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Favela, tráfico e homicídios1

O Tráfico de drogas e a pobreza são dois fatores rotineiramente responsabilizados


pelo grande número de homicídios nas cidades brasileiras. Vários estudos testaram a
correlação entre homicídios e pobreza – com resultados variados – mas poucos se
dedicaram à análise da relação entre tráfico de drogas e homicídio, em função de
algumas dificuldades de operacionalização de uma pesquisa deste gênero. Uma
primeira dificuldade é como mensurar o tráfico, uma vez que as estatísticas oficiais de
tráfico refletem em grande parte a atividade policial de combate ao delito e não
necessariamente a distribuição do delito em si. Uma segunda dificuldade tem a ver
com a “unidade de análise”: bairros e Distritos Policiais são unidades geográficas
demasiado agregadas, criando uma grande quantidade de áreas com zero casos de
tráfico ou homicídio, provocando perturbações nas análises estatísticas. Por exemplo,
no município de São Paulo existe uma centena de Distritos Policiais e 13 mil setores
censitários.

Neste exemplo de prática de análise criminal, estaremos expondo uma análise da


relação entre tráfico de drogas e homicídio na cidade de São Paulo. Os dados
analisados foram as denúncias confirmadas de tráfico feitas ao Disque Denúncia como
indicador de tráfico e os 1.332 subsetores da Polícia Militar na Capital como unidade
de análise, de modo a obter um número significativo de casos para estudo. “Favela”,
como entendemos, não é apenas um indicador de pobreza, uma vez que existem
outras características urbanísticas, ecológicas e sociais específicas a este tipo de
habitat, que tornam os subsetores com presença de favelas mais propensos ao
envolvimento com o crime, seja na qualidade de autores ou de vítimas. Sabe-se já que
boa parte dos homicídios ocorre no interior das favelas ou nas suas imediações, como
mostra o mapa a seguir, com buffers de 50 mts. ao redor das favelas da Capital. Dos
5.521 casos de homicídios analisados, 33,5% ocorreram no interior ou numa faixa de
50 metros de distância das favelas.

Figura 1 – Distribuição dos Homicídios Segundo Distância entre Local de


Ocorrência e as Favelas

1
Os exemplos “Prevenção de Roubos”, “Favela, Tráfico e Homicídios”, “Desordem Urbana: usando a
metodologia de policiamento orientado a solução de problemas”, “Avaliação da Eficiência de Ações:
criação de buffers” e “Letalidade Policial” foram retirados do relatório Ferramentas e Técnicas de Análise
Criminal, elaborado por Túlio Kahn, 2008.
Dos 5521 casos de homicídios analisados, 1184
(33,5%) ocorrem no interior ou numa faixa de 50
metros de distância de favelas (faixas em verde)

Nos tópicos seguintes, tentaremos avaliar o peso das variáveis “tráfico de drogas” e
“favelas” para a explicação dos homicídios, mediante diversos procedimentos
estatísticos. Os homicídios dolosos registrados no infocrim, entre 1999 e 2003, na
Capital, foram reagrupados em 5 faixas, dividindo os subsetores em blocos com maior
ou menor quantidade de homicídios. A primeira faixa agrega 341 subsetores com dois
ou menos homicídios no período e a última 251 subsetores com mais de 29
homicídios. Os subsetores foram reagrupados também segundo a quantidade de
favelas: 61% dos subsetores da Capital não contém favelas, enquanto o restante tem
uma ou mais favelas. Finalmente, os subsetores foram reclassificados, segundo a
existência ou não de denúncias de tráfico, independente da quantidade de denúncias:
32% deles tinham pelo menos uma denúncia de tráfico de drogas entre janeiro de
2003 e outubro de 2004.

Embora os mapas de denúncias de tráfico e homicídios sejam parcialmente


coincidentes, nota-se a presença de algumas áreas com tráfico mas sem homicídio e
vice-versa. A interpretação é árdua, pois há uma superposição entre áreas com
favelas, tráfico e homicídio, dificultando a apreensão do peso de cada fator
isoladamente. Conforme esperado, subsetores com poucos homicídios estão em
áreas sem tráfico ou favelas (33,8%) enquanto subsetores com muitos homicídios
estão em áreas com presença de tráfico e várias favelas (27,9%). Lendo os dados de
outra forma, apenas 2,4% dos subsetores sem tráfico ou favelas tem 29 ou mais
homicídios; em contraste, apenas 2,6% dos subsetores com tráfico e muitas favelas
tem dois ou menos homicídios.

Mapa 2 – Mapa de Denúncia de Tráfico e Homicídios


Todavia, uma análise mais qualificada evidencia que a relação entre homicídios e
tráfico de drogas é condicional: isto é, é forte e significativa nas áreas onde não
existem favelas e torna-se não significativa quando analisamos em separado as áreas
com favelas. Observando-se as médias de homicídio de acordo com a existência ou
não de tráfico, controlando pela presença de favelas: os homicídios dobram com a
presença do tráfico, nas áreas sem favelas (5,5 para 10,4). Por outro lado, o tráfico
quase não influencia a média de homicídios nas áreas com muitas favelas (41,4 para
43). Deste modo, conclui-se que a influência do tráfico é crimogênica, mas condicional,
e a presença ou não de favelas influencia muito mais a média de homicídios: 6,6 nas
áreas sem favelas, 17,7 quando há uma e 42,3 quando existem várias.

Figura 3 – Média de Homicídios por Setor Estratificados Segundo a Presença de


Tráfico e Presença de Favelas
Case Summaries

Mean
número de
Faixa de Favelas existência de homicídios
por subsetor tráfico no subsetor no subsetor
nenhuma favela subsetor sem
5,53
denúncia de tráfico
subsetor com
10,40
denúncia de tráfico
Total 6,66
uma favela subsetor sem
15,38
denúncia de tráfico
subsetor com
21,21
denúncia de tráfico
Total 17,78
várias favelas subsetor sem
41,65
denúncia de tráfico
subsetor com
43,09
denúncia de tráfico
Total 42,34
Total subsetor sem
14,18
denúncia de tráfico
subsetor com
25,55
denúncia de tráfico
Total 17,82

Os coeficientes de correlação de Pearson sugerem igualmente que a correlação dos


homicídios com tráfico é significativa na análise bivariada, porém mais fraca do que a
correlação com o número de favelas na área. A análise de regressão dos homicídios,
tendo como preditores a quantidade de favelas e a existência ou não de denúncia de
tráfico no subsetor confirma as anteriores: embora ambas as variáveis sejam
significativas, o poder de predição da variável “favelas” é bastante superior a “tráfico”.
Observe-se agora o que acontece quando rodamos a mesma regressão
separadamente para as áreas sem e com presença de favelas. Quando não existem
favelas no subsetor, a presença do tráfico é um previsor, ainda que fraco, do número
de homicídios (r = .219, F e t significativos > .000). Porém, nos subsetores onde
existem favelas, a relação entre tráfico e homicídios simplesmente desaparece (r =.
057, F e t não significativos).

Os procedimentos adotados – análise de tabelas cruzadas, comparação de médias,


coeficientes de correlação parcial e análise de regressão – parecem coincidir no
diagnóstico. Aceitando-se que as denúncias confirmadas de tráfico feitas ao Disque-
Denúncia sejam boas substitutas da dimensão “tráfico de drogas”, e que os 1332
subsetores sejam uma unidade de análise apropriada para estudar a questão, conclui-
se que a presença do tráfico num subsetor implica num aumento dos homicídios,
principalmente nas áreas sem favelas. Nos subsetores com presença de favelas,
porém, a existência do tráfico diminui acentuadamente sua influência, sugerindo que a
pobreza e o contexto social e cultural predominante neste tipo de habitat são mais
importantes que o tráfico para explicar o elevado número de homicídios.
Em termos práticos, a implicação é que a estratégia policial para a redução dos
homicídios por meio do combate ao tráfico de entorpecentes será provavelmente mais
eficaz nos 187 subsetores com denúncias de tráfico, mas sem favelas. Do ponto de
vista teórico, a análise sugere que as condições socioeconômicas explicam mais do
que o tráfico de drogas o elevado número de homicídios em São Paulo, sugerindo que
a solução para o problema deve passar também por políticas sociais e urbanísticas,
mais do que por ações policiais.

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