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7) uma crise de
regulação
07/10/2010
É paradoxal que uma moeda nacional seja usada como principal reserva de uma
economia transnacionalizada, e que a transnacionalização da economia não esteja
coordenada com a manutenção dos espaços nacionais. Por João Bernardo
Uma das maiores fragilidades indicadas pela crise nanceira desencadeada em 2007 é a
insu ciente coordenação entre o âmbito transnacional da actividade económica e a
esfera em que vigoram as instituições reguladoras, limitadas às nações ou aos
conglomerados de nações. Talvez a expressão mais agrante dessa contradição seja o
uso da moeda nacional norte-americana como principal moeda mundial de uma
economia transnacionalizada. (Devo prevenir os leitores de que, consoante o uso
português, chamo mil milhões ao que os brasileiros chamam bilhão, ou seja, 109, e
bilião ao que no Brasil se chama trilhão, um milhão de milhões, ou seja, 1012.)
Os SDRs são um tipo de dinheiro criado pelo Fundo Monetário Internacional em 1969 e
cujo valor é de nido por um cabaz composto hoje por dólares, libras esterlinas, yens e
euros, expresso em dólares consoante o câmbio do momento. A composição deste cabaz
é alterada de cinco em cinco anos, para re ectir as mudanças relativas das quatro
moedas. Os SDRs são atribuídos aos países membros com base na contribuição de cada
um para o Fundo, podendo apenas ser comprados e comercializados por bancos
centrais e não por investidores privados. Criados originariamente para servir de moeda
de reserva, os SDRs são agora usados sobretudo como unidade contabilística nas
transacções do Fundo Monetário Internacional com os países membros, e apesar de não
constituírem dinheiro numa acepção estrita, podem ser trocados voluntariamente por
dinheiro em reserva nos países membros do Fundo. Por outro lado, países com uma
situação nanceira externa sólida podem comprar SDRs a países que necessitem de
reservas em moeda forte. Não é aqui a ocasião, mas uma história dos obstáculos
erguidos à expansão e difusão dos SDRs ajudaria a compreender o papel desempenhado
pelo dólar como moeda de reserva mundial.
3/4 das reservas externas totais pertencem às economias emergentes, e a China detém
1/3 destas reservas, num montante que na primeira metade de 2010 equivalia a 2,4
biliões de dólares. Cerca de 2/3 da reserva externa chinesa são em dólares. Assim,
parece que estes países se encontram numa armadilha sem saída, porque, por um lado,
são prejudicados pelo facto de o dólar re ectir os interesses e os problemas da
economia norte-americana e, por outro lado, cariam mais prejudicados ainda se
pusessem o dólar em causa e por aí contribuíssem para a derrocada do seu valor.
Invocando o facto de os Estados Unidos serem o maior devedor mundial e a China ser o
seu maior credor, detendo mais de 800 milhares de milhões de dólares em títulos de
dívida norte-americanos, numerosos comentadores pretendem que o governo de
Pequim tem poder de vida e morte sobre a economia dos Estados Unidos. Mas, se essa
arma fosse usada, morreriam ambos, como observou em Julho de 2009 o China Daily,
um jornal o cial chinês em língua inglesa.
A posição ocupada mundialmente pelo dólar é mais paradoxal ainda numa época em
que assistimos ao decoupling, à orientação dos Estados Unidos e da China por rumos
económicos divergentes, e o paradoxo é tanto mais grave quanto os capitais adquiriram
uma mobilidade que ultrapassa as fronteiras. Nestas condições, torna-se cada vez mais
difícil uma economia nacional determinar uma taxa de câmbio e um nível de liquidez
interno que lhe sejam ambos favoráveis. Se as autoridades de um país se mostrarem
relutantes em permitir a apreciação da sua moeda relativamente ao dólar, o que traria
inconvenientes para a competitividade das exportações, elas estarão ao mesmo tempo a
prosseguir uma política monetária demasiado laxista, no caso de o país ter uma elevada
taxa de crescimento, acentuando portanto as pressões in acionistas. É este o dilema
em que a China se encontra hoje — entregando a nal a sua política monetária à
Reserva Federal norte-americana.
Uma solução como a proposta por Zhou Xiaochuan exigiria uma grande remodelação do
Fundo Monetário Internacional, modi cando-lhe a estrutura interna e os seus termos
de crédito, de maneira a torná-los menos nocivos para as economias em
desenvolvimento.
Certos tecnocratas, por exemplo Montek Singh Ahluwalia, argumentam que, se antes
do início da crise nanceira alguns países emergentes acumularam reservas originadas
pelo crescimento das suas exportações, isto se deveu em parte ao facto de pretenderem
evitar os termos de crédito que o Fundo Monetário Internacional impunha. A ser assim,
não basta aumentar a capacidade creditícia do Fundo e é imperiosa a sua remodelação
interna.
O G-20 incluiu essa remodelação na ordem de trabalhos [pauta] da sua reunião de Abril
de 2009, prometendo aumentar as quotas dos países emergentes e declarando que o
Fundo Monetário Internacional seria autorizado a emitir novos SDRs num montante
equivalente a 250 milhares de milhões de dólares. Mas como os SDRs são distribuídos
de acordo com a quota de cada país no Fundo, isto reduz a sua e cácia para as
economias emergentes e 68% dos novos SDRs seriam concedidos aos países ricos. O
problema básico do Fundo Monetário Internacional consiste em re ectir um quadro de
hegemonias que deixou de corresponder ao actual, conferindo aos Estados Unidos um
direito de veto mediante a exigência de 85% dos votos para as decisões mais
importantes e fazendo a Bélgica, por exemplo, dispor de mais votos do que o Brasil. Ora,
o G-20 não se pronunciou a respeito do sistema de votações no Fundo Monetário
Internacional, e a necessidade de rever o sistema de quotas em vigor continua a ser uma
das questões prementes, estando os BRICs a envidar esforços neste sentido. Se o que se
passou no Banco Mundial puder servir de indicação, convém saber que no primeiro
semestre de 2010 ele aumentou o poder de voto dos países emergentes de 44,6% para
47,2%, cando a China apenas abaixo dos Estados Unidos e do Japão.
Mas tudo isto é discutido e deliberado por detrás de portas bem fechadas, e mesmo as
revistas especializadas e destinadas à elite tecnocrática são parcimoniosas em notícias
sobre o assunto. Uma das facetas que caracteriza as democracias representativas é o
declínio do poder dos órgãos eleitos e a crescente in uência assumida por instâncias
muitíssimo discretas, jamais mencionadas nos meios de comunicação de massa,
integrando pessoas que oscilam entre o âmbito estatal e o âmbito privado e onde as
decisões se alcançam sempre por consenso não entre políticos pro ssionais mas entre
tecnocratas. É com este tipo de instituições que o capitalismo procederá à necessária
coordenação entre os espaços nacionais e a transnacionalização económica. Mas
conseguirá fazê-lo com su ciente rapidez?
Notas
[1] Taxa de câmbio real em que o valor médio de uma moeda é calculado em relação a
um conjunto de moedas estrangeiras, proporcionalmente ao montante relativo do
comércio do país com esses outros países.
[2] Chama-se BRICs ao conjunto formado pelo Brasil, Rússia, Índia e China. Ver a este
respeito o segundo artigo desta série.