Você está na página 1de 8

07/05/2018 Polêmica: em defesa de Sérgio Buarque

Polêmica: em defesa de Sérgio Buarque


POR INÁ CAMARGO COSTA
– ON 17/04/2018
CATEGORIAS: BRASIL, DESTAQUES, ECONOMIA

A pretexto de atacar conservadorismo, Jessé de Souza investe contra intelectuais


que ajudaram a construir pensamento crítico brasileiro. Ignorância? Ou simples
desejo de espalhafato?

Por Iná Camargo Costa

Este texto vai se restringir ao delineamento de um aspecto da identidade


intelectual, o do desempenho linguístico, do mais recente detrator da obra de
Sérgio Buarque de Holanda, seguindo o próprio exemplo deste Mestre. Inspirado
em Mário de Andrade, Sérgio Buarque sempre teve muita paciência com os jovens
candidatos a crítico, mesmo os que não exibissem nenhuma disposição mental para
argumentar. Mas sempre exigiu de todos um mínimo de qualificação que, uma vez
inalcançado, dava lugar a pronta e enérgica descompostura. Foi o caso de um
candidato a crítico literário e especialista em literatura francesa que leu um verso
em francês com a palavra “sol” (solo, terra, chão) e a traduziu por sol, o astro-rei,
que em francês é “soleil”. Podemos imaginar a quantidade de erros em cascata
produzidos por esta leitura inepta, de cujos pormenores nosso crítico poupou os
seus leitores.

https://outraspalavras.net/brasil/polemica-em-defesa-sergio-buarque/ 1/8
07/05/2018 Polêmica: em defesa de Sérgio Buarque

O que poderia aparecer aqui como argumentum ad hominem, na verdade é apenas


empenho em definir os termos e razões de um impossível debate. Estamos falando
de um bacharel em direito pela UNB que se doutorou em sociologia por
Heidelberg. Atualmente é professor na Universidade Federal do ABC, mas já foi
presidente do IPEA nos anos de 2015 e 2016. Seu autor mais apreciado e estudado
é Max Weber, sendo também adepto sem restrições da teoria sociológica de Pierre
Bourdieu (inclusive no quesito interpretação de Max Weber). Declara-se, sem
rodeios, anticomunista e antissocialista por adesão ao assim chamado capitalismo
regulamentado, que conheceu pessoalmente quando de seu doutorado, nos anos de
1980, na então República Federal da Alemanha, em Heidelberg [1]. Declara-se
impressionado com o capitalismo regulamentado pelo fato do seguro-saúde de um
reles bolsista (não seria da Fundação Konrad Adenauer?) de pós-graduação ter
direito de atendimento pelo mesmo médico do presidente da Mercedes-Benz!
Finalmente, o detrator da “inteligência brasileira” se apoia, em tópicos de filosofia
e metafísica, no teólogo canadense Charles Taylor. Todas estas informações estão
disponíveis no livro A elite do atraso, sua mais recente publicação. Mas uma
interpretação minimamente informada já esclarece um tópico omitido: trata-se de
adepto do atualmente chamado comunitarismo, que em política equivale a um
centrismo radical (nem liberal nem marxista), atualiza a Doutrina Social da Igreja
lançada no fim do século XIX com a encíclica Rerum Novarum (1891) e
recentemente foi re-re-re-requentada pela Centesimo anno (1991) de João Paulo II.
A marca central deste discurso dito centrista é dedicação (discursiva) total aos
pobres, miseráveis, excluídos, etc., que nosso autor promoveu (ou degradou) a ralé
dos novos escravos no caso Brasil.

Originalmente este trabalho pretendia ser apenas uma exposição didática do


conceito de “homem cordial”, metodicamente treslido desde quando o livro Raízes
do Brasil foi publicado em 1936, a começar pelos intelectuais católicos do tipo
Tristão de Ataíde e Cassiano Ricardo. Mas um show de intelectualidade cordial
protagonizado por autor e leitores do livro A elite do atraso, no carnaval de 2018,
motivou a mudança de planos. Explico-me: o desfile da Escola de Samba Paraíso
do Tuiuti produziu da parte deles uma resposta típica de quem não conhece ou não
gosta de carnaval, nem sabe como se produz um desfile, mas leu o livro.
Imediatamente surgiu entre eles a lenda urbana de que o carnavalesco da Tuiuti se
https://outraspalavras.net/brasil/polemica-em-defesa-sergio-buarque/ 2/8
07/05/2018 Polêmica: em defesa de Sérgio Buarque

baseara nele, que entretanto foi publicado em setembro de 2017. Seu autor,
nitidamente envaidecido pela reação de seu fã-clube, aderiu sem qualquer
precaução à tese e tratou de dar entrevistas a respeito, sem esconder que promovia
a própria obra. Mas bastaria que algum daqueles entusiasmados se desse ao
trabalho de consultar o site da Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de
Janeiro (LIESA) para verificar que o título não consta da bibliografia que
acompanha a sinopse do enredo da Tuiuti, ou que algum conhecedor do mundo do
samba os avisasse que em setembro, quando o livro saiu, o desfile já estava em
fase de finalização, com coreografias em ensaios finais, as alegorias quase prontas,
todas as fantasias definidas, bem como a sequência das alas e das alegorias e assim
por diante. Diante deste espetáculo constrangedor, aceitamos o risco de produzir
um simples esboço de caracterização do autor daquele livro. A fonte de todas as
informações que seguem, não custa repetir, é o próprio livro.

O curioso desempenho linguístico do detrator da inteligência brasileira em geral


vai do lugar-comum ao chocante. Neste último caso, encontra-se a exumação sem
o menor senso crítico de parte da expressão extremamente grosseira criada pelo
jornalista Nelson Rodrigues – complexo de vira-lata –, promovendo-a a conceito
também impensado em se tratando de autoproclamado defensor dos nossos fracos e
oprimidos. Não lhe ocorreu nem por um minuto que, sem falar no sentido original
– vira-lata designa cachorros sem “pedigree” –, quando referida a pessoas e teorias,
a palavra tem um evidente conteúdo racista? Enquanto o jornalista carioca
(assumidamente preconceituoso do chapéu aos sapatos) designava uma espécie de
complexo de inferioridade relacionado ao futebol (depois da célebre derrota de
1950 para a seleção do Uruguai), o nosso diatribista, com o adjetivo e seus
derivados como “vira-latice” e “vira-latismo”, tenta dar foro de discurso científico
a uma expressão que até o racista Nina Rodrigues repeliria horrorizado.

De matriz mais profunda e verdadeiramente popular é o emprego insistente do


adjetivo “fajuto” que, embora nossos dicionários apresentem como de etimologia
ignorada, tem grande possibilidade de ser uma importação do lunfardo argentino.
Basta conhecer as acepções de “falluto” (pronuncia-se fajuto): falso, desleal,
hipócrita, pérfido, traidor e desonesto, para estabelecer os laços fonético e
semântico de família. Segundo os dicionários da língua portuguesa, a palavra
https://outraspalavras.net/brasil/polemica-em-defesa-sergio-buarque/ 3/8
07/05/2018 Polêmica: em defesa de Sérgio Buarque

significa simplesmente mal feito, mas como consequência pode significar falso ou,
pior, falsificado (no caso de alguma bebida), como no lunfardo. Se era de
falsificação que o autor queria falar, por que não empregou as palavras comuns do
discurso científico: falacioso, falaz (mentiroso), simplesmente falso, ou mesmo
falsificado? O emprego de palavras como “fajuto” é forte indicativo da definição
de um público leitor: aquele mesmo que foi tão duramente criticado, a saber, a
classe média que, conforme caracterizada no livro, é igualmente grosseira e
superficialmente alfabetizada, além de odiar os pobres sem sentimento de culpa. Se
nossa hipótese etimológica estiver correta, eis que estamos diante de um caso de
burla involuntária: a desqualificação do trabalho intelectual em termos conhecidos
por uma certa classe média que odeia pobres e no entanto, por simples ignorância,
fala a língua do submundo do tango e da prostituição portenhos… (eis uma
situação bem divertida para apreciadores de um gênero que também se caracterizou
como “burlón y compadrito”…).

E já que resvalamos para o terreno da galhofa, não custa destacar mais uma
desatenção linguística do nosso cientista social, especialmente preocupado com o
“estado atual dos conhecimentos científicos”. Em seu livro (que cobra de
Raymundo Faoro atenção para “filigranas conceituais” e se apresenta como
empenhado no combate a “ideias velhas”) topamos com o emprego da expressão
“o sol nasce” por mais de uma vez. Se nos lembrarmos de que até a Igreja Católica
já reconheceu que estava errada na condenação do heliocentrismo de Galileu (é
verdade que só em 1992), está mais do que na hora de encontrar expressão mais
adequada do que esta, de teor geocêntrico, para designar fenômenos naturais como
alvorecer, luz do dia e outros, mesmo por parte de escritores católicos.

Indício de pouco interesse por literatura, nosso autor usa sem saber a expressão
“escravos de todas as cores” criada por seu inimigo-mor – Sérgio Buarque de
Holanda – no prólogo de uma peça para teatro de revista chamada Antinous. A
intenção naquele trabalho era indicar que, ao contrário do discurso oficial, a
escravidão persistia no Brasil dos anos de 1920 e não se restringia mais aos negros.

https://outraspalavras.net/brasil/polemica-em-defesa-sergio-buarque/ 4/8
07/05/2018 Polêmica: em defesa de Sérgio Buarque

A diferença é que o trabalho de Sérgio Buarque era um experimento literário


modernista (publicado na revista Estética, da qual era um dos editores).

Pela insistência em usar palavras como demonizar, sacralizar, divinizar, satanizar e


conexas do léxico cristão (católico), o autor dá consistência à hipótese de sua
adesão irrestrita à doutrina social da Igreja, já referida. Esta hipótese também se
fortalece na explicitação exaustivamente insistente do interesse (promovido a
sociológico) pelos excluídos, desvalidos, etc., que no discurso da Centesimus
annus já tinha sido promovida a “opção preferencial pelos pobres”. A novidade no
livro é a sua promoção a única e original explicação para os males atuais do Brasil
enquanto “permanência da escravidão” em formas ainda mais perversas (o Autor
diria satânicas) do que as do tempo da escravidão propriamente dita, por não ser
reconhecida como tal.

Até aqui tratamos de explicitar alguns aspectos do desempenho linguístico do


nosso autor, mas talvez as omissões sejam ainda mais eloquentes para a
caracterização do seu perfil intelectual. Muitas vezes o que não é dito ajuda a
compreender inconsequências, contradições e petições de princípio, entre outras
inconsistências verificáveis no que está escrito.

De todas as omissões, a mais clamorosa – em se tratando de bacharel em direito – é


a supressão (afirmada várias vezes) do Estado português na condução dos negócios
da colônia brasileira por métodos necessariamente patrimonialistas, na medida em
que os patriarcas, de que Gilberto Freyre tratou e que aqui se instalaram, estavam a
serviço do rei, o detentor do patrimônio colonial como um todo. Uma vez
suprimida esta determinação maior, ficam sem esclarecimento as razões da adoção
do trabalho escravo – primeiro dos nativos e depois dos africanos –, impensável
sem a monocultura adotada por decisão do rei, como se a escravidão tivesse
surgido do nada e no entanto ela é promovida a única explicação legítima para os
nossos males.

Uma consequência da supressão do Estado português na definição dos nossos


negócios coloniais, é a concomitante supressão do papel da Igreja, que abençoou e
promoveu de modo empenhadíssimo genocídios e escravidões (chegando a definir

https://outraspalavras.net/brasil/polemica-em-defesa-sergio-buarque/ 5/8
07/05/2018 Polêmica: em defesa de Sérgio Buarque

nativos e africanos como não-gente), para não dizer nada de sua efetiva
participação em todos os demais crimes da colonização, incluindo o tráfico de
nativos da América do Sul para as Antilhas e de africanos para o Brasil (São Paulo
de Luanda era um entreposto de embarque de africanos escravizados sob o controle
dos jesuítas).

Uma terceira consequência da omissão do papel do Estado na configuração do


Brasil contemporâneo leva nosso autor (um bacharel em direito!) a simplesmente
ignorar uma das funções do Ministério Público tal como definida na Constituição
“cidadã” (Art. 129, III): promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a
proteção do patrimônio público e social. Desta função decorre que a investigação
de atos de corrupção, que impliquem danos ao patrimônio público, seja por parte
de agentes públicos, seja por parte de agentes privados, é dever daqueles
funcionários públicos, constitucionalmente definido, e seguramente não depende
de adesão a esta ou aquela teoria de explicação do país, como quer o nosso autor
em tom ezequiélico, que só faltou chamar a Universidade de São Paulo de
prostituta de estrada [2], responsabilizando-a até mesmo por alimentar o discurso
da grande mídia em sua campanha antipetista e antipobres de um modo geral. E,
dada a sua insistência em vincular Sérgio Buarque e Raymundo Faoro ao papel
desprezível que atribui à USP na produção da “justificativa ideológica” para o
conservadorismo das elites brasileiras, não custa nada lembrar que, quando
escreveu Raízes do Brasil, Sérgio Buarque ainda morava e era professor no Rio de
Janeiro e que, quando escreveu Os donos do poder, o gaúcho Raymundo Faoro
também morava no Rio. (Mas estes são apenas detalhes geográficos sem maior
importância).

Quanto aos desmandos de uma operação como a Lava Jato, com a intenção de
evitar inferências apressadas, convém dar um esclarecimento preliminar, a ser
desenvolvido oportunamente: entender que os funcionários do Ministério Público e
do Judiciário têm o dever constitucionalmente definido de proteger o patrimônio
público dos ataques por parte dos inúmeros candidatos a seus assaltantes das
esferas pública e privada, não corresponde a aceitar como legítimos (nem mesmo
como legais) os atos praticados ao arrepio da lei, da justiça e dos códigos penal e
de processo penal vigentes. Aliás, a maioria dos atos aplaudidos pela mídia
https://outraspalavras.net/brasil/polemica-em-defesa-sergio-buarque/ 6/8
07/05/2018 Polêmica: em defesa de Sérgio Buarque

também pode ser descrita com apoio em Sérgio Buarque: seus praticantes são
funcionários que tratam o Estado como se fosse coisa sua e seus atos se
transformaram em questão pessoal. Em vez de justiça, dedicam-se a uma variante
nacional da vendeta, como se estivéssemos em plena Idade Média. Este tipo de
anomalia no exercício das funções públicas também concorre para a caracterização
do homem cordial.

Para encerrar o capítulo das omissões, que está longe de ter sido exaustivo, o autor
promete mais de uma vez expor o “conceito” de escravidão e não o faz, bem como
o de “estoque cultural”, ainda que este último provenha da teoria de Pierre
Bourdieu e o livro se demore na exposição de outros aspectos da teoria das trocas
simbólicas do sociólogo francês.

Como esta amostra já contém material suficiente para exemplificar algumas das
proposições presentes no excerto do livro Raízes do Brasil que introduz a figura do
“intelectual cordial”, passemos a palavra ao Mestre: “a personalidade individual
dificilmente suporta ser comandada por um sistema exigente e disciplinador. É
frequente, entre os brasileiros que se presumem intelectuais, a facilidade com que
se alimentam, ao mesmo tempo, de doutrinas dos mais variados matizes e com que
sustentam, simultaneamente, as convicções mais díspares. Basta que tais doutrinas
e convicções se possam impor à imaginação por uma roupagem vistosa: palavras
bonitas ou argumentos sedutores. A contradição que porventura possa existir entre
elas parece-lhes tão pouco chocante, que alguns se alarmariam e se revoltariam
sinceramente quando não achássemos legítima sua capacidade de aceitá-las com o
mesmo entusiasmo.” (Raízes do Brasil. Capítulo 6, “Novos tempos”).

Voltaremos a estes dois assuntos (intelectual cordial e A elite do atraso) em outra


oportunidade. Como diriam os nossos juízes do STF, ainda não está na hora de
entrar no mérito da questão…

_____________________

[1] Não custa informar que, embora seu orçamento conte com amplos fundos
públicos, a Universidade de Heidelberg é administrada por jesuítas, como a nossa

https://outraspalavras.net/brasil/polemica-em-defesa-sergio-buarque/ 7/8
07/05/2018 Polêmica: em defesa de Sérgio Buarque

PUC-Rio.

[2] Aos não familiarizados com o tom dos profetas do Antigo Testamento,
apresentamos alguns excertos das invectivas de Ezequiel: “Não será como antes: os
humildes serão exaltados e os exaltados serão humilhados” (21: 26); “O povo da
terra pratica extorsão e comete roubos; oprime os pobres e necessitados” (22: 29);
“Ela se entregou como prostituta a toda a elite dos assírios” (23: 7); “Que agora a
usem como prostituta, pois isso é tudo o que ela é” (23: 43).

https://outraspalavras.net/brasil/polemica-em-defesa-sergio-buarque/ 8/8

Você também pode gostar