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Ainda acerca da crise económica.

7) uma crise de
regulação
07/10/2010

É paradoxal que uma moeda nacional seja usada como principal reserva de uma
economia transnacionalizada, e que a transnacionalização da economia não esteja
coordenada com a manutenção dos espaços nacionais. Por João Bernardo

Uma das maiores fragilidades indicadas pela crise nanceira desencadeada em 2007 é a
insu ciente coordenação entre o âmbito transnacional da actividade económica e a
esfera em que vigoram as instituições reguladoras, limitadas às nações ou aos
conglomerados de nações. Talvez a expressão mais agrante dessa contradição seja o
uso da moeda nacional norte-americana como principal moeda mundial de uma
economia transnacionalizada. (Devo prevenir os leitores de que, consoante o uso
português, chamo mil milhões ao que os brasileiros chamam bilhão, ou seja, 109, e
bilião ao que no Brasil se chama trilhão, um milhão de milhões, ou seja, 1012.)

A contradição entre a transnacionalização da economia e o uso de uma moeda de


reserva nacional
Em 2009, 65% das reservas externas mundiais eram em dólares, 26% eram em euros e
só menos de 1% era em Direitos de Saque Especiais (SDRs, Special Drawing Rights).
Como terei de voltar à questão dos SDRs, vale a pena explicar já, a quem não o saiba, em
que consiste esta modalidade duciária, cuja importância potencial é muito superior à
actual.

Os SDRs são um tipo de dinheiro criado pelo Fundo Monetário Internacional em 1969 e
cujo valor é de nido por um cabaz composto hoje por dólares, libras esterlinas, yens e
euros, expresso em dólares consoante o câmbio do momento. A composição deste cabaz
é alterada de cinco em cinco anos, para re ectir as mudanças relativas das quatro
moedas. Os SDRs são atribuídos aos países membros com base na contribuição de cada
um para o Fundo, podendo apenas ser comprados e comercializados por bancos
centrais e não por investidores privados. Criados originariamente para servir de moeda
de reserva, os SDRs são agora usados sobretudo como unidade contabilística nas
transacções do Fundo Monetário Internacional com os países membros, e apesar de não
constituírem dinheiro numa acepção estrita, podem ser trocados voluntariamente por
dinheiro em reserva nos países membros do Fundo. Por outro lado, países com uma
situação nanceira externa sólida podem comprar SDRs a países que necessitem de
reservas em moeda forte. Não é aqui a ocasião, mas uma história dos obstáculos
erguidos à expansão e difusão dos SDRs ajudaria a compreender o papel desempenhado
pelo dólar como moeda de reserva mundial.

Embora a percentagem ocupada pelo dólar nas reservas


externas mundiais em 2009 fosse ligeiramente inferior à de
uma década antes, convém lembrar que a percentagem
ocupada pelos Estados Unidos nas exportações mundiais
declinou muito acentuadamente, passando de 18% no
começo da década de 1950 para 8% em 2009. Isto signi ca que a deterioração da
posição económica internacional dos Estados Unidos praticamente não se re ectiu na
sua moeda, cuja força provém de constituir uma moeda de reserva mundial e, portanto,
os outros países não estarem interessados em que caia o valor das suas reservas.

3/4 das reservas externas totais pertencem às economias emergentes, e a China detém
1/3 destas reservas, num montante que na primeira metade de 2010 equivalia a 2,4
biliões de dólares. Cerca de 2/3 da reserva externa chinesa são em dólares. Assim,
parece que estes países se encontram numa armadilha sem saída, porque, por um lado,
são prejudicados pelo facto de o dólar re ectir os interesses e os problemas da
economia norte-americana e, por outro lado, cariam mais prejudicados ainda se
pusessem o dólar em causa e por aí contribuíssem para a derrocada do seu valor.
Invocando o facto de os Estados Unidos serem o maior devedor mundial e a China ser o
seu maior credor, detendo mais de 800 milhares de milhões de dólares em títulos de
dívida norte-americanos, numerosos comentadores pretendem que o governo de
Pequim tem poder de vida e morte sobre a economia dos Estados Unidos. Mas, se essa
arma fosse usada, morreriam ambos, como observou em Julho de 2009 o China Daily,
um jornal o cial chinês em língua inglesa.

A posição ocupada mundialmente pelo dólar é mais paradoxal ainda numa época em
que assistimos ao decoupling, à orientação dos Estados Unidos e da China por rumos
económicos divergentes, e o paradoxo é tanto mais grave quanto os capitais adquiriram
uma mobilidade que ultrapassa as fronteiras. Nestas condições, torna-se cada vez mais
difícil uma economia nacional determinar uma taxa de câmbio e um nível de liquidez
interno que lhe sejam ambos favoráveis. Se as autoridades de um país se mostrarem
relutantes em permitir a apreciação da sua moeda relativamente ao dólar, o que traria
inconvenientes para a competitividade das exportações, elas estarão ao mesmo tempo a
prosseguir uma política monetária demasiado laxista, no caso de o país ter uma elevada
taxa de crescimento, acentuando portanto as pressões in acionistas. É este o dilema
em que a China se encontra hoje — entregando a nal a sua política monetária à
Reserva Federal norte-americana.

Uma nova moeda de reserva?

Segundo o Banco de Pagamentos Internacionais, desde Julho de 2005 até Fevereiro de


2009 o yuan apreciou-se 28% numa base trade-weighted [1]. Mas a crise do comércio
mundial levou as autoridades chinesas a suspenderem essa apreciação, para não
prejudicarem as exportações do país, e a partir de Julho de 2008 o yuan passou a
acompanhar o declínio do dólar. Numa base trade-weighted, todavia, o yuan apreciou-
se 18% de Fevereiro de 2008 até Fevereiro de 2009, subindo em relação a todas as
outras moedas excepto o dólar e o yen japonês. Zhou Xiaochuan, governador do banco
central chinês, declarou em Março de 2010 que a manutenção da estabilidade do yuan
relativamente ao dólar faz «parte do nosso conjunto de medidas destinadas a lidar com
a crise nanceira global», mas que «mais cedo ou mais tarde» a China adoptaria outra
política. Zhou insistiu na necessidade de manter uma orientação cautelosa nos
próximos tempos, e nos dias seguintes outros tecnocratas chineses reforçaram a ideia
de que a estabilidade da moeda seria preservada.

Porém, as autoridades chinesas procederam a um pequeno ajuste em 19 de Junho de


2010, permitindo uma utuação do yuan que não exceda uma subida ou descida diária
de 0,5% relativamente ao dólar, desde que uma apreciação de 0,5% não ocorra numa
série de dias seguidos. Em Julho de 2010 a percepção no mercado era de que o yuan se
valorizaria somente de 2% a 3% até ao nal de 2011. Todavia, no nal de Agosto, numa
base trade-weighted, o yuan tinha-se depreciado 2,3% relativamente a 18 de Junho.
Enquanto a questão estiver neste pé, tudo se resume a pequenas alterações de taxas e a
estipular datas exactas em que as decisões devem ser tomadas. Mas pode a questão
manter-se neste pé? A vice-governadora do banco central chinês, Hu Xiaolian, declarou
repetidamente em Julho de 2010 que uma taxa de câmbio mais exível facilitaria a
adopção de uma política monetária autónoma e, estimulando os mecanismos da
concorrência internacional, pressionaria as indústrias exportadoras chinesas a
inovarem e a aumentarem a produtividade. Parece existir a este respeito um certo
con ito de tendências entre as autoridades chinesas e é cedo para prever o desfecho.
Entretanto, as autoridades começaram a recorrer a duas vias de saída, que aliás não se
excluem.

Em primeiro lugar, as autoridades chinesas estão a


estimular o uso do yuan nas transacções internacionais. A
partir de Julho de 2009 algumas rmas seleccionadas em
cinco cidades chinesas foram autorizadas a empregar o yuan
em negócios com rmas de Hong Kong, de Macau e dos
países da ASEAN (Assotiation of Southeast Asian Nations, Associação das Nações do
Sudeste Asiático). Os bancos estrangeiros poderão comprar ou pedir emprestados yuans
de rmas chinesas para nanciar essas transacções. Além disso — e poderia haver
melhor sinal dos novos tempos? — a primeira rma não- nanceira a lançar uma
emissão de obrigações denominadas em yuans foi a MacDonald’s. Por outro lado, o
banco central russo tem estado a diminuir as suas reservas em dólares, e em Junho de
2009 a Rússia e a China decidiram aumentar o uso das suas moedas próprias nas
transacções recíprocas, estando o Brasil e a China em negociações para implementar
um regime idêntico. Qu Hongbin, economista-chefe para a China do HSBC, o maior
banco mundial, previu nessa ocasião que em 2012 um montante do comércio anual
equivalente a cerca de 2 biliões de dólares, correspondente a mais de 40% do comércio
total da China, seria transaccionado em yuans, o que converteria a moeda chinesa numa
das três principais usadas no comércio mundial. Outros economistas acharam a
estimativa exagerada, mas ela tem pelo menos a vantagem de nos alertar para um rumo
que se desenha.

Em segundo lugar, as autoridades chinesas têm-se


esforçado por persuadir outros países a adoptar uma nova
moeda global. Num artigo publicado em Março de 2009,
Zhou Xiaochuan, o já referido governador do banco central
da China, considerou que o dólar devia ser substituído por
outra moeda de reserva mundial e sugeriu que ela fosse
emitida pelo Fundo Monetário Internacional. Segundo Zhou, o actual sistema obrigou
os países com balança comercial excedentária a acumularem dólares e, portanto,
permitiu que os Estados Unidos enveredassem pela colossal expansão do crédito
interno que acabaria por levar à crise nanceira. Além disso, prosseguiu Zhou, tornou-
se impossível às autoridades norte-americanas satisfazerem ao mesmo tempo a
estabilidade interna do seu país e a estabilidade mundial. Hoje a Reserva Federal
expandiu muito a emissão monetária, o que corresponde às necessidades de
recuperação da economia norte-americana, mas isto pode depreciar o dólar, com
consequências graves no estrangeiro. Com efeito, não espanta que a China esteja
descontente com a política prosseguida pela Reserva Federal, que, ao depreciar o dólar,
desvaloriza a reserva externa chinesa, da qual 2/3 são em dólares. É necessário,
escreveu Zhou, reajustar «a obsoleta ordem económica mundial unipolar». Para isso, o
governador do banco central chinês propôs a utilização dos SDRs como moeda de
reserva mundial, o que implicaria, em primeiro lugar, uma muito grande expansão do
volume de SDRs. Basta notar que no momento da publicação daquele artigo o montante
total de SDRs equivalia apenas a 32 milhares de milhões de dólares, ou seja, menos de
2% da reserva externa chinesa. Em segundo lugar, seria indispensável ampliar o cabaz
de moedas em que o valor dos SDRs se baseia, que deveria incluir nomeadamente o
yuan. Zhou propôs também a criação de um fundo denominado em SDRs e gerido pelo
Fundo Monetário Internacional, graças ao qual as reservas em dólares pudessem ser
trocadas por SDRs, de modo que os países reduzissem as suas reservas de moeda norte-
americana sem com isso provocarem a sua depreciação.
Aquele artigo encontrou eco nos principais países emergentes. O Brasil, a Índia e a
Rússia apoiaram a proposta de Zhou Xiaochuan, e os dirigentes russos abordaram o
problema da moeda mundial na reunião do G-20 em Londres, em Abril de 2009.
Também na cimeira dos chefes de Estado dos BRICs [2] em Junho de 2009 a China, o
Brasil e a Rússia discutiram um plano para transformar em títulos do Fundo Monetário
Internacional algumas das suas reservas em moeda estrangeira. E precedendo a cimeira
anual do G-8, iniciada no mês seguinte, autoridades chinesas, russas e indianas
apelaram para o m da hegemonia do dólar no sistema monetário internacional.

A reorganização do Fundo Monetário Internacional

Uma solução como a proposta por Zhou Xiaochuan exigiria uma grande remodelação do
Fundo Monetário Internacional, modi cando-lhe a estrutura interna e os seus termos
de crédito, de maneira a torná-los menos nocivos para as economias em
desenvolvimento.

Com o prosseguimento da crise declinaram as exportações


de capital para os países emergentes, e em Janeiro de 2009 o
vice-director do Fundo Monetário Internacional, John
Lipsky, propôs a duplicação da capacidade de crédito do
Fundo para 500 milhares de milhões de dólares. O
responsável pela plani cação económica indiana, Montek
Singh Ahluwalia, considerou a sugestão demasiado modesta e Arvind Subramanian,
antigo economista do Fundo e agora membro do Peterson Institute for International
Economics, uma instituição de pesquisa, calculou que o montante deveria ser de 1 bilião
de dólares. A reunião do G-20 em Abril de 2009 procurou dar novo alento ao Fundo. A
sua capacidade de crédito foi triplicada, passando para 750 milhares de milhões de
dólares, e o Fundo, que em 2007 havia adiantado pouco mais de 1 milhar de milhões de
dólares, tinha adiantado mais de 160 milhares de milhões no terceiro trimestre de
2009. Note-se que o aumento da capacidade creditícia do Fundo não proveio só de
contribuições dos Estados Unidos e de países da União Europeia, mas igualmente dos
BRICs.

Certos tecnocratas, por exemplo Montek Singh Ahluwalia, argumentam que, se antes
do início da crise nanceira alguns países emergentes acumularam reservas originadas
pelo crescimento das suas exportações, isto se deveu em parte ao facto de pretenderem
evitar os termos de crédito que o Fundo Monetário Internacional impunha. A ser assim,
não basta aumentar a capacidade creditícia do Fundo e é imperiosa a sua remodelação
interna.

O G-20 incluiu essa remodelação na ordem de trabalhos [pauta] da sua reunião de Abril
de 2009, prometendo aumentar as quotas dos países emergentes e declarando que o
Fundo Monetário Internacional seria autorizado a emitir novos SDRs num montante
equivalente a 250 milhares de milhões de dólares. Mas como os SDRs são distribuídos
de acordo com a quota de cada país no Fundo, isto reduz a sua e cácia para as
economias emergentes e 68% dos novos SDRs seriam concedidos aos países ricos. O
problema básico do Fundo Monetário Internacional consiste em re ectir um quadro de
hegemonias que deixou de corresponder ao actual, conferindo aos Estados Unidos um
direito de veto mediante a exigência de 85% dos votos para as decisões mais
importantes e fazendo a Bélgica, por exemplo, dispor de mais votos do que o Brasil. Ora,
o G-20 não se pronunciou a respeito do sistema de votações no Fundo Monetário
Internacional, e a necessidade de rever o sistema de quotas em vigor continua a ser uma
das questões prementes, estando os BRICs a envidar esforços neste sentido. Se o que se
passou no Banco Mundial puder servir de indicação, convém saber que no primeiro
semestre de 2010 ele aumentou o poder de voto dos países emergentes de 44,6% para
47,2%, cando a China apenas abaixo dos Estados Unidos e do Japão.

A reorganização da regulação bancária

A crise nanceira mostrou também a necessidade de coordenar a transnacionalização


da economia com a manutenção dos espaços nacionais. No começo de 2009 estavam a
ser discutidas propostas para estreitar as relações entre os órgãos reguladores das
sedes dos bancos transnacionais e os órgãos reguladores das liais, ou mesmo para
criar um órgão regulador único, e esta questão constou da ordem de trabalhos da
reunião do G-20 em Abril de 2009. Dois meses depois realizou-se a primeira reunião do
Comité de Estabilidade Financeira (Financial Stability Board), uma instituição
internacional composta por dirigentes de bancos centrais e por membros de órgãos
reguladores. O Comité resultou de uma transformação operada no antigo Fórum de
Estabilidade Financeira (Financial Stability Forum), e nesta nova modalidade
converteu-se em órgão executivo do G-20, encarregado de coordenar a regulação
nanceira e — com optimismo — de evitar crises futuras.
Na mesma perspectiva, e tomando em conta que os bancos europeus, embora possam
actuar supranacionalmente, são scalizados apenas por autoridades dos países onde se
situam as sedes, o presidente da Comissão Europeia, José Manuel Barroso, anunciou em
Maio de 2009 o projecto de criação de duas instituições, o Conselho Europeu de Risco
Sistémico (European Systemic Risk Council) e o Sistema Europeu de Supervisores
Financeiros (European System of Financial Supervisors), ambos destinados à regulação
da actividade nanceira. No mês seguinte os dirigentes europeus deram mais um passo
e decidiram criar novas autoridades scalizadoras, encarregadas de vigiar as grandes
instituições nanceiras transnacionais. Ao mesmo tempo, decidiram estabelecer um
Comité Europeu de Risco Sistémico (European Systemic Risk Board), dedicado a alertar
para a iminência de riscos.

Entretanto, o Banco de Pagamentos Internacionais, o banco


dos bancos centrais, sediado em Basileia, na Suíça, tem
continuado a insistir na necessidade de regular o
funcionamento das grandes rmas nanceiras por normas
mais estritas, sistematizadas num cunjunto de regras
conhecido como Basel 3, ou seja, Basileia 3. O Banco de Pagamentos Internacionais
pretende mesmo que este aspecto é mais urgente do que a promulgação de estímulos
económicos.

Mas tudo isto é discutido e deliberado por detrás de portas bem fechadas, e mesmo as
revistas especializadas e destinadas à elite tecnocrática são parcimoniosas em notícias
sobre o assunto. Uma das facetas que caracteriza as democracias representativas é o
declínio do poder dos órgãos eleitos e a crescente in uência assumida por instâncias
muitíssimo discretas, jamais mencionadas nos meios de comunicação de massa,
integrando pessoas que oscilam entre o âmbito estatal e o âmbito privado e onde as
decisões se alcançam sempre por consenso não entre políticos pro ssionais mas entre
tecnocratas. É com este tipo de instituições que o capitalismo procederá à necessária
coordenação entre os espaços nacionais e a transnacionalização económica. Mas
conseguirá fazê-lo com su ciente rapidez?
Notas

[1] Taxa de câmbio real em que o valor médio de uma moeda é calculado em relação a
um conjunto de moedas estrangeiras, proporcionalmente ao montante relativo do
comércio do país com esses outros países.
[2] Chama-se BRICs ao conjunto formado pelo Brasil, Rússia, Índia e China. Ver a este
respeito o segundo artigo desta série.

Esta série inclui os seguintes artigos


1) O declínio dos Estados Unidos
2) A nova hegemonia
3) A China em primeiro plano
4) O problema da produtividade
5) Transnacionalização e espaços nacionais
6) A crise do neoliberalismo
7) Uma crise de regulação
8) A crise de regulação na zona do euro

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