos apontamentos, num trabalho em que ao mesmo
técnicos e estagiários, a qual programa, executa e registra o pro- tempo estão atestando a sua aprendizagem no contexto em que
cesso, mantendo contato com a equipe de apoio, principalmente ocorre, ou seja, consideradas as limitações, dentro do possível, do
de assessoria dos especialistas, e eventualmente com monitores e chamado "real" da sala de aula. São registradas as manifestações
professores da rede pública de ensino. A equipe permanente se ocorridas durante a aula e consideradas evidências de aprendiza-
reúne com os especialistas sempre que necessário, procurando gem; o conteúdo para uma Folha Avulsa surge de uma dúvida, co-
obter a indicação segura do conteúdo e a forma como foi produzi- mentário ou resposta apresentada em sala de aula, ou mesmo de
do. Auxiliada pela literatura, a equipe permanente tem a uma conversa ou discussão sobre assunto relacionado a progra-
incumbência de selecionar idéias básicas relativas aos programas, mas de Ciências. O registro refere-se às manifestações dos pro-
consultar arquivos dos eventos realizados pelo LEC, reunir-se com fessores e alunos, documenta a trajetória do raciocínio - eviden-
especialistas, discutir com licenciandos, professores e alunos de ciado por esquema, referências, comentários -, como a interação
1º e 2º graus. O ir e vir dos contatos e consultas que subsidiam as ocorre, os meios que levaram à aprendizagem dos alunos. A docu-
reuniões de decisões dos programas fica a cargo de graduandos mentação sistemática destes momentos permite o conhecimento
estagiários de Prática de Ensino e bolsistas do LEC. de processos educacionais, cuja importância escapa aos próprios
professores que os possibilitam. Investir na formalização e divul-
Como a proposta é metodológica, a equipe permanente tem sem- gação destes momentos é a proposta da Folha Avulsa.
pre presente a preocupação de registrar e analisar o processo de
elaboração e execução dos programas pelos grupos. Como seria a linguagem? A de um trabalho de divulgação, com o
estilo de cada grupo, evitando descrições. A Folha Avulsa não pre-
Folha Avulsa: forma de divulgação do ensino das Ciências cisa ser longa, no máximo 2 a 3 laudas, com caráter de divulgação
científica. A redação, em geral, é refeita muitas vezes e, antes da di-
Resgatar a história do ensino das Ciências a partir do reconheci- vulgação, a Folha Avulsa é avaliada em sala de aula. Esta avaliação
mento do trabalho do professor em situação de sala de aula é a é acompanhada de registro, que geralmente sugere nova Folha
idéia básica da Folha Avulsa. Folha porque é o registro de um mo- Avulsa. Para divulgação são selecionadas as que mais bem retra-
mento considerado significativo em que a aprendizagem ocorre. tem as situações de aprendizagem criadas pela interação profes-
Avulsa para facilitar o registro durante o próprio processo de sor-aluno.
18
Coleção de Folhas Avulsas. Mimeo. LEC, 1987.
A EVOLUÇÃO DOS LIVROS DIDÁTICOS DE QUÍMICA DESTI- Os livros didáticos do período anterior a 1930
NADOS AO ENSINO SECUNDÁRIO
Até 1930, os livros didáticos caracterizavam-se como compên-
Eduardo Fleury Mortimer* dios de química geral, o que é coerente com a então estrutura do
ensino secundário de química. A ausência de um sistema de ensi-
Neste artigo iremos discutir a evolução dos livros didáticos de quí-
no bem estruturado, em conseqüência, contribuía para a não-se-
mica sob um aspecto mais geral, realçando as principais carac-
riação dos estudos secundários. Nesse contexto, não fazia sentido
terísticas que um determinado período imprime aos livros. Os
pensar em livros por série, já que os estudos secundários tinham
períodos escolhidos correspondem, a partir de 1930, à vigência
objetivo propedêutico em relação aos exames preparatórios. Em
das reformas de ensino que ocorreram ao longo da história da
virtude dessa característica do período e da dificuldade em encon-
educação brasileira.
trar livros tão antigos, selecionamos todos os compêndios de quí-
De meados da década de 30 até 1960 tivemos uma grande homo- mica que encontramos, independentemente da indicação de que
geneidade entre os livros, fruto da existência de programas oficiais tivessem sido usados na escola secundária ou nos cursos superio-
seguidos à risca. A década de 60 apresenta a maior quantidade de res. Essa escolha revelou-se acertada, pois o conteúdo dos livros
livros com abordagens e conteúdos diversos, de acordo com o usados no curso secundário, como por exemplo o de Teixeira
espírito liberalizante e descentralizador da Lei de Diretrizes e Ba- (1875), adotado no Colégio Pedro II (Lorenz, 1 986), é praticamen-
ses da Educação Nacional de 1 9 6 1 . te o mesmo dos que foram usados em cursos superiores, como o
de Oliveira (1898), adotado na disciplina de Química Geral da Es-
O período anterior a 1930 foi considerado como um todo, princi- cola de Medicina do Rio de Janeiro. Os onze livros consultados pa-
palmente em função da situação do ensino secundário brasileiro ra esse período acham-se no Quadro 1.
da época. As treze reformas desse grau de ensino, levadas a cabo a
partir de 1838, quando entrou em funcionamento o Colégio Pedro Os livros do período apresentam, em geral, uma pequena parte de
II, não conseguiram alterar o quadro de desorganização geral do química geral, seguida de outra, de química descritiva, bastante
ensino secundário. A existência do Colégio Pedro II como modelo extensa. A de química geral apresenta-se bem estruturada na
para os ginásios das províncias equiparados não conseguiu impor maioria dos onze livros já mencionados. As principais definições
uma estrutura capaz de fazer frente aos chamados exames pre- aparecem em meio a uma gama variada de exemplos, em textos
paratórios, que garantiam o acesso aos cursos superiores para muito bem encadeados. Não há uma preocupação em conceituar
qualquer cidadão neles aprovado, independente de ter ou não cur- para depois exemplificar. Em geral o livro discute exemplos de de-
sado um ginásio regular (Moacir, 1 9 3 6 , 1 9 4 1 ; Gomes, 1 9 4 8 ; Hai- terminados fenômenos que vão conduzir, naturalmente, a um con-
dar, 1972). ceito. Dessa maneira, os exemplos são discutidos e explicados
antes de serem generalizados em conceitos, e quase todos estes
são apresentados, em primeiro lugar, operacionalmente. Depois
* Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. de introduzidas as teorias, são retomados por meio de definições
Uma outra característica interessante dos livros do período é a Uma característica dos livros do período, inalterada ao longo da
ausência completa de exercícios ou questionários. É razoável su- história, é a ausência de sugestões de experimentos. Embora na-
por que tal atividade fosse vista como de competência dos profes- quele primeiro período os livros sejam ricos em fatos experimen-
sores. Além disso, a maioria dos aspectos abordados na parte de tais muito bem descritos, não é comum apresentarem sugestões
química geral o era de maneira qualitativa. A única exceção refere- de experimentos a serem realizados pelos alunos. Essa caracterís-
se às leis ponderais e volumétricas das reações químicas, que tica é marcante nos livros didáticos brasileiros. São poucas as ex-
apresentavam também uma abordagem quantitativa. Assim, não ceções, como a obra de Leão (1940) e a de Esperidião e Lima
devia ser hábito naquela época o que mais tarde se tornou lugar- (1977). Mais recentemente, a partir do final da década de 70, sur-
comum no ensino de química: a resolução de exercícios. gem projetos de ensino de química em que uma das preocupações
centrais é a introdução de tais experimentos, como parte integran-
A apresentação gráfica dos livros do período é algo que não se te do curso. Esses projetos têm grande importância na melhoria do
alterará até a década de 6 0 : eles trazem quase que exclusivamente ensino de química no 2º grau, mas infelizmente seu alcance é limi-
textos; os títulos ocupam pouco espaço, e as ilustrações são em tado, se comparado ao dos livros didáticos mais usados.
número bem reduzido. Os conceitos já aparecem sublinhados de
alguma forma na maioria dos livros consultados. Normalmente es- Em relação à atualização dos conteúdos, pode-se dividir o primeiro
se destaque é dado por uma impressão em tipo diferente, ou pelo período em duas partes. A que corresponde ao século XIX apre-
uso de negrito. senta livros muito atualizados, cujos autores discutem, em pé de
igualdade com cientistas europeus, o significado de novos concei-
A totalidade dos livros preocupa-se em discutir as implicações f i - tos. Assim, a polêmica em torno do dualismo ou unitarismo mos-
losóficas dos conhecimentos químicos. Dessa forma, todas as tra-se viva nos livros contemporâneos a essa discussão. Em re-
afirmações que decorrem da hipótese atômica são acompanha- lação a vários temas da química clássica isso se repete. É o caso da
das de várias ressalvas que explicitam que, apesar da grande con- polêmica em torno das valências constantes ou variáveis. Livros
tribuição dessa hipótese para o atendimento da química, não há publicados na década de 80 do século XIX já traziam informações
ainda uma comprovação experimental. O mesmo ocorre em re- relativas à hipótese do carbono tetraédrico, de Le Bel e Van't Hoff.
lação à maioria das classificações - de elementos ou de compos-
tos - apresentadas neste período. A classificação dos corpos sim- A partir do início do século XX, essa situação começa a mudar. Os
ples em metais e metalóides, derivada da teoria dualística de Ber- livros apresentam certa inércia, não conseguindo acompanhar a
zelius, por exemplo, é acompanhada de uma série de ressalvas so- evolução vertiginosa dos conhecimentos, neste começo de sécu-
bre suas limitações. lo. Ao mesmo tempo, observa-se a dificuldade em abandonar cer-
tos conceitos e teorias já em desuso. Assim é que, em relação à
Consideradas todas essas características, pode-seafirmar que, em teoria atômica, os livros persistem numa abordagem clássica, sem
conjunto, os livros didáticos do período são, em geral, os melhores, incorporar a noção de estrutura atômica. Apenas uma obra desse
período (Franca, 1919) faz referência ao átomo nuclear e discu- trar essa distinção. Quando se faz essa mistura, é possível separar
te o significado da divisibilidade do átomo para o conhecimento os componentes mediante a ação de um ímã, que atrai a limalha e
químico. Mesmo assim, e esse fato vai perdurar ainda após 1 930, não o enxofre, ou seja, o enxofre e o ferro conservam suas proprieda-
O autor é incapaz de aplicar esse novo conhecimento acerca da es- des, o que nos leva a concluir que não houve combinação, mas
trutura atômica em outras noções, como a de valência, que conti- apenas uma mistura-que é um fenômeno físico. No entanto, quan-
nua sendo enfocada classicamente. O mesmo se observa em re- do se aquece essa mistura, o enxofre reage com o ferro, dando ori-
lação à explicação das forças interatômicas e intermoleculares, gem ao sulfeto de ferro, que não conserva as propriedades magné-
como afinidade e coesão, que continuam sendo tratadas de ma- ticas do ferro. Portanto, aqui há uma combinação, pois as proprie-
neira bastante nebulosa. dades do produto final diferem das propriedades dos reagentes
iniciais. Essa mudança nas propriedades caracteriza um fenômeno
E relação ao outro fato já mencionado - a dificuldade em abando- químico. Muito bem! Um belo exemplo, fácil de ser reproduzido
nar teorias e conceitos ultrapassados -, o exemplo mais notável é o junto com os alunos. Só que, na prática, dificilmente dá certo. Ten-
da teoria dos tipos moleculares, que permanece em vários livros do tamos reproduzir essa experiência de todas as maneiras possíveis
século XX, quando havia caído em desuso no próprio século XIX. e imagináveis, mas não conseguimos obter o composto desejado
Desse modo, todos os livros do início de século XX ainda a trazem A mistura final, apesar de não poder ser separada, continuava a ser
como um tópico integrante da discussão das fórmulas molecula- atraída, ainda que levemente, por um ímã. Assim a evidência final
res e gráficas. E mesmo em alguns livros pós-1930 as fórmulas tí- para a reação - a extinção das propriedades magnéticas do ferro -
picas derivadas dessa teoria continuam a aparecer, embora com não é fácil de ser obtida, o que acaba por invalidar a experiência.
ressalvas (ver, por exemplo, Amaral, 1918, p. 48 a 4 2 ; Nobre,
1920, p. 83 a 8 5 ; 1933, p. 90 a 9 2 ; Franca, 1933, p. 93 a 9 5 ; Encontramos esse mesmo exemplo em praticamente todos os li-
Alves da Silva, 1936, p. 238). vros a que tivemos acesso - de 1833 até 1987. Também um pro-
jeto alternativo atual, o PROQUIM, em sua primeira versão experi-
Essa última característica - a inércia dos livros didáticos - faz com mental, de 1982, traz essa experiência sob o título de "0 que é
que certos assuntos, já ultrapassados, sejam repetidos sem ne- uma transformação química" (PROQUIM, 1982, p. 8 a 16).
nhum questionamento. Um bom exemplo é a definição de corpo,
que aparece em todos os livros didáticos, desde o século XIX. Se Os livros didáticos do período correspondente à vigência da
naquela época tal definição fazia sentido, pois correspondia à Reforma Francisco Campos
noção atual de substância - há também as definições de corpo
simples e corpo composto -, o mesmo não se pode dizer em re- A partir de 1 9 3 0 os livros didáticos sofrem algumas alterações im-
lação à definição atual de "uma porção delimitada de matéria". portantes, a maioria delas em conseqüência direta da Reforma
Justamente essa inércia contribui para que, até hoje, os livros co- Francisco Campos (1931). A primeira é na própria apresentação:
mecem por definir matéria para, depois, definir corpo. E isso é as- passam de compêndios de química geral, não-seriados, a livros de
sim há 150 anos! química, por série, com o conteúdo de acordo com o programa ofi-
cial daquela Reforma. Dos oito livros analisados, desse período, a
Essa inércia é uma vez mais salientada por um dos fenômenos metade ainda mantém a característica de compêndio de química
apresentados para distinguir mistura de combinação, ou fenô- geral, não-seriado. Os demais já incorporam a seriação, em virtude
meno físico de fenômeno químico. Os livros didáticos usam a ex- da citada Reforma. Isto, a nosso ver, se explica pela própria carac-
periência de misturar enxofre em pó com limalha de ferro para ilus- terística do período de transição do sistema não-seriado para o
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Janeiro, F. Briguiet, 1953. 1982.
0 período seguinte corresponde à vigência da LDB, de 1 9 6 1 . O livro "Química para o Terceiro Ano Colegial" (Amado, 1961),
Neste quarto período, observa-se, ao contrário do anterior, uma além dessas características apresentadas pelo "Elementos de
grande heterogeneidade entre os livros. Enquanto muitos trazem a Química", acrescenta uma outra muito interessante em relação
discussão mais aprofundada sobre estrutura atômica, valência e aos temas aqui discutidos, e que já havia aparecido no livro de
classificação periódica para o início do primeiro volume, outros Borzani (1960): esses autores relacionam, de forma muito clara,
preferem transferi-la para o início do segundo, deixando, no pri- as propriedades dos materiais com os modelos utilizados para des-
meiro, apenas uma discussão inicial. Essas diferenças vão acabar crever sua estrutura. Além disso. Amado preocupa-se em relacio-
desaparecendo, com todos os livros adotando a postura de abor- nar os sucessivos modelos de estrutura atômica aos fatos experi-
dar tais assuntos no início do primeiro volume. A relação dos livros mentais disponíveis em cada época. Assim, compara os sucessi-
consultados para esse período encontra-se no Quadro 1. vos valores da energia de ionização com os níveis de energia dos
elétrons nos átomos, mostrando como as variações bruscas no va-
Além dessas pequenas diferenças, constatou-se uma variedade lor da energia de ionização são evidências experimentais para a
de abordagens maior que em qualquer outra época. No livro Fun- existência dos níveis de energia no átomo. Na abordagem da "Teo-
damentos da Química - Teoria (Borzani e alii, 1960), os autores ria de Combinação Química", o autor é extremamente feliz ao con-
retomam a ordem de apresentação que caracterizava os livros do frontar as propriedades dos diversos tipos de compostos (iônicos,
período anterior a 1930. Assim, primeiro são introduzidas as leis moleculares, covalentes e metálicos) com os modelos de ligações
ponderais e volumétricas das reações químicas; depois, a teoria químicas e interações intermoleculares.
Essa múltipla abordagem é, a nosso ver, uma das conseqüências mica, ligação química e classificação periódica, e sua mudança
da intensa discussão em torno desses assuntos, ocorrida nessa para o início do curso colegial, como tema unificador, de fato ou
época. Podemos afirmar que, em relação a esses temas, alguns li- suposto, do programa.
vros da década de 60 são os que apresentam melhor enfoque. Isso
não significa que não existam livros ruins, que seguem a tendência Essa atualização é marcada pela entrada em cena do modelo atô-
geral de deterioração dos livros didáticos, já esboçada na déca- mico da mecânica ondulatória, que traz como principal novidade a
da de 30. Mas, é significativo o surgimento de livros didáticos que mudança na descrição do elétron, que passa a ser feita em termos
retomam características interessantes encontradas nos livros probabilísticos. A idéia de órbita planetária é substituída pela de
anteriores a 1930. Esse fato não chega a configurar uma tendên- orbital - uma região de contorno indefinido, na qual há uma alta
cia; ao contrário, a partir de 1970, tais obras começam a desapa- probabilidade de se encontrar o elétron. O assunto números quân-
recer. ticos não é relevante na maioria dos livros dessa fase, e parece ter
sido incorporado com mais ênfase no período pós-70. Esse tema
A característica de heterogeneidade apresentada pelos livros des- já era tratado em livros anteriores a 1960, mas na maioria deles os
se período é fruto, também, da nova Lei de Diretrizes e Bases da autores se referiam a apenas dois números quânticos: o principal
Educação Nacional, de 1 9 6 1 , que não mais incorpora programas e o secundário, suficientes para descrever as órbitas planetárias
detalhados para cada disciplina, abrindo espaço para propostas dos elétrons. Apenas Décourt (1946) tratava dos quatro números
alternativas. quânticos, mas, curiosamente, esse autor ainda continuava a falar
em órbitas planetárias, elípticas ou circulares, para descrever o
No entanto, essa diversificação não tem alcance tão grande quan- movimento e a posição dos elétrons.
to possa parecer, pois não configura uma tendência permanente.
A maioria dos livros didáticos pós-70 retoma a homogeneidade Em relação à teoria de valência, surgem também várias novidades.
em relação a vários aspectos, como o conteúdo abordado, sua Os livros do período anterior se limitavam ao tratamento da eletro-
ordem, a ênfase, etc. valência e da covalência. Não se falava nada sobre moléculas pola-
res e apolares, ligações intermoleculares, ligação metálica. 0
Ainda na década de 60, a totalidade dos livros passa a apresentar preenchimento dessa lacuna trouxe melhoria significativa na
exercícios e questionários ao final de cada capítulo. Mas sob ou- abordagem desse assunto, pois, dessa maneira, ficou mais fácil
tros aspectos, esses livros mantêm-se iguais aos dos períodos relacionar as propriedades dos diferentes compostos (iônicos,
anteriores. Em relação à apresentação gráfica, observa-se a pre- moleculares, covalentes e metálicos) com os modelos de ligação
dominância de textos; as ilustrações são em pequeno número e os química.
títulos não ocupam espaços muito grandes.
Em relação à classificação periódica, foi introduzida uma série de
Esse é um período-chave em relação à atualização dos conteúdos, propriedades atômicas, como energia de ionização, eletronegati-
pois fecha o ciclo de atualização iniciado na década de 30. O final vidade, raio atômico, e t c , não abordadas anteriormente. Isso não
da década de 50 e a década de 60 são marcados por um intenso significou o sacrifício das propriedades macroscópicas, como
movimento de renovação do ensino de ciências, a qual se origina na ponto de fusão, densidade, etc. Em quase todas as obras, havia far-
preocupação de atualizar os conteúdos ensinados na escola se- ta discussão a respeito do significado de cada uma das proprieda-
cundária. A principal conseqüência deste movimento foi justa- des, e os livros não estavam preocupados apenas - como ocorre
mente a atualização dos conteúdos das unidades de estrutura atô- atualmente - em citar a variação das propriedades ao longo dos
PORCENTAGEM DO ESPAÇO OCUPADO POR TEXTOS, EXERCÍCIOS, ILUSTRAÇÕES E TÍTULOS - MÉDIA DOS QUATRO PRIMEIROS
CAPÍTULOS DOS LIVROS DIDÁTICOS DE 1 ª SÉRIE DE 2.° GRAU
Curso de Química
Edson Braga e Ronaldo Henriques (*) 26 31 40 03
Química 1
Crepaldi e Taranto 40 22 31 07
Curso de Química
Sardella e Mateus 20 40 34 06
(*) — 3 0 % do espaço nos capítulos pesquisados neste livro estão em branco. Não computamos esse valor nos resultados apresentados.
(**) — 2 3 % do espaço nos capítulos pesquisados estão em branco. Também não computamos esse valor nos resultados.
(***) — Esse livro apresenta um Caderno de Atividades à parte. No livro-texto aparecem apenas exercícios resolvidos. Isso explica o baixo percentual de exercícios.
Parece que os livros atuais estão mais preocupados com a forma mente verdadeira, e ressaltou a tendência no ensino de química
de apresentação do conteúdo do que com o conteúdo propria- pós-70 de privilegiar a forma em detrimento do conteúdo (Morti-
mente dito. O exame deste último revelou que essa hipótese - le- mer, 1988).
vantada aqui apenas com base na apresentação gráfica - é total-
Mas por que os livros didáticos sofreram esse tipo de mudança tão O ensino transforma num adestramento, em que o mais importan-
radical em sua forma de apresentação gráfica? Por que essa quan- te é saber resolver problemas objetivos. Os alunos são treinados a
tidade enorme de exercícios? Que fatores teriam conduzido a essa resolver alguns tipos bem definidos de exercícios. Se forem colo-
mudança? cados diante de qualquer problema um pouco diferente daquela t i -
pologia apresentarão grande dificuldade em resolvê-lo.
A década de 70 é marcada pela introdução de uma mentalidade
tecnicista e burocrática em todo o sistema de ensino, o que afeta
Essa objetividade tecnicista conduz também a uma falsa visão do
os próprios materiais didáticos. A concepção de aprendizagem
que seja, em ciência, uma teoria e um modelo. A química é mostra-
dessa corrente tecnicista admite que a apredizagem humana pode
da como algo pronto e acabado, e seus modelos são transforma-
se basear no controle das variáveis estímulo e resposta, a exemplo
dos em dogmas irrefutáveis. Essa visão é totalmente distorcida,
do que ocorre com os animais. Assim, seria possível selecionar
pois os modelos e teorias nas ciências físicas são aproximações,
comportamentos desejáveis a serem alcançados pelo aluno me-
sujeitas à revisão desde que surjam fatos que os contradigam ou
diante a aprendizagem. Transformando-os em objetivos específi- que fiquem sem explicação.
cos de ensino, os seguidores dessa Pedagogia Tecnicista preten-
dem controlar o processo de ensino-aprendizagem, evitando
Os vestibulares unificados para as universidades federais de todo
interferências subjetivas perturbadoras.
o país, que começaram a vigorar a partir de 1970, tiveram um po-
A conseqüência dessa concepção - da forma como ela foi trans- der enorme de disseminar a metodologia de ensino de química que
plantada para nossos manuais didáticos - é danosa para o ensino acabamos de descrever. Baseados unicamente em questões de
de química. A seleção dos conteúdos a serem ensinados passa a múltipla escolha, esses exames de vestibular acabaram por deter-
ser presidida por critérios questionáveis. Os melhores conteúdos minar os conteúdos a serem ensinados no 2º grau e os métodos a
são os que podem ser avaliados por questões objetivas, de múlti- serem empregados. A resolução de exercícios objetivos passou a
pla escolha. A especificidade de cada conteúdo é relegada a um ser uma forma essencial de treinamento do estudante para o vesti-
segundo plano. Os livros didáticos transformam-se em guias me- bular. Os programas continuaram a ser extremamente acadêmi-
todológicos de qualidade duvidosa, quase sempre simplificando cos, valorizando apenas aspectos importantes para as carreiras
em excesso o conteúdo das disciplinas em nome de uma pretensa afins à química na Universidade. Enquanto, em todo o mundo, se
objetividade. começava a falar, em relação aos programas das escolas secundá-
rias, de uma química para o cidadão, ligada a fatos cotidianos e
Em relação ao capítulo de estrutura atômica, por exemplo, a maio- que levasse a uma visão crítica do papel da ciência na sociedade,
ria dos livros didáticos atuais enfatiza exageradamente os mace- no Brasil se reforçava a química para o estudante universitário de
tes de distribuição eletrônica por níveis e subníveis, e a determi- áreas afins, desconhecendo-se totalmente o estudante que in-
nação dos chamados números quânticos de um elétron. O que jus- gressaria em carreiras não-afins e aquele que não conseguiria in-
tifica tal ênfase? Se procurarmos os exercícios propostos nesses gressar na universidade.
livros, concluiremos que é a facilidade com que esses tópicos po-
dem ser avaliados por questões de múltipla escolha. O mesmo não O curioso é que a postura das universidades começa a mudar no f i -
ocorre, por exemplo, com o significado de vários conceitos impor- nal da década. A partir de 1978, na UFMG, o vestibular deixa de ser
tantes de estrutura atômica e sua aplicação na compreensão das apenas de múltipla escolha e incorpora provas específicas, numa
propriedades dos materiais e dos fenômenos químicos. Como não segunda etapa, de questões abertas. Ao mesmo tempo, começa-
são muito objetivos, não são enfatizados. se a enfatizar aspectos do cotidiano nas provas das duas etapas.
Por outro lado, os livros quase sempre estiveram desatualizados BRASIL Ministério da Educação e Cultura. Lei orgância do ensi-
em relação ao estado da arte do conhecimento químico. Os livros no secundário e legislação complementar. Rio de Janeiro,
atuais, apesar de aparentemente atualizados, apresentam certos 1953.
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A aprendizagem por descoberta, tão em voga no ensino de ciên- É claro que se pode argumentar que, de fato, começar a estudar
cias há algum tempo atrás, está muito associada às proposições teorias de ensino, aprendizagem e desenvolvimento, enfoques
de Jerome Bruner (1969) sobre ensino e aprendizagem. O ensino epistemológicos e questões metodológicas, poderia sobrecarre-
centrado no aluno é uma aplicação de princípios rogerianos (Ro- gar o professor que já tem diante de si uma pesada carga docente.
gers, 1971) sobre aprendizagem. Enfoques piagetianos (e.g., Ku- Mas não se está propondo que o professor pesquise sozinho. Ao
bli, 1979) ao ensino de ciências são também muito comuns hoje contrário, a idéia de uma estreita cooperação entre professores e
em dia. pesquisadores externos (geralmente professores universitários)
parece ter grande potencialidade. O que se enfatiza aqui é a neces-
Assim, embora as teorias de aprendizagem sejam vistas até com sidade de uma pesquisa com fundamentação teórica e episte-
desdém por alguns professores, sua prática docente é fortemente mológica, não necessariamente conduzida por um único indiví-
influenciada por tais teorias. 0 professor que simplesmente duo.
ignorar o domínio teórico da ação docente estará trabalhando na
base do ensaio-e-erro, seguindo modismos, imitando colegas, Por que ter professores como pesquisadores?
usando textos e outros materiais instrucionais sem saber qual
orientação teórica está por detrás desses materiais. A atividade Nas seções anteriores já foram apresentadas, pelo menos implici-
docente, ao contrário, deve ser conduzida sob um referencial tamente, razões que apóiam e justificam a pesquisa, de modo que
teórico acerca de ensino, coerente com pressupostos teóricos aqui se pretende apenas resumir e reforçar tais razões.
acerca de aprendizagem e de como é produzido o conhecimento
humano. • A qualidade e os resultados do ensino em qualquer nível e em
qualquer disciplina é função de muitos fatores, dos quais pouco
Analogamente, a pesquisa em ensino deve ser conduzida a partir se sabe. Respostas nesse sentido, contudo, são do maior inte-
de referenciais teóricos e epistemológicos. Pesquisar sem referen- resse dos professores.
Na verdade, é bastante restrito o conhecimento atual sobre co- ver com esses lugares-comuns. Sempre que ocorre um ato de en-
mo os alunos aprendem. Todavia, na medida em que se souber sino, se ensina alguma coisa, em um certo contexto, com o objetivo
mais a esse respeito, a instrução poderá ser organizada consis- de que alguém aprenda, e sempre se avalia algo. Novamente aqui o
tentemente com tal conhecimento. De maneira análoga, é igual- professor está em uma posição privilegiada para identificar ques-
mente restrito o que se conhece em relação à influência do tões cujas respostas obtidas pela pesquisa, poderão contribuir pa-
domínio afetivo no crescimento cognitivo. Naturalmente, ra a melhoria do ensino de ciências e para o progresso do conheci-
talvez se possa melhorar o ensino por meio de experiência, mento nessa área. Como dizem Runkel e McGrath (1972, p.2), "no
ensaio-e-erro, intuição, mas é pela pesquisa que se poderá che- fundo, pesquisar consiste em sistematicamente formular ques-
gar a resultados mais significativos, a respostas mais abrangen- tões. As respostas obtidas dependem fortemente de quais ques-
tes para questões relativas a ensino. Experiência, ensaio-e-erro, tões foram formuladas e de como elas foram formuladas". Profes-
intuição, até agora pouco contribuíram para o desenvolvimento sores certamente têm grande contribuição a dar na formulação de
do ensino de ciências. Por outro lado, a pesquisa em ensino de questões de pesquisa em ensino.
ciências tomou notável impulso na década passada, vem cres-
cendo cada vez mais e parece ser altamente promissora como A título de exemplo, sugiro a seguir algumas questões de pesquisa
mecanismo de melhoria do ensino. que julgo relevantes para o ensino de ciências. Na prática, tais
questões geralmente envolvem mais de um lugar comum, mas
• Se os resultados das pesquisas não chegarem à sala de aula, à por conveniência de exposição foram organizadas em torno de ca-
prática, tais pesquisas não terão utilidade. Professores, portan- da um deles separadamente. Muitas dessas questões foram ex-
to, desempenham papel indispensável na pesquisa educacional traídas e adaptadas de um trabalho acerca do programa de pesqui-
como usuários de resultados dessa pesquisa. Mas não se con- sa em ensino de ciências, desenvolvido sob a coordenação do pro-
verterão em usuários se não se sentirem comprometidos com fessor Novak no Departamento de Educação da Universidade de
tais resultados, se não sentirem que esses são também seus Cornell (Moreira e Novak, 1988).
resultados. Uma maneira de se chegar a isso é ter o próprio
professor como pesquisador ou colaborador.
Questões sobre aprendizagem
• Professores estão em melhor posição do que pesquisadores ex-
ternos para registrar certos eventos. São eles que estão em per- 7. Quanto ao desenvolvimento cognitivo:
manente contato com eventos educativos, cuja análise interpre-
tativa está na essência da pesquisa educacional. Para pesquisar a. Como evolui no tempo o desenvolvimento de conceitos para um
é preciso fazer registros adequados desses eventos, e a partici- certo indivíduo?
pação de professores nessa tarefa pode ter valor inestimável. b. Qual a origem dos conceitos (significados) contextualmente
errôneos?
O que pesquisar? c. Como podem ser modificados ou removidos os conceitos (sig-
nificados) contextualmente errôneos?
O que pesquisar tem a ver com questões relativas aos lugares-co- d. Como as variáveis afetivas influenciam o desenvolvimento
muns da educação (Schwab, 1973) - ensino, aprendizagem, cognitivo?
currículo, contexto e avaliação. Direta ou indiretamente, qualquer e. Como se relacionam compromissos epistemológicos e desen-
evento de interesse para a pesquisa em ensino de ciências tem a volvimento cognitivo?
a. Qual o papel do conhecimento (significados) prévio? E dos con- a. Que estratégias apresentam maior potencialidade para promo-
ceitos (significados) contextualmente errôneos? ver mudanças conceituais, trocas de significados?
b. Qual a influência de variáveis relativas a idade e gênero? b. Mapas conceituais, quando usados como recurso didático, faci-
c. Como se relacionam formas de representação do conhecimen- litam a aprendizagem significativa?
to e maneiras de adquiri-los? c. O "V" epistemológico é viável como recurso instrucional facili-
d. Qual a influência de estratégias de "aprender a aprender", co- tador da aprendizagem significativa?
mo, por exemplo, mapas conceituais e diagramas "V"? d. Como fazer com que estratégias convencionais, como a aula ex-
e. Qual o efeito de seqüências curriculares alternativas? positiva, promovam a aprendizagem significativa?
f. Qual o efeito de variáveis tais como Ql, desempenho prévio, e. É possível compatibilizar estratégias construtivistas e aspectos
atitudes? instrucionais behavioristas como, por exemplo, definição ope-
racional de objetivos?
f. Como podem ser utilizadas novas tecnologias como microcom-
4. Quanto à aquisição de valores: putadores, videocassetes e videodiscos para promover apren-
dizagem significativa?
a. Como a aquisição de valores é influenciada pela aquisição de
conhecimento e vice-versa?
Questões sobre currículo
b. Qual o efeito de estratégias de "aprender a aprender" na aqui-
sição e/ou mudança de valores?
1. Quanto à estrutura do conhecimento:
c. Qual o efeito de estratégias e concepções alternativas de ensino
na aquisição e/ou mudança de valores? a. Como analisar a estrutura do conhecimento contido nos mate-
riais educativos do currículo de modo a tornar esse conheci- b. Que métodos de avaliação de mudanças cognitivas têm mais f i -
mento apropriado para instrução? dedignidade e validade?
b. Que tipo de informação provê a análise conceituai do currículo? c. Como o uso de instrumentos heurísticos de aprendizagem pode
Para que serve? enriquecer/melhorar os métodos de avaliação?
c. Qual a relação entre currículo e instrução sob diferentes pers-
pectivas epistemológicas em relação à produção de conheci- 2. Quanto à avaliação de atitudes:
mento?
a. Qual a relativa eficiência de questionários, entrevistas clínicas e
2. Quanto à construção do conhecimento: estratégias de vídeo e áudio na produção de mudanças afeti-
vas?
a. Que processos cognitivos estão envolvidos na construção de b. Que estratégias instrucionais conduzem a ganhos positivos de
conhecimentos? Há regularidade nesses processos? atitude a longo prazo?
b. Materiais curriculares e estratégias instrucionais adequadas c. Como estratégias de interação aluno-professor podem levar a
podem servir de catalisadores desses processos? Quais? ganhos positivos de atitudes a longo prazo?
c. A apresentação de conhecimentos já construídos estimula a
aprendizagem mecânica? A aprendizagem só é significativa 3. Quanto à avaliação de valores:
quando o conhecimento é construído, ou reconstruído, pelo alu-
no? a. Que critérios definem medidas efetivas de mudanças de valo-
d. Qual a relação entre a evolução conceituai de uma disciplina e a res?
evolução conceituai do aprendiz? b. Que combinações de elementos cognitivos e afetivos são mais
e. Que tipo de relação existe entre conhecimentos construídos e adequadas para indicar os valores correntes ou os valores em
métodos na construção de novos conhecimentos? processo de mudança?
c. Qual a relação entre compromissos epistemológicos e valores?
3. Quanto à organização do conhecimento:
BRUNER, J. Uma nova teoria de aprendizagem. Rio de Janeiro, & NOVAK, J.D. Investigación en en señanza de Ias ciências
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centrales y abordes metodológicos. Enseñanza de Ias Ciên-
ERICKSON, F. Qualitative methods in research on learching. In: cias, 6(1 ):3-1 8, 1988.
A passagem de uma prática experimental, que esperava obter re- A ampliação e a diversificação de competências, preocupações,
paradigmas vêm enriquecendo a área e poderão resultar na for- car outros, mas a plataforma será sempre a que a criança já incor-
mação de uma sólida base de conhecimento que permita trabalhar porou e a visão do mundo que construiu.
com os alunos fundamentando-se em informações e dados que
conduzam a uma real formação científica. O pressuposto construtivista provoca, por sua vez, uma série de
questões. Admitindo-se que em certas fases de seu desenvolvi-
O ponto focai das preocupações têm sido o estudante e a análise mento o estudante só pode aprender determinados conceitos, o
do complexo processo educacional. A aquisição de informações currículo deve ser adaptado ao que se supõe o aluno possa apren-
continua sendo uma questão a ser resolvida, mas a sua integração der, ou deve-se partir do pressuposto que haverá formas de ensi-
pelo estudante às idéias que traz para a escola passa agora a ser nar coisas consideradas fundamentais em qualquer idade, para
também objeto de estudos. qualquer aluno?
Em face da nova postura, o aluno deixa de ser uma caixa preta, Admitir que o aluno forma suas idéias fora da escola pressupõe
cujos processos cognitivos são ignorados, para ser um indivíduo que grupos de alunos de origens culturais diferentes poderão ter
que deve ser analisado, e sua forma de pensar descrita e observa- visões diversas de mundo, conhecimentos que reflitam experiên-
da. cias formais e informais diferentes e que, portanto, os currículos
deverão atender e superar essas diferenças.
Os estudos clássicos de Piaget a respeito da psicogênese dos con-
ceitos nas crianças levaram os educadores a admitir que os alunos Esta questão está estreitamente ligada a outra, igualmente bási-
estão constantemente integrando experiências de aprendizado ca: os currículos devem refletir as relações entre a ciência, a tecno-
formal e informal. Nesse processo formam conceitos complexos, logia e a sociedade. Esta análise não pode ser desvinculada de va-
organizados e estreitamente vinculados à própria estrutura do co- lores, de sistemas éticos, de paradigmas, padrões que, por sua vez,
nhecimento das várias disciplinas. As crianças constroem mode- têm de ser testados e colocados em prática em diferentes si-
los e explicações e têm idéias previsíveis acerca dos fenômenos tuações que envolvem decisões individuais, familiares, comunitá-
científicos. Esta constatação abriu um fértil campo de trabalho — rias, decisões de âmbito nacional e internacional e decisões que
mapeamento de conceitos intuitivos, explicações que apresentam afetam o futuro da humanidade.
em relação a vários fenômenos e argumentos que invocam para
justificar suas idéias e explicações. Um tratamento adequado para esses problemas na escola implica
uma complexidade que transcende o da transmissão de conheci-
A verificação do paralelismo entre a evolução histórica do conhe- mento, pois envolve ações que devem substituir preconceitos e
cimento em certas áreas da Física, Química e Biologia e o pensa- visões estereotipadas inculcadas por mecanismos manipuladores
mento dos jovens e das crianças abriu uma outra linha de pesquisa por uma capacidade autônoma de ver e pensar acerca de proble-
que vem sendo intensamente explorada. mas que atingem direta ou indiretamente o estudante. Implica
também possibilitar ao estudante:
Como em muitos campos do conhecimento, a fase descritiva de-
sempenha papel importante na construção de uma base concreta • pensar por si mesmo, obedecendo à razão e não à autoridade;
para os professores planejarem suas atividades didáticas, de for- • ser capaz de identificar os mecanismos de controle exercidos
ma que o aluno possa ir além da simples absorção de informação. sobre o cidadão;
Será preciso construir novos conceitos, destruir alguns e modifi- • sistematizar o conhecimento parcial fragmentário, adquirido
Será possível ao professor, cuja relação com os estudantes é de GARDNER, Paul L. Students interest in science and technology; In:
autoridade hierárquica, manter-se neutro diante de um problema LERKE, M. et alii, ed. Interests in science and technology
que envolve a adoção de um padrão ético e moral? education. Kiel, Kiel University, 1985. p. 17.
Parece-me que só criando situações de conflito, desnudando e SCIENCE achienement in seventeen countries; a preliminary re-
contrapondo os interesses em jogo, sem usar a autoridade para port. s. I., Pergamon Press, 1988. 72p.
impor opiniões, o professor ajudará a formar cidadãos que possam
decidir por si próprios, que empreendam ações em busca do bem VIANNA, H.M. & GATTI, B.A. Avaliação do rendimento de alunos da
comum e da consecução das mudanças que considerarem neces- escola de 1° grau da rede pública; uma aplicação experimen-
sárias. Parte crucial desse processo é o desenvolvimento da capa- tal em 10 cidades. Educação e Seleção, São Paulo, 17:51 -
cidade de argumentação, que envolve sinceridade e competência 2, jan./jun. 1988.
DAMBRÓSIO, Ubiratan. Da realidade à ação — reflexões sobre 1976, no volume "Educación en Ias Américas IV", com o titulo "Ob-
educação e matemática. São Paulo, SUMMUS/UNICAMP jetivos e Tendências da Educação Matemática em Paises em Vias de
1986. 115p. Desenvolvimento ".
Este livro constitui-se um apanhado do pensamento de D 'Ambrósio, Neste capítulo, o autor examina algumas questões básicas que con-
desde meados da década de 70. Conhecido educador e matemático, sidera primordiais quando da apreciação da relação MATEMÁ-
atualmente atua como pró-reitor da Universidade Estadual de TICA/desenvolvimento social. São estas: "Como e por que ensinar
Campinas — UNICAMP e tem tido destacada participação em even- matemática?", "0 que fazer com a matemática ensinada?".
tos nacionais e internacionais relacionados ao campo da educação
matemática. Citando Brecht, quando coloca que "o único objetivo da ciência é ali-
viar a dureza da existência humana ", D 'Ambrósio define seu pon-
Esta obra, como salienta o autor prefaciando-a, traduz a evolução de to de vista de que a matemática deve servir à melhoria da qua-
um pensamento ao longo de dez anos, em que a preocupação com a lidade de vida humana. Ressalta ainda que este não é um tema no-
integração dos temas MATEMÁTICA/EDUCAÇÃO/HISTÓRIA tem vo, mas que o é em se tratando do caso específico da América La-
sido uma constante. tina.
0 livro divide-se em seis capítulos e há a inclusão de dois apêndices. Deste modo, deve-se considerar aspectos problemáticos de uma
Quase todos os escritos originam-se de pronunciamentos do autor realidade caracterizada como subdesenvolvida, dependente e peri-
em congressos e seminários que vêm acontecendo na área do ensi- férica. Um deles diz respeito à formação das elites intelectuais. O au-
no da matemática desde 1975. tor ressalta a importância de os intelectuais surgirem de todas as ca-
madas sociais, e de este ser fator primordial para a instauração da
Por um lado, o livro consegue demonstrar a riqueza e a evolução do justiça social.
pensamento do autor a respeito de temas relacionados à educação e
matemática. Por outro, sua leitura demanda extrema atenção ao D'Ambrósio salienta que a matemática é ciência essencial no
contexto e à época em que foram escritos os textos, pois cada um auxílio aos problemas de base do nosso desenvolvimento, mas que,
dos seis capítulos e apêndices foram elaborados para públicos e ob- infelizmente, vem sendo tratada de modo a descaracterizar tal
jetivos diversos, e em ocasiões diferenciadas. função. Os cursos de matemática destinados à formação do jovem
embotam sua criatividade e inteligência e impedem, de forma defi-
0 capítulo primeiro trata da questão Matemática e Desenvolvi- nitiva, a formação do pensamento matemático. Os cursos de
mento. Este texto consistiu em sua primeira exposição para um ple- pós-graduação - que deveriam ser responsáveis tanto pela pro-
nário internacional, durante a 4.ª Conferência Interamericana de dução científica na área como pela preparação de profissionais com-
Educação Matemática, que aconteceu em Caracas, em 1975. O tex- petentes atualizados — nada mais fazem do que repetir fórmulas em
to original, do qual se retirou este primeiro capitulo, foi publicado em desuso há mais de 30 anos nos paises desenvolvidos.
O autor esclarece que a Universidade de Brasília (UnB) foi fundada J. Leite Lopes alerta os físicos dos países em desenvolvimento, a fim
por uma equipe de eminentes educadores, cuja finalidade era de im- de que critiquem os livros de texto e a metodologia de aprendiza-
plantar, numa cidade inteiramente nova, uma universidade moder- gem; convoca também todos os cientistas para que "dediquem seus
na, que servisse como modelo às demais universidades brasileiras. trabalhos a uma vida melhor e mais significativa a serviço do ho-
mem ", que se caracteriza, sob muitos aspectos, como instrumento
Lopes enfatiza, ainda, a necessidade de se manter um intercâmbio de dominação nas mãos das forças opressivas dos senhores do mun-
internacional e de se estruturarem as instituições de pesquisas, para do.
que surja uma tecnologia criadora e independente. Assim, "a admi-
nistração dos institutos de pesquisas estará a serviço dos cientistas, 0 livro Ciência e Libertação está escrito numa linguagem simples
que verão seus trabalhos contribuírem não somente para a humani- e objetiva; o autor procura dar um passo para o exame, o estudo e a
dade, em termos abstratos, mas para o bem-estar dos seus amigos e crítica dos problemas e da busca de soluções que configuram a ver-
de seu povo". dadeira face do Brasil de hoje.
O autor analisa também a questão da Física Nuclear no Brasil, escla- Este livro revela-nos a figura de um brasileiro que coloca o seu saber
recendo que o seu desenvolvimento concentrou-se, inicialmente, no a serviço da evolução qualitativa de seu povo. Não escamoteia o de-
Rio de Janeiro e em São Paulo (1954-1964). senvolvimento científico e tecnológico no chamado Terceiro Mundo,
o qual entra em conflito com os interesses das estruturas minoritá- e indústrias necessárias a seu desenvolvimento. Ignoram, assim,
rias, nacionais ou não, que vêem no poder opressor o freio para a que sustentam a manutenção da dependência dos países do Tercei-
manutenção de um status quo em que a maioria vive ainda mergu- ro Mundo em relação aos avançados, dessa vez não mais com tropas
lhada no sofrimento e na ignorância. Solidariamente ligado às de ocupação, mas através da dependência mais sutil do conheci-
atuais necessidades do ser humano no Brasil, não esquece que as mento científico, das tecnologias aperfeiçoadas e, inclusive, de ma-
grandes empresas estrangeiras, pelo fato de terem se transformado nuais de ensino e método de educação, elaborados nas universida-
em superpotências na área dos subdesenvolvidos, multiplicarão des e laboratórios das grandes potências".
seus laboratórios de pesquisa nos países em que operam.
J. Leite Lopes é autor de vários livros publicados no Brasil e no exte-
Neste sentido, afirma Lopes, "a grande maioria dos cientistas e ad- rior sobre ciência e tecnologia; é também conferencista de renome
miradores das nações desenvolvidas, mesmo os mais liberais, conti- internacional.
nua a sustentar a tese de que aquilo que os países subdesenvolvidos
devem fazer é comprar (como em um supermercado) as tecnologias Samuel A. da Silva
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