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Gabriella Musetti (Itália), poetisa de Génova, crítica literária e docente de Filosofia e de

Literatura Italiana, actualmente reformada, vive em Trieste. Tem a seu cargo a selecção editorial
da revista Ramo d’Oro. Organiza todos os anos o festival de literatura Residenze Estive, em
Trieste-Duíno.

Tradução de Laura Moniz (Portugal)

oblíquo resta o tempo (2005)

oblíquo resta o tempo


estilhaço diminuto entre os dedos
anos sensatos
suspensos entre palavras
ameaçam dobrados e comedidos
suscita cada dia um como – quando
pára o vento ao entardecer

1
onde permanece a nossa paixão
a escolha o desejo
a sensação do dia que ameaça
a onda que estremece sob o recife
a lua acesa na vertical
a alma do mundo no fundo dos olhos

2
passam os dias passam
como areia frágil entre os dedos
diluem-se no chão
vultos informes
como grupos de formigas
passam furtivamente por entre os grãos
(no chão) escondidos por entre as folhas secas
os ramos mordiscados, os galhos secos
e alguma pedra mais afiada e branca
ali onde um seco asfódelo ondula
em rígido ritmo ao vento

se digo amor amor digo se


penso nas tuas mãos
nos cantos da tua boca fugidios
onde nada se parece entusiasmar
mas depois nos olhos um relampejo
faz-me de novo movimentar
e sinto e não sinto
o lado livre - o ousado –
que muda cada tensão em riso

da desordem nem sempre brota


uma palavra
como quando
sentando à varanda
se levanta o vento
e assobia agudo audaz
através das barras de ferro

lembra-te de mim
quando te afastas
quando outros dias caem
entre as tuas mãos
lembra-te que existo – eu também –
só que um pouco mais à parte
se me atraso

quando te olhei esta manhã


a luz dos teus olhos
o cinzento dos teus cabelos
atulharam o quarto
até durante o dia
invejo as cores
pergunto-me quando virá de novo o sol
sem esperar uma resposta regresso à cama
fecho as persianas
e durmo

porque és tão fechado - às vezes –


nenhuma sombra te arranha
nem te pica levemente
como um rochedo protegido de todas as brisas
com a tua dor no interior
conténs todos os gestos todas as palavras
impenetrável

8
quando te deixas andar
parece um presente
um gesto involuntário
que dissolve num instante a tensão
e te – sempre - surpreende em primeiro lugar

descobrir pouco a pouco


coisas conhecidas vê-las de facto
esboços de palavras mínimos
pormenores que fogem até ao olhar
mais atento
mas ressoam dentro
comparados inúmeras vezes
a outros iguais

10

de ti de mim
que coisa resta
do tempo ausente
das tuas mãos graves
dos pensamentos vorazes
e depois de tudo o que
desmanchado quebrado
não resta nada?

11

há tantos anos estamos juntos


contudo se estás distante
fazes-me falta
não sei que dizer
estou como que suspensa
no ar
sobre uma parede

12

as vinganças dos corpos são atrozes


com o lento desagregar-se do tempo
não é só o corpo em declínio
que grita o seu desdém
mas o olhar apagado
que desenha a perda
de todas as reservas

13
agora, além do mais, estamos calados
mas sigo atenta os teus passos
na escada encontro o teu cachimbo
na casa de banho olho na cadeira
o jornal ainda aberto
e sei que estás no quarto
ao lado

14

é um jogo estar aqui


encontrar-se esperar como que novas
já velhas sensações mas sempre ligeiramente
diferentes
e regressa o jogo de contar
do espelho oblíquo
a imagem para comparar
com antecedência ao efeito

15

a ti
que há anos estás junto
a mim partilhando noites
e dias em lugares conhecidos
prolongas a tua respiração
como quando o vento açoita
dos gestos contidos observo
o opaco desenrolar do tempo

16

o meu algures é aqui


desde os degraus desta escada
às janelas semiabertas
à estrada
pejada de carros estacionados
até ao portão onde a Zénia ladra
aparecendo subitamente por detrás do muro

17

nada é garantido –
- feito – dito – ouvido –
renova-se sempre a incerteza extrema
- por quanto tempo ? –
e uma pergunta levanta-se:
que se repita incontáveis vezes
até ser sonho

18
não nos é dado comandar tudo
separar realidade de fantasias
medos fechados à chave
abrindo o ânimo apenas a certezas
e sem temores olhar a vida:
a mais pacata e inocente
forma vela um espectro de sombra
para colher

19

onde o passado?
não de uma história pessoal
quiçá pouco interessante
ideia tirada de um artigo
lido à socapa no fumo de um cigarro
no começo da tarde no fim de primavera
a casa silenciosa
o meu filho saiu com o cão
a janela aberta baralha
o cheiro a fumo
Penélope abana a cabeça

20

resta uma necessidade interna


no desenrolar concreto das coisas
a vida arrisca em sentido lato
por outro lado já não apazigua
um céu despojado
nem a tensão infinita
afugenta os fragmentos volta
a fazer xeque a ilusão

21

de mil condições adivinhadas


de surpresas de carícias
mal compassadas - a transbordar –
na varanda pela tardinha - do jardim
protector sobressai um melro
as asas fechadas
mordisca talvez um verme
mas lentamente
agacha-se abana-se
projecta-se com um salto no ar
esvaziando a terra –
seguimo-lo com o olhar
vagarosamente em debandada
por entre as casas

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