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GT9 – A PRODUÇÃO DO URBANO: ABORDAGENS E MÉTODOS

DE ANÁLISE

A CIDADE COMO TEXTO NÃO-VERBAL: LEITURAS E INTEPRETAÇÕES


A PARTIR DA PSICOSFERA DO MEDO NO BAIRRO DE CANDELÁRIA,
NATAL-RN

Hiram de Aquino Bayer


Universidade Federal do Rio Grande do Norte – Mestrando (PPGE)
hirambayer@gmail.com
Eugênia Maria Dantas
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
eugeniadantas@yahoo.com.br

RESUMO

Em toda sua complexidade e multiplicidade de fenômenos, o urbano emerge como campo


rico para diversas áreas de conhecimento que se propõe a estuda-lo, buscando-se cada vez
mais a interdisciplinaridade. Consideramos a interseção entre Geografia e Semiótica
Urbana como campo interdisciplinar rico para a compreensão do fenômeno urbano.
Pautados na metodologia da leitura não-verbal, o presente artigo busca discutir
possibilidades que surgem do encontro entre Geografia e Semiótica Urbana para o estudo
de dinâmicas inerentes a sociedade urbana. A fim de instrumentalizar essa
interdisciplinaridade, focamos nosso olhar no fenômeno do medo no bairro de Candelária,
Natal-RN. Percebe-se que a Geografia em consonância com a Semiótica possibilita novas
abordagens e faz emergir métodos valiosos de análise de dinâmica urbanas.

Palavras-chave: Semiótica Urbana; Geografia; Medo.

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1 INTRODUÇÃO1

O urbano tem sido objeto de reflexão das mais variadas ciências e campos do
conhecimento. Sua própria “natureza” (por mais paradoxal que a palavra soe aqui)
múltipla, caótica, plural, permite considerações das mais variadas. Esses múltiplos
caminhos, vez por outra, se bifurcam tornando-se espaços potentes para o desdobramento
de nova abordagens e novas formas de compreender o fenômeno urbano, sua (re)produção
e organização. Uma dessas possibilidades tem encontrado resguardo no encontro entre a
Geografia e o campo da Semiótica Urbana. A primeira enquanto ciência que se interessa
pelo espaço modificado pelo Homem. A segunda enquanto campo que torna o meio
urbano signo, possibilitando uma série de leituras e interpretações que possibilita formas
discursivas acerca dele.
A cidade, enquanto expressão material máxima do fenômeno urbano, é um
emaranhado sígnico, composto pelos mais variados objetos, fenômenos e diversas
práticas sociais de seus habitantes, cada vez mais complexo. Um fenômeno, em especial,
tem se tornado protagonista das dinâmicas urbanas da atualidade: o medo do crime.
Motivado por causas variadas – ocorrência de crimes em uma determinada área,
influência da mídia ao veicular determinados temas, entre outros – esse fenômeno tem se
tornado cada vez mais comum aos usuários da cidade, que passam a mediar sua vivência,
em grande parte, por esse sentimento. Nesse sentido, alteram-se significativamente a
organização do espaço urbano e sua paisagem, com a incorporação cada vez mais incisiva
de parafernálias tecnológicas, de estratégias de combate ao crime, bem como os próprios
usos dos espaços púbicos e, também, da sociabilidade entre as pessoas. A dinâmica que

1Trabalho orientado pela Prof. Drª. Eugênia Maria Dantas – Departamento de Geografia da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

2
provém desse medo2, na atualidade, faz-nos pensar no surgimento, propagação e
protagonismo de uma psicosfera do medo (MELGAÇO, 2010).
O presente artigo tem como objetivo discutir algumas possibilidades que surgem
do encontro entre Geografia e Semiótica Urbana para o estudo acerca de dinâmicas
inerentes a sociedade urbana. Para isso consideramos o fenômeno do medo no bairro de
Candelária, Natal-RN. Dentre outras motivações, esse bairro emerge como uma área rica
em significados que nos levam a tecer intepretações vinculadas a essa psicosfera, no qual
serão vistos no decorrer do trabalho. Para isso, consideramos os estudos sobre a semiótica
urbana, principalmente na perspectiva de Ferrara (1988), ao propor uma metodologia de
leitura do texto não-verbal da cidade a partir da tríade percepção-leitura-informação.
Nesse sentido, elencamos duas formas de olhar o bairro. A primeira, levando em
consideração a materialidade que demonstrasse essa psicosfera do medo, principalmente
mediante a incorporação ao território de uma tecnosfera da segurança (MELGAÇO,
2010). A segunda está relacionada ao cotidiano dos moradores do bairro. Essas
perspectivas foram consideradas tanto a partir das leituras do sujeito-usuário do bairro, o
morador, como também a partir da perspectiva do observador, do pesquisador.

2 SEMIÓTICA URBANA E GEOGRAFIA: AS POSSIBILIDADES DE UMA


INTERDISCIPLINARIDADE

O espaço urbano é objeto de estudo de diversas áreas de conhecimento, nos quais


o observa e compreende-o a partir de interesses peculiares. A Geografia, a Arquitetura, a
Sociologia, são apenas algumas dessas áreas de conhecimento em uma lista vasta. Um
dos apelos mais intensos em alguns campos da ciência moderna é a necessidade de se

2 Os medos são vários, é intrínseco à própria sociedade, mas, de agora em diante, quando nos
referirmos a “medo”, estaremos circunscrevendo-o ao medo de ser vítima de algum crime,
sobretudo, os referentes a furtos, roubos e homicídio.

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buscar uma interdisciplinaridade na abordagem de certos fenômenos nos quais é possível
e enriquecedor que isso se faça. As dinâmicas urbanas, sobretudo devido à complexidade
com que vêm ganhando forma há algum tempo, emergem como campo rico para colocar-
se em prática essa interdisciplinaridade, possibilitando novas abordagens, novas
compreensões e novas realidades. Nesse sentido, nos propomos a abordar a perspectiva
da semiótica urbana como campo interdisciplinar entre a Semiótica e áreas de
conhecimento que se debruçam sobre os estudos urbanos, sobretudo, a Geografia.
Em linhas gerais, a semiótica constitui-se na ciência que tem como objeto de
estudo os signos. Lida, portanto, com conceitos, ideias, objetos, sob a perspectiva de como
os mecanismos de significação se processam natural e culturalmente. É interessante
perceber que a semiótica não se limita às palavras, como a linguística, expandindo seu
olhar para qualquer sistema sígnico – ainda que esse olhar sobre qualquer sistema sígnico
resulte em formas discursivas, no final das contas. Surge, assim, um apelo à comunicação
não-verbal. Para Davis (1979, p. 22), “as palavras são bonitas, excitantes, importantes,
embora tenham sido superestimadas em excesso, uma vez que não representam a
mensagem total e nem parcial”.
Tornar a cidade signo. Essa é a essência da semiótica urbana. Significar a cidade
é, portanto, conceber materialidade e subjetividade presentes nela em sistemas sígnicos,
em algo que seja passível de uma interpretação a quem interessar torná-la um texto não-
verbal. De acordo com Ferrara (1988) a semiótica urbana busca a relação entre três
unidades básicas e interdependentes: características físicas, uso e transformação do
ambiente urbano. Essas unidades culminam na geração de três operações fundamentais:
percepção, leitura e interpretação. Para a autora o contexto urbano só é acionado pelo
usuário, tendo no uso a sua fala, sua linguagem. Assim, a interação entre usos e contextos
transforma a cidade em um verdadeiro palco que se encontra em constante transformação
e inovação. Aqui podemos recorrer à concepção de cenário presente em Gomes (2013),
para o qual constitui-se a interação entre esfera física, comportamental e de significação,
que coloca como núcleo a espacialidade, colocando-a em foco na interpretação acerca de
significados que se inscrevem no espaço. A espacialidade, aqui posta, corrobora e

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possibilita a instrumentalização das três operações fundamentais da semiótica urbana. A
espacialidade é, portanto, compreendida enquanto

(...) sentido de uma trama locacional associada a um plano, uma


superfície ou volume. Espacialidade é o conjunto formado pela
disposição física sobre esse plano de tudo que ele contém. Corresponde,
assim, ao resultado de um jogo de posições reativas de coisas e/ou
fenômenos que se situam, ao mesmo tempo, sobre esse mesmo espaço
(GOMES, 2013, p. 17).

Quando colocados em sintonia, contexto, uso e transformações urbanas, implicam


na concepção de uma Teoria do Espaço Urbano que busca dinamizar: (1) percepção
urbana como capacidade de gerar informação através de alguns cortes seletivos na
paisagem; (2) leitura do espaço urbano que considera analogias, convergências e
divergências entre espaços selecionados pela percepção; (3) a interpretação que busca
fazer considerações sobre o espaço urbano com vistas a possíveis interferências sobre ele
(FERRARA, 1988).
Sendo a Geografia, portanto, a ciência que tem como objeto de estudo o espaço
geográfico, formado por sistemas de objetos e ações (SANTOS, 1996), ou seja, por uma
espacialidade que relaciona aspectos físicos e práticas sociais, relacionando-os e
indissociabilizando-os, torna-se extremamente enriquecedor a seus estudos a
incorporação de abordagens com as da semiótica urbana. Isso porque, como vimos ela
coloca em sintonia as mais diversas nuances urbanas, significando-as para compreendê-
las, nos quais estão incorporados a esses sistemas de objetos e ações já consagrados na
ciência geográfica. Significar, portanto, a relação indissociável entre objetos e ações é
buscar compreender o que há por trás das formas e das práticas socioespaciais, é
considerar a percepção do próprio usuário nos espaços urbanos, bem como considerar sua
influência na própria organização da cidade e como ela demonstra essa influência.
Consideramos, portanto, essa perspectiva para analisarmos como a cidade se
apresenta como um texto não-verbal no qual podemos interpretá-la enquanto experiência
do medo, considerando aspectos materiais e simbólicos, na construção de cenários
compostos por parafernálias tecnológicas, muros altos, espaços públicos anêmicos, entre
outros fatores. Como vimos, utilizamos como empiria o bairro de Candelária, Natal-RN.

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3 A CIDADE COMO EXPERIÊNCIA DO MEDO

Abordaremos nessa seção a concepção de psicosfera do medo e sua


permeabilidade nas dinâmicas urbanas atuais, considerando-a enquanto fenômeno que
ganha escalar protagonismo nas cidades atuais. Candelária, portanto, emerge como área
de estudo bastante rica para essas considerações e reflete, em parte, um pouco de toda a
dinâmica intraurbana de Natal. Isso não quer dizer que Candelária é um retrato exato do
que acontece no restante da cidade, longe disso. Deve-se considerar toda a complexidade
que uma cidade de porte médio como Natal oferece, com grandes contradições, mas
também com algumas similitudes. Contudo, acreditamos que uma série de fatores
relacionados a influência dessa psicosfera do medo em Candelária apresenta semelhanças
com áreas do restante da cidade.
Para elucidarmos o ambiente urbano enquanto um texto não-verbal que considere
intepretações que nos levem a essa influência, consideramos alguns fatores. Juntos, eles
nos dão a ideia de um cenário, um cenário do medo, por assim dizer. Consideramos,
portanto, a presença de equipamentos de segurança, que designamos como uma
tecnosfera da segurança (MELGAÇO, 2010) e as práticas cotidianas dos moradores,
referentes a trajetórias, permanências, passagens, uso dos espaços públicos do bairro.
Santos (1996) apresenta considerações acerca de uma chamada tecnosfera e de
uma psicosfera. A primeira seria o mundo dos objetos, de uma materialidade. A segunda,
diz respeito ao reino das ideias, crenças e paixões. A tecnosfera, para o autor, se adapta
aos mandamentos da produção e do intercâmbio. A psicosfera, por sua vez, é o lugar da
produção de sentidos, no qual fornece regras à racionalidade ou atua estimulando o
imaginário.
Apoderando-se dessas categorias, Melgaço (2010) cunhou os termos psicosfera
do medo e tecnosfera da segurança. O autor trata de uma espécie de condicionamento do

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segundo ao primeiro, tendo como área de estudo a cidade de Campinas-SP. Assim, a
formação de uma psicosfera do medo teria como resultante uma tecnosfera da segurança,
formada por parafernálias tecnológicas, tais como cercas elétricas, câmeras de vigilância,
entre outros.
Para o autor, a psicosfera do medo constitui-se em uma imaterialidade ativa, no
sentido de condicionar ações e alterar formas. Um exemplo disso seria os preços
praticados por seguradoras de veículos que variam de acordo com a “periculosidade” do
lugar ou, mesmo, a exploração do medo das catástrofes ambientais para legitimar
discursos e políticas ambientalistas. O medo faz parte do imaginário coletivo, tomando
proporções ainda maiores na modernidade. Para Bauman (2009, p. 16),
Poderíamos dizer que a insegurança moderna, em suas várias
manifestações, é caracterizada pelo medo dos crimes e dos criminosos.
Suspeitamos dos outros e de suas intenções, nos recusamos a confiar
(ou não conseguimos fazê-lo) na constância e na regularidade da
solidariedade humana. Castel atribuiu a culpa por esse estado de coisas
ao individualismo moderno. Segundo ele, a sociedade moderna (...) foi
construída sobre a areia movediça da contingência: a insegurança e a
idéia de que o perigo está em toda parte são inerentes a essa sociedade.

É, justamente, em toda essa inerência e na indissociabilidade entre objetos e ações,


objetividades e subjetividades, que Melgaço (2010) designa essa psicosfera do medo
como precondição e justificativa para a instalação de uma tecnosfera da segurança.
Assim, é concebida enquanto toda forma de materialidade técnica que se encontra em
torno de um ideal de segurança, incluindo os processos de securização.
O medo e seus desdobramentos têm se tornado presentes na multiplicidade urbana
e se baseia em uma busca deliberada, desordenada e, porque não dizer, utópica da
segurança plena. A experiência da insegurança é um
(...) efeito colateral da convicção de que, com as capacidades adequadas
e os esforços necessários, é possível obter uma segurança completa.
Quando percebemos que não iremos alcançá-la, só conseguimos
explicar o fracasso imaginando que ele se deve a um ato mau e
premeditado, o que implica a existência de algum delinquente
(BAUMAN, 2009).

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É certo que vários autores têm levado em consideração essa psicosfera do medo como
inerente à dinâmica urbana da modernidade, levando em consideração a formação de
novas territorialidades, a crescente militarização urbana, bem como novas sociabilidades
e usos dos espaços públicos. Destacamos, dentre esses estudiosos, os trabalhos de Souza
(2008) ao tratar da criação das “fobópoles”, de Caldeira (2003) e sua cidade de muros e
Davis (2009) com sua cidade de quartzo. Isso para mostrar que os estudos se intensificam
sobre o assunto, apontando para um fenômeno que não é isolado. Esses exemplos
demostram o fenômeno desde cidade de médio porte, como Campinas, a grandes cidades,
como Los Angeles, perpassando por Rio de Janeiro e São Paulo. Para além disso, alguns
estudos começam a ser desenvolvidos tendo como área de estudo as pequenas cidades,
como os trabalhos de Pinto e Carneiro (2013), sobre medo e meio técnico-científico-
informacional no Alto Oeste Potiguar.

4 PERCEPÇÃO-LEITURA-INFORMAÇÃO A PARTIR DA PERSPECTIVA DA


PSICOSFERA DO MEDO

Para as discussões tecidas nessa seção utilizaremos como base a experiência


empírica realizadas em pesquisas anteriores junto aos moradores do bairro anteriormente
referido. Levaremos em consideração, portanto, diálogos, percepções, impressões e,
sobretudo, alguns dados adquiridos mediante aplicação de questionários a 90 moradores.
A união dessas experiências nos possibilitou a evidenciação de elementos que
favorecessem a montagem de cenários, que colocam em sintonia aspectos objetivos e
subjetivos do fenômeno estudado, fazendo-nos compreender como essa psicosfera ganha
forma no espaço e no cotidiano dos moradores. Levamos em consideração fatores que
apresentassem relação com a ocorrência de dinâmicas relacionadas a sua influência. Aqui
utilizamos a tríade operacional da semiótica urbana, percepção-leitura-informação, onde
concordamos com Ferrara (1988) que a considera, antes, uma antididática do que,
propriamente, uma didática, pelo fato de ter muito mais a se descobrir do que a ensinar.

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Primeiro, consideremos a percepção. Como vimos, ela está atrelada à capacidade
de gerar informação mediante alguns cortes seletivos na paisagem. Para isso,
consideramos dois cortes sobre os quais verticalizamos o nosso olhar: os espaços públicos
do bairro e os espaços privados das residências. Para tanto, nos valemos das percepções
dos moradores e também das provenientes de nosso olhar de pesquisador sobre o bairro,
um olhar mais atento, interessado em certas características. Esses cortes nos permitiram
gerar informações à medida que demonstram como a psicosfera do medo ganha forma no
bairro, como o sentimento se materializa em ações e em objetos, nos proporcionando
algumas interpretações. Após esses cortes seletivos, faz-se necessário que façamos nossa
leitura.
Quando focamos nosso olhar sobre os espaços privados da residência,
constatamos que há uma crescente incorporação de uma tecnosfera da segurança,
sobretudo, com a utilização de cercas elétricas e câmeras de vigilância. Para se ter uma
ideia, do total de entrevistas, 79 afirmaram possuir algum desses objetos na residência.
Para além disso podemos constatar ruas quase inteiramente constituídas por casas com
tais aparelhos.
Se formos excessivamente rigorosos em nossa análise certamente poderíamos
dizer que a quase totalidade de residências e comércios do bairro são equipados com
algum dispositivo de segurança. Grades, cães de guarda e até imagens de santos protegem
esses espaços. Interessante percebermos, com isso, como nossa sociedade tem se tornado
uma sociedade da vigilância. O antigo dispositivo panóptico idealizado por Bentham no
século XVIII e descrito por Foucault (1998) em Vigiar e Punir parece ter se dispersado
pelo espaço. Ele foi ressignificado na atualidade de forma que junto ao antigo modelo,
bem mais modesto hoje em dia, onde uma estrutura central vigiava os indivíduos de forma
a mantê-los dentro, há uma atomização de vários dispositivos pelo espaço, não mais
pensados para “manter dentro”, mas sim para “manter à distância fora”. As câmera de
vigilância, por exemplo, volta sua lente para o espaço “de fora” das casas a fim de
identificar os "elementos suspeitos”. Nesse sentido, a tecnologia de vigilância tal como
se encontra na atualidade possui duas frentes: a primeira é a do confinamento (“cercar do

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lado de dentro”); a segunda é a da exclusão (“cercar do lado de fora”) (BAUMAN, 2013).
Essa ideia de espraiamento do panóptico mais relacionada aos equipamentos de segurança
são descritos por Bigo (2006 apud BAUMAN, 2013) ao coloca-los sobre a alcunha do
“ban-óptico”. O ban-óptico é
Apenas o exemplo de um fenômeno mais geral da filosofia e do
equipamento de vigilância envolvidos na tarefa de “manter a distância,
em vez de “manter dentro”, como fazia o pan-óptico; e que seus sumos
vitais e energia para o seu desenvolvimento da ascensão, atualmente
irreprimível, das preocupações com segurança e não do impulso
disciplinador, como no caso do panóptico (BAUMAN, 2013, p. 64-65).

Podemos, à priori, relacionarmos a tecnosfera da segurança à psicosfera do medo.


Essa é, provavelmente, a causa última para a incorporação desses objetos ao território.
Contudo, leituras que vão além dessa constatação devem ser realizadas. Uma delas diz
respeito à precarização da garantia de segurança pelo poder público. Outra leitura poderia
residir em uma espécie de feitichização da mercadoria, onde a incorporação desses
elementos na residência seria uma forma de demonstrar status, além de uma espécie de
“bola-de-neve” onde um primeiro morador utiliza e os outros também vão utilizando.
Como bem coloca Caldeira (2000, p. 258) “existe hoje na cidade uma estética da
segurança definida pelo novo modelo, que simultaneamente guia transformações em
todos os tipos de moradia e determina o que confere mais prestígio”. São leituras que
podem ser realizadas, mas que talvez nunca saibamos o real motivo para o uso de
parafernálias securitárias. Primeiro porque dificilmente um entrevistado irá dizer que a
aquisição de tais equipamento é para lhe dar status. Segundo porque a resposta mais fácil
e corriqueira é que, realmente, é para a segurança. Contudo, parece que há uma
banalização desses equipamentos. Cercas elétricas são tão comuns quanto janelas e
portões. É possível que a evolução desses equipamentos possa diferenciar os usuários e
assim dar-lhe maior prestígio, tal como diferenciava em tempos de outrora e ainda hoje
um pouco aqueles que os possuíam em sua residência e os que não os possuíam. Mas,
devemos considerar que o desejo, como bem coloca Guatarri e Rolnick (2005), nunca é
concebido unicamente, ele é múltiplo, acompanhado por outros desejos. Nesse sentido, o

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uso desses equipamentos pode partir do desejo por todos esses fatores elencados
anteriormente. Ou não.
O bairro de Candelária, de acordo com informações da Polícia Civil do Estado do
Rio Grande do Norte, está presente em uma das áreas com maiores ocorrências de roubos
e furtos da cidade. Em conversas com os moradores foi possível constatar que os relatos
são vastos, quase sempre relacionados com invasões às casas de vizinhos ou deles
próprios. Isso nos leva a inferir que a ausência de uma segurança pública efetiva constitui-
se em uma das interpretações possíveis de serem feitas quando nos referimos a essa
tecnosfera da segurança. As imagens a baixo mostram um pouco dessa tecnosfera (figuras
1 e 2) presente no bairro. Há de se considerar a sobreposição da técnica como, por
exemplo, na figura 1 onde podemos ver a presença de grampos no muro (estratégia mais
“antiga”) em conjunto as novas parafernálias da cerca elétrica e da câmera de vigilância.
A figura 2 também é bastante elucidativa. É observável uma espécie de “segurança da
segurança”, onde uma cerca protege uma câmera de vigilância.

Figura 1 – Sobreposição técnica de equipamentos de segurança (grampo, cerca elétrica


e câmera de vigilância) em residência do bairro de Candelária, Natal-RN.

Fonte: Acervo pessoal do autor (Hiram Bayer, 2014)

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Figura 2 – A “segurança da segurança”: cerca protegendo a câmera de vigilância em
residência do bairro de Candelária, Natal-RN.

Fonte: Acervo pessoal do autor (Hiram Bayer, 2014)

Contudo, sabemos também, que para que uma psicosfera do medo se estabeleça
não é necessário que haja, por exemplo, uma alta incidência de crimes em determinada
área. Outros fatores são importantes para que isso ocorra, contribuindo para o
estabelecimento da tecnosfera da segurança. O que há, muitas vezes, é uma produção da
insegurança (REBOTIER, 2010) que alia fatores simbólicos e materiais. Podíamos
considerar, também, a influência midiática no trato de assuntos relacionados à violência
urbana, condicionando certas ações. Poderíamos falar, também, de um certo fetiche pelos
equipamentos de segurança, que também podem ser um indicador de status. Ou seja, as
leituras podem ser vastas e complexas, como também comungam todas elas em uma única
interpretação. No nosso caso é certo que a incorporação de uma tecnosfera da segurança
não é apenas condicionada por uma psicosfera do medo, como também ajuda a se
propagar, quase como um ciclo vicioso. E isso está atrelado ao fato dessa busca pela

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segurança ser utópica, no sentido de que nunca se alcançará o desejável, no máximo
obtendo diminuições do sentimento de insegurança e o aumento do sentimento de
segurança, mas nunca da segurança plena (BAUMAN, 2009). Assim, a incorporação de
uma parafernália tecnológica quando não acompanhada de diminuição significativa de
crimes, acaba por frustrar os objetivos do indivíduo, no qual sua única estratégia é
alocação de mais equipamentos deste tipo.
Ao focar o olhar sobre os espaços públicos do bairro – ruas e praças,
principalmente – percebemos que há uma espécie de anemia (SOUZA, 2010) que se dá
mediante a ausência de indivíduos nesses espaços. Muitos relatos deram conta e mostram
que o principal fator dessa ausência é, justamente, o medo. Do total de entrevistados, por
exemplo, 81 afirmaram existir horários em que evitavam transitar ou permanecer nos
espaços públicos do bairro. Esses horários eram, sobretudo, os das primeiras horas do dia
e quando começava a anoitecer. Afirmavam eles que eram justamente nesses horários
onde ocorriam furtos e roubos, principalmente. Além disso, 65 pessoas disseram não
frequentar certos lugares do bairro pelo mesmo motivo. Aqui se encontra essencialmente
algumas praças do bairro, bem como ruas com iluminação pública precária ou áreas com
os chamados terrenos baldios.
Nas diversas visitas realizadas ao bairro podemos constatar essas dinâmicas.
Poucas pessoas nas ruas e nas praças – inclusive sendo um fator de dificuldades à
pesquisa. É interessante considerar a fala de muitos que afirmavam ser preferível não sair
de casa, devido à violência. Vemos, portanto, a emergência de uma valorização do
privado em detrimento do público, afetando exercícios de cidadania (GOMES, 2010) –
para além de direitos e deveres de um cidadão, mas considerando o viver a cidade, seus
espaços públicos -, por exemplo.
Nesse sentido, poderíamos falar em uma territorialização do medo.
Territorialização aqui pensada enquanto ação, o movimento, o processo, responsável pela
construção e apropriação de espaços que se tornam territórios. O processo de
territorialização é produto socioespacial do movimento e das contradições sociais, sob as
forças econômicas, políticas e sociais (SAQUET, 2007). A partir dessas territorializações

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novos territórios são formados e trazem consigo características que exprimem a relação
conjunta entre dominação e apropriação, considerada as relações de poder em sentido
amplo, simbólicas e materiais, subjetivas e objetivas (HAESBAERT, 2004). O medo
territorializa-se nos espaços públicos na medida em que os indivíduos preferem
frequentar outros ambientes que os possibilite uma sensação maior de segurança. Ao
mesmo tempo em que a territorialização do medo em alguns lugares – como nas ruas
escuras, nas praças ditas perigosas – acaba por alterar trajetórias cotidianas, quando evita-
se permanecer ou trafegar por elas. Essa possível alteração de trajetórias pode ser
percebida na figura 3, no qual a partir de fatores pré-determinados - áreas com déficit de
iluminação pública, espaço com moradores em situação de rua e lugares onde há altos
índices de crimes (condições escolhidas através das falas dos moradores para caracterizar
os “lugares perigosos”) – buscamos representar algumas territorializações do medo em
uma pequena parte de Candelária. Assim, pessoas que consideram esses fatores como um
motivo para evitar transitar ou permanecer em determinados locais certamente iriam
alterar seu itinerário. Imaginemos o espaço composto por múltiplas trajetórias (MASSEY,
2004) e logo iremos imaginar uma grande diversidade de práticas sendo alteradas por
esses fatores. Além disso, quando olhamos para as casas o medo parece territorializar-se
nelas, mediante o aparecimento de verdadeiros territórios fortificados (SOUZA, 2010),
devido à intensa presença da tecnosfera da segurança.

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Figura 3: Mapa com a espacialização das condições elencadas para uma territorialização
do medo.

Fonte: Elaborado pelo autor mediante trabalho de campo

Dessa forma, percebemos que várias leituras a partir de diferentes perspectivas


nos levam a interpretações da influência da psicosfera do medo em dinâmicas urbanas no
bairro. Assim, conseguimos aliar aspectos materiais, como a tecnosfera da segurança, aos
aspectos imateriais, como as trajetórias dos indivíduos, nos possibilitando tais
interpretações. Contudo, é importante reforçar que a multiplicidade de fenômenos não
nos permite abarcar a totalidade em sua plenitude, por isso, a necessidade de ser fazer
cortes na paisagem para que as leituras sejam realizadas e as intepretações alcançadas.

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CONCLUSÃO

O meio urbano, enquanto forma e conteúdo, apresenta-se como elemento


riquíssimo para análises que levem em consideração a leitura de textos não-verbais. A
cidade tornada signo revela uma série de fenômenos passíveis de serem lidos e
interpretados de acordo com o usuário ou através de um olhar mais atento daquele que se
interesse em percebê-la. A leitura do não-verbal como antididática que proporciona uma
série de coisas a se desvendar, descobrir, muito mais que ensinar propriamente, abre um
leque de possibilidades metodológicas a áreas de conhecimento que tenham como campo
de estudos as cidades e o meio urbano. Nesse sentido, a Geografia encontra na chamada
semiótica urbana uma rica fonte de possibilidades aos seus estudos, permitindo que se
coloque em sintonia materialidade e subjetividades, objetos e ações, balizadas pela tríade
percepção-leitura-informação.
Para colocarmos em prática um pouco dessa antididática, consideramos a
emergência de uma psicosfera do medo como fenômenos que se materializa na paisagem
urbana. Assim, tomando como exemplo o bairro de Candelária percebemos como a
incorporação crescente de uma tecnosfera da segurança, bem como das práticas cotidianas
dos moradores, são passíveis de leituras e intepretações que considerem a influência dessa
psicosfera na dinâmica do bairro.
As interpretações finais devem considerar algumas considerações que levem a
possíveis interferências sobre o espaço urbano. Para tanto, colocamos em foco a possível
diminuição do uso dos espaços públicos do bairro, estabelecendo recuos da ideia inicial
de cidadania, que tem como pressuposto o viver a cidade, as trocas sociais em um espaço
público. Percebemos, também, como o aumento do uso de parafernálias tecnológicas de
segurança têm relação com um déficit na oferta de segurança pública, sendo necessário
rever uma série de políticas da área. Como afirmamos, a complexidade dos fenômenos
não nos permite analisar a totalidade em sua plenitude, e aqui constam apenas algumas
parcelas da realidade, algumas leituras e algumas intepretações.

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REFERÊNCIAS

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