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ISSN 1981-1225

Dossiê Foucault
N. 3 – dezembro 2006/março 2007
Organização: Margareth Rago & Adilton Luís Martins

A escrita do sujeito no livro-experiência de


Foucault∗

Subject writing in Foucault’s experience-book

Osvaldo Fontes Filho


Professor de Filosofia – PUC/SP
Pós-doutorando, com subvenção CNPq,
junto ao IBILCE-UNESP/São José do Rio Preto
Correio eletrônico: osvaldofontes@itelefonica.com.br

Resumo: Foucault sugere abertamente que suas análises historiográficas, ao


implicarem numa “relação difícil com a verdade”, não seriam mais que ficções. A
afirmação se baseia num aspecto até o presente momento subestimado de sua obra: o
livro-experiência. Um livro-experiência é definido pelo uso da ficção na prática de
crítica com efeitos de des-subjetivação. Este estudo propõe uma breve incursão pelo
envolvimento foucaultiano com a escrita de modo a avaliá-la a partir do embate entre
as normas da história e as representações do sujeito. Para tanto, as experiências
transgressivas de certa literatura são consideradas como fontes do conceito
foucaultiano de livro-experiência. O objetivo é obter uma perspectiva da crítica de
Foucault onde figuras de intransitividade prestam-se a atenuar o ceticismo
epistemológico da afirmação de que sua historiografia seria ficcional.

Palavras-chave: Foucault – sujeito – livro-experiência.

Abstract: Foucault notoriously suggests that his historical analysis, implicating a


“difficult relation to truth”, are merely fictions. Foucault's claim is based on a hitherto
undervaluated aspect of his work: the experience-book. An experience-book is defined


Versão resumida deste texto foi apresentada no III Colóquio franco-brasileiro de filosofia da educação.
Foucault 80 anos, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em 11 de outubro de 2006.

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Osvaldo Fontes Filho
A escrita do sujeito no “livro-experiência” de Foucault

as a use of fiction in the practice of critique with desubjectifying effects. This essay
proposes a short account of Foucault's concept of writing in order to evaluated his
work through relation between norms of history and self representation. For that,
transgressive experiences on litterature are taken as sources of Foucault's concept of
the experience-book. The goal here is to provide a perspective on Foucault's critique
where intransitiveness figures add to mitigate the epistemological skepticism of the
claim that his historiography would be fictional.

Key words: Foucault – subject – experience-book.

cachalot qui saute par-dessus la surface de l´eau, en y


laissant une petite trace provisoire d´écume, et qui laisse
croire [...] qu´en-dessous [...] il suit une trajectoire
profonde, cohérente et réfléchie.
M. Foucault. Il faut défendre la société

Recente estudo sobre Michel Foucault chamou a atenção para duas


tensões “que percorrem efetivamente [sua] obra e a fazem viver”: as
normas da história; e as posições do sujeito (Potte-Boneville, 2004: 8).
No que concerne às normas históricas, a perspectiva de arquivista voraz
que é a de Foucault — pensador das redes, das ordens, das totalizações
e dos quadros — mostra-se invariavelmente exorbitada pelos objetos de
estudo que acolhe (a loucura, a doença, o crime, etc.): esses objetos
“suscitam a título de problema central descontinuidades, falhas, enfim,
elementos de negatividade que, tornando saber e discurso inadequados
a seus próprios princípios, formam tantas beâncias perigosas” (2004:
9). A segunda “tensão”, concernente à subjetividade, deixa igualmente
transparecer uma relação contrastada no interior da obra foucaultiana.
Por um lado, um questionamento do primado do Sujeito, essa instância

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teleológica insistente nas ciências e nas práticas da modernidade. Por


outro lado, um empenho em fazer comparecer ao longo dos textos
certas “subjetividades-limite”, por assim dizer, capazes de relativizar a
filosofia das regras anônimas e de “fazer oscilar o conjunto do texto
para o lado do problemático” (2004: 79). Ao assim dispor os registros
da “norma” e do “sujeito”, enunciando ademais as questões suscitadas
naturalmente por suas tensões — “Quais os limites, numa
normatividade que de modo algum as supõe? Que sujeitos, numa
filosofia que, aparentemente, as recusa?” —, Potte-Bonneville permite
destacar o que, por detrás da continuidade discursiva, trabalha com o
diagnóstico mais que com a análise. Razão porque, atento ao que se
inquieta entre as normas da história e a posição do sujeito em relação a
elas, faço minhas abaixo algumas de suas perspectivas no comentário
do duplo envolvimento de Foucault com a experiência da escrita e com a
escrita da experiência.

Recordem-se os termos de Foucault, em 1966, para a moderna


experiência da linguagem:

nos deparamos com uma hiância que por muito tempo permaneceu
invisível para nós: o ser da linguagem só aparece para si mesmo com
o desaparecimento do sujeito (Foucault, 2001a: 222).

Três anos antes, Foucault localizara em Georges Bataille (1897-


1962) uma “experiência nua da linguagem”, através da qual
modernamente fraqueja a evidência do “Eu sou”. Numa verdadeira

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A escrita do sujeito no “livro-experiência” de Foucault

inversão copernicana do movimento que sustentou desde sempre a


sabedoria ocidental — na sua promessa da unidade serena de uma
subjetividade triunfante —, o sujeito batailliano passeia, “sem outro fim
que o esgotamento”, pelo “vazio desmesurado” deixado pelo filósofo em
perda de função gramatical, apropriando-se de uma experiência de
expressão na qual, “em vez de se exprimir, se expõe, vai ao encontro de
sua finitude e sob cada palavra vê-se remetido à sua própria morte”
(Foucault, 2001: 46). Esse sujeito exposto a uma “pulsão de morte”
evidencia uma trajetória de desmedida, de transgressão de limites, de
conseqüente esgotamento de antigas soberanias, sobretudo no que diz
respeito à linguagem. De fato, a se crer em Foucault,

a linguagem de Bataille desmorona-se sem cessar no centro de seu


próprio espaço, deixando a nu, na inércia do êxtase, o sujeito
insistente e visível que tentou sustentá-la com dificuldade, e se vê
como que rejeitado por ela, esgotado sobre a areia do que ele não
pode mais dizer (Foucault, 2001: 36).

Assim, em contraposição aos que se esforçam por manter a unidade


da função gramatical do filósofo, Foucault evoca o “exemplar
empreendimento” no escritor de uma obstinada destruição da soberania
do sujeito filosofante. Na exuberância de sua escrita, ele registra:
“esquartejamento primeiro e refletido daquele que fala na linguagem
filosófica. Dispersão de estrelas que circundam uma noite mediana para
aí deixar nascer palavras sem voz” (Foucault, 2001: 39).
Mais de uma vez, Foucault diz-se devedor em sua formação desse
esquartejado afásico, cujo “suplício” identifica a uma experiência-limite.
Experiência de máxima intensidade — e de máxima impossibilidade —
porque transgressão de toda subjetividade coerente, porque ruína da

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possibilidade mesma da existência em sua produtividade (de sentidos e


de ações).
Ora, não parece isento de paradoxo o fato de Foucault reivindicar
para si uma filiação ligada a tal “impossibilidade” (da palavra e do
sujeito), no momento mesmo em que apresenta seu percurso intelectual
como dotado de “certo valor, certo caráter acessível aos outros”
(Foucault, 1994: 46). Na entrevista de 1978 ao jornalista italiano Duccio
Trombadori, em fala de alguma tensão, Foucault parece mesmo entrar
em contradição. Seus livros, afirma, evitam todo caráter prescritivo;
contudo, por serem escritos de “experimentador” mais que de teórico,
possuem propriedade transformadora, com o que são suscetíveis de se
ligarem a uma “prática coletiva” (1994: 42, 46). A reivindicação de um
livro-experiência recebe aqui a chancela dos nomes de Bataille,
Nietzsche, Blanchot, Klossowski, autores que convidam a contornar as
“grandes maquinárias filosóficas” do saber institucional (hegelianismo,
fenomenologia, dentre outras) de modo a comunicar “uma experiência
pessoal”. Ora, Archéologie du savoir dera a impressão que Foucault
tomava suas distâncias quanto a relações positivas para com a
experiência testemunhada em Histoire de la folie: uma experiência que,
esclarecia então Foucault, era aquela de um “sujeito anônimo e geral da
história” (Foucault, 1969: 27). Porém, nove anos mais tarde, ele fala de
seus livros como experiências das quais o autor emerge transformado.
“Escrevo para mudar a mim mesmo e não mais pensar a mesma coisa”
(Foucault, 1994: 52). Mais que construção de um sistema ou a
demonstração de uma tese, seus livros seriam auto-explorações
experimentais passíveis de serem compartilhadas por seus leitores.

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Osvaldo Fontes Filho
A escrita do sujeito no “livro-experiência” de Foucault

Em O uso dos prazeres, ao comentar seu modo de se conduzir na


“empreitada de uma história da verdade”, Foucault fala em termos de
exercício ou ascese, de um movimento de separação do filósofo em
relação a si mesmo: experiência transformadora do modo de ver os
valores e sua história. A obstinação do saber não assegura tanto a
aquisição dos conhecimentos quanto o descaminho daquele que
conhece.

O motivo que me impulsionou foi muito simples [...] É a curiosidade


— em todo caso, a única espécie de curiosidade que vale a pena ser
praticada com um pouco de obstinação: não aquela que procura
assimilar o que convém conhecer, mas a que permite separar-se de
si mesmo. De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse
apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e
tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem
momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar
diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que
se vê, é indispensável para se continuar a olhar ou a refletir [...]. O
‘ensaio’ — que é necessário entender como experiência modificadora
do si no jogo da verdade, e não como apropriação simplificadora de
outrem para fins de comunicação — é o corpo vivo da filosofia, se,
pelo menos, ela for ainda hoje o que era outrora, ou seja, uma
‘ascese’, um exercício de si, no pensamento (Foucault, 1984: 13).

Não por acaso, quando solicitado a precisar sua acepção de


experiência, Foucault distingue-a daquela dos fenomenólogos:

“A experiência do fenomenólogo é, no fundo, certo modo de lançar


um olhar reflexivo sobre um objeto qualquer do vivido, sobre o
cotidiano na sua forma transitória para apreender-lhe as
significações. Para Nietzsche, Bataille, Blanchot, ao contrário, a
experiência é a procura por chegar a certo ponto da vida o mais
próximo possível do invivível. O que é requerido é o máximo de
intensidade e, ao mesmo tempo, o máximo de impossibilidade”
(Foucault, 1994: 43).

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Portanto, um passo em falso dá a filosofia ao procurar pela


significação da experiência empírica na figura de um Sujeito e suas
funções (de expressão e de sentido) transcendentais. Há autores para
os quais a experiência da escrita (por vezes a escrita da experiência)
permite diferentemente “arrancar o sujeito a si mesmo, fazer de modo
que não seja mais ele mesmo ou que seja levado a seu aniquilamento
ou a sua dissolução”1 (Foucault, 1994: 43). Assim, ao apregoar
literalmente “uma empresa de des-subjetivação”, Foucault admite:

A idéia de uma experiência-limite, que arranca o sujeito a si próprio,


eis o que foi importante para mim na leitura de Nietzsche, de
Bataille, de Blanchot, e que fez com que, por mais tediosos ou
eruditos que fossem meus livros, sempre os tivesse concebido como
experiências diretas visando me arrancar a mim mesmo, me impedir
de ser o mesmo (Foucault, 1994: 43).

Autodissolução que a escrita põe à disposição de outrem?


Metamorfose pessoal passível de conformar “uma prática coletiva, um
modo de pensar”? Ainda que evite o discurso que prescreve, o “livro-
experiência” de Foucault, em oposição ao “livro-verdade” e ao “livro-
demonstração”, dá-se a prerrogativa de fomentar a mutação do homem
contemporâneo em relação à idéia que tem de si mesmo (Foucault,
1994: 46, 47)2. Como se pensar “contra” as normas de seu tempo

1
A fenomenologia e sua derivação existencialista constituem para Foucault uma filosofia estéril; o que não
impede que elas próprias convidem a sua reformulação. Em Les mots et les choses, tal se explicita através
de significativa interrogação: “Que devo ser eu, eu que penso e que sou o meu pensamento, para ser o que
eu não penso, para que meu pensamento seja o que eu não sou?” (Foucault, 1966: 335-336). Para o papel
da fenomenologia na formação intelectual de Foucault, veja-se G. Lebrun (1989: 33-61).
2
Em 1970, ao falar de Genet, Foucault se diz “profundamente convencido da importância estratégica e tática
de um texto” (Foucault, 1994a: 117). O trabalho de escrita, quando não é somente um simulacro, possibilita
tanto a determinação ética de uma relação para consigo quanto a subversão política da sociedade. Resta,
porém, ressalva Foucault, indagar se essa fundação de si e do outro não se deixa restituir pela economia dos
sentidos e do trabalho. Em Bataille, Foucault encontra (à semelhança de Genet) o sujeito como uma síntese
impossível e uma capacidade de transgressão da literatura em uníssono com uma experiência do limite nos
atos individuais.

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A escrita do sujeito no “livro-experiência” de Foucault

requeresse, constata Trombadori, “o equilíbrio entre forças da


demonstração e capacidade de remeter a uma experiência que conduz a
uma mutação dos horizontes culturais entre os quais jogamos e vivemos
nosso presente” (1994: 44).
Histoire de la folie é, nesse tocante, exemplar: trata-se de “um
livro de pura história” mas que, ao funcionar como uma experiência, vai
além da mera “constatação de uma verdade histórica” (Foucault, 1994:
45). Foucault não diz mais. Sabemos, porém que os fatos históricos não
são ali retidos por uma narrativa homogênea, mas, antes, têm
acentuado seu efeito disjuntivo, modo de retê-los junto à experiência
presente como “abalos surdos” — expressão mesma de Foucault — que
a atravessam e, ao mesmo tempo, a inquietam. Enfim, há ali uma
refinada atenção aos “restos das normas”, restos inassimiláveis de
“normalidade” que constituem ao mesmo tempo seu limite e a ocasião
de uma “tomada de recuo” por parte do sujeito em relação ao campo de
historicidade de que faz parte (Potte-Boneville, 2004: 114, 254).
Histoire de la folie, admita-se, é bem isso: ela que se apresenta como
uma história da “própria loucura, em sua vivacidade” — anteriormente
às instituições que a traduzem em objeto para a psiquiatria,
anteriormente à “toda captura pelo saber” —, não é mais que uma
“idéia marginal advinda à expressão”, um esboço de uma “história dos
limites — daqueles gestos obscuros, necessariamente esquecidos assim
que se cumprem, pelos quais uma cultura rejeita algo que será para ela
o Exterior” (apud Blanchot, 1969: 292). A partir do que, sugere
Blanchot, se perguntar como a literatura e a arte poderiam acolher as
experiências-limite (da loucura e da desrazão) e, assim, “preparar, para
além da cultura, uma relação com o que rejeita a cultura: palavra dos
confins, fora da escrita” (1969: 292).

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A narrativa do que vem à margem — do que escapa,


eventualidade, à sistematicidade do saber discursivo —, que Derrida
(1967: 56) chancelou com o signo da impossibilidade — “escrever uma
história da própria loucura [...], isto é, dando-lhe a palavra”; “escapar
[assim] à armadilha ou à ingenuidade objetivistas [...] da razão
clássica” —, não esconde o fato de se situar no prolongamento da
empresa heterológica do autor de L’Expérience intérieure. Mesmo
porque Foucault sabe que a experiência-limite de Bataille — um dos
autores, revela, que lhe permitiram escapar das imposições de sua
formação universitária — não é algo que se limite a especulações. Ele
sabe, ainda, que a necessidade de escrevê-la — ela que é “afirmação
intransitiva de nada” — deslegitima qualquer rentabilidade nocional que
possa ter junto a uma linguagem feita de proposições onde não mais
intervêm identidades ou uma subjetividade coerente. Foucault entende
que a linguagem não se presta a uma redenção. Muito menos a
linguagem filosófica, “aquela em que se repete incansavelmente o
suplício do filósofo e onde se vê lançada ao vento sua subjetividade”
(Foucault, 2001: 39).
Bataille, em particular, reporta tal deriva do sujeito à questão dos
limites (e, portanto, da soberania) da escrita:

a linguagem não é adequada [à expressão de soberania], a


linguagem não pode exprimir, por exemplo, uma coisa extremamente
simples, a saber, a noção de um bem que seria um gasto a se
constituir em uma perda pura e simples [...]. A linguagem fracassa
em exprimir essa idéia porque é feita de proposições que fazem
intervir identidades; e, a partir do momento em que, por força da
soma demasiada a ser despendida, é obrigada a não mais despender

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A escrita do sujeito no “livro-experiência” de Foucault

para o ganho, mas despender por despender; ela não mais pode se
manter no plano da identidade (apud Pierre, 1987: 47)3.

Princípio econômico incontornável, intuição fundamental de toda a


reflexão batailliana, um dispêndio sem reserva (sucedâneo de toda
rentabilidade positivista) não se dá à sua expressão sem um
correspondente dispêndio da linguagem. A impossibilidade de exprimir
uma “soma demasiada a ser despendida”, ou de desenvolvê-la
discursivamente, exaspera uma escrita que, por entre imagens de
denegação da figura do sujeito, entende trucar toda síntese, eludir toda
monologia do saber. Donde o heteroclitismo de uma escrita da
experiência-limite, a pluralidade de sua não-verdade, como se por ela o
um do saber fosse continuamente levado à sua desvalorização, na
medida em que, nessa “idade dos comentários” que ora se vive, à
filosofia resta ser “deserto múltiplo”, recuperação da palavra “nas
bordas dos seus limites” (Foucault, 2001: 37).
Foucault fala, a respeito, de espoliação, de multiplicação e de
dispersão da subjetividade (filosófica) no espaço de sua linguagem
lacunar: “uma das estruturas fundamentais do pensamento
contemporâneo” (Foucault, 2001: 38). Ausência dispersa num vazio! O
diagnóstico é admirável em sua radicalidade4. Concretamente, já se

3
Em sua leitura da negatividade da experiência batailliana, Blanchot comenta: permanece no homem que
constrói o mundo “une part de mourir qui ne peut investir dans l´activité [...]; alors il lui faut répondre à
une autre exigence, celle non plus de produire, mais de dépenser, non plus de réussir, mais d´échouer, non
plus de faire oeuvre et de parler utilement, mais de parler vainement et de se désoeuvrer, exigence dont la
limite est donnée dans ‘l´expérience intérieur’” (Blanchot, 1969: 305-306).
4
Em seu Raymond Roussel, Foucault alude a “uma experiência que aflora em nossos dias, nos ensinando
que não é o ‘sentido’ que falta, mas os signos que somente significam através dessa falta” (apud Blanchot,
1969: 493). Roussel, Bataille, Artaud, Flaubert: haveria um vazio do Sentido que a palavra literária moderna
encarregar-se-ia de freqüentar como possibilidade de se exercer em seu perpétuo efeito de carência. Não
por acaso Histoire de la folie freqüenta continuamente os literatos. A loucura, afirma Foucault (1972: 261),
“preenche de imagens o vazio do erro, e liga os fantasmas pela afirmação do falso”. Contudo, retorque logo
em seguida, “essa plenitude é, em verdade, o cúmulo do vazio”. A inscrição desse cúmulo num discurso de
exaustiva documentação historiográfica como aquele de Histoire de la folie sugere que a evocação de
subjetividades de desrazão — aquelas dos “escritores loucos” (Artaud, Hölderlin e Nietzsche, entre outros)
presta-se a balouçar o discurso para o lado da questão dos limites (entre fantasma e lucidez, necessidade e
ilusão). Artaud — loucura que é “ausência de obra”, seu vazio central (Foucault, 1972: 555) — é exemplar

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disse, tratar-se-ia para Foucault do fim de uma forma clássica de


soberania: o sujeito filosófico, ser-em-si, mestre das linguagens
protocolares de identificação5. Bem como se trataria da situação singular
de sua linguagem: textura em dilaceração. O Eu, outrora garantia de um
ponto de fuga numa clássica conscrição do mundo, arrisca ali derivar
para o vazio a que o texto doravante aspira — “o saber em último grau
deixa diante do vazio” (Bataille, 1973: 333). A escrita soberana é
impeditiva de todo gesto que venha depositá-la numa marca
(assinatura), desinteressada de seguir um roteiro, uma continuidade.
Em outras palavras, é poligrafia que evita a escrevença do
especialista — para usar os termos de Barthes —, pois que às distinções
estatutárias e estabilizáveis de uma cronologia, de uma história, de uma
teleologia, ela contrapõe a mistura dos saberes, o despedaçamento dos
códigos, com a conseqüente dispersão das identidades (Barthes, 1988:
251, 253).
Compactuar com as descontinuidades de tal poligrafia, disse-se,
significa arriscar o paradoxo. A experiência de Foucault, ele próprio
assume, dá-se nos estertores de um discurso existencial desenvolvido
nos domínios da inteligibilidade do real. A experiência-limite,
freqüentada pelos discursos da desrazão tais como aquele de Bataille, é

de autoria nas fronteiras de uma normatividade imanente, o que para Foucault define “a condição mesma
da crítica” (Potte-Boneville, 2004: 86). Assim, o literato concorre à seguinte perspectiva, que o filósofo-
historiador denota: “la folie est apparue, non pas comme la ruse d’une signification cachée, mais comme une
prodigieuse réserve de sens. Encore faut-il entendre comme il convient ce mot de ‘réserve’: beaucoup plus
que d’une provision, il s’agit d’une figure qui retient et suspend le sens, aménage un vide où n’est proposée
que la possibilite encore inaccomplie que tel sens vienne s’y loger, ou tel autre, ou encore une troisième et
ceci à l’infini peut-être. La folie ouvre une rpeserve lacunaire qui designe et fait voir ce creux où langue et
parole s’impliquent, se forment l’une à partir de l’autre et ne disent rien d’autre que leur rapport encore
muet”(Foucault, 1972: 579)
5
Assim, lê-se, relativamente a Bataille: “[...] é no centro dessa desaparição do sujeito filosofante que a
linguagem [...] avança como num labirinto, não para reencontrá-lo, mas para experimentar (através da
própria linguagem) a perda dele até o limite, ou seja, até aquela abertura onde seu ser surgiu, mas já
perdido, inteiramente espalhado fora de si mesmo, esvaziado de si até o vazio absoluto — abertura que é a
comunicação” (Foucault, 2001: 39).

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A escrita do sujeito no “livro-experiência” de Foucault

“convite para questionar a categoria do sujeito, sua supremacia, sua


função fundadora”. Conta mesmo Foucault que, no contra-fluxo da
episteme universitária e de seu modelo hegeliano de inteligibilidade
contínua da história, assumia “valor essencial” para sua geração o tema
das experiências-limite “pelas quais o sujeito sai de si mesmo, se
decompõe como sujeito, no limite de sua própria impossibilidade”
(Foucault, 1994: 48, 49). Contudo, em face a essa apologia de uma
experiência desimpedida de fechamentos conceituais, é mister
constatar: Foucault articula a um só tempo uma acepção ativa — a
experiência como “dever de arrancar o sujeito a si mesmo” — e uma
acepção reativa — a experiência como reconstrução post facto. Histoire
de la folie é “um livro que funciona como uma experiência” porque
propõe a transformação da relação (histórica, teórica, moral, ética) que
se tem com a loucura.
Para tanto, Foucault desdenha a verdade acadêmica, historicamente
verificável. Mas, se ele não responde a solicitações dos tempos
presentes exatamente como um romance, a experiência que propõe não
deixa de ser uma ficção: “algo que se fabrica a si mesmo, que não
existe anteriormente e que passa então a existir” (1994: 45). O que
impõe, admite Foucault, uma relação difícil com a verdade, que se
engaja numa experiência não ligada a ela e que, de certo modo, a
destrói6. Embora substitua todo um “background teórico contínuo e

6
O saber como ficção interpretativa remete inequivocamente a Nietzsche. O sentido precede e predetermina
o fato, o valor precede e predetermina o saber. Donde se ler: “Não existe fato em si. O que acontece é um
grupo de fenômenos escolhidos e agrupados por um ser que os interpreta... Não existe estado de fato em si;
é preciso, ao contrário, introduzir o sentido antes mesmo que possa haver um fato” (apud Barthes, 1988:
253). Sobre ficção nos fala Foucault em algumas oportunidades, sempre consciente da necessidade de
retirá-la às flexões da linguagem subjetiva de modo a mantê-la produtiva junto à filosofia, junto às
experiências-limites da razão, do sonho, da vigília, experiências que ele entende pertencentes ao espaço do
pensamento (Foucault, 2001b: 125). Daí se perguntar, em outro momento: “e se essas experiências [...]
pudessem ser mantidas onde estão, em sua superfície sem profundidade, nesse volume impreciso de onde
elas nos vêm, vibrando em torno do seu núcleo indeterminável, sobre seu solo que é uma ausência de solo?
E se o sonho, a loucura, a noite não marcassem o posicionamento de nenhum limiar solene, mas traçassem
e apagassem incessantemente os limites que a vigília e o discurso transpõem, quando eles vêm até nós e

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sistemático”, a “experiência direta, pessoal” que origina a escrita


foucaultiana é, ao mesmo tempo, algo de que se escreve a posteriori.
A necessidade dessa escrita, Foucault reconhece, excede o sujeito
de experiência; ela é requerida por sua comunicação:

Uma experiência é algo que se faz completamente só, mas que


somente se pode fazer plenamente na medida em que escapa à pura
subjetividade e em que outros possam, não digo retomá-la
exatamente, mas ao menos cruzá-la e reatravessá-la (Foucault, 1994:
47).

À semelhança, diga-se, do transcorrido com a recepção de Vigiar e


Punir: fruto do trabalho direto junto ao universo carcerário, a obra fora
aclamada pelos profissionais da vigilância e da assistência social como o
demonstrativo da urgência por modificações nas práticas vigentes
(Foucault, 1994: 47).
Insista-se, porém no caráter paradoxal do conceito foucaultiano de
experiência: a um tempo ação de autodilaceração e ficção retrospectiva;
escrita que a põe à disposição e à apropriação de outrem, de toda uma
época. Sob um de seus aspectos, sua definição prescinde da
subjetividade, implica mesmo sua abolição a termo, enquanto que sob o
outro aspecto ela supõe algo como uma personalidade suficientemente
forte para impor à experiência uma espécie de validade crítica, cuja
coerência lhe permite ser partilhada. Ao falar de experiência-limite
Foucault parece, pois, emitir uma contraditória mescla de auto-
expansão e de autodissolução, de espontaneidade imediata e de

nos chegam já desdobrados ? Se o fictício fosse, justamente, não o mais além, nem o segredo íntimo do
cotidiano, mas esse trajeto de flecha que nos salta aos olhos e nos oferece tudo o que aparece? Então, o
fictício seria também o que nomeia as coisas, fá-las falar e oferece na linguagem seu ser já dividido pelo
soberano poder das palavras” (2001c: 68).

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A escrita do sujeito no “livro-experiência” de Foucault

retrospecção ficcional, de interioridade pessoal e de interação


comunitária (Jay, 1995: 42).
A perspectiva, entende-se, permite precisa deriva: uma
ficcionalização retrospectiva a impor uma coerência, por vezes uma
sublimação, ao irredutível caos das experiências-limite. É o caso,
evocado por Martin Jay, da comentada biografia de Foucault proposta
em 1993 por James Miller. Ali, do filósofo ao ativista, do revolucionário
ao conservador, do contraventor sexual ao arquivista universitário, toda
a dispersão do sujeito ao longo do tempo é passível de reunificação em
torno de uma experiência substancializada, reconstrução post facto.

No fim das contas, [escreve Miller], fui levado a consignar para


Foucault um eu constante e intencional, localizado num mesmo corpo
durante toda a duração de sua vida mortal, que deu conta de suas
ações e atitudes para com os outros assim como para consigo
mesmo de modo mais ou menos contínuo, e que concebeu sua vida
sobre o modelo de uma procura estruturada teleologicamente (Miller,
1993: 7).

Por sua vez, Jay lamenta como tal sublimação da negatividade da


experiência-limite, em uma narrativa teleológica do “eu constante e
intencional”, menospreza sua dimensão de impessoalidade, ela que é
transição entre códigos díspares, em nada afeita a uma “bela totalidade
orgânica e estética” (Jay, 1995: 46-47). O próprio Foucault, na
entrevista a Trombadori, detalha as indiferenças e os conflitos
alimentados por sua proposta de abordagem de “algo que se situava nos
confins da sociedade, uma espécie de margem” (Foucault, 1994: 59).
De todo modo, ainda que se saiba como toda filiação em Foucault
tende a ceder terreno à figura da dispersão dos tempos, senão ao
“braconnage” refletido, cumpriria esclarecer melhor sua reivindicada

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dívida para com a experiência batailliana. Tanto mais que se sabe como
esta se caracteriza por uma impossibilidade/improdutividade — ela que
é “sem valor, sem suficiência” (Blanchot, 1969: 308) —, bem como por
uma incontornável incomunicabilidade. Aquele que afirma escrever
livros “que funcionam como uma experiência” teria de fato considerado
o que permanece inacessível aos saberes no motivo da experiência-
limite? O que nele permite discernir, nas palavras de Blanchot (1969:
308), “aquele excedente, aquele acréscimo, excedente de vazio,
acréscimo de ‘negatividade’ que é em nós o coração infinito da paixão
do pensamento”?7. O programa foucaultiano por excelência, qual seja, a
“problematização da vida, da linguagem e do trabalho em práticas
discursivas que obedeçam a certas regras ‘epistêmicas’”, resistiria à
“palavra sem voz” imposta pela experiência-limite?
A fim de melhor avaliar a filiação batailliana de Foucault, importaria,
sobretudo considerar como Bataille subverte toda leitura de uma
experiência positiva, pessoal, individual, interiorizada. Como observa
Derrida, em seu clássico ensaio:

O que se indica como experiência interior não é uma experiência,


pois que ela não se refere a nenhuma presença, a nenhuma
plenitude, mas somente ao impossível que ‘experimenta no suplício’.
Essa experiência, sobretudo, não é interior: se ela parece sê-lo por
não se reportar a mais nada, a nenhum fora, se não no modo da
não-relação, do segredo e da ruptura, ela é totalmente exposta — ao
suplício —, nua, aberta para o fora, sem reserva, nem foro interior,
profundamente superficial (Derrida, 1967: 400).

7
A experiência-limite pode ser dita “uma última reviravolta dialética”. A respeito, ainda em Blanchot, lê-se:
“l´expérience-limite répresente pour la pensée comme une nouvelle origine. Ce qu´elle lui donne, c´est le
don essentiel, la prodigalité de l´affirmation, une affirmation qui, pour la première fois, n´est pas un produit
et, ainsi, échappe à tous les mouvements, oppositions et renversements de la raison dialectique, laquelle ,
s´étant achevée avant elle, ne peut plus lui réserver un rôle dans son règne. Evénement difficile à
circonscrire” (Blanchot, 1969: 310).

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Osvaldo Fontes Filho
A escrita do sujeito no “livro-experiência” de Foucault

Está claro como tal perspectiva é infensa a toda totalização do Eu,


ou a sua pacificação com o mundo. Como tal, ela dá as costas para as
consolações da filosofia8, em particular para o programa hegeliano de
conhecimento absoluto como “extensão última da experiência interior”.
“Essa fenomenologia, escreve Bataille, dá ao conhecimento o valor de
um fim ao qual se chega pela experiência. É uma aliança claudicante: a
parte deixada à experiência é aqui a um tempo demasiada e
insuficiente” (Bataille, 1954: 20). O que não significa, lembra Jay (1995:
50), tomar a experiência interior simplesmente como o termo oposto da
razão positiva. Na verdade, ela não tem como (nem porque) se
reconciliar com o saber: ao transparecer numa heterologia, é seu outro,
seu estado alterado, estado de não-verdade — à espera, dir-se-ia, da
altercação com as verdades oficiais. A experiência batailliana
reivindicaria, ainda, uma subjetividade do não-sujeito, em natural
altercação com o sujeito da interpretação. Poder-se-ia, a respeito,
evocar Nietzsche, como o faz Barthes:

Não se tem direito de perguntar quem afinal interpreta? É a própria


interpretação, forma da vontade de poder, que existe (não como um
‘ser’, mas como um processo, um devir) enquanto paixão...;
“Não há sujeito, mas uma atividade, uma invenção criadora, nem
‘causas’ nem ‘efeitos’ ” (apud Barthes, 1988: 257)9.

Contrapondo-se à experiência existencial — à teoria do sujeito —, o


discurso nietzschiano sobre a história da verdade tende em Foucault a
encontrar o contra-discurso batailliano dos limites. Visando o termo
8
Donde se ler, ainda, em Blanchot (1969 : 302): “L´expérience-limite est la réponse que rencontre
l´homme, lorsqu´il a décidé de se mettre radicalement en question. Cette décision qui compromet tout
l´être exprime l´impossibilité de s´arrêter jamais, à quelque consolations ou à quelque vérité que ce soit, ni
aux intêrets ou résultats de l´action, ni aux certitudes du savoir et de la croyance [...] Cependant, voyons
que cette passion de la pensée négative ne se confond pas avec le céticisme ni même avec les mouvements
du doute méthodique.Elle n´humilie pas celui que la porte, ne le frappe pas d´impuissance, ne le juge pas
incapable d´accomplissement. Au contraire [...]”.
9
Donde Blanchot poder afirmar: “Nunca o eu foi o sujeito da experiência” (1969: 311).

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“saber” como “um processo pelo qual o sujeito padece de uma


modificação pelo fato mesmo de conhecer, ou melhor, quando do
trabalho que efetua para conhecer” (Foucault, 1994: 57), o livro-
experiência pode retomar (sem re-normatizá-los) os lugares-limítrofes
da loucura, da morte, do crime numa história coletiva do Ocidente e de
seu saber. Mas cumpriria indagar, uma vez mais: ao substituir,
nietzschianamente, a história da racionalidade por uma história da
própria verdade — como gênese recíproca do sujeito e do objeto, do
homem arrazoador da loucura e da própria loucura —, conseguiria
Foucault se resgatar da impropriedade de formular a experiência em
termos positivos?
Fato é que a experiência interior de Bataille marca uma relação
paradoxal com o fundamento do sujeito:

Do fato mesmo que ela é negação de outros valores, de outras


autoridades, a experiência, tendo a existência positiva, torna-se ela
própria o valor positivo e a autoridade (Bataille, 1954: 20).

Contudo, logo em seguida, o próprio Bataille precisa prontamente:

O paradoxo na autoridade da experiência: fundada no


questionamento, ela é questionamento da autoridade;
questionamento positivo, autoridade do homem se definindo como
questionamento de si próprio (Bataille, 1954: 20).

Se a experiência pode ser sua própria autoridade, não se apoiando


sobre nenhum critério exterior, ela não é menos uma autoridade que
não cessa de transgredir a si própria. Razão porque para dela falar
Bataille convoca o princípio de contestação de Blanchot, afirmação

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A escrita do sujeito no “livro-experiência” de Foucault

intransitiva de nada, que seduz igualmente Foucault em sua vontade de


transgredir os “discursos sérios”. Este observa, então:

Nada é negativo na transgressão [...] Mas pode-se dizer que essa


afirmação não tem nada de positivo: nenhum conteúdo pode uni-la,
pois que, por definição, nenhum limite pode retê-la [...] Essa filosofia
da afirmação não-positiva, isto é, da prova do limite, é ela, creio, que
Blanchot definia pelo princípio de contestação. Não se trata ali de
uma negação generalizada, mas de uma afirmação que nada afirma:
em plena ruptura de transitividade [...] (Foucault, 2001: 34).

Assim se desenha uma figura de experiência irredutível a todo


amortecimento do gasto absoluto, a todo esgotamento do sem-fundo do
sentido (Derrida, 1968: 378). Uma “afirmação não-positiva” é uma
“afirmação que nada afirma”. De modo que a representação ficcional
transformadora proposta pelo livro-experiência foucaultiano não se
incumbe de re-presentar o real segundo uma fraseologia da verdade,
como a determinação normativa (positivista) das regularidades de uma
época. Nesse tocante, é útil lembrar como em sua empresa arqueológica
Foucault convoca constantemente a noção de “descontinuidade”: pois
que se trata de escrever as ressonâncias por ruptura entre passado e
presente (Potte-Boneville, 2004: 277). A “ficção” foucaultiana somente
pode afirmar algo que diz tudo e seu contrário. Como se o que se oculta
institucionalmente se deixasse desvelar aos parceiros de uma
contemporaneidade contestatária de sua normatividade imanente10.
Afinal, é o que permite entender a experiência-limite batailliana:

[que] o pensamento pensa aquilo que não se deixa pensar! [que] o


pensamento pensa mais do que pode pensar, numa afirmação que

10
Em outras palavras, apoiadas em Lebrun: o que “a ficção” desvela, ela o faz na ruptura das exegeses, das
investigações constitutivas e das dialéticas da “finitude boazinha e sem surpresas”, na explosão do Sujeito
“em mil estilhaços” (Lebrun, 1985: 23).

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afirma mais do que pode se afirmar! Esse mais é a experiência, que


somente afirma pelo excesso da afirmação e, nesse excedente,
afirma sem nada que se afirme, finalmente nada afirmando.
Afirmação onde tudo escapa e onde ela mesma escapa, escapa à
unidade (Blanchot, 1969: 310).

A experiência-limite, ao implicar uma ruptura da interioridade,


ruptura que permitiu a Derrida, como se viu, afirmar que ela é exposta
ao exterior, em carência de reservas internas, indica então que não há
fronteira intransponível entre o sujeito e o objeto, entre o ego e o outro,
entre o eu e o mundo. Lendo uma vez mais Bataille:

Na experiência, não há mais existência limitada. O homem não se


distingue em nada dos demais: nele se perde o que em outros é
torrencial. A ordenação tão simples: ‘Seja esse oceano’ ligada ao
extremo, faz ao mesmo tempo de um homem uma multidão, um
deserto. É uma expressão que resume e precisa o sentido de uma
comunidade (Bataille, 1954: 52).

Essa concepção de comunidade, lembra Derrida (1968: 397), abre para


uma escrita puramente fictícia, como subtração a todo imperativo
teórico ou ético. Se ela desperta suspeitas sobre sua eficácia
epistemológica é porque, em sua tarefa de se dizer, retoma
inevitavelmente o registro dos sentidos. Ora, em seu texto sobre
Blanchot, Foucault contorna perfeitamente objeções ao separar os dois
níveis: a verificação do sentido e sua locução. Assim, o “eu falo” não se
preocupa em saber se “eu minto”. Essa indiferença é possível ao tornar
o locutor não responsável por seu discurso:

Se, de fato, a linguagem só tem seu lugar na soberania solitária do


‘eu falo’, por direito nada pode limitá-la — nem aquele a quem ela se
dirige, nem a verdade do que ela diz, nem os valores ou os sistemas

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A escrita do sujeito no “livro-experiência” de Foucault

representativos que ela utiliza; em suma, não é mais discurso e


comunicação de um sentido, mas exposição da linguagem em seu ser
bruto, pura exterioridade manifesta, e o sujeito que fala não é mais a
tal ponto o responsável pelo seu discurso (aquele que o mantém, que
através dele afirma e julga, nele se representa às vezes sob uma
forma gramatical preparada para esse efeito) [...] (Foucault, 2001a:
220).

Em suma, o “eu falo” pode ser visado como tal ao ser desatado de
sua relação necessária com a verificação do sentido. “Pensar uma
ficção” se substitui com vantagens a um “pensar a verdade”. Enquanto o
“pensamento do pensamento” aprofunda uma interioridade, “a fala da
fala” conduz ao Exterior, onde não só “desaparece o sujeito que fala”,
como afirma Foucault (2001: 221), mas também toda tradução da
experiência em rede de relações discursivas. Ora, contra a redução da
experiência a um discurso alertam tanto Bataille e Blanchot quanto
Foucault.
Foucault não pode impedir que seus “livros-experiência” tornem-se
base conceitual nas mãos de outrem, de modo a se prestar ao esforço
de integralização das várias experiências da história em uma totalidade
retrospectiva. Contudo, sua insistência nas experiências-limite é, ao
menos, impeditiva de toda versão simples e fundadora da subjetividade,
sobre a qual fundamentar uma epistemologia ou a partir da qual lançar
uma política. Na entrevista a Duccio Trombadori, Foucault é peremptório
ao admitir, a partir de sua vivência tunisiana das turbulências sociais de
1968, o quanto “a precisão da teoria e seu caráter científico [são]
questões totalmente secundárias a funcionar mais como um engodo que
como princípio de conduta correta e justa” (Foucault, 1994: 80). Assim,
“efetuar uma experiência a fundo” permanece questão aberta aos
leitores de Histoire de la folie ou de Naissance de la clinique; convite a

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freqüentar-lhes nas descontinuidades, falhas e negatividades que,


tornando periodicamente o saber e o discurso inadequados a seus
próprios princípios, apresentam-se como seus mais evidentes
motivadores.

Bibliografia

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Recebido em dezembro/2006.
Aprovado em fevereiro/2007.

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